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01- Delírio

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Inválida para cima de mim — diz ela em tom de brincadeira, mas há certa tensão em sua voz, um toque<br />

de carência. Ela quer que eu a contradiga.<br />

Não digo nada. Por um instante simplesmente olhamos uma para a outra, e toda a luz e a energia de<br />

seu rosto escoam de repente.<br />

— Você não está falando sério — diz ela, afinal. — Não pode estar falando sério.<br />

— Eu preciso, Hana — respondo, em voz baixa.<br />

— Quando? — Ela morde o lábio e desvia o olhar.<br />

— Decidimos hoje. De manhã.<br />

— Não. Quero dizer quando. Quando vocês vão?<br />

Hesito por apenas um segundo. Depois de hoje de manhã, sinto como se não soubesse muito do<br />

mundo ou de mais nada. Mas sei que Hana nunca, nunca me trairia — pelo menos não agora, não até<br />

enfiarem agulhas em seu cérebro e a desmontarem, despedaçarem-na. Entendo agora que é isso o que a<br />

cura faz, afinal: fratura as pessoas, separa-as de si mesmas.<br />

Até lá — até a pegarem — será tarde demais.<br />

— Sexta-feira — digo. — Daqui a uma semana.<br />

Ela expira com força, e o ar assobia ao passar entre os seus dentes.<br />

— Não pode estar falando sério — repete ela.<br />

— Não tem nada para mim aqui — digo.<br />

Ela então me encara. Seus olhos estão enormes, e percebo que a magoei.<br />

— Eu estou aqui.<br />

De repente, vejo a solução — simples, ridiculamente simples. Quase solto uma gargalhada.<br />

— Venha conosco — disparo. Hana examina a praia ansiosamente, mas todo mundo já se dispersou:<br />

o senhor idoso já está na metade da praia e não pode nos ouvir. — Estou falando sério, Hana. Você<br />

poderia vir conosco. Você adoraria a Selva. É incrível. É cheia de grandes assentamentos...<br />

— Você já foi? — ela me interrompe com um tom cortante.<br />

Ruborizo, percebendo que não contei a ela sobre minha noite com Alex na Selva. Sei que ela<br />

também verá isso como uma traição. Eu costumava contar tudo para ela.<br />

— Só uma vez — digo. — E apenas por algumas horas. É incrível, Hana. Não é nem um pouco<br />

como imaginamos. E a travessia... O fato de que é possível atravessar... Tão diferente do que nos<br />

disseram. Mentiram para nós, Hana.<br />

Paro, temporariamente sobrecarregada. Hana olha para baixo, mexendo na costura do short.<br />

— Poderíamos ir — digo, mais suavemente. — Nós três, juntos.<br />

Por um longo tempo Hana não diz nada. Olha para o oceano, estreitando os olhos. Enfim, ela<br />

balança a cabeça, um movimento quase imperceptível, lançando-me um sorriso triste.<br />

— Vou sentir sua falta, Lena — diz ela, e meu coração aperta.<br />

— Hana... — digo, mas ela me interrompe.<br />

— Ou talvez não sinta. — Ela se levanta, sacudindo a areia do short. — É uma das promessas da<br />

cura, certo? Sem dor. Pelo menos não essa.<br />

— Você não precisa fazer a intervenção. — Levanto-me, cambaleante. — Vamos para a Selva.<br />

Ela solta uma risada vazia.<br />

— E deixar tudo isto para trás?<br />

Ela gesticula ao redor. Posso perceber que está brincando, mas só em parte. No fim das contas,<br />

apesar de toda a conversa, das festas escondidas e da música proibida, Hana não quer desistir desta vida,<br />

deste lugar: do único lar que conhecemos. Claro, ela tem uma vida aqui: uma família, um futuro, um bom<br />

par. Eu não tenho nada.<br />

Os cantos da boca de Hana estão tremendo e ela abaixa a cabeça, chutando a areia. Quero fazer com<br />

que se sinta melhor, mas não consigo pensar em nada para dizer. Sinto uma dor horrível no peito.

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