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e eu dissemos um para o outro tivessem me envolvido em uma névoa protetora.<br />
Há mais de um mês não corro com regularidade. Tem feito muito calor, e até pouco tempo atrás<br />
Carol ainda me proibia. Mas, assim que chego em casa, ligo para Hana e peço para me encontrar na<br />
pista, no lugar de onde costumamos começar, e ela apenas ri.<br />
— Estava prestes a ligar para você e fazer a mesma pergunta — diz ela.<br />
— Mentes brilhantes... — comento.<br />
Sua risada se perde por um segundo no zumbido que soa no fone quando, escondido em algum<br />
lugar de Portland, um censor sintoniza em nossa conversa por um momento. O velho olho giratório,<br />
sempre rodando, sempre vigilante. Sinto raiva por um segundo, mas ela logo desaparece. Em breve,<br />
sumirei de uma vez do mapa, para sempre.<br />
Eu queria sair de casa sem ver Carol, mas ela me intercepta quando estou na porta. Como sempre,<br />
ela está na cozinha, repetindo infinitamente seu ciclo de cozinhar e limpar.<br />
— Por onde andou o dia inteiro? — pergunta ela.<br />
— Com Hana — respondo automaticamente.<br />
— E vai sair outra vez?<br />
— Só para uma corrida.<br />
Há algumas horas pensei que, se algum dia a visse novamente, eu pularia em cima dela ou a mataria.<br />
Mas agora, olhando para ela, sinto-me completamente entorpecida, como se ela fosse um outdoor<br />
colorido ou uma desconhecida em um ônibus.<br />
— O jantar é às sete e meia — diz ela. — Gostaria que você estivesse em casa para arrumar a mesa.<br />
— Estarei em casa — respondo. Ocorre-me que esse torpor, esse sentimento de separação, deve ser<br />
o que ela e todos os curados experimentam o tempo todo: como se houvesse um painel de vidro espesso<br />
e isolante entre você e o mundo todo. Quase nada o atravessa. Quase nada importa. Dizem que o<br />
objetivo da cura é a felicidade, mas agora entendo que isso não é verdade e que nunca foi. Ela tem a ver<br />
com o medo: medo da dor, medo de se ferir, medo, medo, medo, uma existência animal e cega<br />
debatendo-se entre paredes, movendo-se entre corredores cada vez mais estreitos, apavorados,<br />
entorpecidos e idiotas.<br />
Pela primeira vez na vida realmente sinto pena de Carol. Tenho apenas dezessete anos e já sei algo<br />
que ela não sabe: sei que a vida não é vida se você apenas passar batido por ela. Sei que o propósito — o<br />
único propósito — é encontrar o que importa e se ater a isso, lutar por isso e se recusar a soltá-lo.<br />
— Tudo bem. — Carol fica ali, um pouco desconfortável, como sempre faz quando quer dizer algo<br />
importante mas não se lembra exatamente como. — Duas semanas até sua cura — diz ela, afinal.<br />
— Dezesseis dias — digo, mas, em minha cabeça, estou contando: sete dias.<br />
Sete dias até estar livre, longe de todas essas pessoas e de suas vidas superficiais e desapegadas,<br />
passando umas pelas outras, deslizando, deslizando, deslizando da vida para a morte. Para eles, quase<br />
não há diferença entre as duas condições.<br />
— É normal se sentir nervosa — diz ela.<br />
É isso o que é tão difícil que ela está tentando dizer, as palavras de conforto que ela precisou se<br />
esforçar tanto para lembrar. Pobre tia Carol: uma vida de louças, latas de feijões-verdes e dias que<br />
escorrem eternamente de um para outro. Nesse momento me ocorre quão envelhecida ela parece. Seu<br />
rosto tem rugas profundas, e há mechas grisalhas no cabelo. Apenas seus olhos me convenceram de que<br />
ela não envelhece: aqueles olhos fixos e velados que todos os curados têm, como se estivessem sempre<br />
perdidos em um ponto distante. Deve ter sido bonita quando jovem, antes de ser curada — é pelo<br />
menos tão alta e provavelmente tão magra quanto minha mãe, e me vem à mente uma imagem das duas<br />
adolescentes como parênteses escuros e esbeltos separados por um oceano prateado, jogando água uma<br />
na outra e rindo. São essas as coisas das quais não se abre mão.<br />
— Ah, não estou nervosa — digo. — Acredite em mim. Mal posso esperar.