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01- Delírio

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cheddar e salgados murchos; sentar no píer e ver as gaivotas gritando e voando em círculos; fazer longas<br />

corridas pelas fazendas, com o orvalho brilhando na grama, como se cada folha fosse revestida de vidro;<br />

o ritmo constante do mar batendo em Portland como um coração; as ruas estreitas de pedra no porto<br />

antigo; as lojas cheias de roupas maravilhosas que nunca poderei comprar.<br />

Lamento apenas por Hana e Grace. Por mim, o restante de Portland pode desaparecer: as torres<br />

falsas esguias e brilhantes, as fachadas neutras das lojas e as pessoas obedientes e sem expressão,<br />

abaixando a cabeça para receber mais mentiras, como animais se oferecendo para o abate.<br />

— Se fugirmos juntos, seremos só você e eu — Alex repete constantemente, como se precisasse se<br />

certificar de que eu entendo, como se precisasse ter certeza de que eu tenho certeza. — Sem volta.<br />

Nunca.<br />

E eu digo:<br />

— É só isso o que eu quero. Só você e eu. Sempre.<br />

E é verdade. Nem sinto medo. Agora que sei que o terei — que temos um ao outro —, sinto como<br />

se nunca mais voltasse a ter medo.<br />

Decidimos sair de Portland dentro de uma semana, exatamente nove dias antes de minha<br />

intervenção. Fico nervosa com a ideia de adiar nossa fuga por tanto tempo — sinto-me tentada a correr<br />

até a fronteira e passar por cima da cerca em plena luz do dia —, mas, como sempre, Alex me acalma e<br />

explica a importância da espera.<br />

Nos últimos anos, ele fez a travessia apenas algumas vezes. É perigoso demais ir e voltar com muita<br />

frequência. No entanto, na próxima semana, Alex vai atravessar duas vezes antes de nossa fuga — um<br />

risco quase suicida, mas ele me convence de que é necessário. Quando tivermos saído e ele começar a<br />

faltar ao trabalho e às aulas, Alex também será invalidado — apesar de, tecnicamente, sua identidade<br />

nunca ter sido válida de verdade, considerando que foi criada pela resistência.<br />

E quando formos invalidados, seremos apagados do sistema. Deletados. Blip! Será como se nunca<br />

tivéssemos existido. Pelo menos podemos contar com o fato de que não seremos perseguidos na Selva.<br />

Não haverá patrulhas. Ninguém virá nos procurar. Se quiserem nos caçar, precisariam admitir que<br />

saímos de Portland, que isso é possível e que os Inválidos existem.<br />

Não seremos nada além de fantasmas, traços, lembranças — e, em breve, enquanto os curados<br />

mantêm os olhos concentrados firmemente no futuro e na longa sequência de dias pela frente, não<br />

seremos nem isso.<br />

Como Alex não poderá voltar a Portland, precisamos levar o máximo possível de comida, roupas<br />

para o inverno e quaisquer outras provisões imprescindíveis. Os Inválidos nos assentamentos são muito<br />

bons em compartilhar suprimentos. Mesmo assim, o outono e o inverno na Selva são sempre difíceis, e<br />

após anos morando em Portland, Alex não tem exatamente muita experiência como caçador-coletor.<br />

Combinamos de nos encontrar na casa à meia-noite para continuar planejando. Levarei os primeiros<br />

pertences que quero trazer comigo: meu álbum de fotos, um envelope com bilhetes que Hana e eu<br />

trocamos nas aulas de matemática do segundo ano do ensino médio e toda comida que eu conseguir<br />

extraviar do depósito da Stop-N-Save.<br />

São quase três horas quando Alex e eu nos separamos e volto para casa. As nuvens praticamente se<br />

dissiparam, e o céu está entremeado no meio delas, um tom azul-claro como seda desbotada e<br />

desgastada. O ar está morno, mas o vento carrega um aroma outonal de frio e fumaça. Logo os verdes<br />

intensos da paisagem queimarão e se tornarão vermelhos e laranja fortes; e depois esses também se<br />

queimarão, dando lugar à frieza rígida e negra do inverno. E eu terei ido embora — partido para algum<br />

lugar entre as árvores trêmulas e esguias cobertas de neve. Mas Alex estará comigo, e viveremos em<br />

segurança. Caminharemos de mãos dadas, nos beijaremos em plena luz do dia, nos amaremos o quanto<br />

quisermos e ninguém vai tentar nos separar.<br />

Apesar de tudo o que aconteceu hoje, estou mais calma do que nunca, como se as palavras que Alex

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