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01- Delírio

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de moscas. O cheiro é nojento, como estar nas Criptas, mas afundo entre elas, grata pelo esconderijo e<br />

pela chance de me sentar. Assim que começo a descansar, a dor latejante em minha cabeça retrocede.<br />

Encosto-me nos tijolos e sinto o mundo balançando, como um navio solto do atracadouro.<br />

Alex se junta a mim instantes depois, agachando à minha frente e afastando os cabelos que cobrem<br />

meu rosto. É a primeira vez que ele consegue me tocar durante o dia.<br />

— Sinto muito, Lena — diz ele, e sei que está sendo sincero de verdade. — Pensei que você gostaria<br />

de saber.<br />

— Doze anos — digo, simplesmente. — Durante doze anos achei que ela estivesse morta.<br />

Por algum tempo ficamos em silêncio. Alex traça círculos em meus ombros, braços e joelhos — em<br />

qualquer lugar que consiga alcançar, na verdade, como se estivesse desesperado para manter contato<br />

físico comigo. Gostaria de poder fechar os olhos e virar poeira, sentir meus pensamentos se dispersarem<br />

como flocos de dentes-de-leão flutuando ao vento. Mas suas mãos sempre me trazem de volta: ao beco, a<br />

Portland e ao mundo que de repente não faz mais sentido.<br />

Ela está em algum lugar, respirando, com sede, comendo, andando, nadando. Impossível, agora, pensar em<br />

prosseguir com minha vida, impossível imaginar dormir, amarrar os cadarços para correr, ajudar Carol<br />

com a louça e até passar o tempo na casa com Alex quando sei que ela vive: que está em algum lugar,<br />

orbitando tão longe de mim quanto uma constelação distante.<br />

Por que ela não me procurou? O pensamento passa tão rápido e claro quanto uma corrente elétrica,<br />

trazendo a dor ardente de volta. Fecho os olhos com força, abaixo a cabeça e rezo para que ela passe.<br />

Mas não sei para quem rezar. De repente, não consigo lembrar nenhuma palavra, não consigo pensar em<br />

nada além de estar em uma igreja quando era pequena e observar o sol brilhando e depois sumindo atrás<br />

dos vitrais, e ver toda aquela luz morrer, deixando para trás nada além de painéis inexpressivos de vidro<br />

colorido baratos e que aparentam não ter substância.<br />

— Ei... Olhe para mim.<br />

Abrir os olhos requer um esforço enorme. Alex parece embaçado, apesar de estar ajoelhado a não<br />

mais do que trinta centímetros de distância.<br />

— Você deve estar com fome — diz ele, suavemente. — Vamos para casa, tudo bem? Está se<br />

sentindo bem para andar?<br />

Ele recua um pouco, dando-me espaço para eu me levantar.<br />

— Não. — A resposta sai com mais ênfase do que eu pretendia, e Alex parece espantado.<br />

— Não está se sentindo bem?<br />

Uma pequena ruga aparece entre suas sobrancelhas.<br />

— Não. — Esforço-me para manter a voz em um volume normal. — Quero dizer que não posso ir<br />

para casa. De jeito nenhum.<br />

Alex suspira e esfrega a testa.<br />

— Poderíamos ir para Brooks um pouco, passar algum tempo na casa. E quando você estiver<br />

melhor...<br />

Interrompo-o.<br />

— Você não entende. — Um grito começa a crescer dentro de mim, como um inseto preto<br />

arranhando minha garganta. Tudo em que consigo pensar é: eles sabiam. Todos eles sabiam: Carol, tio<br />

William, talvez até Rachel, e ainda assim me deixaram acreditar que ela estava morta. Eles me deixaram<br />

acreditar que ela me havia abandonado. Que eu não valia a pena. De repente, sou tomada por uma raiva<br />

ardente, uma chama: se eu os vir, se for para casa, não vou conseguir me conter. Vou queimar a casa, ou<br />

arrebentá-la tábua por tábua. — Quero fugir com você. Para a Selva. Como conversamos.<br />

Penso que Alex vai ficar feliz, mas, em vez disso, ele parece apenas cansado. Desvia o olhar,<br />

estreitando os olhos.<br />

— Lena, foi um dia muito longo. Você está exausta. Está com fome. Não está pensando com

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