04.04.2017 Views

01- Delírio

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Alex me contou há muito tempo que o pai tinha morrido, mas se recusou a entrar em detalhes. “Ele<br />

nunca soube que teve um filho”, essa foi a única informação que Alex deu, e eu concluí que seu pai<br />

havia morrido antes que ele nascesse.<br />

À minha frente, os ombros de Alex sobem e descem: um pequeno suspiro.<br />

— E está — diz ele, virando abruptamente à direita em um corredor curto que leva a uma pesada<br />

porta de ferro. Nela, há outra placa, onde se lê PERPÉTUOS. Abaixo desta palavra alguém escreveu em<br />

caneta HA HA.<br />

— O que você está...<br />

Estou mais confusa do que nunca, mas não tenho tempo para terminar de formular a pergunta. Alex<br />

passa pela porta, e o cheiro que nos recebe — de vento, grama e coisas frescas — é tão inesperado e<br />

bem-vindo que paro de falar, respirando profunda e longamente. Sem perceber, eu estava respirando<br />

pela boca.<br />

Estamos em um pequeno jardim, cercado pelas paredes cinzentas e manchadas das Criptas. A grama<br />

aqui é incrivelmente viçosa, chegando quase a meus joelhos. Uma única árvore torta se ergue à nossa<br />

esquerda, e um pássaro canta em seus galhos. O lugar é surpreendentemente agradável, pacífico e bonito<br />

— estranho estar no meio de um pequeno jardim enquanto se está enclausurado atrás das grossas<br />

paredes de pedra da prisão, como estar exatamente no centro de um furacão e encontrar paz e silêncio<br />

no meio de tanto estrago barulhento.<br />

Alex se afastou diversos passos. Está de pé, cabeça curvada e olhos voltados para o chão. Também<br />

deve ter consciência da paz aqui, da tranquilidade que parece pairar como um véu, cobrindo tudo com<br />

suavidade e descanso. O céu acima de nós está mais escuro do que quando entramos nas Criptas:<br />

contrastando com todo o cinza e as sombras, a grama é vívida e elétrica, como se estivesse iluminada por<br />

dentro. Vai chover a qualquer momento. Precisa chover. Tenho a sensação de que o mundo está<br />

prendendo a respiração antes de um suspiro gigante, equilibrando-se, hesitando, prestes a soltar.<br />

— Aqui. — A voz de Alex soa surpreendentemente alta e me espanta. — Bem aqui. — Ele aponta<br />

para uma chapa de pedra torta no chão. — É aqui que meu pai está.<br />

A grama está cheia de dezenas dessas pedras, que, à primeira vista, pareciam arranjadas de forma<br />

natural e aleatória. Então percebo que foram colocadas deliberadamente na terra. Algumas delas estão<br />

cobertas por marcas pretas desbotadas, a maioria ilegível, apesar de em uma das pedras eu reconhecer a<br />

palavra RICHARD e, em outra, MORREU.<br />

Túmulos, percebo, e o propósito do jardim se torna claro. Estamos no meio de um cemitério.<br />

Alex está olhando para um pedaço grande de concreto, liso como uma tábua, afundado na terra em<br />

frente a seus pés. Nele, toda a escrita está visível, palavras cuidadosamente impressas com o que parece<br />

tinta preta, com as bordas ligeiramente borradas, como se alguém sempre reescrevesse por cima das<br />

letras. WARREN SHEATHES, DESCANSE EM PAZ.<br />

— Warren Sheathes — digo. Quero pegar a mão de Alex, mas acho que não é seguro. Há algumas<br />

janelas cercando o jardim no térreo, e apesar de estarem cobertas de sujeira alguém poderia passar a<br />

qualquer momento, olhar e nos flagrar. — Seu pai?<br />

Alex responde afirmativamente com um aceno e balança os ombros com um movimento repentino,<br />

como se tentasse espantar o sono.<br />

— É.<br />

— Ele estava aqui?<br />

Um dos cantos da boca de Alex se ergue em um sorriso, mas o restante do rosto permanece duro<br />

como pedra.<br />

— Durante catorze anos.<br />

Ele desenha lentamente com o pé um círculo na terra, o primeiro sinal físico de desconforto ou<br />

distração que ele apresenta desde que chegamos. Nesse instante, fico maravilhada diante dele: desde que

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!