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01- Delírio

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Não consigo me virar para Alex, então continuo falando:<br />

— Às vezes, ela fazia panquecas de mirtilo no jantar, como um agrado. Ela mesma colhia os<br />

mirtilos. E estava sempre cantando. Tinha uma voz linda, simplesmente maravilhosa, como mel...<br />

Minha voz se quebra, mas não consigo parar agora. As palavras saem em uma torrente.<br />

— Ela também costumava dançar. Já contei isso para você. Quando eu era pequena, subia nos pés<br />

dela, ela me abraçava, e nos movíamos lentamente pelo quarto enquanto ela contava as batidas e tentava<br />

me ensinar o ritmo. Eu era péssima, desajeitada, mas ela sempre dizia que eu era linda. — Lágrimas<br />

molham o chão ao redor de meus pés. — Nem sempre era bom, não o tempo todo. Às vezes, eu<br />

acordava no meio da noite para ir ao banheiro e a ouvia chorando. Ela sempre tentava abafar o som com<br />

o travesseiro, mas eu sabia. Era assustador quando ela chorava. Eu nunca tinha visto um adulto chorar,<br />

sabe? E a maneira como ela fazia, uivando... Como um animal. E havia dias em que ela sequer saía da<br />

cama. Ela chamava aqueles momentos de dias negros.<br />

Alex se aproxima de mim. Estou tremendo tanto que mal consigo ficar em pé. Meu corpo inteiro<br />

parece querer expelir algo, cuspir fora algo das profundezas de meu peito.<br />

— Eu costumava rezar para que Deus a curasse de seus dias negros. Para que a mantivesse... Para<br />

que a mantivesse segura para mim. Eu queria que ficássemos juntas. Às vezes, as orações pareciam<br />

funcionar. Na maior parte do tempo, era bom. Era mais do que bom. — Mal consigo pronunciar essas<br />

palavras. Preciso forçá-las em um sussurro baixo. — Não entende? Ela abandonou tudo isso. Ela abriu<br />

mão por... Por essa coisa. Amor. Amor deliria nervosa... o que quer que seja. Ela abriu mão de mim.<br />

— Sinto muito, Lena — Alex sussurra atrás de mim. Dessa vez ele se aproxima. Começa a traçar<br />

círculos longos e lentos em minhas costas. Eu me recosto nele.<br />

Mas ainda não acabei. Limpo as lágrimas energicamente e respiro fundo.<br />

— Todo mundo pensa que ela se matou porque não aguentaria passar pela intervenção de novo.<br />

Ainda tentavam curá-la, sabe? Seria sua quarta vez. Após a segunda, recusaram-se a anestesiá-la porque<br />

achavam que a anestesia estava interferindo na atuação da cura. Cortaram o cérebro dela, Alex, e ela estava<br />

acordada.<br />

A mão dele se enrijece temporariamente, e eu sei que ele está tão furioso quanto eu. Em seguida, os<br />

círculos recomeçam.<br />

— Mas sei que não foi por isso. — Balanço a cabeça. — Minha mãe era corajosa. Não tinha medo<br />

da dor. Esse era o problema, na verdade. Não tinha medo. Não queria ser curada; não queria deixar de<br />

amar meu pai. Lembro que ela me disse isso uma vez, pouco antes de morrer. “Estão tentando tirá-lo de<br />

mim”, ela disse. E sorria de um modo bastante triste. “Estão tentando tirá-lo, mas não podem.” Ela<br />

usava um broche dele pendurado no pescoço. Mantinha-o escondido quase sempre, mas, naquela noite,<br />

ele estava exposto, e ela o olhava fixamente. Era um objeto estranho, longo e prateado, uma espécie de<br />

adaga, com duas joias brilhantes no cabo, como olhos. Meu pai o usava na manga da camisa. Depois que<br />

ele morreu, ela usava aquilo todos os dias e não tirava nem para tomar banho...<br />

De repente, percebo que Alex tirou a mão e deu dois passos para trás; viro-me e vejo que ele está me<br />

encarando, pálido e chocado, como se tivesse acabado de ver um fantasma.<br />

— O quê? — Pergunto-me se é possível que eu o tenha ofendido de alguma forma. Algo na maneira<br />

como ele está me encarando faz um medo bater em meu peito, uma inquietação frenética. — Eu disse<br />

algo errado?<br />

Ele balança a cabeça, um movimento quase imperceptível. Seu corpo permanece tão tenso quanto<br />

um fio esticado entre dois postes.<br />

— Qual era o tamanho? Quer dizer, do pingente. — Sua voz soa estranhamente aguda.<br />

— A questão não é o pingente, Alex, a questão é que...<br />

— Qual era o tamanho? — repete ele, mais alto e mais forte.<br />

— Não sei. Do tamanho de um polegar, talvez. — Estou completamente espantada com o

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