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01- Delírio

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olhas.<br />

— É, eu sei. Acredite, li a Shhh tanto quanto qualquer um. — Hana levanta os óculos escuros até a<br />

testa, pisca para mim e repete em um tom meloso: — “O Dia da Avaliação é um rito de passagem<br />

emocionante, que o prepara para um futuro de felicidade, estabilidade e parceria.”<br />

Ela volta a apoiar os óculos no nariz e faz uma careta.<br />

— Você não acredita? — pergunto, diminuindo a voz até um sussurro.<br />

Hana tem parecido estranha. Ela sempre foi diferente dos outros — mais honesta, mais<br />

independente, mais destemida. É uma das razões pelas quais quis ser sua amiga. Sempre fui tímida e tive<br />

medo de falar ou de fazer alguma coisa errada. Hana é o oposto de mim.<br />

Ultimamente, porém, tem sido mais que isso. Ela parou de se importar com a escola, para começar, e<br />

foi chamada à sala da diretora diversas vezes por responder mal aos professores. E, às vezes, ela para no<br />

meio de uma conversa e simplesmente se cala como se colidisse contra uma barreira. Outras vezes, eu a<br />

pego fitando o oceano como se pensasse em fugir nadando.<br />

Olhando para ela, para seus olhos cinzentos e claros e a boca tão fina e esticada quanto a corda de<br />

um arco, sinto uma pontada de medo. Penso em minha mãe se debatendo no ar antes de cair como uma<br />

pedra no oceano; penso no rosto da menina que se jogou do telhado do laboratório há tantos anos, com<br />

a bochecha no chão. Afasto os pensamentos sobre a doença. Hana não está doente. Não pode estar. Eu<br />

saberia.<br />

— Se realmente quisessem que fôssemos felizes, eles nos deixariam fazer nossas próprias escolhas<br />

— resmunga Hana.<br />

— Hana — chamo bruscamente. Criticar o sistema é a pior ofensa que existe. — Retire o que disse.<br />

Ela levanta as mãos.<br />

— Tudo bem, tudo bem. Retiro o que disse.<br />

— Você sabe que não funciona. Lembre como era antigamente. Um caos permanente, brigas e<br />

guerra. As pessoas eram extremamente infelizes.<br />

— Já falei… Retiro o que disse.<br />

Ela sorri para mim, mas continuo irritada e desvio o olhar.<br />

— Além disso — continuo —, eles nos dão escolha.<br />

Geralmente os avaliadores fazem uma lista com quatro ou cinco candidatos aprovados, e podemos<br />

escolher entre eles. Dessa forma, todos ficam satisfeitos. Em todos os anos desde que a intervenção tem<br />

sido realizada e os casamentos são arranjados, houve menos de uma dúzia de divórcios no Maine e<br />

menos de mil em todo o país — e em quase todos os casos o marido ou a mulher eram suspeitos de ser<br />

simpatizantes, e o divórcio foi necessário e aprovado pelo governo.<br />

— Uma escolha limitada — Hana me corrige. — Podemos escolher dentre as pessoas que<br />

escolheram para nós.<br />

— Toda escolha é limitada — disparo. — A vida é assim.<br />

Ela abre a boca como se fosse responder, mas, em vez disso, começa a rir. Em seguida, abaixa a mão<br />

e segura a minha, com dois apertos curtos e dois longos. Nosso velho sinal: um hábito que<br />

desenvolvemos no segundo ano, quando uma de nós estava assustada ou triste, era um modo de dizer<br />

Estou aqui, não se preocupe.<br />

— Tudo bem, tudo bem. Não precisa ficar tão defensiva. Adoro as avaliações, ok? Vida longa ao Dia<br />

da Avaliação — diz ela.<br />

— Assim é melhor — digo, mas ainda me sinto ansiosa e irritada.<br />

A fila avança lentamente. Passamos pelos portões de ferro, com sua coroa intrincada de arame<br />

farpado, e entramos no longo caminho que leva aos diversos prédios. Seguimos para o Prédio 6-C. Os<br />

garotos vão para o Prédio 6-B, então as filas começam a se distanciar uma da outra.<br />

Ao nos aproximarmos do começo da fila, recebemos um sopro de ar condicionado cada vez que as

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