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01- Delírio

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nele, eu me senti uma princesa. Quase ninguém tem carro, e menos ainda carros que de fato andam. O<br />

combustível é estritamente racionado e extremamente caro. Algumas pessoas de classe média mantêm<br />

carros parados na frente de casa como estátuas, sem vida e sem utilidade, com pneus novinhos e<br />

impecáveis.<br />

— Oi, Carol — diz Hana sem fôlego, alcançando-nos. Uma revista cai da bolsa meio aberta e ela se<br />

inclina para pegá-la. É uma das publicações do governo, Casa e Família, e, em resposta a minhas<br />

sobrancelhas erguidas, ela faz uma careta. — Minha mãe me obrigou a trazer. Ela disse que devo ler<br />

enquanto espero a avaliação. E que isso vai transmitir a impressão certa.<br />

Hana enfia o dedo na boca e finge que vai vomitar.<br />

— Hana — sussurra minha tia em tom sério.<br />

A ansiedade em sua voz faz meu coração saltar. Carol raramente se irrita, nem mesmo por um<br />

minuto. Ela vira a cabeça de um lado para o outro, como se esperasse encontrar reguladores e<br />

avaliadores escondidos em plena luz do dia.<br />

— Não se preocupe. Não estão nos espionando — diz Hana, e se vira de costas para minha tia e<br />

move os lábios para mim como se dissesse “ainda”. Em seguida, ela sorri.<br />

À nossa frente, as filas de meninas e meninos aumentam, invadindo a rua, ao mesmo tempo que as<br />

portas de vidro do laboratório se abrem e diversas enfermeiras aparecem trazendo pranchetas e<br />

chamando as pessoas para as salas de espera. Minha tia coloca gentilmente uma das mãos em meu<br />

ombro, rápida como um passarinho.<br />

— É melhor você entrar na fila — diz ela. Sua voz voltou ao normal. Queria que parte de sua calma<br />

passasse para mim. — E, Lena?<br />

— Oi?<br />

Não me sinto muito bem. O laboratório parece distante, tão branco que mal aguento olhar para ele,<br />

e o chão quente brilha à nossa frente. As palavras dia mais importante de sua vida se repetem em minha<br />

cabeça. O sol parece um holofote gigante.<br />

— Boa sorte.<br />

Minha tia mostra seu sorriso de um milésimo de segundo.<br />

— Obrigada.<br />

Gostaria que Carol dissesse mais alguma coisa, como tenho certeza de que vai se sair bem ou tente não se<br />

preocupar, mas ela simplesmente fica ali, piscando, seu rosto firme e ilegível como sempre.<br />

— Não se preocupe, Sra. Tiddle. — Hana pisca para mim. — Cuidarei para que ela não se saia<br />

muito mal. Prometo.<br />

Todo o meu nervosismo se dissipa. Hana está relaxada em relação a tudo, bem indiferente e normal.<br />

Hana e eu caminhamos para o laboratório. Hana tem quase um metro e setenta e cinco. Quando<br />

caminho ao lado dela, preciso saltitar a cada dois passos para acompanhá-la, e acabo me sentindo como<br />

um pato subindo e descendo na água. Hoje, porém, isso não me incomoda. Fico feliz com ela aqui<br />

comigo. Se Hana não tivesse vindo, eu estaria péssima.<br />

— Meu Deus — diz ela enquanto nos aproximamos das filas. — Sua tia leva tudo isso muito a<br />

sério, hein?<br />

— Bem, tudo isso é sério.<br />

Alcançamos o fim da fila. Reconheço algumas pessoas: umas garotas vagamente familiares da escola<br />

e uns garotos que vi jogando futebol atrás do Spencer, um dos colégios particulares para meninos. Um<br />

dos garotos olha em minha direção e me flagra encarando-o. Ele ergue as sobrancelhas, e eu desvio o<br />

olhar para baixo rapidamente, meu rosto esquentando de repente e uma coceira nervosa atingindo<br />

minha barriga. Você terá um par em menos de três meses, digo a mim mesma, mas as palavras nada significam<br />

e parecem ridículas, como um dos jogos com palavras que fazíamos quando éramos crianças e que<br />

sempre resultavam em frases sem sentido: Quero bananas para barco. Dê meu sapato molhado para seu bolo com

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