04.04.2017 Views

01- Delírio

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

marca da resistência, mas todos parecem os mesmos: preocupados, apressados, irritados, distraídos.<br />

Quando chego em casa, Carol está na cozinha lavando a louça. Tento passar por ela, mas ela me<br />

chama. Paro com um pé na escada. Ela aparece no corredor, secando as mãos em um pano de prato.<br />

— Como foi lá na casa de Hana? — pergunta. Ela passa os olhos por todo o meu rosto,<br />

investigando, como se buscasse sinais de algo. Luto contra outra onda de paranoia. Ela não tem como<br />

saber onde eu estive.<br />

— Foi legal — digo, dando de ombros, tentando soar casual. — Mas não dormi muito.<br />

— Hum... — Carol continua me olhando intensamente. — O que vocês fizeram?<br />

Ela nunca pergunta sobre a casa de Hana, não faz perguntas há anos. Algo está errado, penso.<br />

— Você sabe, o de sempre. Vimos tevê. Hana tem, tipo, uns sete canais. — Não consigo perceber se<br />

minha voz soa estranha e aguda ou se é apenas minha imaginação.<br />

Carol desvia o olhar, contraindo a boca para cima, como se tivesse engolido um pouco de leite azedo<br />

sem querer. Dá para perceber que ela está tentando encontrar um modo de dizer alguma coisa<br />

desagradável; Carol faz essa cara de leite azedo sempre que precisa dar uma notícia ruim. Ela sabe sobre<br />

Alex, ela sabe, ela sabe. As paredes me pressionam, e o calor é sufocante.<br />

Então, para minha surpresa, ela curva a boca em um sorriso, se aproxima e toca meu braço.<br />

— Sabe, Lena... Não vai ser assim por muito tempo.<br />

Consegui passar vinte e quatro horas sem pensar na intervenção, mas agora aquele número terrível e<br />

cada vez menor volta à minha mente, encobrindo todo o restante. Dezessete dias.<br />

— Eu sei — consigo dizer. Agora minha voz, definitivamente, soa estranha.<br />

Carol assente e mantém o meio-sorriso estranho estampado no rosto.<br />

— Sei que é difícil acreditar, mas você não sentirá falta dela depois que tudo isso acabar.<br />

— Eu sei — digo, como se houvesse um sapo moribundo em minha garganta.<br />

Carol continua assentindo vigorosamente. Parece que sua cabeça está presa a um ioiô. Tenho a<br />

sensação de que ela quer dizer mais alguma coisa, algo que vai me confortar, mas, obviamente, ela não<br />

consegue pensar em nada, porque ficamos ali paradas por quase um minuto.<br />

Finalmente, digo:<br />

— Vou subir. Banho.<br />

Preciso reunir toda a minha força de vontade para soltar essas palavras. Dezessete dias, isso continua<br />

atravessando minha mente, como um alarme.<br />

Carol parece aliviada por eu ter rompido o silêncio.<br />

— Tudo bem — diz ela. — Tudo bem.<br />

Começo a subir as escadas, dois degraus de cada vez. Mal posso esperar para me trancar no<br />

banheiro. Apesar de provavelmente estar fazendo mais de trinta graus dentro de casa, quero ficar<br />

embaixo de uma corrente de água bem quente, derretendo-me em vapor.<br />

— Ah, Lena — Carol grita, quase como se aquilo só tivesse lhe ocorrido agora. Viro-me, mas ela<br />

não está olhando para mim. Está inspecionando a borda gasta de um de seus panos de prato. — Você<br />

deveria vestir alguma coisa legal. Um vestido ou aquelas calças brancas bonitas que você ganhou no ano<br />

passado. E arrume o cabelo. Use o secador.<br />

— Por quê?<br />

Não estou gostando do jeito como ela evita me olhar, principalmente porque sua boca está<br />

entortando outra vez.<br />

— Convidei Brian Scharff para vir aqui hoje — diz ela casualmente, como se isso fosse algo<br />

cotidiano e normal.<br />

— Brian Scharff? — repito, estupidamente. O nome parece estranho em minha boca e deixa um<br />

gosto metálico.<br />

Carol levanta a cabeça e olha para mim.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!