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01- Delírio

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de se perceber a diferença. Alex segue de sombra em sombra, movendo-se em silêncio pela grama. Em<br />

alguns lugares, ele parece desaparecer completamente diante de meus olhos, parece se derreter na<br />

escuridão.<br />

Ao contornarmos o lado norte da enseada, os postos de guarda começam a ficar mais bem-definidos<br />

— tornando-se realmente construções, guaritas pequenas de concreto com vidro à prova de balas.<br />

Suor surge em minhas mãos, e o nó em minha garganta parece quadruplicar o tamanho, até que eu<br />

me sinta estrangulada. De repente, percebo quão idiota é nosso plano. Cem — mil! — coisas podem dar<br />

errado. O guarda na guarita número vinte e um pode não ter tomado seu café ainda — ou não o<br />

suficiente para apagar — ou o remédio pode não ter funcionado. E, mesmo que ele esteja dormindo,<br />

Alex pode estar enganado quanto a quais partes da cerca não são eletrificadas; ou a prefeitura pode ter<br />

ativado toda a sua extensão apenas por hoje à noite.<br />

Tenho tanto medo que acho que estou prestes a desmaiar. Quero chamar a atenção de Alex e gritar<br />

que precisamos voltar, cancelar todo o plano, mas ele continua se movendo depressa à minha frente, e<br />

gritar ou fazer qualquer barulho certamente atrairá a atenção dos guardas. E os guardas fazem os<br />

reguladores parecerem criancinhas brincando de polícia e ladrão. As patrulhas de reguladores usam<br />

cassetetes e cachorros; guardas têm fuzis e gás lacrimogêneo.<br />

Finalmente, chegamos à parte norte da enseada. Alex se abaixa atrás de uma das árvores maiores e<br />

espera que eu o alcance. Agacho-me a seu lado. Esta é minha última oportunidade para dizer que quero<br />

voltar, mas não consigo falar, e quando tento balançar a cabeça negativamente, nada acontece. Sinto<br />

como se estivesse de volta ao meu sonho, sendo sugada pela escuridão, debatendo-me como um inseto<br />

preso em um pote de mel.<br />

Talvez Alex perceba o quanto estou assustada. Ele se inclina para a frente e leva um momento<br />

tentando encontrar minha orelha. Sua boca esbarra uma vez em meu pescoço e passa levemente por<br />

minha bochecha — o que, apesar do pânico, me faz tremer de prazer — e, então, chega ao lóbulo de<br />

minha orelha.<br />

— Vai ficar tudo bem — sussurra, fazendo com que eu me sinta ligeiramente melhor. Nada ruim<br />

vai acontecer enquanto eu estiver com Alex.<br />

Então nos levantamos outra vez. Avançamos em intervalos, indo silenciosamente de uma árvore<br />

para outra e parando enquanto Alex presta atenção e se certifica de que nada mudou, não houve gritos<br />

ou ruídos de passos se aproximando. Os momentos de exposição — entre os esconderijos — se tornam<br />

mais longos à medida que a quantidade de árvores diminui, e o tempo todo nos aproximamos da linha<br />

onde a faixa de grama e de vegetação desaparece de vez e precisaremos nos mover em um espaço aberto,<br />

completamente vulneráveis. É uma distância de apenas quinze metros entre o último arbusto e a cerca,<br />

mas para mim é como se fosse um lago de fogo.<br />

Do outro lado de uma estrada destruída da época em que Portland ainda não era enclausurada<br />

encontra-se a cerca em si: erguendo-se prateada ao luar, como uma enorme teia de aranha. Um lugar<br />

onde bichos grudam, ficam presos, são comidos. Alex me disse para levar o tempo necessário, para me<br />

concentrar antes de passarmos pelo arame farpado no topo da cerca, mas não consigo deixar de me<br />

imaginar sendo perfurada por todas aquelas pontas afiadas.<br />

Então, de repente, vamos — fora da proteção limitada oferecida pelas árvores, movendo-nos<br />

rapidamente pelo cascalho e xisto da estrada velha. Alex vai na frente, quase completamente curvado, e<br />

eu o sigo inclinando-me ao máximo, mas isso não me faz sentir menos exposta. O medo grita, atingindome<br />

por todos os lados; nunca vivi algo parecido. Não sei se o vento aumenta naquele segundo ou se é<br />

apenas o pânico me dominando, mas meu corpo inteiro parece gelo.<br />

A escuridão parece ganhar vida por todos os lados, cheia de sombras confusas e formas maliciosas e<br />

ameaçadoras, prontas para se tornar um guarda a qualquer instante, e imagino o silêncio de repente<br />

pontuado por gritos, suspiros, buzinas, tiros. Imagino uma dor pungente e luzes brilhantes. O mundo

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