Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
arrancada, provavelmente por ratos, mas dá para perceber que ele deve ter sido bonito — elegante, até.<br />
Pego o relógio na mochila e programo o alarme para onze e meia. Será uma longa noite. Então,<br />
estico-me no sofá cheio de calombos, ajeitando a mochila sob a cabeça. Não é o travesseiro mais<br />
confortável do mundo, mas vai servir.<br />
Fecho os olhos e deixo que os ruídos dos ratos e os grunhidos baixos e misteriosos nas paredes me<br />
embalem.<br />
* * *<br />
Acordo na escuridão após um pesadelo com minha mãe. Sento-me ereta e por um segundo de pânico<br />
não sei onde estou. As molas estragadas rangem embaixo de mim, e então lembro: a casa na rua Brooks.<br />
Procuro meu despertador e vejo que já são onze e vinte. Sei que deveria me levantar, mas ainda me sinto<br />
grogue por causa do calor e do sonho, e por mais alguns instantes fico ali, respirando profundamente.<br />
Estou suando; o cabelo gruda em minha nuca.<br />
Meu sonho foi o mesmo de sempre, mas, dessa vez, ao contrário: eu estava boiando no oceano,<br />
balançando as pernas e os braços para me manter na superfície, vendo minha mãe na beira de um<br />
penhasco a centenas e centenas de metros acima de mim — tão distante que não pude identificar suas<br />
feições, apenas linhas embaçadas de sua silhueta, emolduradas contra o sol. Eu tentava alertá-la, levantar<br />
os braços e acenar para que voltasse, para que se afastasse da beirada, porém, quanto mais eu me<br />
esforçava, mais a água parecia me arrastar e me deter, com a consistência de cola, travando meus braços<br />
e se infiltrando em minha garganta para deter minhas palavras. E, o tempo todo, grãos de areia<br />
flutuavam a meu redor como neve, e eu sabia que a qualquer segundo ela cairia e esmagaria a cabeça nas<br />
pedras escarpadas que emergiam da água como unhas afiadas.<br />
E então ela estava caindo, movendo os braços, um ponto negro crescendo cada vez mais contra o sol<br />
ofuscante, e eu tentava gritar, mas não conseguia, e, à medida que a figura aumentava, eu percebia que<br />
não era minha mãe caindo na direção das pedras.<br />
Era Alex.<br />
Foi então que acordei.<br />
Finalmente me levanto, ligeiramente tonta, tentando ignorar a sensação de pavor. Cambaleio<br />
lentamente até a janela e fico aliviada quando estou fora da casa, apesar de correr mais perigo quando<br />
estou nas ruas. Mas ao menos há um pouco de brisa. A atmosfera na casa estava sufocante.<br />
Alex já está esperando por mim quando chego à enseada Back, agachado nas sombras projetadas por<br />
um grupo de árvores próximas ao antigo estacionamento. Está tão bem-escondido que quase tropeço<br />
nele. Estende a mão e me faz abaixar também. Ao luar, seus olhos parecem brilhar, como os de um gato.<br />
Ele gesticula silenciosamente para o outro lado da enseada, até a linha de luzes brilhando pouco<br />
antes da fronteira: as guaritas. De longe, parecem uma linha de lanternas brancas e luminosas<br />
penduradas para um piquenique noturno — quase alegres. Seis metros após as guaritas está a cerca e,<br />
além da cerca, a Selva. As luzes nunca me pareceram tão estranhas quanto agora, dançando e oscilando<br />
ao vento. Fico feliz pelo acordo que Alex e eu fizemos de não nos falarmos até atravessarmos a<br />
fronteira. O nó em minha garganta já dificulta minha respiração, quanto mais uma conversa.<br />
Atravessaremos a cerca no final da ponte Tukey, na extremidade nordeste da enseada: se<br />
estivéssemos nadando, seria uma reta diagonal desde nosso ponto de encontro. Alex aperta minha mão<br />
três vezes. É nosso sinal para avançarmos.<br />
Sigo-o enquanto percorremos o perímetro da enseada, com cuidado para evitar o terreno pantanoso;<br />
parece enganosamente grama, sobretudo no escuro, mas é possível ser sugado quase até o joelho antes