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01- Delírio

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das simpatizantes mais ativas de Portland foi pareada com o guarda noturno da extremidade norte da<br />

ponte Tukey, exatamente por onde atravessaremos. Alex e ela desenvolveram um sinal. Nas noites em<br />

que quer atravessar, ele deixa um folheto em sua caixa de correio, como aqueles papéis xerocados idiotas<br />

distribuídos por restaurantes e lavanderias. Esse faz propaganda de um exame oftalmológico gratuito<br />

com o Dr. Silva (o que me parece bastante óbvio, mas Alex diz que os resistentes e os simpatizantes<br />

vivem sob tanto estresse que precisam se permitir piadinhas internas), e sempre que ela o encontra,<br />

certifica-se de colocar uma dose extragrande de Valium no café que prepara para o marido tomar<br />

durante o trabalho.<br />

— Coitado — diz Alex, sorrindo. — Não importa quanto café ele tome, simplesmente não<br />

consegue ficar acordado. — Dá para perceber o quanto a resistência é importante para Alex, e o quanto<br />

ele se orgulha por ela estar ali, saudável, forte, estendendo seus tentáculos por toda Portland. Tento<br />

sorrir, mas minhas bochechas parecem rígidas. Ainda me espanta saber que tudo o que aprendi é tão<br />

errado, e ainda é difícil pensar em simpatizantes e resistentes como aliados, e não como inimigos.<br />

No entanto, atravessar a fronteira me tornará uma deles, sem sombra de dúvida. Ao mesmo tempo,<br />

não posso considerar seriamente a possibilidade de desistir agora. Quero ir; e, para ser sincera, tornei-me<br />

uma simpatizante há muito tempo, quando Alex me perguntou se eu queria encontrá-lo na enseada Back<br />

e eu disse sim. Parece que tenho apenas memórias difusas da menina que eu era antes — a menina que<br />

sempre fazia o que mandavam, nunca mentia, e contava os dias até a intervenção com ansiedade, e não<br />

pavor e medo. A menina que tinha medo de tudo e de todos. A menina que tinha medo de si mesma.<br />

Quando volto da loja para casa no dia seguinte, faço questão de perguntar a Carol se posso usar seu<br />

celular. Então, envio uma mensagem para Hana: Dormir aí hj, c/ A? Este tem sido nosso código<br />

ultimamente sempre que preciso que Hana me dê cobertura. Dissemos a Carol que temos passado muito<br />

tempo com Allison Doveney, que acabou de se formar conosco. Os Doveney são ainda mais ricos que a<br />

família de Hana, e Allison é uma idiota arrogante. Inicialmente, Hana protestou contra usarmos Allison<br />

como o misterioso “A”, dizendo que não queria nem pensar em fingir que passaria algum tempo com ela,<br />

mas eu a convenci. Carol jamais ligaria para os Doveney para me procurar. Ela se sentiria intimidada<br />

demais e provavelmente envergonhada — minha família é impura, marcada pela deserção do marido de<br />

Marcia e, claro, por minha mãe, e o Sr. Doveney é o presidente e fundador da filial de Portland da ASD,<br />

América Sem Deliria. Allison Doveney não suportava olhar para mim quando estudávamos juntas, e na<br />

época do primário depois que minha mãe morreu, ela pediu para trocar de mesa, para ficar ainda mais<br />

longe de mim, dizendo à professora que eu tinha cheiro de algo em decomposição.<br />

A resposta de Hana é quase imediata: Blz. Até mais.<br />

Fico imaginando o que Allison pensaria se soubesse que a tenho utilizado como disfarce para<br />

encontrar meu namorado. Teria um ataque, com certeza, e esse pensamento me faz sorrir.<br />

Um pouco antes das oito horas desço as escadas com a mochila pendurada visivelmente em meu<br />

ombro. Até deixei um pedaço do pijama para fora. Preparei a mochila exatamente como faria se<br />

realmente estivesse indo para a casa de Hana. Quando Carol me lança um sorriso breve e deseja que eu<br />

me divirta, sinto uma leve pontada de culpa. Minto com muita frequência e facilidade agora.<br />

Mas não é o suficiente para me conter. Quando estou na rua, sigo em direção a West End, caso<br />

Jenny ou Carol estejam me observando da janela. Somente quando chego à rua Spring mudo meu trajeto<br />

em direção à avenida Deering e sigo para a casa na rua Brooks. A caminhada é longa, e chego a Deering<br />

Highlands com os últimos raios de luz no céu. Como sempre, as ruas daqui estão desertas. Passo pelo<br />

portão enferrujado que cerca a propriedade, afasto as ripas de madeira soltas que cobrem uma das<br />

janelas do térreo e entro na casa.<br />

A escuridão me surpreende, e por um instante fico ali, piscando até meus olhos se acostumarem à<br />

pouca luz. O ar parece grudento e rançoso, e a casa cheira a bolor. Várias formas começam a surgir, e<br />

vou até o sofá com manchas de mofo na sala. As molas estão arrebentadas e metade do estofamento foi

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