01- Delírio

dezessete
Houve muita discussão na comunidade científica sobre se o desejo é sintoma de um sistema infectado com amor deliria nervosa
ou uma precondição para a doença propriamente dita. Concorda-se unanimemente, no entanto, que o amor e o desejo vivem uma
relação simbiótica, o que significa que um não pode existir sem o outro. O desejo é inimigo do contentamento; desejo é doença, um
cérebro febril. Quem pode ser considerado saudável desejando? A própria palavra querer sugere uma falta, um empobrecimento, e
é isso o que o desejo é: um empobrecimento do cérebro, um defeito, um erro. Felizmente, agora isso pode ser corrigido.
— As raízes e repercussões do amor deliria nervosa no funcionamento cognitivo, Dr. Phillip Berryman, 4ª edição.
Agosto se acomoda em Portland, soprando seu ar quente e fedido em cima de tudo. As ruas são
insuportáveis durante o dia, o sol é implacável e as pessoas invadem os parques e as praias, desesperadas
por sombras ou brisas. Fica mais difícil ver Alex. A praia em East End — normalmente vazia — está
quase sempre cheia, mesmo à noite, depois que saio do trabalho. Vou encontrá-lo duas vezes, e está
perigoso demais para conversarmos ou fazermos sinais um para o outro, exceto por um rápido aceno de
cabeça aceitável entre dois estranhos. Então, estendemos nossas toalhas na areia, a cinco metros de
distância. Ele põe os fones de ouvido e eu finjo ler. Sempre que nossos olhos se encontram, meu corpo
inteiro se acende como se ele estivesse deitado a meu lado, acariciando minhas costas, e, apesar de ele
manter a expressão séria, percebo por seus olhos que está sorrindo. Nada nunca foi tão doloroso ou
delicioso quanto estar tão perto dele e não poder fazer nada: é como tomar sorvete muito rápido em um
dia quente e ficar com dor de cabeça por isso. Começo a entender o que Alex disse sobre os “tios” —
sobre como eles sentiam falta até mesmo da dor após a intervenção. De algum jeito, a dor só deixa a
situação melhor, mais intensa, mais valiosa.
Como as praias estão fora de cogitação, ficamos na casa trinta e sete da rua Brooks. O jardim está
sofrendo com o calor. Não chove há mais de uma semana, e os raios de sol — que em julho desciam
suavemente através das copas das árvores, como passos levíssimos — agora cortam como adagas a tenda
de galhos, deixando a grama marrom. Até as abelhas parecem inebriadas no calor, circulando
lentamente, colidindo, batendo nas flores ressecadas antes de caírem no chão e voltarem a voar,
entorpecidas.
Em uma tarde, Alex e eu estamos deitados no cobertor. Estou de costas na grama, e o céu parece se
desfazer em tons cambiantes de azul, verde e branco. Alex está de bruços e parece nervoso com algo. Ele
não para de acender fósforos, observando-os queimar e soprando-os somente quando o fogo está quase
em seus dedos. Penso no que ele me disse aquela vez no abrigo: em sua raiva ao vir para Portland e em
como ele costumava queimar coisas.
Há tanto que não sei a seu respeito — tanto passado e história enterrados em algum lugar dentro
dele. Alex teve de aprender a escondê-los ainda mais do que a maioria de nós. Em algum lugar, imagino,
ele preserva uma espécie de núcleo. Algo que brilha como um carvão sendo lentamente comprimido até
formar um diamante, sufocado por camadas e mais camadas de solo.
Há tanto que não perguntei, tantos assuntos sobre os quais nunca falamos. Porém, sob outros
aspectos, sinto que realmente o conheço e que sempre o conheci, sem precisar que ele me conte nada.
— Deve estar agradável na Selva agora — digo de repente, só por falar. Alex se vira para mim, e
gaguejo rapidamente: — Quer dizer... deve ser mais fresco do que aqui. Por causa de todas as árvores e
sombras.