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01- Delírio

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começo, permito apenas que ele puxe a manga de minha blusa para o lado e beije minha clavícula e meus<br />

ombros. Depois, deixo que ele tire minha blusa, me deite ao sol e simplesmente me olhe. Na primeira<br />

vez, tremo. Sinto constantemente o impulso de cruzar os braços e cobrir os seios, esconder-me. De<br />

repente, percebo como fico pálida ao sol e quantas pintas cobrem meu corpo e tenho certeza de que ele<br />

está me olhando e pensando em como sou errada ou deformada.<br />

Mas ele simplesmente fala baixinho:<br />

— Linda.<br />

E quando seus olhos encontram os meus, sei que ele realmente, verdadeiramente, está sendo sincero.<br />

Naquela noite, pela primeira vez na vida, coloco-me diante do espelho do banheiro e não vejo uma<br />

menina como outra qualquer. Pela primeira vez, com o cabelo penteado para trás, a camisola<br />

escorregando por um ombro e os olhos brilhando, acredito no que Alex disse. Sou linda.<br />

Mas não apenas eu. Tudo parece lindo. A Shhh diz que o deliria altera a percepção, compromete a<br />

capacidade de raciocinar com clareza e impede julgamentos corretos. Mas ela não diz o seguinte: o amor<br />

transforma o mundo inteiro em algo maior. Mesmo o lixo, brilhando no calor, um amontoado enorme<br />

de sucata, plásticos derretidos e sujeira, parece estranho e milagroso, como um mundo alienígena<br />

transportado para a Terra. À luz da manhã, as gaivotas empoleiradas no teto da prefeitura parecem ter<br />

sido cobertas com uma tinta branca espessa; quando elas se destacam sob o céu azul-claro, penso que<br />

nunca vi nada tão intenso, claro e bonito. Tempestades são incríveis: cacos de vidros caindo, o ar cheio<br />

de diamantes. O vento sussurra o nome de Alex e o oceano repete; as árvores balançando me fazem<br />

pensar em dança. Tudo o que vejo e toco me faz lembrar dele, e, então, tudo o que vejo e toco é<br />

perfeito.<br />

A Shhh também não menciona que o tempo começa a fugir de você.<br />

O tempo pula. Salta. Escoa como água através dos dedos. Toda vez que vou até a cozinha e vejo que<br />

o calendário avançou mais um dia, recuso-me a acreditar. Uma sensação nauseante cresce em meu<br />

estômago, pesada como chumbo, e parece piorar a cada dia.<br />

Trinta e três dias até a intervenção.<br />

Trinta e dois dias.<br />

Trinta dias.<br />

E, enquanto isso, instantes, momentos, meros segundos; Alex passando sorvete de chocolate em meu<br />

nariz depois que reclamei do calor; o zumbido pesado das abelhas voando sobre nós no jardim; uma<br />

linha perfeita de formigas marchando silenciosamente pelos restos de nosso piquenique; os dedos de<br />

Alex em meu cabelo; a curva de seu cotovelo sob minha cabeça; Alex sussurrando “Queria que você<br />

pudesse continuar comigo” quando mais um dia se esgota no horizonte, vermelho, cor-de-rosa e<br />

dourado; observar o céu, inventando formatos para as nuvens — uma tartaruga de chapéu, uma toupeira<br />

carregando uma abobrinha, um peixinho perseguindo um coelho, que corre para se salvar.<br />

Instantes, momentos, meros segundos: tão frágeis, lindos e indefesos quanto uma borboleta voando<br />

contra o vento forte.

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