01- Delírio

três
Senhor, ajudai-nos a firmar nossos pés na terra
E nossos olhos na estrada
E a nos lembrar sempre dos anjos caídos
Que, tentando voar,
Foram queimados pelo sol e, com as asas derretidas,
Caíram no mar.
Senhor, ajudai-me a firmar meus olhos na terra
E a manter meus olhos na estrada
Para que eu nunca tropece.
— Salmo 24, “Oração e estudo”, Shhh.
Minha tia insiste em me acompanhar aos laboratórios, que, como todos os escritórios do governo,
ficam aglomerados nos cais: um cordão de prédios brancos e luminosos, brilhando como dentes ao
redor da barulhenta boca do oceano. Quando eu era pequena e me mudei para sua casa, ela costumava
me levar à escola todos os dias. Minha mãe, minha irmã e eu morávamos mais perto da fronteira, e eu
fiquei fascinada e assustada com as ruas sinuosas e escuras, que cheiravam a lixo e a peixe podre. Sempre
desejei que minha tia segurasse minha mão, mas ela nunca o fez; então, cerrei os punhos e segui o ruído
hipnótico de sua calça de veludo, morrendo de medo do instante em que a Academia para Meninas St.
Anne surgiria no alto da última colina — o prédio de pedras escuras cheio de fissuras e rachaduras,
como o rosto envelhecido dos pescadores que trabalham nas docas.
É incrível como as coisas mudam. Naquela época, eu morria de medo das ruas de Portland e não
queria me afastar de minha tia. Agora, conheço-as tão bem que poderia seguir suas ladeiras e curvas com
os olhos fechados, e o que mais quero é ficar sozinha. Sinto o cheiro do oceano, mesmo que ele esteja
escondido pelas ruas sinuosas, e isso me faz relaxar. O sal que vem do mar deixa o ar pesado e
consistente.
— Lembre-se — diz ela, pela milésima vez —, eles querem conhecer sua personalidade, sim, porém,
quanto mais genéricas forem suas respostas, mais chance você terá de ser considerada para uma
variedade de ocupações.
Minha tia sempre se referiu a casamentos com termos retirados da Shhh, palavras como dever,
responsabilidade e perseverança.
— Entendi — respondo.
Um ônibus passa por nós. O brasão da Academia St. Anne está estampado na lateral, o que me faz
abaixar a cabeça rapidamente, imaginando Cara McNamara ou Hillary Packer me encarando através das
janelas imundas, rindo e apontando para mim. Todos sabem que minha avaliação é hoje. São apenas
quatro por ano, e as vagas são determinadas com muita antecedência.
A maquiagem que tia Carol insistiu para que eu usasse faz minha pele parecer revestida e suave. No
espelho do banheiro de casa, achei que eu parecia um peixe, principalmente com meu cabelo preso com
pregadores e presilhas metálicas: um peixe com ganchos de metal na cabeça.
Não gosto de maquiagem e nunca me interessei por roupas ou por gloss labial. Minha melhor amiga,
Hana, acha que sou louca, mas é claro que ela acharia. Ela é absolutamente linda — mesmo quando seu
cabelo louro está apenas preso em um coque bagunçado, parece que ela acabou de voltar do salão. Não