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01- Delírio

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o possível para me vincular a pessoas com resultados semelhantes nas avaliações. Eles tentam ao máximo<br />

evitar grandes disparidades em inteligência, temperamento, condição social e idade. É claro que de vez<br />

em quando ouvimos histórias assustadoras: casos em que uma menina pobre de dezoito anos é dada a<br />

um homem rico de oitenta.<br />

As escadas soltam seu gemido desagradável, e a irmã de Grace, Jenny, aparece. Ela tem nove anos e é<br />

alta para a idade, mas muito magra: ossuda, com o peito para dentro, como um tabuleiro deformado. É<br />

horrível dizer isso, mas não gosto muito dela. Jenny tem a mesma aparência pálida e cansada da mãe.<br />

Ela se junta à minha tia na porta e me encara. Tenho apenas um metro e cinquenta e oito, e Jenny,<br />

por incrível que pareça, é apenas alguns centímetros mais baixa que eu. É uma bobagem me sentir<br />

insegura na frente de minha tia e de minhas primas, mas um formigamento sobe por meus braços. Sei<br />

que todas estão preocupadas com meu desempenho na avaliação. É fundamental que eu seja pareada<br />

com alguém bom. Jenny e Grace ainda estão a anos de distância das respectivas intervenções. Se eu me<br />

casar bem, isso significará mais dinheiro para a família daqui a alguns anos. Também pode fazer com<br />

que os murmúrios cessem; suspiros fragmentados que quatro anos após o escândalo ainda parecem nos<br />

perseguir onde quer que estejamos, como o ruído de folhas sendo levadas pelo vento: Simpatizante.<br />

Simpatizante. Simpatizante.<br />

É apenas ligeiramente melhor que outra palavra que me seguiu durante anos após a morte de minha<br />

mãe, um sibilo como o de uma cobra, ondulando, deixando seu rastro de veneno: Suicídio. Uma palavra<br />

furtiva, uma palavra que as pessoas sussurram, resmungam e tossem: uma palavra que deve ser<br />

espremida entre mãos em concha ou murmurada atrás de portas fechadas. Apenas em meus sonhos eu a<br />

escutava sendo gritada, berrada.<br />

Respiro fundo, e então me abaixo e puxo a caixa plástica sob minha cama para que minha tia não me<br />

veja tremendo.<br />

— Lena vai se casar hoje? — Jenny pergunta à minha tia. Sua voz sempre me lembrou abelhas<br />

zumbindo no calor.<br />

— Não seja burra — diz minha tia, mas sem irritação. — Você sabe que ela não pode se casar até<br />

que esteja curada.<br />

Tiro minha toalha da caixa e me ajeito. Aquela palavra — casar-se — faz minha boca secar. Todos se<br />

casam assim que concluem sua educação. É como funciona. “Casamento é Ordem e Estabilidade, a<br />

marca de uma sociedade Saudável.” (Ver a Shhh “Bases da sociedade”, p. 114.) Pensar nisso, no entanto,<br />

faz meu coração se agitar freneticamente como um inseto atrás de um vidro. Nunca toquei em um<br />

garoto, obviamente — o contato físico entre não curados de sexo oposto é proibido. Para falar a<br />

verdade, nunca conversei com um garoto por mais de cinco minutos, a não ser que eu considere meus<br />

primos, meu tio e Andrew Marcus, que ajuda meu tio na loja Stop-N-Save e vive enfiando o dedo no<br />

nariz e limpando-o na parte de baixo das latas de legumes.<br />

E, se não for aprovada nas disciplinas — por favor, Deus, por favor, Deus, permita que eu passe —, eu me<br />

casarei assim que for curada, em menos de três meses. O que significa que terei minha noite de núpcias.<br />

O cheiro de laranja continua forte, e meu estômago se revira outra vez. Enterro o rosto na toalha e<br />

respiro fundo, esforçando-me para não passar mal.<br />

Lá embaixo, ouço o barulho de louças. Minha tia suspira e olha para o relógio.<br />

— Precisamos sair em menos de uma hora — diz. — É melhor você se apressar.

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