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catorze<br />
Seres humanos, em seu estado natural, são imprevisíveis,<br />
instáveis e infelizes. Somente quando seus instintos animais<br />
são controlados eles podem ser responsáveis, confiáveis e<br />
satisfeitos.<br />
— Shhh, p. 31.<br />
Uma vez vi uma reportagem sobre um urso-pardo que havia sido ferido acidentalmente pelo treinador<br />
no circo de Portland durante um treino rotineiro. Eu era muito nova, mas jamais me esquecerei da<br />
aparência do urso depois, um enorme borrão escuro destruindo seu picadeiro, ainda usando um ridículo<br />
chapéu vermelho que balançava descontroladamente em sua cabeça e atacando tudo em que conseguisse<br />
enfiar os dentes: faixas de papel, cadeiras dobráveis, balões. O treinador também: o urso acabou com ele,<br />
transformou seu rosto em carne moída.<br />
A pior parte — a que nunca esqueci — foi seu rugido apavorado: um berro horrível, contínuo e<br />
furioso que, de alguma forma, parecia humano.<br />
É o que lembro quando os reguladores começam a invadir a casa, entrando pela porta destruída e<br />
atravessando as janelas. É nisso que penso quando a música para subitamente e em seu lugar o ar se<br />
enche de latidos, gritos e vidros se estilhaçando, enquanto mãos quentes me empurram pela frente e<br />
pelos lados, e sinto uma cotovelada sob o queixo e outra nas costelas. Lembro-me do urso.<br />
De algum jeito, consegui avançar pela multidão em pânico, que se desloca confusa em direção aos<br />
fundos da casa. Atrás de mim, ouço cães mordendo o ar e reguladores brandindo pesados cassetetes. As<br />
pessoas estão gritando — tanta gente que parece ser uma única voz. Uma menina cai atrás de mim,<br />
tropeçando para a frente e esticando o braço em minha direção enquanto um dos reguladores atinge a<br />
cabeça dela por trás com o cassetete, produzindo um barulho horrível. Sinto seus dedos se fecharem<br />
momentaneamente no tecido de minha camiseta, mas escapo e continuo correndo, empurrando e me<br />
espremendo para a frente. Não tenho tempo de sentir pena, nem de ficar assustada. Não tenho tempo de<br />
fazer mais nada além de me mover, empurrar, ir, não consigo pensar em nada além de escapar, escapar,<br />
escapar.<br />
O mais estranho é que, por um minuto, no meio de todo aquele barulho e confusão, vejo tudo com<br />
clareza, em câmera lenta, como se eu estivesse assistindo a um filme de longe: vejo um cachorro saltar<br />
para cima de um cara à minha esquerda; vejo os joelhos do garoto cederem quando ele cai para a frente<br />
com um leve barulho, como o de uma respiração ou um suspiro, e sangue jorrar em arco de seu pescoço,<br />
onde os dentes do cachorro se enterraram. Uma menina de cabelos louros brilhantes é derrubada pelos<br />
cassetetes dos reguladores, e quando vejo seus cabelos no ar, meu coração para completamente por um<br />
segundo e penso que morri, penso que tudo acabou. Então ela vira a cabeça para mim, gritando<br />
enquanto os reguladores disparam spray de pimenta nela, e vejo que não é Hana, e sinto uma onda de<br />
alívio.<br />
Mais tiros são disparados. Um filme — apenas um filme. Não está acontecendo, jamais poderia<br />
acontecer de fato. Um menino e uma menina, lutando para chegar a um dos quartos laterais, talvez<br />
pensando que pode haver uma saída por ali. A porta é estreita demais para os dois entrarem ao mesmo<br />
tempo. Ele usa uma camisa azul, que diz CONSERVATÓRIO NAVAL DE PORTLAND , e os cabelos dela são