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01- Delírio

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fracos e abafados que parecem vibrar nas tábuas de madeira do chão. Deve ter um porão.<br />

Corri para chegar até aqui, mas hesito, com a mão — escorregadia por causa do suor — na porta.<br />

Não pensei muito em como tirar todo mundo da casa. Se eu simplesmente começar a gritar que há uma<br />

batida, vou causar pânico. Todos correrão para a rua de uma vez, e as chances de chegarem em casa<br />

ilesos se reduzirão a zero. Alguém vai ouvir algo; os reguladores vão descobrir, e todos estaremos<br />

ferrados.<br />

Faço uma correção mental. Eles estarão ferrados. Não sou como essas pessoas do outro lado da<br />

porta. Não sou eles.<br />

Então penso em Riley tremendo e ficando inerte. Também não sou essas pessoas, as que fizeram<br />

aquilo, as que assistiram. Nem os Richardson se incomodaram em tentar salvá-lo. Seu próprio cachorro.<br />

Nem o cobriram enquanto ele morria.<br />

Eu jamais faria isso. Nunca, nunca, nunca. Nem se eu passasse por um milhão de intervenções. Ele estava vivo.<br />

Tinha pulso, sangue, e respirava, e o deixaram ali como lixo.<br />

Eles. Eu. Nós. As palavras ricocheteiam em minha mente. Seco as mãos nas calças e abro a porta.<br />

Hana disse que esta festa seria menor, mas me parece ainda mais cheia do que a outra, talvez porque<br />

os cômodos são minúsculos e estão completamente lotados. O ambiente está tomado por uma cortina<br />

sufocante de fumaça de cigarro, que embaça tudo e faz o ambiente parecer como se todos estivessem<br />

embaixo d’água. Está absurdamente quente aqui, pelo menos dez graus a mais do que na rua — as<br />

pessoas se movem lentamente, e enrolaram as mangas curtas até os ombros e as calças até os joelhos, e<br />

onde a pele visível está coberta por uma camada brilhosa. Por um momento só consigo ficar parada,<br />

olhando. Penso: Queria estar com uma câmera. Se ignorar o fato de que há mãos se tocando, corpos se<br />

esbarrando e mil coisas terríveis e erradas, posso até mesmo achar um pouco bonito.<br />

Então, percebo que estou perdendo tempo.<br />

Há uma menina diante de mim, bloqueando minha passagem. Está de costas. Estendo o braço e<br />

toco-a. Sua pele está tão quente que queima. Ela se vira, com o rosto vermelho e ruborizado, inclinando<br />

a cabeça para conseguir me escutar.<br />

— Hoje é noite de batida — digo a ela, surpresa por minha voz sair tão firme.<br />

A música é suave, porém insistente — e, definitivamente, vem de uma espécie de porão —, não tão<br />

intensa quanto na outra vez, mas igualmente estranha e linda. Lembro-me de coisas quentes e<br />

escorregadias: mel, luz do sol e folhas vermelhas voando ao vento. Mas é difícil ouvi-la sob as camadas<br />

de conversa e os rangidos de passos e das tábuas de madeira.<br />

— O quê?<br />

Ela afasta o cabelo, que cobria a orelha.<br />

Abro a boca para dizer batida, mas em vez de minha voz é a outra que soa: uma voz alta e mecânica<br />

berrando na rua, uma voz que parece nos atacar por todos os lados de uma vez, uma voz que atravessa o<br />

calor e a música como uma lâmina fria corta a pele. Ao mesmo tempo, a sala começa a girar, e uma<br />

massa de luzes vermelhas e brancas ilumina faces apavoradas e espantadas.<br />

— Atenção. Isto é uma batida. Não tentem fugir. Não tentem resistir. Isto é uma batida.<br />

Alguns segundos depois a porta explode para dentro e um holofote claro como o sol deixa tudo<br />

branco e imóvel, transforma tudo em poeira e estátuas.<br />

Então, eles soltam os cachorros.

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