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01- Delírio

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latidos. Faço o possível para não pensar em Riley.<br />

Mantenho-me nas sombras, entrando e saindo de becos e correndo de um Lixão para outro. O suor<br />

brota em minha nuca, assim como nas axilas, e não apenas por causa do calor. Tudo parece estranho,<br />

grotesco e distorcido; certas ruas estão cobertas de vidro de janelas quebradas, com cheiro de queimado<br />

no ar.<br />

Em determinado momento dobro uma esquina para a avenida Forest no mesmo instante em que<br />

uma patrulha chega à mesma via pela outra ponta. Viro-me rapidamente, encostando na parede de uma<br />

loja de ferragens e voltando devagar pelo caminho por onde vim. As chances de que algum dos<br />

reguladores me tenha visto são mínimas — eu estava a um quarteirão de distância, e a escuridão era<br />

completa —, mas, mesmo assim, meu coração não volta ao ritmo normal. Tenho a sensação de estar<br />

jogando um videogame gigante ou tentando resolver uma equação muito complicada. Uma menina está<br />

tentando evitar quarenta patrulhas, com mais ou menos quinze a vinte pessoas em cada, espalhadas por um raio de onze<br />

quilômetros. Se ela precisa percorrer 4,3 quilômetros pelo centro, qual é a probabilidade de acordar amanhã em uma cela?<br />

Por favor, sinta-se à vontade para arredondar pi para 3,14.<br />

Antes do flagrante, Deering Highlands era a parte mais bonita de Portland. As casas eram grandes e<br />

novas — ao menos para o Maine, o que significa que foram construídas nos últimos cem anos — e<br />

ficavam atrás de portões e cercas vivas, em ruas com nomes como Lilac e Timber. Algumas famílias<br />

ainda se agarram às casas — pessoas pobres que não têm condições de se mudar para outros lugares ou<br />

que não receberam permissão para uma nova residência —, mas, no geral, o bairro está vazio. Ninguém<br />

quis ficar; ninguém quis ser associado à resistência.<br />

O mais estranho sobre Deering Highlands é a rapidez com que a região foi abandonada. Ainda há<br />

brinquedos enferrujados espalhados nos gramados e carros estacionados em algumas entradas, embora a<br />

maioria tenha sido saqueada, despida das partes de metal e de plástico como carcaças mutiladas por<br />

urubus enormes. Toda a área tem a aparência desamparada de um animal abandonado: casas<br />

sucumbindo lentamente à vegetação não aparada.<br />

Normalmente fico nervosa só de estar perto de Deering Highlands. Muitas pessoas dizem que o<br />

lugar dá azar, como passar por um cemitério sem prender a respiração. Mas hoje, quando finalmente<br />

chego, sinto como se pudesse dançar na calçada. Tudo está escuro, quieto e inerte, nenhum indício de<br />

batidas, nenhum sussurro, nenhum barulho de passos na calçada. As patrulhas ainda não chegaram.<br />

Talvez nem venham.<br />

Acelero o passo pelas ruas, aumentando o ritmo agora que não preciso me preocupar tanto em ficar<br />

nas sombras ou me mover em silêncio. Deering Highlands é bem grande, um labirinto de ruas sinuosas<br />

estranhamente parecidas e casas que se erguem da escuridão como navios encalhados. Os gramados<br />

cresceram absurdamente ao longo dos anos e as árvores estendem galhos tortos em direção ao céu e<br />

formam sombras bizarras em zigue-zague no chão iluminado pelo luar. Perco-me na rua Lilac — de<br />

algum jeito, consigo dar uma volta completa e chegar ao mesmo cruzamento duas vezes —, mas quando<br />

viro na estrada Tanglewild vejo uma luz fraca brilhando vagamente ao longe, atrás de um conjunto de<br />

árvores, e sei que encontrei o lugar.<br />

Uma caixa antiga de correio está fincada, torta, no solo ao lado da entrada. Um X negro ainda é<br />

ligeiramente visível em uma das laterais da casa. Estrada Tanglewild, quarenta e dois.<br />

Entendo por que escolheram essa casa para a festa. Ela é bem afastada da rua e cercada por todos os<br />

lados por árvores tão densas que não consigo deixar de pensar nos bosques escuros e sussurrantes perto<br />

da fronteira. Passar por aquela entrada é assustador. Mantenho os olhos focados na luz trêmula e pálida<br />

da casa, que se expande e se intensifica aos poucos à medida que vou me aproximando, até se definir em<br />

duas janelas iluminadas. As janelas foram cobertas com uma espécie de tecido, talvez para esconder o<br />

fato de que há pessoas na casa. Não está funcionando. Posso ver sombras se movendo de um lado para o<br />

outro no interior. A música está bem baixa. Só quando chego à varanda eu a escuto realmente — ritmos

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