03.04.2017 Views

O Pior médico do mundo - Gerson-Salvador

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Desconhecia a causa de morte de seus pais, achava que era de velhice. Não sabe dizer se alguém<br />

da família tinha problema de fíga<strong>do</strong>.<br />

Não fumava, bebia uma taça de champanhe nas comemorações de família. Sexo? Disse que<br />

gostava muito e que ainda era apaixonada pelo namora<strong>do</strong> e olhou para Joaquim que observava a um<br />

metro. Ele interrompeu o siso, deu meio sorriso.<br />

Morava numa casa bem arejada em um bairro popular, tinha bom relacionamento com o mari<strong>do</strong>,<br />

com as filhas, genro e até com os cunha<strong>do</strong>s! Sorria de leve.<br />

Ela estava consciente e bem orientada, mas com certa sonolência, as mãos tremiam, num ritmo que<br />

lembravam asas de borboleta baten<strong>do</strong> compassadas. Pressão, pulso, coração, respiração, normais. O<br />

ab<strong>do</strong>me estava distendi<strong>do</strong>, <strong>do</strong>ía enquanto eu palpava, maciço nos flancos, havia líqui<strong>do</strong> livre lá<br />

dentro.<br />

Preenchi lá mesmo a Autorização de Internação Hospitalar que o residente tinha me entregue só<br />

com o carimbo, haja papelada! A enfermeira levou até o registro hospitalar, retornou com uma pasta<br />

que eu devia entregar a enfermeira–chefe da enfermaria. Pronto.<br />

Conduzi Joana até seu leito. A enfermaria era um ambiente mais tranquilo, mesmos tons pastéis,<br />

diferia pelas paredes de concreto, <strong>do</strong>is pacientes em cada quarto, to<strong>do</strong>s com uniformes azuis, feios<br />

mesmo, acho que era para eles terem vergonha e não fugirem <strong>do</strong> hospital usan<strong>do</strong> umas roupas<br />

daquelas.<br />

Passei o caso ao residente. Ele falou para eu solicitar exames das funções <strong>do</strong> fíga<strong>do</strong>, rins,<br />

hemograma, ultrassonografia de ab<strong>do</strong>me. Deu–me <strong>do</strong>is papeis carimba<strong>do</strong>s. Preenchi. Descrevi a<br />

internação no prontuário e me despedi de Joana. Acabou meu expediente.<br />

Pensei nela no caminho para casa, no ônibus e no metrô. À noite estudei hepatite B. Não a noite<br />

toda, mas ao menos quatro horas seguidas. Precisava entender o que estava acontecen<strong>do</strong> com ela!<br />

Na manhã seguinte cheguei à enfermaria. Fui ao leito dela. Estava vago. Onde estaria Joana?<br />

Chegaram os exames, constataram que ela estava com insuficiência hepática grave, quer dizer, o<br />

fíga<strong>do</strong> não estava funcionan<strong>do</strong>.<br />

O plantonista da noite a transferiu pra UTI. Pela primeira vez entrei lá: seis leitos com monitores,<br />

aquelas telas que mostram pressão, pulso, oxigenação, ritmo cardíaco, vários fios e cateteres sobre<br />

os pacientes. Vi que estavam intuba<strong>do</strong>s, respiran<strong>do</strong> com auxílio de ventila<strong>do</strong>res mecânicos. O<br />

enfermeiro me mostrou Joana. Estava <strong>do</strong> mesmo jeito <strong>do</strong> dia anterior. Elevou os ângulos <strong>do</strong>s lábios.<br />

Bom dia menino. Sorriso esboça<strong>do</strong>.<br />

Estava com mais sono, mesmo assim agradeceu a visita, o cuida<strong>do</strong>. Na verdade eu só puxei o<br />

cobertor para cobrir os seus de<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pés, estavam frios.<br />

O residente responsável pela UTI foi muito atencioso, me explicou o caso com alguns pormenores<br />

que eu não consegui entender. Anotei para estudar depois. Compreendi com clareza uma coisa: o<br />

caso dela era muito grave, tinha si<strong>do</strong> colocada com urgência na fila de transplante de fíga<strong>do</strong>. Disse<br />

que era pra eu ficar à vontade e ir lá quan<strong>do</strong> quisesse, achou bom eu querer acompanhar minha<br />

paciente mesmo quan<strong>do</strong> já tinha si<strong>do</strong> transferida. Gostei dele, passou segurança, serenidade.<br />

Como tinha chega<strong>do</strong> muito ce<strong>do</strong> fui à lanchonete comer algum salga<strong>do</strong>. Encontrei Joaquim e as<br />

duas filhas de mãos dadas. As duas tinham os mesmos olhos de Joana. Uma delas chorava aos<br />

prantos. Formavam um tipo de triângulo cada um dan<strong>do</strong> as mãos aos outros <strong>do</strong>is. Preferi não<br />

interrompê-los, mas o homem me chamou, disse que queria me apresentar às filhas. Eu era o <strong>médico</strong><br />

da Joana. Nunca tinha si<strong>do</strong> o <strong>médico</strong> de ninguém. Fiquei um pouco apreensivo. Como não sabia o que

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!