Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Entro corren<strong>do</strong> no pronto–socorro. Encontro os internos, meus amigos, veteranos da faculdade.<br />
Preciso de ajuda! Tem um amigo meu com uma trombose na perna. Está com muita <strong>do</strong>r.<br />
Um <strong>do</strong>s internos vem comigo a caminho <strong>do</strong> carro. Carlão já adentra o PS, na cadeira de rodas.<br />
Empurrada por uma senhora voluntária <strong>do</strong> hospital. To<strong>do</strong> sua<strong>do</strong>, agita<strong>do</strong>.<br />
Um <strong>do</strong>s internos chama o <strong>médico</strong> residente.<br />
– O que aconteceu?<br />
Carlão geme, está respiran<strong>do</strong> muito rápi<strong>do</strong>. Consegue dizer que a perna está <strong>do</strong>en<strong>do</strong>.<br />
Chega o residente, observa Carlão respiran<strong>do</strong> muito rápi<strong>do</strong>, sem fixar a cabeça. Disse que era<br />
DNV. Foi a primeira vez que ouvi essa sigla, quer dizer distúrbio neurovegetativo. Algo como<br />
alterações no corpo desencadeadas por uma situação de muita ansiedade.<br />
Leva ele para a sala de emergência! Sinto certo alívio. Está no Hospital da Universidade.<br />
Na porta da emergência ele fica fláci<strong>do</strong>. Desmonta como em câmera lenta, flexiona os <strong>do</strong>is<br />
antebraços encostan<strong>do</strong>–os nos braços, lentamente estica bem os <strong>do</strong>is antebraços e os punhos num<br />
movimento para a lateral. Cai no chão. Coloca<strong>do</strong> na maca da emergência. Carlos, Carlos não<br />
responde. Não respira. Não tem pulso. Parada. Parada.<br />
Eu para<strong>do</strong>. Do canto da sala observo. Assusta<strong>do</strong>. Desespera<strong>do</strong>. Impotente. Os meus colegas e a<br />
equipe de enfermagem se movimentam, ao mesmo tempo, sincroniza<strong>do</strong>s, parece, de certa forma, uma<br />
dança ensaiada. Um sobe a escadinha de <strong>do</strong>is degraus e projeta o corpo sobre o tórax de Carlão,<br />
noventa graus, faz compressões seriadas. Outro coloca os monitores <strong>do</strong> carrinho de parada. O<br />
enfermeiro pega uma veia. Um <strong>médico</strong> de cabelo cinza observa to<strong>do</strong>s com um relógio na mão, diz<br />
bem alto: faz adrenalina. Adrenalina. Uma residente vai para a cabeceira e pega um ventila<strong>do</strong>r<br />
manual, com balão de oxigênio. Pede o laringoscópio, aquele aparelho de metal que levanta a língua,<br />
pede o tubo traqueal, intuba sem dificuldade.<br />
Eu choro, choro muito, soluço. Sinto culpa. Penso no que podia ter feito de diferente. Nada. Nada<br />
adianta. O monitor faz traços que eu não entendia, até que restou uma linha reta. Retinha. Checam os<br />
cabos, to<strong>do</strong>s conecta<strong>do</strong>s, checam o monitor, não há nada erra<strong>do</strong>. Certeza. A mais certa e definitiva.<br />
Morte. Ele morto.<br />
Nunca tinha visto ninguém morrer assim na minha frente. Inconsolável, cora<strong>do</strong>, tremen<strong>do</strong>, menino.<br />
Meu amigo Isaac pega meu braço, me leva até o quarto <strong>do</strong> plantonista. Um pouco tonto presto atenção<br />
em minhas pernas, não tropeço. Talvez uns vinte metros, um lance de escadas abaixo. Parece que não<br />
chega. Eu quero minha mãe. Um abraço, quem sabe?<br />
Isaac me dá um copo d’água. Eu sento na cama, parece que estou sonhan<strong>do</strong>, a penumbra <strong>do</strong> quarto<br />
<strong>do</strong>s plantonistas só aumenta essa impressão. Ligo para minha mãe. Alô. Ela atende. Pergunta se eu<br />
estou bem. Eu só choro. O Carlão morreu! Ela tenta me consolar, diz coisas bonitas.<br />
– Meu filho, meu amor, sua missão é estar junto das pessoas até na hora que morrem. Coragem! A<br />
mãe ama você.<br />
Eu não estava prepara<strong>do</strong>. Podia não ter si<strong>do</strong> meu amigo o primeiro paciente que vejo morrer?<br />
Depois de alguns minutos retorno ao PS. Vera está na porta, já chegaram seus familiares. Ela<br />
pergunta de Carlão.<br />
Eu tento responder, não consigo, meus olhos enchem de lágrimas, encharcam. Abraço forte, bem<br />
forte. Ela entende tu<strong>do</strong>. Tremem as mãos, os lábios, todas as carnes. Geme, chora, grita. Carlão<br />
morreu. Morreu.<br />
Ela pede que segure sua mão, quer vê–lo. Entra na sala de emergência. Monitores apitam. Quente.