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Primeiro encontro com a morte<br />
“O garoto<br />
com olhar caí<strong>do</strong> sobre o homem<br />
guardava na memória<br />
a primeira vala”<br />
Sérgio Vaz<br />
"Los muertos no salen”, dijo. ”Lo que pasa es que no podemos com el peso de la consciencia."<br />
Gabriel García Marquéz<br />
Os vizinhos de prédio sabiam desde que passei no vestibular, que eu estudava medicina. Não era<br />
incomum me fazerem perguntas sobre <strong>do</strong>enças e problemas de saúde no eleva<strong>do</strong>r, às vezes me<br />
pediam para eu ver exames ou dar palpites sobre receitas alheias. Constrangi<strong>do</strong>, normalmente<br />
conseguia escapar, dizia que ainda estava aprenden<strong>do</strong>, que só no final <strong>do</strong> curso estaria apto a dar<br />
diagnósticos e sugerir tratamentos.<br />
Naquela tarde fui aborda<strong>do</strong> no eleva<strong>do</strong>r por Vera, vizinha que morava um andar abaixo <strong>do</strong> meu.<br />
Perguntou se eu não podia dar uma olhadinha no Carlos. É melhor dar um tapa na cara de um <strong>médico</strong>,<br />
ou mesmo estudante, <strong>do</strong> que pedir para dar uma olhadinha. A pessoa que pede normalmente quer uma<br />
consulta, mas fica com vergonha. Se você já pediu para um <strong>médico</strong> dar uma olhadinha, fique saben<strong>do</strong><br />
que não se faz diagnóstico de (quase) nada assim.<br />
Vera disse que ele estava com muita <strong>do</strong>r, com febre, na cama havia quase uma semana.<br />
Mesmo não ten<strong>do</strong> competência para resolver o seu caso atendi ao seu apelo. Se não tinha<br />
condições de interferir em sua <strong>do</strong>ença, podia acolhê-lo, ouvi-lo, dar um abraço. O ouvi<strong>do</strong> e o toque<br />
podem aliviar muitas <strong>do</strong>res. Carlos era meu amigo. Era um cara de uns trinta anos, um metro e<br />
noventa, negro, forte, parecia Muhammad Ali. Era o melhor joga<strong>do</strong>r de futebol <strong>do</strong> bairro. Não podia<br />
imaginá-lo <strong>do</strong>ente na cama.<br />
Lembro-me como se fosse hoje, agora.<br />
Acompanho. Ela abre a porta, pede para eu sentar no sofá. Senta-se ao meu la<strong>do</strong>, agradece minha<br />
visita, diz que não sabia mais o que fazer, já tinha procura<strong>do</strong> os pronto-socorros de hospitais<br />
públicos reconheci<strong>do</strong>s como excelentes, e não ele não tivera nenhuma melhora apesar de diversos<br />
medicamentos.<br />
Ela me leva ao quarto onde ele está de pijama, sua<strong>do</strong>, com as pernas cobertas com um edre<strong>do</strong>m<br />
branco. Geme de <strong>do</strong>r. Abro a porta <strong>do</strong> quarto. Carlão sorri, feliz por me ver. Firmeza.<br />
– Boa tarde.<br />
– Não estava boa, mas vai ficar. Que bom que você veio me ver, pensei mesmo que você podia me<br />
dar uma ajuda.