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Olharam-me com pavor e certa esperança”. Esta e outras intervenções <strong>do</strong> <strong>médico</strong>-escritor <strong>Gerson</strong><br />
Salva<strong>do</strong>r deixam claro que o que será li<strong>do</strong> aqui é a própria matéria viva da qual se faz qualquer arte:<br />
o humano das relações e nosso constante trânsito pelo me<strong>do</strong> e pelo lançar-se contra ele.<br />
Com isso consegue o escritor escapar ao ostracismo <strong>do</strong> jargão profissional e de uma leitura para<br />
entendi<strong>do</strong>s e aproximar-se <strong>do</strong>s muitos personagens que transitam por essas páginas, tipos humanos,<br />
familiares, que despertam algum reconhecimento e nos dizem que nossas histórias pessoais também<br />
importam.<br />
Na leitura de O pior <strong>médico</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, acompanhamos não uma trajetória, mas várias, desde o
processo de formação de <strong>médico</strong>s ao questionamento <strong>do</strong>s próprios quanto aos limites de sua atuação<br />
e capacidade de dar esperança. Esta, por vezes vem de vozes humildes, de outras histórias e<br />
trajetórias, de quem olha nos olhos daquele que está para olhar e o faz enxergar além, numa epifania<br />
em que cura, cura<strong>do</strong>, e cura<strong>do</strong>r trocam constantemente de papéis.<br />
Assim, este livro não se reduz à arte de narrar histórias breves, o que já lhe garantiria grandes<br />
méritos. É ele, sobretu<strong>do</strong>, um livro de ideias e de reencontros, de questionamentos e de elucidações,<br />
<strong>do</strong> ato de perder-se e <strong>do</strong> próprio reencontrar-se.<br />
Odenil<strong>do</strong> França Almeida
(Foto: Renata Vieira)<br />
O autor:<br />
<strong>Gerson</strong> Sobrinho Salva<strong>do</strong>r de Oliveira é de Cansanção, sertão da Bahia. Vive em São Paulo desde os<br />
oitos anos. É <strong>médico</strong> infectologista e professor de Propedêutica Clínica na Universidade de São<br />
Paulo. Recebeu o prêmio “Centenário Mário de Andrade” em 1993, modalidade poesia, da<br />
Prefeitura de São Paulo quan<strong>do</strong> era estudante da rede pública municipal. Em 2013 publicou "O<br />
anjinho <strong>do</strong> vende<strong>do</strong>r de sonhos" na antologia "Sobrenome Liberdade". "O pior <strong>médico</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>" é<br />
seu primeiro livro.
Por ter me apresenta<strong>do</strong> o amor, a coragem e as letras, matérias-primas que tenho usa<strong>do</strong> para tentar materializar sonhos, tecer a vida.<br />
Esse livro, como os primeiros textinhos que escrevi, é dedica<strong>do</strong> a você: luz <strong>do</strong> mar, flor <strong>do</strong> sertão.<br />
Mamãe, eu te amo.
“Sozinho. como se estivesse a ser lentamente garrota<strong>do</strong> por uma nuvem espessa que lhe<br />
carregasse sobre o peito e lhe entrasse pelas narinas cegan<strong>do</strong>-o por dentro, o <strong>médico</strong> deixou sair<br />
um gemi<strong>do</strong> breve, consentiu que duas lágrimas, Serão brancas, pensou, lhe inundassem os olhos e<br />
se derramassem pelas fontes, de um la<strong>do</strong> e <strong>do</strong> outro da cara, agora compreendia o me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus<br />
pacientes quan<strong>do</strong> lhe diziam, Senhor <strong>do</strong>utor, parece-me que estou a perder a vista.”
José Saramago
“enquanto penso num mo<strong>do</strong> de <strong>do</strong>rmir em pé<br />
evito a tentação <strong>do</strong>s acor<strong>do</strong>s que a rotina<br />
oferece para uma rendição pacífica e covarde<br />
em seus cemitérios de cérebros e corações”<br />
Ni Brisant
“Foi muito lin<strong>do</strong><br />
Você ter vin<strong>do</strong><br />
Sempre ajudan<strong>do</strong>, sorrin<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong><br />
Que não tem de quê“<br />
Vinícius de Moraes<br />
Agradeço a:<br />
Denize e Laura por serem tu<strong>do</strong> e por terem me dividi<strong>do</strong> com as etapas de produção desse livro;<br />
Painho, porque todas as minhas realizações são, de certa forma, retribuições ao seu amor;<br />
Odenil<strong>do</strong> França Almeida, pela revisão <strong>do</strong> texto, pelo tato de artista que acrescentou muito a esse trabalho e pela amizade de<br />
sempre, desde a infância na Vila Carioca;<br />
Marciano Ventura, pela diagramação, impressão e por orientar os meios de viabilizar essa obra;<br />
Célio Luigi pelas ilustrações, que dialogam com os textos, mas são facilmente destacáveis, com sua própria linguagem são cheias de<br />
significa<strong>do</strong>s;<br />
Judith Scliar e Lucia Riff por cederem o texto de Moacyr Scliar para a contra-capa;<br />
Julio Pereira, pela divulgação de meu trabalho na Internet e por incentivar a organização de meus textos em livro;<br />
Priscila Figueire<strong>do</strong> e Izabel Cristina Rios pelas críticas plenas de sensibilidade e instrumentalizadas pela vivência acadêmica;<br />
Aos poetas, escritores, produtores e agita<strong>do</strong>res culturais que organizam coletivos, saraus, livros e debates, fazem a literatura de nosso<br />
tempo florescer na hostilidade das metrópoles, em particular agradeço a meus amigos Fanti e Elizandra Souza que me apresentaram os<br />
movimentos de literatura marginal, Débora Del Guerra, Ni Brisant, Damásio Marques da Silva e Luciano Tomé pela crítica <strong>do</strong>s textos e<br />
<strong>do</strong> projeto;<br />
Aos professores de ensino fundamental e médio que apesar de suas condições de trabalho e o descaso <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> com a escola<br />
pública, contra a inércia, colaboraram com minha formação;<br />
Aos professores de medicina que enxergam o ser humano além de suas <strong>do</strong>enças, não foram muitos, mas foram bons;<br />
Aos colegas que compartilham histórias tão densas que inspiram, muito, em particular a José Pinhata, Jacqueline Santim, Fernanda<br />
Fonseca, Victor Peloso, Moisés da Cunha Lima, Júlio Croda e Marcelo Arlin<strong>do</strong>;<br />
Às pessoas que me deram oportunidade de colaborar com os seus cuida<strong>do</strong>s, que tem me permiti<strong>do</strong> encontros especiais com a vida<br />
em suas diversas fases, que me ensinam to<strong>do</strong>s os dias a conhecer e respeitar ainda mais o ser humano;<br />
Aos estudantes de medicina que ao aprenderam os princípios de nossa arte inspiram por suas afetividades, seus olhares, suas<br />
incertezas. Haja Beleza nas incertezas.
Abraço quentinho<br />
"En tu abrazo yo abrazo lo que existe,<br />
la arena, el tiempo, el árbol de la lluvia,<br />
y to<strong>do</strong> vive para que yo viva.<br />
Pablo Neruda<br />
Era uma tarde de um tempo de um frio julho. Chegou ao pronto-socorro infantil <strong>do</strong> Hospital da<br />
Universidade uma bebê de três meses com desconforto respiratório.<br />
O pai tivera diagnóstico de tuberculose pulmonar havia poucos dias, bacilos quatro cruzes.<br />
A criança foi colocada em observação na tenda de oxigênio, sob isolamento respiratório.<br />
Aguardava pesquisa de bacilos. Frio julho.<br />
Passaram horas, às dezenove ocorre troca da turma <strong>do</strong>s internos de plantão, os <strong>médico</strong>s–<br />
estagiários com certas caras de crianças. Foi a interna <strong>do</strong> quinto ano quem percebeu através <strong>do</strong> vidro<br />
da porta de isolamento que a criança não se mexia, estava roxinha!<br />
O coração acelerou. Ela ainda não sabia agir como médica. Balbuciou um pedi<strong>do</strong> de ajuda: eu<br />
quero meu assistente!<br />
Entrou no isolamento respiratório sem máscara e percebeu a paciente azulzinha, encolhida, parada<br />
cardiorrespiratória?<br />
Vontade de chorar. Não se recolhe!<br />
Ela pega a criança, percebe que está gelada, abraça aperta<strong>do</strong>, encosta no peito com uma<br />
cobertinha. E corre para a sala de emergência talvez por não saber o que fazer.<br />
O caminho parecia infinito, talvez uns <strong>do</strong>ze metros.<br />
Azul.<br />
Ciano.<br />
Roxo.<br />
Violeta.<br />
Vermelho.<br />
Rosa.<br />
Rosa!<br />
Era hipotermia.<br />
Há essas massas polares que envolvem as pessoas.<br />
Antes de chegar à sala de emergência, antes que chegasse qualquer ajuda, a criança ficou<br />
quentinha no colo dela, se mexeu, gemeu, fez barulhinhos estranhos com a boquinha e deu um sorriso
social.<br />
Como é lin<strong>do</strong> esse desenvolvimento neuropsicomotor!
Cutícula de cavalo<br />
No segun<strong>do</strong> ano <strong>do</strong> curso de medicina, os estudantes aprendem a examinar e entrevistar os pacientes<br />
nas aulas de semiologia.<br />
Frequentam as enfermarias com caras de espanto, como se tivessem uma sensação de não<br />
pertencimento àquele ambiente. Ainda não se acostumaram a circular entre leitos hospitalares,<br />
paredes em tons pastéis, pacientes com uniformes azuis amarrota<strong>do</strong>s, às faces de pessoas a<strong>do</strong>entadas<br />
e seus acompanhantes. Estranhavam principalmente o aspecto de um ambiente em que um dia é igual<br />
ao outro e ao outro.<br />
São facilmente reconhecíveis se não por suas feições, na maior parte das vezes juvenis, por<br />
usarem mochilas por cima <strong>do</strong>s aventais e ficarem aos ban<strong>do</strong>s nos corre<strong>do</strong>res, contan<strong>do</strong> piadas e<br />
rin<strong>do</strong> alto.<br />
Dia desses <strong>do</strong>is deles, um rapaz e uma moça, demoraram mais <strong>do</strong> que os outros na entrevista. Já<br />
tinha acaba<strong>do</strong> o horário da aula. O <strong>médico</strong> que os orienta se aproxima para saber o que acontecia.<br />
Senhor José, interna<strong>do</strong> há uma semana na enfermaria era trata<strong>do</strong>r de cavalos no Jóquei Clube.<br />
"Lá eu trato as patas <strong>do</strong>s cavalos, as muié num faz a cutícula? Você mesma num faz? O cavalo<br />
também tem como se fosse uma cutícula. Eu que faço! Mas ao invés de uma lixa eu uso uma grosa.<br />
Daí eu boto a ferradura. É trabaio de muita responsabilidade, já pensou se machuca um cavalo<br />
daquele e não consegue correr? Muita gente já apostou!"<br />
José, e seus entrevista<strong>do</strong>res riam juntos tão espontaneamente e com tanta graça que lacrimejavam.<br />
O professor dá <strong>do</strong>is passos pra trás e deixa a conversa fluir.<br />
Quem sabe quantas vezes José teve oportunidade de explicar seu labor e significá-lo para outros<br />
<strong>médico</strong>s? Quem sabe quantas vezes esses educan<strong>do</strong>s vão ter acesso a esse tipo de informação e se<br />
permitirão um diálogo como esse?<br />
O <strong>médico</strong> mais velho aprendeu que cavalo tinha algo “como se fosse cutícula”. E essa informação<br />
foi de muita serventia. E os olhos brilhan<strong>do</strong>, a vontade <strong>do</strong>s mais jovens de aprender, de conversar e<br />
se relacionar com as pessoas o fizeram acreditar mais uma vez que a medicina pode valer a pena<br />
apesar de suas contradições. Olhou os jovens e desejou que eles sempre saibam que tem<br />
muito a aprender e que assim ensinam e cativam.<br />
Os <strong>médico</strong>s seríamos melhores se lembrássemos de nós mesmos e de nossas relações com os<br />
outros nos tempos de antes.
Ouvir o coração<br />
O estudante de medicina no curso de semiologia aprende como fazer uma entrevista e realizar o<br />
exame de quem o procure.<br />
É quan<strong>do</strong> tem seus primeiros momentos de contato com pacientes. Muitos preservam a virtude de<br />
não saberem demais. Talvez por isso consigam olhar bem nos olhos das pessoas que assistem, com<br />
quem aprendem.<br />
O rapaz com um certo sem–jeito pediu licença para examinar o velho interna<strong>do</strong> na enfermaria da<br />
clínica médica: "minha parte preferida é ouvir o coração, seu Joaquim, acho tão bonito". O homem,<br />
paciente que era, e o <strong>médico</strong> que observa a conversa deram sorrisos inconti<strong>do</strong>s e trocaram olhares de<br />
aprovação.<br />
Torceram que ele não apreendesse que só se ouve o coração com ouvi<strong>do</strong>s, arma<strong>do</strong> de<br />
estetoscópio. Agouraram que o aprendiz continuasse achan<strong>do</strong> que ouvir o coração é a parte mais<br />
bonita e que os anos futuros não lhe desensinassem.<br />
Essa arte da medicina ainda produz suas Belezas.
O encontro na festa da universidade<br />
Foi numa noite ordinária de inverno, numa festa da universidade que Anita disse que queria<br />
conversar comigo, um assunto importante, que precisava ser em particular.<br />
Eu a convidei para irmos a um lugar em que pudéssemos ficar mais à vontade. Ela me olhou<br />
concordan<strong>do</strong>. Esboçou um sorriso. Peguei sua mão e nos afastamos das pessoas, a Cidade<br />
Universitária parece um parque, sentamos próximos a um bosque. Cena bonita: no céu aparecia a lua<br />
cheia e até algumas estrelas. Esse é um fato raro nos julhos de nossa cidade, tão cinzas. Sentamos em<br />
um banquinho, sem encosto, uma perna de cada la<strong>do</strong>, ela bem em minha frente, rosto aproxima<strong>do</strong>. Ela<br />
falou que tinha certa vergonha <strong>do</strong> que iria dizer, que não sabia como começar. Eu sorri de viés,<br />
coloquei a mão direita em seu rosto, de leve. Ela disse que não conseguiria me encarar, que<br />
realmente era difícil. Eu fui me aproximan<strong>do</strong> devagarinho, como os joga<strong>do</strong>res de futebol fazem<br />
avançan<strong>do</strong> a barreira em direção à bola quan<strong>do</strong> o juiz não olha. Ela inspira bem fun<strong>do</strong>. As mãos<br />
tremem um pouco e suam frio.<br />
– Ainda bem que te encontrei. Acho que você não sabe, mas minha mãe morreu há uns dez anos,<br />
meu pai também já tinha morri<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> eu era criança e eu moro com minha avó. Ela cui<strong>do</strong>u de<br />
mim. Hoje eu tento cuidar dela. Ela está muito velhinha e tem muitos problemas de saúde. Além de<br />
estudar na universidade, <strong>do</strong>u aulas particulares e trabalho em um cursinho pré–vestibular, com o<br />
dinheiro que ganho me mantenho, compro comida e os remédios de minha avó que só recebe um<br />
salário mínimo de aposenta<strong>do</strong>ria.<br />
Ela respira fun<strong>do</strong>, os olhinhos tremem, começam a lacrimejar, chora incontida, engasga.<br />
– Eu estou trabalhan<strong>do</strong> muito, não consigo estudar, porque quan<strong>do</strong> pego os textos da faculdade, ou<br />
as redações que corrijo, sempre depois da meia–noite, acabo <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> em cima de tu<strong>do</strong>. Estou fraca.<br />
Fraca. Tenho me<strong>do</strong> de não dar conta. Me<strong>do</strong> de minha avozinha acabar morren<strong>do</strong> porque eu não<br />
consegui cuidar dela.<br />
Chora muito, eu a abraço. Ela me aperta com as duas mãos.<br />
– Então como você estuda medicina, bem como você é estudante de medicina, deve saber algum<br />
tipo de remédio, alguma vitamina que eu possa tomar, para não precisar <strong>do</strong>rmir, se eu conseguir ficar<br />
mais acordada, só mais um pouco, eu consigo dar conta de tu<strong>do</strong>, se não, quem sabe?<br />
Eu além <strong>do</strong> desconcerto por não saber o quefazer por ela, não sabia como dizer que não há pílulas<br />
mágicas nem de energia, nem de felicidade, que o resto é fetiche ou oportunismo. Por não encontrar<br />
palavras, ofereço meu silêncio. Continuo com o abraço forte. Há braços.
Aula de propedêutica<br />
Bom dia. Vamos para a enfermaria. O avental está ao avesso! Lave as mãos. Peça licença para<br />
examinar. Você está usan<strong>do</strong> o estetoscópio ao contrário. Deixe o paciente dizer como se sente.<br />
Respeite o silêncio. Acha que ouviu o sopro? Não ouviu. Sorriu e se balançou com cara de surpresa.<br />
Ouviu o sopro. Estenose ou insuficiência? Isso é muito difícil! Vamos discutir? Ele toma chá de<br />
insulina? Como assim tem um pé de insulina em casa? Cutícula de cavalo. Ouvir o coração é a parte<br />
mais bonita. Verme? Fale o que está pensan<strong>do</strong>. Estamos to<strong>do</strong>s aprenden<strong>do</strong>. Era mesmo leucemia.<br />
Encefalopatia. Não, ela não vai precisar de transplante. Reconheça sua ignorância. O que sabemos é<br />
uma fração insignificante <strong>do</strong> que ignoramos. Desconfie <strong>do</strong> óbvio. Não aceite a mediocridade. Brilhe.<br />
Lave bem as mãos. Bom dia.
A fruta da menopausa<br />
O professor de ginecologia era queri<strong>do</strong>, simpático, gordinho quase bonachão, mas exigente e<br />
criterioso.<br />
Começava o dia letivo com uma chamada oral, depois abria o livro de gineco e mandava a gente<br />
grifar alguns trechos e riscar outros. Já tinha dito aos autores <strong>do</strong> livros que tirassem aquelas<br />
bobagens. Depois fazia uma palestra. Falava por parábolas, era cheio de tiradas e aforismos.<br />
Dizia to<strong>do</strong> dia que o corpo da mulher parecia com fruta: quan<strong>do</strong> jovem com seus hormônios<br />
sexuais parecia uma pera. Depois da menopausa pela redistribuição de gordura parecia uma maçã.<br />
Zezinho tinha dificuldade no curso. Quase não chegou ao internato. E esse estágio já tinha<br />
reprova<strong>do</strong> três vezes.<br />
– Zezinho. Hoje é você quem vai responder.<br />
– Pode falar, professor!<br />
– Não quero mais te reprovar. Vai uma pergunta bem fácil. Essa é pra você passar!<br />
O rapaz olha fixo para o professor.<br />
– Qual é a fruta, José, diga qual é a fruta que se parece com a mulher após a menopausa?<br />
Você já sabe!<br />
Zezinho pensou. Pensou. Colocou o de<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r na cabeça. Fez uma cara de surpresa. Sorriu<br />
faceiro. Eureca.<br />
– Que fruta se parece com a mulher após a menopausa?<br />
– Maracujá, professor! Maracujá de gaveta!
Presente para o interno<br />
Era madrugada. O estudante <strong>do</strong> sexto ano de plantão no pronto–socorro, um de seus últimos estágios<br />
antes de concluir o curso de medicina.<br />
Pega uma ficha. Chama <strong>do</strong>na Maria da Silva.<br />
Aproxima–se uma mulher com a face enrugada, roupas rasgadas, com um bastão que usava como<br />
caja<strong>do</strong>, talvez fosse fabrica<strong>do</strong> para em seus dias ordinários servir para cabo de vassoura, agora era<br />
seu sustentáculo. Na mão direita trazia uma sacola preta daquelas de plástico, usadas para lixo.<br />
Endereço: não constava.<br />
O estagiário a conduz até o consultório.<br />
Pede para sentar, olha nos olhos, pede para subir à maca, examina, toca a pele. Pede orientação ao<br />
<strong>médico</strong> plantonista. Tratam sua queixa. Não resolveriam seu problema. Ela se sente melhor, aliviada,<br />
quer voltar para sua não–casa.<br />
Na despedida ela mexe e remexe na sacola de plástico e tira um presente para o seu <strong>médico</strong>, o<br />
rapaz que acabara de lhe atender. Era meio quilo de feijão carioquinha, daqueles compra<strong>do</strong>s a<br />
granel, em um saco de plástico transparente amarrota<strong>do</strong>.<br />
Ele demora a responder. Pensa que não fez mais <strong>do</strong> que sua obrigação, que não merecia presente<br />
por ter trata<strong>do</strong> <strong>do</strong>na Maria como trata to<strong>do</strong>s os outros pacientes que chegam cheirosos e que tem<br />
casa. Pensa que não podia aceitar receber o único alimento que a paciente tinha.<br />
Precisava se manifestar!<br />
Ele aperta com as duas mãos as mãos de Maria. Agradece e aceita o presente. Despedem–se. Não<br />
pode desprezar o presente. Entendeu o ato de generosidade de Maria e que provavelmente nunca<br />
mais em sua vida alguém lhe daria em agradecimento por seu cuida<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que possuía.
Primeiro encontro com a morte<br />
“O garoto<br />
com olhar caí<strong>do</strong> sobre o homem<br />
guardava na memória<br />
a primeira vala”<br />
Sérgio Vaz<br />
"Los muertos no salen”, dijo. ”Lo que pasa es que no podemos com el peso de la consciencia."<br />
Gabriel García Marquéz<br />
Os vizinhos de prédio sabiam desde que passei no vestibular, que eu estudava medicina. Não era<br />
incomum me fazerem perguntas sobre <strong>do</strong>enças e problemas de saúde no eleva<strong>do</strong>r, às vezes me<br />
pediam para eu ver exames ou dar palpites sobre receitas alheias. Constrangi<strong>do</strong>, normalmente<br />
conseguia escapar, dizia que ainda estava aprenden<strong>do</strong>, que só no final <strong>do</strong> curso estaria apto a dar<br />
diagnósticos e sugerir tratamentos.<br />
Naquela tarde fui aborda<strong>do</strong> no eleva<strong>do</strong>r por Vera, vizinha que morava um andar abaixo <strong>do</strong> meu.<br />
Perguntou se eu não podia dar uma olhadinha no Carlos. É melhor dar um tapa na cara de um <strong>médico</strong>,<br />
ou mesmo estudante, <strong>do</strong> que pedir para dar uma olhadinha. A pessoa que pede normalmente quer uma<br />
consulta, mas fica com vergonha. Se você já pediu para um <strong>médico</strong> dar uma olhadinha, fique saben<strong>do</strong><br />
que não se faz diagnóstico de (quase) nada assim.<br />
Vera disse que ele estava com muita <strong>do</strong>r, com febre, na cama havia quase uma semana.<br />
Mesmo não ten<strong>do</strong> competência para resolver o seu caso atendi ao seu apelo. Se não tinha<br />
condições de interferir em sua <strong>do</strong>ença, podia acolhê-lo, ouvi-lo, dar um abraço. O ouvi<strong>do</strong> e o toque<br />
podem aliviar muitas <strong>do</strong>res. Carlos era meu amigo. Era um cara de uns trinta anos, um metro e<br />
noventa, negro, forte, parecia Muhammad Ali. Era o melhor joga<strong>do</strong>r de futebol <strong>do</strong> bairro. Não podia<br />
imaginá-lo <strong>do</strong>ente na cama.<br />
Lembro-me como se fosse hoje, agora.<br />
Acompanho. Ela abre a porta, pede para eu sentar no sofá. Senta-se ao meu la<strong>do</strong>, agradece minha<br />
visita, diz que não sabia mais o que fazer, já tinha procura<strong>do</strong> os pronto-socorros de hospitais<br />
públicos reconheci<strong>do</strong>s como excelentes, e não ele não tivera nenhuma melhora apesar de diversos<br />
medicamentos.<br />
Ela me leva ao quarto onde ele está de pijama, sua<strong>do</strong>, com as pernas cobertas com um edre<strong>do</strong>m<br />
branco. Geme de <strong>do</strong>r. Abro a porta <strong>do</strong> quarto. Carlão sorri, feliz por me ver. Firmeza.<br />
– Boa tarde.<br />
– Não estava boa, mas vai ficar. Que bom que você veio me ver, pensei mesmo que você podia me<br />
dar uma ajuda.
– Que aconteceu?<br />
– Tem uma semana que eu vivo em hospital. Já fui no Regional, no Estadual, até naquele famoso,<br />
liga<strong>do</strong> àquela faculdade reconhecida. Dão remédio e me mandam embora. Não aguento mais de <strong>do</strong>r.<br />
Não consigo levantar. Fico aqui na cama com febre o dia inteiro. Quente.<br />
– Cara, o que eles falaram que você tinha?<br />
– Infecção. Não disseram de que. Mandaram tomar esse antibiótico. Mas eu não melhorei nada,<br />
to<strong>do</strong>s os dias eu tenho febre. Muita <strong>do</strong>r nas pernas. Não consigo nem me mexer.<br />
Ele chamou atenção para as pernas, os pés dele estavam de fora <strong>do</strong> edre<strong>do</strong>m. Vi de relance que a<br />
planta <strong>do</strong> pé direito estava roxa, a <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> permanecia clara.<br />
– Posso ver suas pernas?<br />
– Pode!<br />
Puxo o edre<strong>do</strong>m. A perna direita está muito inchada, o <strong>do</strong>bro <strong>do</strong> tamanho da <strong>do</strong> la<strong>do</strong> oposto.<br />
Coloco a mão, temperatura igual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s. Os pulsos nos pés estão cheios. A panturrilha direita<br />
amolecida, como fosse pasta. Apertei. Ele gritou de <strong>do</strong>r. Dentes cerra<strong>do</strong>s. Ai.<br />
Eu nunca tinha visto, mas pela descrição <strong>do</strong> livro, pelas discussões das aulas, é uma trombose<br />
venosa profunda na perna, muito grande porque toda a perna direita está inchada.<br />
Vera entra no quarto. Tu<strong>do</strong> bem?<br />
– Não está tu<strong>do</strong> bem não. O Carlão está com um problema grave. Precisa ir para o hospital agora.<br />
O homem desmonta. Faz cara de criança desconsolada. Com os lábios inferiores tremen<strong>do</strong>. Chora.<br />
Pranto.<br />
– Eu não quero ir pra nenhum hospital! Eu já fui três vezes. Furaram minha veia, deram injeção,<br />
não resolveram nada.<br />
– É melhor você ir porque você está com uma trombose na perna, isso é grave. É um tipo de<br />
coagulo na veia, se soltar e parar no pulmão você pode ter complicação. Tromboembolismo<br />
pulmonar. Morre. Se quiser vamos ao Hospital da Universidade. Lá vou encontrar colegas, meus<br />
professores, peço para te examinarem, tem que cuidar logo. Havia.<br />
Vera olha com um ar de espanto e carinho, olhos encharca<strong>do</strong>s, vermelhos já.<br />
– Por favor, amor, vamos com ele.<br />
– Tá bom, mas primeiro vou almoçar e tomar um banho!<br />
– Não! Não fique levantan<strong>do</strong> da cama!<br />
– Então eu quero um pedaço de bolo.<br />
Faz questão. Teimoso. Come o bolo de laranja. Chega seu irmão, ainda bem. Joca ajuda a<br />
convencer Carlão e a levá–lo ao carro. Levantamos o homem de quase cem quilos nos braços, nós<br />
<strong>do</strong>is fazen<strong>do</strong> muito esforço. Na saída observo o filho e a filha dele pequenos, abraçadinhos no canto<br />
da sala, amedronta<strong>do</strong>s. Olham-me com pavor e certa esperança. Sinto no jeito que me fitam, que<br />
miram meus olhos, que com seus silêncios imploram: traz o papai de volta pra gente, bonzinho, sem<br />
<strong>do</strong>dói!<br />
Levamos o homem ao eleva<strong>do</strong>r. Desce. Até o carro: ele grita a cada movimento. Há <strong>do</strong>r.<br />
O caminho, sucessão de gemi<strong>do</strong>s, sussurros, gritos.<br />
Eu tremo, meu coração com certeza acelera mais <strong>do</strong> que o carro. Chegamos em menos de trinta<br />
minutos ao hospital. Parece que passou um ano.<br />
– Carlão, espera senta<strong>do</strong>, vou pedir uma cadeira de rodas pra você, já venho te buscar. Vera, pega<br />
o <strong>do</strong>cumento dele e vai fazer a ficha.
Entro corren<strong>do</strong> no pronto–socorro. Encontro os internos, meus amigos, veteranos da faculdade.<br />
Preciso de ajuda! Tem um amigo meu com uma trombose na perna. Está com muita <strong>do</strong>r.<br />
Um <strong>do</strong>s internos vem comigo a caminho <strong>do</strong> carro. Carlão já adentra o PS, na cadeira de rodas.<br />
Empurrada por uma senhora voluntária <strong>do</strong> hospital. To<strong>do</strong> sua<strong>do</strong>, agita<strong>do</strong>.<br />
Um <strong>do</strong>s internos chama o <strong>médico</strong> residente.<br />
– O que aconteceu?<br />
Carlão geme, está respiran<strong>do</strong> muito rápi<strong>do</strong>. Consegue dizer que a perna está <strong>do</strong>en<strong>do</strong>.<br />
Chega o residente, observa Carlão respiran<strong>do</strong> muito rápi<strong>do</strong>, sem fixar a cabeça. Disse que era<br />
DNV. Foi a primeira vez que ouvi essa sigla, quer dizer distúrbio neurovegetativo. Algo como<br />
alterações no corpo desencadeadas por uma situação de muita ansiedade.<br />
Leva ele para a sala de emergência! Sinto certo alívio. Está no Hospital da Universidade.<br />
Na porta da emergência ele fica fláci<strong>do</strong>. Desmonta como em câmera lenta, flexiona os <strong>do</strong>is<br />
antebraços encostan<strong>do</strong>–os nos braços, lentamente estica bem os <strong>do</strong>is antebraços e os punhos num<br />
movimento para a lateral. Cai no chão. Coloca<strong>do</strong> na maca da emergência. Carlos, Carlos não<br />
responde. Não respira. Não tem pulso. Parada. Parada.<br />
Eu para<strong>do</strong>. Do canto da sala observo. Assusta<strong>do</strong>. Desespera<strong>do</strong>. Impotente. Os meus colegas e a<br />
equipe de enfermagem se movimentam, ao mesmo tempo, sincroniza<strong>do</strong>s, parece, de certa forma, uma<br />
dança ensaiada. Um sobe a escadinha de <strong>do</strong>is degraus e projeta o corpo sobre o tórax de Carlão,<br />
noventa graus, faz compressões seriadas. Outro coloca os monitores <strong>do</strong> carrinho de parada. O<br />
enfermeiro pega uma veia. Um <strong>médico</strong> de cabelo cinza observa to<strong>do</strong>s com um relógio na mão, diz<br />
bem alto: faz adrenalina. Adrenalina. Uma residente vai para a cabeceira e pega um ventila<strong>do</strong>r<br />
manual, com balão de oxigênio. Pede o laringoscópio, aquele aparelho de metal que levanta a língua,<br />
pede o tubo traqueal, intuba sem dificuldade.<br />
Eu choro, choro muito, soluço. Sinto culpa. Penso no que podia ter feito de diferente. Nada. Nada<br />
adianta. O monitor faz traços que eu não entendia, até que restou uma linha reta. Retinha. Checam os<br />
cabos, to<strong>do</strong>s conecta<strong>do</strong>s, checam o monitor, não há nada erra<strong>do</strong>. Certeza. A mais certa e definitiva.<br />
Morte. Ele morto.<br />
Nunca tinha visto ninguém morrer assim na minha frente. Inconsolável, cora<strong>do</strong>, tremen<strong>do</strong>, menino.<br />
Meu amigo Isaac pega meu braço, me leva até o quarto <strong>do</strong> plantonista. Um pouco tonto presto atenção<br />
em minhas pernas, não tropeço. Talvez uns vinte metros, um lance de escadas abaixo. Parece que não<br />
chega. Eu quero minha mãe. Um abraço, quem sabe?<br />
Isaac me dá um copo d’água. Eu sento na cama, parece que estou sonhan<strong>do</strong>, a penumbra <strong>do</strong> quarto<br />
<strong>do</strong>s plantonistas só aumenta essa impressão. Ligo para minha mãe. Alô. Ela atende. Pergunta se eu<br />
estou bem. Eu só choro. O Carlão morreu! Ela tenta me consolar, diz coisas bonitas.<br />
– Meu filho, meu amor, sua missão é estar junto das pessoas até na hora que morrem. Coragem! A<br />
mãe ama você.<br />
Eu não estava prepara<strong>do</strong>. Podia não ter si<strong>do</strong> meu amigo o primeiro paciente que vejo morrer?<br />
Depois de alguns minutos retorno ao PS. Vera está na porta, já chegaram seus familiares. Ela<br />
pergunta de Carlão.<br />
Eu tento responder, não consigo, meus olhos enchem de lágrimas, encharcam. Abraço forte, bem<br />
forte. Ela entende tu<strong>do</strong>. Tremem as mãos, os lábios, todas as carnes. Geme, chora, grita. Carlão<br />
morreu. Morreu.<br />
Ela pede que segure sua mão, quer vê–lo. Entra na sala de emergência. Monitores apitam. Quente.
Ao fun<strong>do</strong> um corpo que quase não cabia na maca. Desanima<strong>do</strong>. Um tubo na boca. Acesso no braço.<br />
Lençol mancha<strong>do</strong> de sangue. Não. Não.<br />
Soltou a minha mão e se agarrou ao corpo. Verteu um Nilo.<br />
Causa de óbito desconhecida. Foi para a necropsia.<br />
Declaração de óbito: embolia pulmonar. Secundária a: trombose venosa profunda em membro<br />
inferior direito. Trombose, profunda.
Gasometria<br />
“Quem quer passar além <strong>do</strong> Boja<strong>do</strong>r<br />
Tem que passar além da <strong>do</strong>r.”<br />
Fernan<strong>do</strong> Pessoa<br />
Era estudante <strong>do</strong> quinto ano, estava de plantão noturno na Unidade de Terapia Intensiva, a maior <strong>do</strong><br />
Hospital Geral, que recebe quase to<strong>do</strong>s os pacientes cirúrgicos nos pós-operatórios. Curioso, queria<br />
saber <strong>do</strong>s casos, mas o residente, que na ocasião era o meu chefe, não tinha a menor condição de<br />
discutir, tinha muito trabalho. O meu era mais ameno, só precisava colher gasometrias arteriais de<br />
to<strong>do</strong>s os pacientes.<br />
Gasometria é um exame que dá informações importantes sobre o funcionamento principalmente<br />
<strong>do</strong>s pulmões e rins, fundamental na terapia intensiva onde se colhe de quase to<strong>do</strong>s os pacientes ao<br />
menos uma vez ao dia. Como é obtida por punção de artéria, na maioria das vezes a radial (<strong>do</strong><br />
pulso), tem que entrar fun<strong>do</strong> com a agulha, costuma ser <strong>do</strong>loroso.<br />
No começo ficamos com dó <strong>do</strong>s pacientes, quan<strong>do</strong> fazemos a punção profunda na pele eles fazem<br />
aquelas caras de <strong>do</strong>r e entramos bem devagarinho. É a pior coisa que se pode fazer, porque a artéria<br />
contrai e nunca mais se acha, dói muito mais. Aprendi que se colhesse com a mão dura e sem dó o<br />
procedimento se fazia com maior rapidez e menor trauma. Acabei achan<strong>do</strong> que era um bom coletor<br />
de gaso.<br />
Ali na UTI quase to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>entes estavam seda<strong>do</strong>s e intuba<strong>do</strong>s, respiran<strong>do</strong> com auxílio de<br />
aparelhos que chamamos ventila<strong>do</strong>res mecânicos, eram dez pacientes, dez gasometrias. Colhi as nove<br />
primeiras sem dificuldades.<br />
A décima seria em um paciente que me foi passa<strong>do</strong> como um caso de câncer de pulmão em fase<br />
terminal. Perguntei ao residente se precisava colher o exame desse paciente. Ele achou que eu estava<br />
corren<strong>do</strong> de trabalho. Minha impressão era que em uma pessoa sem possibilidade de tratamentos era<br />
melhor não fazer procedimentos <strong>do</strong>lorosos. Ele disse que de manhã quan<strong>do</strong> passasse o plantão para o<br />
seu chefe ele perguntaria das gasometrias e que ele precisaria passar to<strong>do</strong>s os resulta<strong>do</strong>s. Discordei,<br />
vacilei, acabei acatan<strong>do</strong>.<br />
Cheguei ao leito dez onde estava Francisco. Ele usava uma máscara bem vedada que envolvia a<br />
boca e o nariz com oxigênio e ar comprimi<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> ofereci<strong>do</strong>s em pressão. Estava acorda<strong>do</strong>.<br />
Ajeitei na bandeja de aço inoxidável: algodão com álcool, agulha e seringa.<br />
– Boa noite seu Francisco.<br />
Ele não pode falar por causa da máscara. Respondeu olhan<strong>do</strong> em meus olhos. Olhar de ternura.<br />
Pegou na minha mão com certo carinho também.
– Eu sou estudante <strong>do</strong> quinto ano, estou fazen<strong>do</strong> estágio nessa UTI, preciso colher uma gasometria<br />
<strong>do</strong> senhor.<br />
Balançou a cabeça consentin<strong>do</strong>.<br />
Fiz uma punção no antebraço direito. Procurei a artéria radial. Ele fez cara de <strong>do</strong>r. Não achei.<br />
Lacrimejou. Fiquei com dó! Não podia, mas fiquei. Fiz uma segunda punção no antebraço esquer<strong>do</strong> e<br />
não achei nada. Ele gemeu e se contorceu.<br />
– Seu Francisco, eu não consegui! Vou chamar o residente para fazer a punção. Ele sabe fazer isso<br />
melhor <strong>do</strong> que eu. Não quero machucar o senhor.<br />
Afastava-me <strong>do</strong> leito. Ele me puxou pelo avental. Balançou o de<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r direito fazen<strong>do</strong> um<br />
sinal de negativo. Olhou-me de uma maneira que não soube decifrar se era de raiva ou tristeza.<br />
Apontou duas vezes o mesmo de<strong>do</strong> para meu peito. Mirou meu olho. Apontou a artéria radial direita.<br />
Deu três toques bem de leve próximo ao local que eu tinha punciona<strong>do</strong>. Afastou o de<strong>do</strong>. Mostrou a<br />
palma da mão balançan<strong>do</strong> suavemente, como quem pede calma. Pegou o meu indica<strong>do</strong>r direito e<br />
colocou em um local bem delimita<strong>do</strong> com o pulso bem cheio, ele mesmo pressionou meu antebraço<br />
para que eu tocasse bem de leve, tocasse com minha delicadeza costumeira não sentiria nada.<br />
Introduzi a agulha com confiança exatamente onde ele me mostrou. Sangue fluiu. Vermelho vivo.<br />
Pulsante. Os olhos <strong>do</strong> homem brilhavam e ele ria!<br />
– O senhor é profissional de saúde?<br />
Balança a cabeça fazen<strong>do</strong> sim.<br />
– O senhor é <strong>médico</strong>?<br />
Levanta o polegar num gesto afirmativo.<br />
– Obriga<strong>do</strong>, professor, por sua generosidade. Eu nunca vou esquecer <strong>do</strong> senhor.<br />
Ele apontou para mim depois girou a mão apontan<strong>do</strong> um a um to<strong>do</strong>s os pacientes da UTI.<br />
Eu entendi que ele insistira que eu fizesse o procedimento, atravessan<strong>do</strong> além de sua <strong>do</strong>r, não só<br />
por mim, mas por to<strong>do</strong>s os outros pacientes da unidade, tomei a liberdade de interpretar que era por<br />
to<strong>do</strong>s os meus futuros pacientes. Em poucos dias ele já não existia, cruzara o seu Boja<strong>do</strong>r, deixara<br />
para traz suas tormentas. Todas as vezes que colho ou ensino a colher gasometria até hoje de certa<br />
maneira eu o visito.
Descompensação<br />
"Viver é um rasgar-se e remendar-se."<br />
João Guimarães Rosa<br />
Ele era velho conheci<strong>do</strong> de toda a equipe <strong>do</strong> pronto-socorro. Não cresci<strong>do</strong>, magrelo, pele enrugada,<br />
encolhi<strong>do</strong>, feinho que duende parecia. Interna<strong>do</strong> dezenas de vezes com diabetes descompensada, com<br />
o que os <strong>médico</strong>s chamam de cetoaci<strong>do</strong>se. O corre<strong>do</strong>r que leva à unidade de terapia intensiva já não<br />
lhe estranhava.<br />
Com <strong>do</strong>ença grave que requer remédios diversos e dieta regular, não fazia nem uma coisa nem<br />
outra. Não tinha família, não tinha casa, dizem que nem anjo de guarda tinha também. Dessa vez não<br />
ia ter jeito: os rins pararam de vez. Respira rápi<strong>do</strong> e bem superficial. Inspira, expira, inspira, expira.<br />
Como fazer para submeter um paciente desses a hemodiálise? Intubar? Mandar pra UTI de novo?<br />
Esse caso não tem jeito, não tem mais nada para fazer. Jeito não tem.<br />
Vai a médica jovem conversar com homem que nem anjo tinha.<br />
Por que não tomava os remédios? Nem fazia dieta? Só bebia cachaça?<br />
Queria mais era falar de <strong>do</strong>res e amores. Desde que a mulher foi embora vontade de se cuidar foi<br />
junto. É que faltou capacidade para realizar o sonho da vida dela. No meio daquela pobreza e ela<br />
sonhava em ter um carro para passearem por aí. Sonho não realiza<strong>do</strong>, ela no mun<strong>do</strong> caiu. Remédio<br />
para <strong>do</strong>r dessas tinha nada. Restaram as temporárias analgesias <strong>do</strong>s embriagamentos sucessivos. Que<br />
era diabetes? O que incomoda é se sentir no mun<strong>do</strong> sem ninguém mais. Feito o dente carea<strong>do</strong> que<br />
ostentava na boca sem nenhum companheiro. Insulina alivia isso não.<br />
A médica menina ficou com coração aperta<strong>do</strong>, bruta e chorosa.<br />
– O senhor não acha que é muito pequeno ter felicidade baseada em ter um carro?<br />
– A felicidade de cada um é de um jeito, não é? Quem sou eu, sua <strong>do</strong>utora, para julgar os sonhos<br />
alheios? Para julgar os sonhos dela? O meu sonho nesse instante é viver e ficar mais forte e<br />
conseguir ganhar dinheiro e comprar esse carro. Compro o carro e ela volta para mim. Homem mais<br />
feliz no mun<strong>do</strong> não haverá. Sonho.<br />
Inspira, expira, inspira, expira, inspira.
O sofrimento <strong>do</strong> jovem Verder<br />
“Nesta vida<br />
morrer não é difícil<br />
Construir a vida<br />
é bem mais difícil”<br />
Vladimir Maiakovski<br />
Era uma noite escura com poucas estrelas e certas brumas. Cheguei ao salão à meia luz, enfeita<strong>do</strong><br />
com flores brancas, a maioria das pessoas com roupas pretas, muitas choran<strong>do</strong> e se abraçan<strong>do</strong>.<br />
Cheguei com certo nó na garganta, solene. Pessoas tantas havia e quem foi o primeiro a me<br />
encontrar? Ele mesmo. Vou chamá-lo apenas de Chato para não lhe ofertar mais publicidade <strong>do</strong> que<br />
merece. Ele se aproximou e me disse: nunca pensei que Verder teria esse destino!<br />
Eu que já estava um tanto emimesma<strong>do</strong>, e por ter olha<strong>do</strong> de longe para meu amigo naquela<br />
condição, acabei verten<strong>do</strong>, fui chorar lá fora, só.<br />
Lembrei-me de quan<strong>do</strong> Verder entrou na faculdade, chamava atenção pelo jeito de falar, de vestir,<br />
os traços no rosto de quem não levara uma vida cerca<strong>do</strong> de não–me–toques, como a muitos de nossos<br />
colegas, negro, cabelos crespos, olhos grandes e expressivos. Logo ficamos amigos, acho que se<br />
identificou comigo.<br />
Ele me contou que nascera em uma família de gente muito humilde, o pai era auxiliar de pedreiro,<br />
analfabeto, dependente de álcool, morto por cirrose. Isso mesmo, o álcool desconfigurou seu fíga<strong>do</strong>,<br />
transformou em fibra. Sua mãe era <strong>do</strong>na de casa, não conseguiu trabalhar muito tempo fora ou por ter<br />
que cuidar <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> ou de si mesma, quan<strong>do</strong> tinha graves crises de mania devidas ao transtorno<br />
afetivo bipolar, chegou a ser internada em certos manicômios medievalescos. Ele trabalhou desde<br />
garoto, menino ainda embrulhava pacotes no mercadinho da vila em que morava, na periferia da<br />
Cidade Grande. Aos quatorze iniciou aprendiza<strong>do</strong> em curso de carpintaria, aos dezesseis já era<br />
profissional. Tinha sérios problemas familiares, uma situação econômica e social de grande<br />
vulnerabilidade, coragem e inteligência incomuns. Mesmo trabalhan<strong>do</strong> para ter o que comer e muitas<br />
vezes alimentar os pais, seguiu estudan<strong>do</strong>, concluiu o ensino médio, fez concurso para bolsas de<br />
estu<strong>do</strong>s em um curso pré-vestibular desses de elite, conseguiu bolsa de cem por cento. Queria fazer<br />
medicina, talvez para saber explicar suas <strong>do</strong>res e cuidar da vida de quem amava.<br />
Ao sair de sua casa, em um quintal daqueles dividi<strong>do</strong>s em muitas moradias, via todas as paisagens<br />
da cidade: o bairro em que morava com ocupação irregular, córrego a céu aberto, onde com<br />
frequência certa, que já se tornara banal, saltava um corpo que jazia sobre uma poça de sangue ali<br />
mesmo, no caminho por onde andava até a estação de trem, no qual disparava no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> poente e<br />
de onde observava correrem no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> nascer <strong>do</strong> sol: as casas de madeira, as várzeas <strong>do</strong>s rios,<br />
os bairros aglomera<strong>do</strong>s onde tu<strong>do</strong> é cinza e cor-de-tijolo, as fábricas, os prédios altos com sacadas,<br />
os grandes edifícios de vidro, o bairro comercial, a grande estação onde trocava o trem pelo metrô
no qual seguia até a avenida de grandes arranha-céus e torres coloridas.<br />
Prestou vestibular. Na primeira tentativa conseguiu vaga na faculdade de medicina mais cobiçada,<br />
aquela vaga considerada a mais difícil <strong>do</strong> vestibular, aquela que seus colegas de cursinho diziam que<br />
não era para ele, não teria perfil. Foi grande a festa em sua família e na sua comunidade, não sabiam<br />
de outro menino de lá que fosse aprova<strong>do</strong> para qualquer curso naquela universidade.<br />
Quan<strong>do</strong> iniciaram as aulas chamava atenção por sempre andar com livros que pegava empresta<strong>do</strong>s<br />
na biblioteca. Nas provas mais difíceis ele tirava notas improváveis, irreprodutíveis, tinha um<br />
desempenho brilhante, olhos sempre atentos, raciocínio muito rápi<strong>do</strong>, parecia que ele vinha len<strong>do</strong><br />
aquele conteú<strong>do</strong> to<strong>do</strong> no trem desde sua casa. Ele era o melhor aluno da turma.<br />
Um tanto fecha<strong>do</strong>, a princípio, não participava das atividades da turma, vivia cerca<strong>do</strong> de si. Nós<br />
conversávamos, mas ele não dava confiança pra muita gente. Quan<strong>do</strong> chegou a competição de<br />
calouros ele se revelou muito bem humora<strong>do</strong>, contava boas piadas, tinha energia para virar as noites,<br />
era bom de lábia e acabava se aproximan<strong>do</strong> das meninas de outras faculdades, cativante. Era cheio<br />
de idas e vindas.<br />
Já no terceiro ano da faculdade nos surpreendeu, a to<strong>do</strong>s os seus amigos. Quan<strong>do</strong> cheguei à<br />
faculdade me disseram que Verder estava caí<strong>do</strong> no Centro de Convivência da faculdade. Saí com<br />
outros amigos corren<strong>do</strong> e ele estava no chão, sozinho, frio, sobre uma poça de vômito, com várias<br />
caixas de medicamentos abertas e as embalagens sem os remédios ao seu re<strong>do</strong>r. Quatro amigos o<br />
colocamos nos braços e o levamos em coma ao pronto-socorro. O entregamos na sala de emergência<br />
e o aguardamos lá fora.<br />
Por que ele fizera aquilo consigo? O que leva uma pessoa a atentar contra a própria vida?<br />
Axônios, dendritos, neurotransmissores. A culpa de suas frustrações é da serotonina?<br />
Por nossa amizade, por nossa convivência, por ter presencia<strong>do</strong> esse momento, fico emociona<strong>do</strong> de<br />
ver Verder assim. Com tantas pessoas choran<strong>do</strong> em volta. Tomei coragem, cumprimentei sua mãe e<br />
suas tias, pedi licença. Fiquei para<strong>do</strong> em sua frente e lhe abracei bem forte. Disse: meu irmão,<br />
parabéns pela sua formatura. Tenho certeza de que você será um <strong>médico</strong> excelente. Ele sorriu.<br />
Choramos juntos. Abraço durou um tanto.<br />
Segue o trem, segue o rio, segue a vida. Nos trilhos, no barro e no sangue serpenteiam.
O pior <strong>médico</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
"Ao cabo de escrutar co´o mais ansioso estu<strong>do</strong> filosofia, e foro, e medicina... encontro-me qual dantes; em nada me risquei <strong>do</strong><br />
rol <strong>do</strong>s ignorantes."<br />
Johann Wolfgang von Goethe<br />
"Há mortos? Há merca<strong>do</strong>s? Há <strong>do</strong>enças?<br />
É tu<strong>do</strong> meu."<br />
Carlos Drummond de Andrade<br />
Registra<strong>do</strong> no Conselho Regional de Medicina. Apto a praticar a profissão levara seis anos para<br />
aprender. Ávi<strong>do</strong> para começar a exercer a arte de cuidar, fazer diagnósticos, tratar pessoas <strong>do</strong>entes.<br />
Um colega de faculdade, pouco mais velho anunciou que precisava de um plantonista para um prontosocorro,<br />
um hospital de porte médio que atendia diversos planos de saúde. Quem quisesse se<br />
candidatar podia ficar tranquilo. Era sossega<strong>do</strong>!<br />
Abracei a oportunidade. A primeira oferta de trabalho que não era nem para mim, era para quem<br />
se interessasse. Não tinha ideia de quem me contrataria, como seriam as instalações <strong>do</strong> hospital, que<br />
tipo de casos atenderia. Para ser sincero não temia, tinha uma grande segurança acerca de minha<br />
capacidade como <strong>médico</strong>! Tinha estuda<strong>do</strong> recentemente sobre emergências clínicas, cirúrgicas,<br />
ginecologia e obstetrícia, pediatria. Não teria caso que eu não desse conta de fazer ao menos o<br />
atendimento inicial. Além <strong>do</strong> mais era a “Policlínica <strong>do</strong> Bairro”. Justo no bairro em que cresci.<br />
Possivelmente encontrasse até algum amigo ou conheci<strong>do</strong> por lá, seria um prazer atende-los. Gozava<br />
de uma segurança imprudente que só os ignorantes podem ostentar.<br />
Véspera. Noite comprida: mexi e remexi na cama. Parecia nos tempos de menino quan<strong>do</strong> jogava<br />
bola, no dia anterior ao início de campeonato eu não <strong>do</strong>rmia, passava a noite imaginan<strong>do</strong> jogadas<br />
ensaiadas, ficava cansa<strong>do</strong> e não jogava nada! Naquela noite também, fiquei rememoran<strong>do</strong>: se<br />
chegasse um paciente com politrauma? E se chegasse um infarto? E se chegasse um caso de violência<br />
sexual? Mexi e remexi nos meus livros e apostilas. Queria rever toda a medicina em poucas horas.<br />
Dormi depois das três da manhã.<br />
Às cinco e trinta o desperta<strong>do</strong>r tocou. Pulei da cama. Banho gela<strong>do</strong> para acordar. Café forte sem<br />
açúcar. Vesti uma roupa bonita. Peguei meu avental novo, com o símbolo da faculdade numa manga e<br />
a marca de minha turma na outra. Sempre achei o símbolo da faculdade lin<strong>do</strong>. O <strong>do</strong> meu avental era<br />
verde, cor da medicina. Olhan<strong>do</strong> no espelho me ajeitei, estava com olheiras, dei um sorriso e fiz uma<br />
dancinha. Chamei meu pai e minha mãe. Queria que eles me vissem sain<strong>do</strong> para o meu primeiro dia<br />
de trabalho como <strong>médico</strong>. Ela balançou a cabeça bem de levinho, olhou para mim com to<strong>do</strong> o
carinho, ele abriu um sorriso, trocaram um olhar compri<strong>do</strong> e se abraçaram, bem forte. Fiquei feliz<br />
porque percebi que eles estavam orgulhosos. Minha mãe alisou o meu rosto, muitas vezes com a mão<br />
direita, passan<strong>do</strong> na minha barba rala e mal feita. Beijaram meu rosto e me abençoaram. O sol nem<br />
tinha nasci<strong>do</strong>. Eu fui trabalhar!<br />
Cheguei quinze minutos antes para conhecer o serviço. Fui recebi<strong>do</strong> por uma enfermeira muito<br />
gentil que me mostrou a sala em que eu atenderia. Pedi para me levar à sala de emergência. Tinha um<br />
monitor, um carrinho para atendimento de parada cardíaca, material de intubação, medicamentos para<br />
emergências. Estava bem servi<strong>do</strong>!<br />
Tomei o meu assento. Peguei meu carimbo virgem. Carimbei um receituário. Admirei o meu nome<br />
impresso com a tinta <strong>do</strong> carimbo. Fiquei contente e vai<strong>do</strong>so. Carimbei uma folha todinha. Obra inútil,<br />
mas aprazível.<br />
Começaram a chegar os pacientes. Anexas às fichas vinham pequenas tarjetas de plástico<br />
vermelhas ou verdes. Como havia poucos pacientes na primeira hora <strong>do</strong> plantão ignorei os colori<strong>do</strong>s.<br />
Chegou a enfermeira, muito solícita.<br />
– Você já sabe <strong>do</strong> sistema de cores das tarjetas? Vermelho, verde…<br />
– Sei sim! Aprendi na faculdade! Verdes são casos mais simples, não tem muita gravidade, podem<br />
aguardar se for o caso. Vermelhos: casos graves, risco de vida, atender imediatamente!<br />
– Doutor, aqui no nosso hospital é um pouquinho diferente. Sabe aqueles convênios semvergonhas?<br />
Baratinhos? Que não cobrem nada? Então esses são os vermelhos. Não adianta pedir<br />
exame no pronto atendimento, nem avaliação de <strong>médico</strong> especialista, por que não sai. Se quiser pedir<br />
alguma coisa precisa internar, aí compensa. Os verdes, sabe aqueles planos bons? Que pagam bem?<br />
Então, se aparecer com ficha verde pode pedir exame à vontade, prescrever medicamento, deixar em<br />
observação, é uma beleza!<br />
Pasmo. Formação inteira em hospitais públicos, em serviços de referência. Para sair da faculdade<br />
e oferecer atendimento de acor<strong>do</strong> com o poder de compra <strong>do</strong> paciente? Dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> valor <strong>do</strong><br />
convênio eu deveria oferecer cuida<strong>do</strong>s diferencia<strong>do</strong>s. Fiquei com vontade de sumir naquele minuto,<br />
mas não podia aban<strong>do</strong>nar o plantão. Asclépio que me per<strong>do</strong>e.<br />
O dia inteiro atendi os casos que chegaram, sem maior complexidade. Almocei ali perto. Bem<br />
rápi<strong>do</strong>. Voltei ao meu posto.<br />
No meio da tarde chegou um paciente de cerca de setenta anos com rebaixamento <strong>do</strong> nível de<br />
consciência. Estava almoçan<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> bem. Desmaiou. Acor<strong>do</strong>u mais sonolento, gemente, não<br />
respondia a perguntas nem a estímulos. Leva<strong>do</strong> à Policlínica. Eu iniciei atendimento com<br />
tranquilidade. Quantos casos de rebaixamento de consciência já atendera na faculdade? Para fazer o<br />
diagnóstico precisaria de exames: podia ser AVC, meningite, infecção urinária, pneumonia,<br />
insuficiência renal, glicose muito elevada ou muito diminuída, alteração no sódio… podia ser várias<br />
coisas diferentes, mas eu tinha condições de fazer o diagnóstico. Não tinha? Não tinha.<br />
Ele era um vermelho. Vermelho. Eu não podia pedir nenhum exame para ele no PS.<br />
Fiquei com raiva. Aquela situação esdrúxula que possivelmente acontecesse em diversos serviços<br />
e eu não tinha ideia de como lidar. Fui orienta<strong>do</strong> pela oficial administrativa <strong>do</strong> hospital a preencher<br />
uma ficha de internação, então poderia pedir exames. Fiz a ficha. Precisava colocar o diagnóstico<br />
conforme o CID (Código Internacional de Doenças), escrevi: Acidente Vascular Cerebral, CID I64.<br />
Estava interna<strong>do</strong>, agora poderia pedir exames.<br />
Solicitei: tomografia de crânio, radiografia de tórax, eletrocardiograma, sedimento urinário,
cultura de urina, hemograma completo, glicose, provas de funções <strong>do</strong> rim, fíga<strong>do</strong>, sódio, potássio,<br />
enzimas cardíacas. Pronto, dava pra começar. Se não elucidasse colheria um líquor, aprendi a fazer<br />
isso direitinho, não tinha receio de fazê-lo.<br />
Em poucos minutos fui informa<strong>do</strong> que a tomografia foi autorizada, mas que os outros exames não,<br />
a família tinha que pagá–los à parte. Como assim? O auditor não liberou, não são libera<strong>do</strong>s para o<br />
CID de AVC! Quem era o auditor? Um <strong>médico</strong>! Era um colega, emprega<strong>do</strong> <strong>do</strong> plano de saúde, que no<br />
mesmo horário em que eu dava plantão para tentar cuidar das pessoas ele dava expediente no plano<br />
com objetivo de conter gastos. Dá pra acreditar que tem <strong>médico</strong> que se presta a esse papel? E ele não<br />
estava auditan<strong>do</strong>, não estava avalian<strong>do</strong> se os gastos eram proporcionais aos procedimentos<br />
realiza<strong>do</strong>s. Ele estava negan<strong>do</strong> acesso a exames que o plano teria que pagar. Pensei em ligar para<br />
ele, pro Conselho Regional de Medicina, para a polícia. Mas o paciente ali na sala de emergência, eu<br />
tinha que cuidar dele. A família pagou pelos exames. A tomografia e a radiografia vieram normais.<br />
Mesmo que fosse mesmo AVC é possível que a tomografia nas primeiras horas venha normal, não<br />
aju<strong>do</strong>u em nada. A equipe <strong>do</strong> PS ficou me pressionan<strong>do</strong> para levar o paciente para enfermaria,<br />
mesmo não ten<strong>do</strong> diagnóstico. Não permiti, ficaria sob meus cuida<strong>do</strong>s até que o caso estivesse<br />
elucida<strong>do</strong>.<br />
Em Brasília dezenove horas. Acabou meu primeiro plantão. Chegou o colega para me render. Era<br />
outro recém-forma<strong>do</strong>. Fiquei com vergonha de passar o caso, de ter si<strong>do</strong> absolutamente incompetente<br />
para lidar com os problemas que o hospital e o plano de saúde tinham imposto, de não ter concluí<strong>do</strong><br />
o diagnóstico. Falei para o colega que a equipe <strong>do</strong> PS queria levar o paciente para a enfermaria, que<br />
se eu fosse ele não deixaria, esperaria os outros exames, tentaria uma vaga de terapia intensiva.<br />
Boa noite. Despedi da equipe e da família <strong>do</strong> paciente. As filhas que o acompanhavam me<br />
agradeceram, muito. Eu falei <strong>do</strong>s problemas com o hospital e com o plano de saúde, que eu não<br />
concordava com isso, que estava sen<strong>do</strong> limita<strong>do</strong> por eles. Ambas me olharam com um olhar de<br />
cumplicidade quase cari<strong>do</strong>sa e me abraçaram. Ternas. Senti-me ainda pior.<br />
Saí <strong>do</strong> hospital olhan<strong>do</strong> o chão. Cabeça baixa. Passos curtos. Foi para isso que estudei medicina?<br />
Seis anos de estu<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is anos de estágio hospitalar. Foi para isso? Triste, me senti o pior <strong>médico</strong> <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Falei baixinho para o meu estetoscópio, único companheiro numa hora dessas: se o chanceler<br />
Bismarck realmente disse que as pessoas não <strong>do</strong>rmiriam se soubessem como se fazem jornais e<br />
salsichas é porque na velha Prússia não havia planos de saúde.
Médico jura<strong>do</strong> de morte<br />
Com o bisturi entre os dentes saiu João Pirata da residência de cirurgia. Com fome de mun<strong>do</strong> deixou<br />
o Hospital da Universidade onde recebera toda a sua formação. Aprova<strong>do</strong> com excelente<br />
desempenho em concurso para <strong>médico</strong>s da prefeitura foi preciso ao escolher a sua vaga: Jardim <strong>do</strong>s<br />
Amores.<br />
Jardim <strong>do</strong>s Amores! Ainda havia outras vagas. Pirata já tinha fama de não ser muito certo. Tantos<br />
lugares para escolher e optou pela região mais violenta da cidade, onde se esfaqueava a troco de um<br />
olhar enviesa<strong>do</strong>, onde o crime criava estatutos e comandava o território.<br />
– É isso mesmo! Eu fiz quatro anos de cirurgia porque gosto! Vou trabalhar pra prefeitura lá no<br />
Jardim <strong>do</strong>s Amores, não vai faltar quem operar! Não era José profeta, mas calculava.<br />
Assumiu o seu posto. Realmente não faltava trabalho. Sempre que chegava ao pronto-socorro<br />
tinha ao menos três cirurgias. Dia de festa! Ao centro cirúrgico!<br />
Não demorou muito tempo galgou posto de chefia de plantão. E sua fama correu a quebrada. O<br />
homem é bruto, mas resolve na faca.<br />
Corre notícia na emergência.<br />
Tiroteio. Chefe <strong>do</strong> morro foi balea<strong>do</strong>. Cabeção está vin<strong>do</strong> pro hospital. A equipe fica nervosa.<br />
Sabe que às vezes a tensão da rua chega à sala operatória.<br />
Chega o homem banha<strong>do</strong> de sangue. Leva<strong>do</strong> à emergência. Dois homens o resguardam. Havia<br />
volumes em suas cintas. Ninguém pediu para ver os <strong>do</strong>cumentos.<br />
Vias aéreas sem obstrução.<br />
Movimentos respiratórios espontâneos. Grita.<br />
A casa vai cair se não der tu<strong>do</strong> certo. Vai sobrar bala!<br />
Pressão elevada. Pulsa. Acelera<strong>do</strong>.<br />
Consciente e orienta<strong>do</strong>. Sem alterações neurológicas.<br />
Ferimento por arma de fogo em coxa esquerda. Perto da virilha.<br />
Chega Pirata.<br />
Administram oxigênio, pegam acessos venosos, corre soro fisiológico.<br />
Correm para a sala de operação.<br />
O impaciente repete que a casa vai cair pra geral.<br />
Tem que operar.<br />
É a primeira vez que lhe vão passar a faca.<br />
A maca <strong>do</strong> impaciente está na sala operatória.<br />
O anestesista não chega.<br />
O pulso sobe. A pressão cai.<br />
Transfunde sangue!<br />
Pirata pega uma compressa. Enxuga aquele sangue to<strong>do</strong>. Ar condiciona<strong>do</strong> quebra<strong>do</strong>, sua em bica.
Faz uma anestesia local e passa o bisturi para explorar a ferida.<br />
– Ai seu filho da puta. Dói pra caralho. Se eu perder minha perna você tá fodi<strong>do</strong>, tá fodi<strong>do</strong> na<br />
minha mão. Vai ficar pequeno. Eu sou o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> morro.<br />
– Cala a boca caralho. Você manda na casa <strong>do</strong> cacete. Na sala de cirurgia quem apita sou eu.<br />
Estou tentan<strong>do</strong> salvar a sua vida, se você não deixar vai sangrar até morrer. Você entendeu. Quem<br />
manda nessa porra de sala aqui? Entendeu?!<br />
Não entendeu. Pulso subiu, pressão caiu, ficou inconsciente.<br />
Vai morrer?<br />
Chegou o anestesista. Intubação. Cateter em veia central. Droga. Pressão normal.<br />
Pirata encontrou a veia femoral rasgada… suturada… perfeita. Tirou a bala e colocou num<br />
vidrinho.<br />
Paciente para a unidade de terapia intensiva.<br />
A equipe de certa maneira torcia para que não saísse vivo. Sabia que se ele saísse Pirata estava<br />
morto. Essa cara nunca ouviu desaforo nem de polícia. Pirata torcia que desse tu<strong>do</strong> certo. Não queria<br />
que o paciente que operou morresse assim. Não gostava de fracassar. Me<strong>do</strong> não tinha. Não era<br />
mesmo muito certo.<br />
Soube-se que no segun<strong>do</strong> dia de internação, o homem em muito melhores condições fugiu <strong>do</strong><br />
hospital. Correu notícia.<br />
Fizeram bolão para saber que dia matariam Pirata.<br />
A chefia sugeriu que se afastasse por tempo indetermina<strong>do</strong>.<br />
– Eu vim aqui foi pra operar. Põe o próximo na sala.<br />
Maria, técnica de enfermagem que morava na comunidade, avisou a to<strong>do</strong>s que correu na boca<br />
pequena que Cabeção invadiria o hospital, dizia que tinha conta a acertar com <strong>do</strong>utor Pirata.<br />
Comoção.<br />
Pirata, não fica no hospital!<br />
– Eu sou homem, não tenho me<strong>do</strong> de homem. Vim aqui pra operar. E põe o próximo na sala!<br />
A polícia foi avisada, disse que não entrava no Jardim <strong>do</strong>s Amores com o contingente <strong>do</strong> dia.<br />
A funerária encostou o carro.<br />
Pirata opera, como se amanhã não houvesse.<br />
Sai da sala de operação.<br />
– Ei, você é o <strong>do</strong>utor Pirata?<br />
– Eu mesmo!<br />
Chegou a encomenda! Aproxima-se um rapaz jovem, magro, de camiseta. Um volume em sua<br />
cintura. Um, <strong>do</strong>is, três passos. Põe a mão na cintura. Levanta a camisa. Aproxima-se de Pirata. Puxa<br />
o volume… O <strong>médico</strong> arregala os olhos, esbugalha.<br />
– Isso aqui é pelo que você fez com o Cabeção. Toma!<br />
Entrega um pacote ao <strong>médico</strong> e vai embora.<br />
Pirata corre para a sala <strong>do</strong>s plantonistas. Tenta desembrulhar o pacote de papel de pão. Dava pra<br />
ver até as letrinhas azuis. Servimos bem para servir sempre. Gratos pela preferência.<br />
Dentro <strong>do</strong> embrulho tinha quase meio quilo de ouro: gargantilhas, pulseiras, anel e relógio da<br />
hora. E um bilhete:<br />
Dr. Pirata vá desculpan<strong>do</strong> as palavras. Valeu salvar minha vida. Devo essa. Quem mexer com o<br />
senhor mexeu cum nóis. Aproveite o presente. De seu irmão: Cabeção.
Dor na barriga<br />
Cenário: pronto-socorro <strong>do</strong> Hospital Geral, plantão noturno. O <strong>médico</strong> chama <strong>do</strong>na Maria. Entra<br />
uma senhora i<strong>do</strong>sa acompanhada <strong>do</strong> filho preocupa<strong>do</strong>.<br />
– Boa noite, o que motivou a senhora procurar o PS? Filho preocupa<strong>do</strong> toma a palavra:<br />
– Seu <strong>do</strong>utor, ela não <strong>do</strong>rmiu de noite com <strong>do</strong>r na barriga!<br />
– A senhora, por favor, deite na maca pra eu examinar. Muita <strong>do</strong>r no hipocôndrio direito (debaixo<br />
das costelas), pior à inspiração.<br />
– O problema da senhora provavelmente é na vesícula!<br />
– Mas eu já operei da vesica!<br />
– A senhora operou a vesícula? Não tem nenhuma cicatriz no local!<br />
O filho muito preocupa<strong>do</strong>.<br />
– Mãe, não foi o pênis que a senhora operou?<br />
– Foi. Foi mesmo! Eu operei foi <strong>do</strong> a–pênis. E aponta para a fossa ilíaca direita (localização <strong>do</strong><br />
apêndice).
Diagnóstico: ciúme desgraça<strong>do</strong><br />
– Sabe o que é, <strong>do</strong>utor, tô cansada.<br />
– É falta de ar que a senhora tem?<br />
– Cansaço mesmo, vontade não fazer nada, ficar só na cama.<br />
– Há quanto tempo?<br />
– Tem uns três meses.<br />
– Está triste?<br />
– Estou!<br />
– O que a senhora faz que te dá prazer, deixa satisfeita?<br />
– Eu gostava de participar de um grupo de terceira idade, sabe, a gente fazia uma festa, viajava,<br />
agora faço mais nada.<br />
– E não faz por quê?<br />
– É que tem uma pessoinha, ram, ram, sabe... que é muito ciumenta.<br />
– Sua filha?<br />
– Não. Meu namora<strong>do</strong>! É um grude em mim, sabe daquelas pessoas obcecadas? Não deixa eu<br />
conversar com ninguém, não quer que eu faça nada, nem deixa eu ter amizade. Depois de oitenta e<br />
três anos eu vou achar um traste desses! Eita ciúme desgraça<strong>do</strong>!<br />
– Apaixonou, a senhora é muito bonita.<br />
– Isso é porque ele não me viu quan<strong>do</strong> tinha meus vinte anos, aí que ele tinha fica<strong>do</strong> <strong>do</strong>i<strong>do</strong> de vez.
A <strong>do</strong>ença de Maria José<br />
“Oqueelatinha?<br />
Não se sabia. Ela não dizia o que tinha<br />
Nossa! Você viu?<br />
Mas o que ela tinha?”<br />
Emerson Alcade<br />
Maria José de Jesus!<br />
Do meio de um mar de cabeças, das pessoas que esperam para serem chamadas no ambulatório da<br />
especialidade, emerge uma senhora franzina. Ergue–se com o apoio de um par de muletas. Cabelos<br />
acinzenta<strong>do</strong>s, corte na altura <strong>do</strong> ombro, pele enrugada com manchas senis, aquelas amarronzadas.<br />
Vem ao meu encontro bem lentamente. As pernas eram duras. Anda fazen<strong>do</strong> movimentos como arcos<br />
para frente. No ambulatório de <strong>do</strong>enças infecciosas devia ser HTLV. E era mesmo.<br />
O HTLV é um vírus semelhante ao HIV que pode ser transmiti<strong>do</strong> por contato com sangue, relação<br />
sexual ou de mãe para filho. A maior parte <strong>do</strong>s porta<strong>do</strong>res nada sente, nem fica <strong>do</strong>ente nunca.<br />
Dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> tipo de vírus e <strong>do</strong> organismo da pessoa infectada, alguns desenvolvem leucemia,<br />
outros a <strong>do</strong>ença de Maria José: paralisia espástica tropical, esse nome estranho mesmo! As pernas<br />
ficam fracas e endurecidas, com o que chamamos de espasmo, pode ter incontinência urinária, <strong>do</strong>r<br />
lombar, homens podem ter impotência sexual.<br />
Ela tem dificuldade para se movimentar, mas chega sorrin<strong>do</strong>.<br />
Pensei que seria uma consulta difícil, não existe tratamento eficaz para essa <strong>do</strong>ença. Damos<br />
medicamentos para melhorar os sintomas.<br />
Fiz a entrevista, examinei, fiz a prescrição.<br />
Ela sorria, assoviava e cantarolava. Alegre.<br />
Dona Maria José sabia como pode ter pega<strong>do</strong> esse HTLV?<br />
– Sei lá meu fio. Sofri nessa vida foi muito.<br />
– Mas hoje em dia a senhora está bem.<br />
– Tô sim, boa mesmo. Hoje em dia, afemaria, é uma graça. Mas pra criar meus fi, tive que catar<br />
muita latinha. Latinha! Sabe por quê?<br />
– Por quê?<br />
– Porque homem presta nada. Eu me casei mais Zé, tudim bonitim, a gente morava de aluguer,<br />
mais a vida era boa. A gente tinha <strong>do</strong>is fi, um casal. Um di o patrão de Zé disse que era pra gente ir<br />
pro Ri-de-janero, que tinha um trabaio pra Zé lá, mais os menino tava na escola, Zé foi na frente. A<br />
firma deu apartamento pra nóis, eu fui lá e ajeitei tu<strong>do</strong> nos conforme. Daí vortei pra casa. Zé vortava<br />
de quinze–em–quinze. Daí Zé num apareceu mais, nada deu saber de Zé. Esse Zé num telefonava,<br />
esse Zé num mandava carta. Daí eu procurei o patrão de Zé. Dona Maria José, não tô saben<strong>do</strong> de<br />
nada, Zé tá no trabaio normal. Afemaria. Me deu na veneta. Peguei o oimbis e fui bater lá no Ri.
Quan<strong>do</strong> cheguei no prédio, no apartamento, no apartamento que era pra ser de nóis, tentei abrir a<br />
porta, a minha chave nem entrô! Zé <strong>do</strong> diabo tinha troca<strong>do</strong> a fechadura. Bati na porta, toque–toque–<br />
toque–toque. Sabe o que aconteceu?<br />
– Eu não. O que aconteceu?<br />
– Abriu a porta uma muiézeonadestamanho. Uma lora. Bonitona. Quero falar com Zé! Ela me<br />
disse... ela disse mesmo assim: Zé não está, pode falar que eu sou a esposa dele. Esposa!<br />
– E a senhora disse o que?<br />
– Disse: nada não o assunto é só com ele, mais tarde vorto. Vortei foi pra casa. Triste. Uma<br />
desgraçada. Chorei as lágrima tu<strong>do</strong>, que se acabaram, por isso que hoje num choro mais nada. Mais<br />
pensa que fiquei na cama largada? Minha fia pediu comida e num tinha. Fui pra rua catar latinha. Não<br />
tenho vergonha. Catei latinha que dei de comer e formei meus <strong>do</strong>is fi. Entendeu? Acho que foi por<br />
causa dessa decepção que eu a<strong>do</strong>eci.<br />
– E o Zé, a senhora nunca mais falou com ele?<br />
– Falei sim senhor, aquela desgraça vortou pra minha casa despois de véio, imprestavi! Teve um<br />
derrame que caiu na cama. A lora dispensou. Eu acolhi. Saporque?<br />
– Por quê?<br />
– Num vale nada, mais era o pai de meus fi. O bichão ficava em riba da cama. Mais me pagô.<br />
Pagô tudim. As miséria que me feiz. Ele dizia que queria cumê. Eu dizia mesmo assim: ó Zé por que<br />
num vai pedir de cumê pra lora, Zé? Quan<strong>do</strong> Zé se cagava to<strong>do</strong>, eu dizia mesmo assim: ó Zé, por que<br />
num chama a Lora pra vim alimpar sua merda? Aquela desgrama me pagou inté no dia que morreu.<br />
Eu fazia, mais primeiro queria olhar pra cara dele e ver que ele tava sofren<strong>do</strong> o que eu sofri. Diacho.<br />
– E por que a senhora está choran<strong>do</strong> agora?<br />
– É mermo, disse que já tinha seca<strong>do</strong> as lágrimas, mais quan<strong>do</strong> alembro de Zé, quan<strong>do</strong> falo nele<br />
assim, dá um pouco, mas é coisa besta, um nadica de saudade.
UTI da MI<br />
No Hospital das Clínicas o serviço de infectologia é conheci<strong>do</strong> como "moléstias infecciosas" ou MI.<br />
A internação conta com uma enfermaria e uma unidade de terapia intensiva, no alto da porta verde se<br />
destaca: “UTI da MI”.<br />
Foi lá que num plantão de <strong>do</strong>mingo, tarde de verão, recebi Joaquim com Síndrome de Weil, forma<br />
mais grave da leptospirose, conhecida popularmente como “a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> rato”. O homem chegou<br />
numa situação bastante grave, amarelinho, com insuficiência renal e desconforto respiratório,<br />
sangrava pelos pulmões, com o que chamamos de hemorragia alveolar.<br />
Com ajuda da médica assistente intubei, coloquei em sedação profunda e com pressão alta no<br />
ventila<strong>do</strong>r mecânico, controlamos a hemorragia. Chamei o serviço de nefrologia que iniciou<br />
hemodiálise. Demos os medicamentos necessários.<br />
O homem melhorou ligeiro. No sétimo dia estava sem sedação, consciente e bem orienta<strong>do</strong>,<br />
respirava espontaneamente, não precisava mais de hemodiálise. Teria alta da UTI. Hora da visita,<br />
boas novas para a família!<br />
Chega Josefa, na porta da UTI, quer conversar com o <strong>médico</strong>.<br />
– Boa tarde Dona Josefa.<br />
– Boa tarde seu <strong>do</strong>utor. Quero saber a situação de Quinzim, pelamordedeus não esconda nada.<br />
– Não escon<strong>do</strong> nada, <strong>do</strong>na Josefa: ele já esteve muito grave, com risco de vida, mas agora está<br />
melhor.<br />
– Melhor mesmo?<br />
– Melhor, inclusive estará de alta da UTI para a enfermaria.<br />
– Graças ao bom Deus. Eu não acredito!<br />
– Pode acreditar.<br />
– Eu não tô acreditan<strong>do</strong>. Saporque? Por que quan<strong>do</strong> me disseram na emergência que ele tava com<br />
a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> rato eu sabia que era coisa ruim. Quan<strong>do</strong> disseram que ele vinha pra “UTI da MI”, eu<br />
pensei assim: Armaria! Pra “UTI da MI”! Tá perdi<strong>do</strong>! Agora que ele tá mortim!<br />
– Por que a senhora pensou isso?<br />
– Olhe o nome aqui na porta, <strong>do</strong>utor, UTI da MI! Eme-í! Eme-í!<br />
– E a senhora sabe o que quer dizer MI?<br />
– Não é missão impossível?
Vovó com aids<br />
Foi assim, meu filho, o senhor é <strong>médico</strong>, mas é mocinho, sua carinha parece com as de meus<br />
netos. Então vou te chamar de meu filho. Eu sou viúva já tem vinte e cinco anos. Solitária, arranjei<br />
um namora<strong>do</strong>, um senhor muito distinto, a gente já ia casar! Esse meu namora<strong>do</strong> an<strong>do</strong>u a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong>,<br />
emagreceu, sem apetite, foi fraquean<strong>do</strong>, ficou de cama. Nós procuramos muitos <strong>médico</strong>s: foi posto de<br />
saúde, foi clínica particular, foi pronto-socorro. Nada. Um dia ele passou muito mal e nós o levamos<br />
ao Hospital de Referência, sabe? Lá ele já chegou muito ruim, ficou na emergência interna<strong>do</strong> uns <strong>do</strong>is<br />
dias e lá mesmo morreu. O <strong>médico</strong>, que era um bambino assim que nem o senhor, bem, o senhor não,<br />
você, que sua cara parece com as de meus netos. O <strong>do</strong>utor de lá disse que ele tinha morri<strong>do</strong> de aids.<br />
Eu tomei um susto. Respirei fun<strong>do</strong> e segurei a mão de meu filho que estava me acompanhan<strong>do</strong> e<br />
presenciou tudinho. Disse, ai, meu filho, agora eu vou ter que fazer exame desse vírus! Você sabe o<br />
que meu filho me disse? Ele disse assim: mãe, com esse namoro de vocês ninguém pega aids não! É<br />
que ele pensava... bem ele não pensava... quer dizer... ele nem imaginava... você já entendeu o que é<br />
que ele não imaginava! Fiz o exame <strong>do</strong> vírus da aids. Deu positivo. A médica que me deu o resulta<strong>do</strong><br />
me explicou que era quase dez anos para ficar <strong>do</strong>ente se não tratasse e que tinha bons remédios, que<br />
no Brasil era de graça. Eu não me assustei com isso! Não foi difícil, juro que não foi difícil. Difícil<br />
foi o dia em que juntei meus filhos, meus netos e até minha bisnetinha na minha casa e confessei meu<br />
peca<strong>do</strong>! Se quer saber, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em casa entendeu, eles não me acusaram de nada, minhas netas<br />
até me ajudam a lembrar <strong>do</strong>s remédios. Posso falar que sou feliz, sabe por quê? Porque meus filhos<br />
não me tratam com indiferença e eu não guar<strong>do</strong> nenhuma mágoa de meu namora<strong>do</strong>. Ele não sabia.<br />
Concorda que ele não sabia? Se soubesse tinha se trata<strong>do</strong>, não tinha morri<strong>do</strong> à míngua como morreu o<br />
coita<strong>do</strong>.
Whatsapp<br />
hoje estava pensan<strong>do</strong> comigo que tenho sorte de ter te encontra<strong>do</strong> só tenho a agradecer a Deus por<br />
ter coloca<strong>do</strong> um <strong>médico</strong> tão bom na minha vida muito obriga<strong>do</strong> 13h12<br />
obriga<strong>do</strong> você é generoso só tento fazer meu trabalho direito abraço 16h17 VV<br />
qual a chance de vc passar algo para eu tomar que colabore no meu crescimento na academia? :–)<br />
18h14<br />
zero 18h15 VV
Médico bem sucedi<strong>do</strong><br />
Após estar forma<strong>do</strong> em medicina comecei a trabalhar em pronto atendimentos (PA), locais que as<br />
pessoas costumam procurar por algum desconforto agu<strong>do</strong>, porém sem maior gravidade. Preferia o PA<br />
infantil, gostava das crianças, de examiná-las, de brincar com elas quan<strong>do</strong> era possível, muitas vezes<br />
só era necessário orientar as mães para cuidarem <strong>do</strong>s resfria<strong>do</strong>s de seus filhos.<br />
Eu chegava às dezenove em ponto, ou antes. Haveria um colega mais experiente para fazer dupla<br />
comigo. Seria bom contar com um <strong>médico</strong> com maior vivência. Para casos mais graves é bom ter<br />
com quem dividir as dúvidas e as condutas.<br />
Quinze pras oito chegou meu parceiro. O mesmo de outros plantões. Era José qualquer outra<br />
coisa, não lembro. Chamava-lhe Zezão. Obeso sem pescoço, poucos cabelos, to<strong>do</strong>s brancos, tinha<br />
cinquenta anos, parecia ter vinte a mais, um tanto bonachão. Gostava de falar de futebol e<br />
amenidades, era agradável acorda<strong>do</strong>. Dormin<strong>do</strong> era das piores companhias: no quarto <strong>do</strong> plantonista<br />
quan<strong>do</strong> ele encostava à cama, beliche de madeira das mais simples, com um colchão mole usa<strong>do</strong> há<br />
anos, já <strong>do</strong>rmia. Eu na cama de cima presenciava um terremoto. A cama vibrava, parecia que<br />
funcionava uma serralheria no quarto, meu colega roncava, roncava, roncava, tinha pausas<br />
respiratórias tão prolongadas que não teve um plantão em que não pensei que ia ter que reanimá-lo. E<br />
se ele tivesse uma parada cardiorrespiratória no meio <strong>do</strong> expediente?<br />
Zezão estava sempre cansa<strong>do</strong>. Já tinha passa<strong>do</strong> pelos <strong>do</strong>is empregos e pelo consultório quan<strong>do</strong><br />
chegou atrasa<strong>do</strong> ao PA. Esbafori<strong>do</strong>, creditava ao trânsito da cidade o seu atraso, xingava o prefeito<br />
que só sabia cobrar impostos. Ia para sua sala começar os atendimentos. Dia sim, dia não estava de<br />
plantão. Eram muitas as despesas.<br />
Naquela noite tinha jogo <strong>do</strong> Brasil, o PA estava anormalmente vazio. Conseguimos jantar juntos,<br />
ele fez questão de pedir pizza. Aceitei. Acho que há tempos não encontrava um amigo, então servia<br />
eu mesmo. Primeiro contou de suas façanhas. Graças a ter da<strong>do</strong> tantos plantões, já tinha compra<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>is apartamentos, mas cada um estava com uma ex-mulher. Seus relacionamentos não duravam. Mas<br />
tinha lhe resta<strong>do</strong> uma bela casa de praia. Fazia <strong>do</strong>is anos que não conseguia ir lá, mas era sua!<br />
Qualquer dia nós poderíamos ir lá, qualquer dia. Nos próximos seria difícil. Estava em crise com sua<br />
mulher atual. Não sabia bem por quê, mas o relacionamento estava esfrian<strong>do</strong>, ela não queria saber<br />
mais dele. O jeito era passar numa casa de acompanhantes. Fazer o quê? Lá naquele lugar, havia<br />
mulheres lindas, discretas, sempre elogiavam seu desempenho! Quan<strong>do</strong> não tivesse de plantão<br />
passaria lá.<br />
Chegou mensagem <strong>do</strong> filho no celular. Esse aí só procura para pedir dinheiro. Tanto trabalho, ele<br />
teve tu<strong>do</strong>: viajou, fez intercâmbio e estu<strong>do</strong>u línguas. Está na faculdade. Foram muitos plantões pra<br />
dar tu<strong>do</strong> a ele. Só manda mensagem pedin<strong>do</strong> dinheiro.<br />
Perguntou o que eu queria fazer de especialidade.
Não tinha certeza. Queria fazer alguma especialidade clínica em que pudesse trabalhar com saúde<br />
pública: pediatria, medicina de família, infectologia, clínica médica...<br />
– Rapaz você é muito novo, ainda não sabe <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Esse negócio to<strong>do</strong> é muito bonito, mas se<br />
você for mesmo trabalhar com saúde pública, você jamais será como eu. Assim: bem sucedi<strong>do</strong>.
Vontade de se jogar<br />
– Nas últimas semanas você tem se senti<strong>do</strong> triste, deprimi<strong>do</strong>?<br />
– Mais irrita<strong>do</strong> <strong>do</strong> que triste.<br />
– E ainda passa por sua mente a ideia de tirar a própria vida?<br />
– Passa sim. De vez em quan<strong>do</strong> penso.<br />
– Já pensou em como fazer, tipo um plano estrutura<strong>do</strong>?<br />
– Sim. O carro. Sabe o que fiz outro dia com o meu carro? Acordei no meio da noite, agita<strong>do</strong>.<br />
Peguei o carro. Moro perto da ro<strong>do</strong>via. Então. No meio da madrugada entrei no carro. Peguei a via<br />
expressa. Estava triste. Com raiva. Acelerei. Então, estava no meio da madrugada. Acelerei,<br />
acelerei. Sozinho no mun<strong>do</strong>. Tem tanta curva a estrada de Santos. De repente. Sabe o que aconteceu?<br />
Eu me joguei. Eu me joguei no mar. Lá na praia. Fiquei quietinho. Admirei o sol nascer sozinho. Até<br />
secar meu corpo, nem me enxaguei. Fiquei mais ameno. Voltei.
Tira meu coração<br />
“¿Quién dijo que to<strong>do</strong> está perdi<strong>do</strong>?<br />
Yo vengo a ofrecer mi corazón”<br />
Fito Paez<br />
Não!<br />
Um homem grita no meio da emergência se escoran<strong>do</strong> nas macas de metal, pede socorro. Olhos<br />
vermelhos encharca<strong>do</strong>s, os sulcos da face e o bigode molha<strong>do</strong>s, uma mulher o ampara.<br />
Vamos ao consultório.<br />
Ele respira muito rápi<strong>do</strong>, as mãos tremem, os vasos cervicais pulsam, ele é magro.<br />
– Me diz que foi mentira, <strong>do</strong>utor, diz pra mim que o meu sobrinho não morreu.<br />
– Infelizmente, senhor, não posso dizer isso. O senhor sabe que o seu sobrinho faleceu.<br />
– Não! Não! Não pode <strong>do</strong>utor. Ele não pode morrer. É um menino. É um pedaço de mim. Eu<br />
peguei ele no colo, eu ajudei a criar, era o filho que eu não tive. A culpa foi minha. Ele foi almoçar<br />
comigo, os amigos vieram pegar ele de carro na minha casa. A culpa foi minha. Se eu não tivesse<br />
deixa<strong>do</strong> ele sair. Se ele não saísse de carro com os amigos ele estaria vivo agora. Vivo. O senhor faz<br />
uma coisa pra mim? Por favor? Pelamordedeus?<br />
– Meus sentimentos pela perda de seu sobrinho. Diga, senhor, se estiver ao meu alcance...<br />
– O senhor me dá uma injeção e me põe pra <strong>do</strong>rmir. Abre meu peito, tira meu coração que está<br />
baten<strong>do</strong>. Coloca no peito dele. Tira. Tira meu coração. Eu posso morrer agora. Ele não. Minha<br />
mulher vai entender. Vai, ela vai entender. Eu não preciso desse coração. Ele precisa.
Insuficiência hepática<br />
"Quan<strong>do</strong> o tempo em seu abraço<br />
quebra o meu corpo, e tem pena,<br />
quanto mais me despedaço,<br />
mais fico inteira e serena."<br />
Cecília Meirelles<br />
Era meu primeiro estágio de internato, enfermaria de moléstias infecciosas. Nos últimos dias<br />
chegava ao hospital às sete da manhã e passava o dia. Logo ce<strong>do</strong> conversava com os pacientes<br />
interna<strong>do</strong>s, perguntava se <strong>do</strong>rmiram bem, se tinham <strong>do</strong>r, se defecaram, se estava tu<strong>do</strong> bem.<br />
Examinava–os. Discutia os seus casos com os <strong>médico</strong>s residentes e assistentes <strong>do</strong> serviço.<br />
Acompanhava suas evoluções.<br />
Numa tarde quente da primeira semana o residente responsável pelo meu grupo me avisou que<br />
havia uma paciente no ambulatório que precisava ser internada, a quem caberia essa missão se não<br />
ao interno?<br />
Fui até o ambulatório de infectologia, cheguei à porta, me impressionei observan<strong>do</strong> aquele<br />
cenário que parecia improvisa<strong>do</strong>: divisórias em compensa<strong>do</strong> de madeira, colorida em um tom de<br />
bege, cadeiras pretas de plástico enfileiradas todas ocupadas, um balcão largo com muitas barrigas e<br />
mamas encostadas. Fiquei com aquela cara de perdi<strong>do</strong>, nunca estivera lá, ainda bem que a<br />
enfermeira, muito prestativa, perguntou se eu era o interno. Como ela teria me reconheci<strong>do</strong>?<br />
Apresentou–me à minha paciente. Estava sentada numa cadeira de rodas, não por qualquer problema<br />
de locomoção, por se sentir muito fraca. Amarela. Amarelinha. Ictérica quatro cruzes. Tinha olhos<br />
azuis, com certo viço, três rugas na testa, preocupada, nunca estivera internada. Dei boa tarde, peguei<br />
a mão dela e me apresentei. Disse que eu era o interno, estagiário, que ia providenciar sua<br />
internação. Ela sorriu com graça, disse que eu era muito jovenzinho para ser <strong>médico</strong>, um menino<br />
bonito, que nem os seus sobrinhos. Bonito! Talvez já tivesse algum grau de confusão!<br />
Pedi ao mari<strong>do</strong>, Joaquim, que a conduzisse até o consultório. Acomodei-a na maca e comecei a<br />
entrevistá-la.<br />
Joana, cinquenta e oito anos, natural e procedente de São Paulo, casada, <strong>do</strong> lar, católica não<br />
praticante, duas filhas (lindas, umas bênçãos!) e um neto.<br />
Procurou atendimento porque há duas semanas percebeu a pele amarelada.<br />
Há cerca de dez anos descobriu ter o vírus da hepatite B, quan<strong>do</strong> foi <strong>do</strong>ar sangue. Desde então<br />
comparecia a consultas a cada seis meses, nunca tinha necessita<strong>do</strong> de tratamento. Há duas semanas<br />
além da pele amarela notou a urina escura como chá–mate, fezes claras, brancas que nem cal, e teve<br />
<strong>do</strong>res na barriga, náuseas e vômitos.<br />
Negou outras <strong>do</strong>enças, nunca tinha si<strong>do</strong> submetida a cirurgias nem a transfusões de sangue, teve<br />
duas gestações e <strong>do</strong>is partos normais aos vinte e <strong>do</strong>is e vinte e cinco anos.
Desconhecia a causa de morte de seus pais, achava que era de velhice. Não sabe dizer se alguém<br />
da família tinha problema de fíga<strong>do</strong>.<br />
Não fumava, bebia uma taça de champanhe nas comemorações de família. Sexo? Disse que<br />
gostava muito e que ainda era apaixonada pelo namora<strong>do</strong> e olhou para Joaquim que observava a um<br />
metro. Ele interrompeu o siso, deu meio sorriso.<br />
Morava numa casa bem arejada em um bairro popular, tinha bom relacionamento com o mari<strong>do</strong>,<br />
com as filhas, genro e até com os cunha<strong>do</strong>s! Sorria de leve.<br />
Ela estava consciente e bem orientada, mas com certa sonolência, as mãos tremiam, num ritmo que<br />
lembravam asas de borboleta baten<strong>do</strong> compassadas. Pressão, pulso, coração, respiração, normais. O<br />
ab<strong>do</strong>me estava distendi<strong>do</strong>, <strong>do</strong>ía enquanto eu palpava, maciço nos flancos, havia líqui<strong>do</strong> livre lá<br />
dentro.<br />
Preenchi lá mesmo a Autorização de Internação Hospitalar que o residente tinha me entregue só<br />
com o carimbo, haja papelada! A enfermeira levou até o registro hospitalar, retornou com uma pasta<br />
que eu devia entregar a enfermeira–chefe da enfermaria. Pronto.<br />
Conduzi Joana até seu leito. A enfermaria era um ambiente mais tranquilo, mesmos tons pastéis,<br />
diferia pelas paredes de concreto, <strong>do</strong>is pacientes em cada quarto, to<strong>do</strong>s com uniformes azuis, feios<br />
mesmo, acho que era para eles terem vergonha e não fugirem <strong>do</strong> hospital usan<strong>do</strong> umas roupas<br />
daquelas.<br />
Passei o caso ao residente. Ele falou para eu solicitar exames das funções <strong>do</strong> fíga<strong>do</strong>, rins,<br />
hemograma, ultrassonografia de ab<strong>do</strong>me. Deu–me <strong>do</strong>is papeis carimba<strong>do</strong>s. Preenchi. Descrevi a<br />
internação no prontuário e me despedi de Joana. Acabou meu expediente.<br />
Pensei nela no caminho para casa, no ônibus e no metrô. À noite estudei hepatite B. Não a noite<br />
toda, mas ao menos quatro horas seguidas. Precisava entender o que estava acontecen<strong>do</strong> com ela!<br />
Na manhã seguinte cheguei à enfermaria. Fui ao leito dela. Estava vago. Onde estaria Joana?<br />
Chegaram os exames, constataram que ela estava com insuficiência hepática grave, quer dizer, o<br />
fíga<strong>do</strong> não estava funcionan<strong>do</strong>.<br />
O plantonista da noite a transferiu pra UTI. Pela primeira vez entrei lá: seis leitos com monitores,<br />
aquelas telas que mostram pressão, pulso, oxigenação, ritmo cardíaco, vários fios e cateteres sobre<br />
os pacientes. Vi que estavam intuba<strong>do</strong>s, respiran<strong>do</strong> com auxílio de ventila<strong>do</strong>res mecânicos. O<br />
enfermeiro me mostrou Joana. Estava <strong>do</strong> mesmo jeito <strong>do</strong> dia anterior. Elevou os ângulos <strong>do</strong>s lábios.<br />
Bom dia menino. Sorriso esboça<strong>do</strong>.<br />
Estava com mais sono, mesmo assim agradeceu a visita, o cuida<strong>do</strong>. Na verdade eu só puxei o<br />
cobertor para cobrir os seus de<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pés, estavam frios.<br />
O residente responsável pela UTI foi muito atencioso, me explicou o caso com alguns pormenores<br />
que eu não consegui entender. Anotei para estudar depois. Compreendi com clareza uma coisa: o<br />
caso dela era muito grave, tinha si<strong>do</strong> colocada com urgência na fila de transplante de fíga<strong>do</strong>. Disse<br />
que era pra eu ficar à vontade e ir lá quan<strong>do</strong> quisesse, achou bom eu querer acompanhar minha<br />
paciente mesmo quan<strong>do</strong> já tinha si<strong>do</strong> transferida. Gostei dele, passou segurança, serenidade.<br />
Como tinha chega<strong>do</strong> muito ce<strong>do</strong> fui à lanchonete comer algum salga<strong>do</strong>. Encontrei Joaquim e as<br />
duas filhas de mãos dadas. As duas tinham os mesmos olhos de Joana. Uma delas chorava aos<br />
prantos. Formavam um tipo de triângulo cada um dan<strong>do</strong> as mãos aos outros <strong>do</strong>is. Preferi não<br />
interrompê-los, mas o homem me chamou, disse que queria me apresentar às filhas. Eu era o <strong>médico</strong><br />
da Joana. Nunca tinha si<strong>do</strong> o <strong>médico</strong> de ninguém. Fiquei um pouco apreensivo. Como não sabia o que
dizer eu só os abracei to<strong>do</strong>s. Foi a primeira vez que meu avental ficou molha<strong>do</strong> de lágrimas alheias.<br />
Pedi licença e voltei à enfermaria, passei o dia discutin<strong>do</strong> os casos de meus pacientes e<br />
preenchen<strong>do</strong> papeis. Evoluin<strong>do</strong>.<br />
No fim <strong>do</strong> expediente voltei à UTI, fui me despedir de Joana. Ela deu um tchau e man<strong>do</strong>u um<br />
beijinho através <strong>do</strong> vidro transparente. Eu entrei no quarto. Lavei a mão. Peguei as mãos dela. Falei<br />
<strong>do</strong> encontro com sua família. Ela disse que tinha um pedi<strong>do</strong> para mim.<br />
– Fala para eles que estou em paz. Eles precisam saber que estou bem. Sabe por quê? Eu sei que o<br />
meu caso é grave. Eu não sei o que vai acontecer, mas estou tranquila. Principalmente por causa<br />
deles. Eu casei com o amor de minha vida, criei duas filhas com dignidade, são pessoas<br />
maravilhosas que só me dão alegria, sou privilegiada, claro que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tem seus problemas,<br />
mas eu fui feliz, sou muito feliz. Se eu morrer nesse instante, minha vida valeu a pena!<br />
Mais uma noite estudan<strong>do</strong> hepatite B. Pensamento fixo. Achei que era muito estudar o mesmo tema<br />
duas noites seguidas, mas já soube que tem gente que estuda com profundidade uma única <strong>do</strong>ença a<br />
vida e colhe louros e fama por saber o que ninguém sabe, mesmo que não sejam coisas que relevem<br />
tanto ao mun<strong>do</strong>.<br />
Cheguei no dia seguinte quase uma hora mais ce<strong>do</strong>. Fui dar bom dia a Joana. Ela não pôde me<br />
responder.<br />
Estava sedada. Intubada. Com um cateter no pescoço. Durante a noite ela teve uma hemorragia<br />
digestiva grave. Choque. Fíga<strong>do</strong> já não funcionava. Rins pararam de funcionar. O sangue estava<br />
incoagulável.<br />
Ela seria a próxima da fila de transplante. Seria.<br />
Faleceu no começo da tarde. Encontrei o seu corpo sen<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>: a equipe de enfermagem<br />
retirava o tubo, os cateteres, as sondas. Desanimada. Frustração.<br />
Encontrei na porta da unidade os familiares dela que tinham acaba<strong>do</strong> de receber a notícia.<br />
Choravam inconsoláveis. Joaquim veio até mim, pegou forte em minha mão, me fitou agradecen<strong>do</strong>.<br />
Deu um abraço. As filhas me abraçaram. Ternos. Quentes. Sentia a vibração de seus choros nos meus<br />
tímpanos, e mais profundamente, além. Transmiti a eles a mensagem encomendada. Que eles fizeram<br />
valer as penas e que ela se disse feliz até os últimos minutos. Os três morderam os lábios, inspiraram<br />
profundamente, movimentos coordena<strong>do</strong>s, tão compassa<strong>do</strong>s, plásticos, humanos, choros mistura<strong>do</strong>s.<br />
Sorrisos frustros.<br />
O meu professor achou um caso bonito para ser leva<strong>do</strong> à reunião clínica da segunda-feira.<br />
Interessante. Eu que o preparasse.<br />
No sába<strong>do</strong> estava de plantão. No <strong>do</strong>mingo durante o dia, vou confessar, não tinha a menor<br />
condição de estudar, estava com a cabeça cansada. Preferi jogar bola e depois ficar quieto em casa.<br />
À noite lembrei que faltavam poucas horas para a apresentação.<br />
Fui ao computa<strong>do</strong>r remontei o caso, discutin<strong>do</strong> principalmente as dúvidas, porque ela teve uma<br />
hepatite fulminante se estava com a <strong>do</strong>ença estável?<br />
Apresentei de meu jeito, como quem conta história. O residente chefe de meu grupo nem foi<br />
assistir, devia ter coisa mais interessante pra fazer. O residente da UTI foi lá, pedi para ele ajudar a<br />
discutir o caso. Esteve lá, discutiu com a mesma segurança e elegância que me transmitiu no nosso<br />
primeiro encontro.<br />
O professor de cabelo branco que conduzia a reunião me deu parabéns, disse que eu tinha feito<br />
uma boa apresentação. Disse que só tinha uma pergunta: por que ela teve esse quadro depois de estar
com a <strong>do</strong>ença estável por tanto tempo?<br />
Por quê? Essa era a minha pergunta! Esses professores devem ler pensamentos. Passei a semana<br />
estudan<strong>do</strong> e não tinha resposta. Para não perder de véspera enrolei com algumas hipóteses que tinha<br />
levanta<strong>do</strong> durante meus estu<strong>do</strong>s: o vírus podia ter se torna<strong>do</strong> mutante? Os medicamentos que ela<br />
tomava para reposição hormonal poderiam ter lesa<strong>do</strong> o fíga<strong>do</strong>? Ele balançou a cabeça. Fez que não.<br />
Agora ele ia me explicar!<br />
– Essa <strong>do</strong>ença é assim mesmo! Um dia o organismo pode perder o controle e o paciente pode<br />
evoluir a uma hepatite fulminante. Foi isso que aconteceu com ela.<br />
Fiquei frustra<strong>do</strong> de novo. É assim mesmo. Não é melhor procurar dúvidas que nos motivem a<br />
conhecer <strong>do</strong> que cultivar certezas temporárias? Isso é ciência? Mito?<br />
Por bem relembrei que somos mortais e que essa é a única certeza que temos! Importa é dar<br />
senti<strong>do</strong> à vida, é na hora da morte poder sorrir e dizer: valeram os amores. Valeu a pena.
Quero que faça tu<strong>do</strong><br />
“A senhora se foi, mãe, no quarto 208<br />
Coincidência ou não<br />
Quem entende?<br />
Sua neta nasceu no quarto em frente.<br />
O Troco...”<br />
Mano Ril<br />
Às vinte horas e vinte minutos de anteontem Marcelo fitava o <strong>médico</strong> com desconfiança. Corpo<br />
retraí<strong>do</strong>, protegi<strong>do</strong> por braços cruza<strong>do</strong>s. Voz pausada, fala grosso, mas um tanto vacilante, com<br />
falsetes.<br />
– Doutor, quero que faça tu<strong>do</strong> pelo meu pai, ligue ele nos aparelhos de respirar, qualquer coisa,<br />
tu<strong>do</strong>. Ele não pode morrer assim. Morrer. Não.<br />
– Marcelo, vamos ao consultório, é melhor conversarmos lá <strong>do</strong> que aqui no meio <strong>do</strong> pronto–<br />
socorro... por favor, se acomode, sente-se.<br />
– A outra médica já me disse que meu pai não tinha chances, eu não acredito. Enquanto ele tiver<br />
respiran<strong>do</strong> tenho esperança dele voltar pra casa.<br />
– Eu respeito sua opinião, seu sentimento, seu sofrimento. Muito. Preciso ser sincero com você.<br />
Você sabe que seu pai está em esta<strong>do</strong> muito grave?<br />
– Sei sim.<br />
– Seu pai tem um esta<strong>do</strong> de saúde já muito frágil, por conta da demência avançada e a <strong>do</strong>ença de<br />
Parkinson que já não lhe permite se movimentar.<br />
– Faz tempo.<br />
– Quan<strong>do</strong> a pessoa já está acamada há tanto tempo e não consegue interagir, encontra-se na última<br />
fase de sua vida. Não é?<br />
– É, mas a gente está cuidan<strong>do</strong> bem dele. Será que ele ficou assim por causa <strong>do</strong> remédio que não<br />
foi da<strong>do</strong> a tempo?<br />
– Na verdade essas <strong>do</strong>enças degenerativas mudam pouco com os medicamentos disponíveis. Não<br />
é culpa dele, nem de ninguém. O seu pai foi trazi<strong>do</strong> ao hospital porque estava pior, mais sonolento,<br />
gemen<strong>do</strong>. Descobrimos que ele tinha uma pneumonia extensa e começamos a dar antibiótico ontem. O<br />
organismo dele não demonstrou reação e ele piorou muito. Agora ele está com o que chamamos de<br />
choque séptico, o que muitas pessoas chamam de infecção generalizada, na verdade a pressão dele<br />
caiu e os órgãos internos não estão funcionan<strong>do</strong> adequadamente, os rins, o fíga<strong>do</strong> e os pulmões estão<br />
comprometi<strong>do</strong>s.<br />
– Eu sei que ele piorou. Pedi pra outra médica pra conseguir uma vaga de UTI pra ele, ela me<br />
disse que não tinha mais jeito. Eu quero! Não quero que meu pai morra. Quero levar ele pra casa
mesmo que nunca mais converse, fique vegetan<strong>do</strong>. É minha responsabilidade. Quero que faça tu<strong>do</strong>.<br />
Não quero que vocês deixem meu pai morrer. Eu devia ter cuida<strong>do</strong> melhor dele.<br />
– Marcelo, não sou <strong>do</strong>no da verdade, só quero compartilhar minha impressão: nós <strong>médico</strong>s<br />
fazemos diagnósticos, tratamos as <strong>do</strong>enças e principalmente temos que ter compromisso em cuidar<br />
das pessoas para aliviar as suas <strong>do</strong>res, sofrimentos. Para fazermos isso da melhor maneira temos que<br />
respeitar a vida e seu curso, no momento <strong>do</strong> fim da vida temos que garantir conforto e dignidade. O<br />
seu pai foi trata<strong>do</strong> com antibiótico excelente, mesmo assim apresentou essa piora, esse choque<br />
séptico, o corpo dele não está dan<strong>do</strong> mais conta. Fazer tratamentos invasivos, introduzir cateteres,<br />
sondas, intubação, inúmeras punções de veias para colher de exames, tu<strong>do</strong> isso gera <strong>do</strong>r, desconforto<br />
e prolonga o processo de morte. Isso tem nome, é um nome um tanto estranho, chamamos de<br />
distanásia. Quer dizer que a intervenção médica pode fazer com que a morte seja mais <strong>do</strong>lorosa e<br />
traumática.<br />
– Quero que faça tu<strong>do</strong>.<br />
– Faremos tu<strong>do</strong>. No caso de uma pessoa que se encontra em seu fim de vida, com quadro<br />
irreversível, tu<strong>do</strong> é: tratar a <strong>do</strong>r, o desconforto respiratório, garantir dignidade e dar suporte à<br />
família. Posso me comprometer com você a não causar mais <strong>do</strong>r, mais sofrimento e mais dano a seu<br />
pai. Que ele tenha um fim de vida mais tranquilo a seu la<strong>do</strong> e ao la<strong>do</strong> da família se você e seus<br />
familiares quiserem ficar ao la<strong>do</strong> dele, claro. O que você acha?<br />
Marcelo: Choro. Engasgo. Ranho. Lábios trêmulos. Mãos trêmulas. Pálpebras borboleteiam.<br />
Abraça o <strong>médico</strong>.<br />
– Eu não quero que meu pai sofra. Não quero. Não quero ser egoísta e fazer ele ter <strong>do</strong>r, mas não<br />
posso dar essa notícia à minha família. Minha irmã está grávida, nove meses. A minha mãe está se<br />
tratan<strong>do</strong> de câncer. Eu não quero. Queria que desse tempo de minha sobrinha nascer. Eu não consigo.<br />
– Estou ao seu dispor, se quiser chamar sua família aqui posso conversar com to<strong>do</strong>s, explicar a<br />
situação, a hora é de cuidar deles também.<br />
– Obriga<strong>do</strong>.<br />
Às duas horas e <strong>do</strong>ze minutos de ontem: uma linha reta no monitor. Marcelo arregala os olhos.<br />
Morde o lábio inferior. O <strong>médico</strong> está ao la<strong>do</strong>, constata: Antônio já não está mais lá. Evoluiu. Não<br />
houve gritos, nem gemi<strong>do</strong>s. Tocaram-se com mãos e olhos.<br />
– Doutor, preciso ir conversar com minha família. Preparar to<strong>do</strong>s. Organizar o velório. Obriga<strong>do</strong>.<br />
Breve até.<br />
Marcelo não voltou até o fim <strong>do</strong> plantão. O <strong>médico</strong> foi para casa. Hoje retornou ao hospital.<br />
Às oito e quarenta e cinco o <strong>médico</strong> vê de longe um sorriso farto, é Marcelo.<br />
– Bom dia Marcelo.<br />
– Bom dia, <strong>do</strong>utor.<br />
– Como estão as coisas?<br />
– Estou aqui por que minha sobrinha acabou de nascer. Linda e saudável.<br />
– Como ela se chama?<br />
– Maria Antônia.<br />
– Como foi dar a notícia pra sua família?<br />
– Eu mesmo não dei a notícia pra minha mãe nem pra minha irmã, falei pro meu tio, ele contou pra<br />
elas. Entenderam. O enterro foi ontem mesmo.<br />
– E sua sobrinha nasceu um dia depois <strong>do</strong> falecimento de seu pai.
– É nosso amor, nossa esperança. Nossa família ganhou um motivo para superar a perda de papai.<br />
Seguimos.<br />
– Haja vida.
Ansiedade antecipatória<br />
Hoje à tarde atendi Maria Aparecida, 67 anos, negra, nascida numa cidade <strong>do</strong> interior, estava<br />
ansiosa, não <strong>do</strong>rmiu bem nas últimas noites. Ficou com certa <strong>do</strong>r nas costas.<br />
Aconteceu alguma coisa que a deixou ansiosa?<br />
Sim! Amanhã será um dia especial: sua formatura no supletivo! Disse que estava muito orgulhosa.<br />
Queria ter aprendi<strong>do</strong> antes. O pai e a mãe não lhe deixaram estudar quan<strong>do</strong> criança porque escola<br />
não era pra mulher. Casou, teve que cuidar da casa–mari<strong>do</strong>–filhos. Depois de viúva resolveu ir para<br />
a escola. Mesmo assim tinha consegui<strong>do</strong>. Contei para to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> PS! Ela ficou ainda mais prosa.<br />
Passou a <strong>do</strong>r! Valeu a semana.
Sempre te amei<br />
Da Fundação Casa, nome decorativo que arranjaram para a instituição de detenção para menores,<br />
chega ao pronto-socorro um rapaz para ser avalia<strong>do</strong>.<br />
Encolhi<strong>do</strong> no canto da maca. Acua<strong>do</strong>. Algema<strong>do</strong>. Só olha para o chão.<br />
O <strong>médico</strong> pede ao agente que o escolta que tire as algemas para o rapaz ser examina<strong>do</strong>.<br />
No braço exposto ainda há pouco escondi<strong>do</strong> atrás <strong>do</strong> próprio tronco aparece em letras bem<br />
desenhadas: mãe nunca te vi sempre te amei.<br />
– Quem criou essa frase escrita no seu braço?<br />
– Eu mesmo, senhor.<br />
– Onde foi que você fez essa tatuagem?<br />
– Por aí, senhor, no mun<strong>do</strong> cão. Nunca te vi; sempre te amei.
Das <strong>do</strong>res<br />
"Na gruta <strong>do</strong> peito<br />
existe<br />
uma estalactite<br />
que chora.<br />
Cresce e perfura<br />
de dentro pra fora"<br />
Bobby Baq<br />
– Bom dia Maria das Dores, o que motivou a procura?<br />
– Doutora, an<strong>do</strong> desgostosa, vida sem sal.<br />
– O que a senhora está sentin<strong>do</strong>?<br />
– Sem animação pra nada, tem um vazio bem aqui no peito.<br />
– Nas últimas semanas a senhora tem se senti<strong>do</strong> triste?<br />
– Afemaria! Faz mais de um ano.<br />
– Tem alguma coisa que a senhora faça que lhe dê prazer?<br />
– Vez em quan<strong>do</strong> leio a Bíblia, só Deus por nós, mas até pro culto não vou mais, não acho graça,<br />
nem dá vontade de ver gente. Quero ficar só em casa.<br />
– E o trabalho?<br />
– Tenho uma pensão <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />
– E o sono da senhora tem alguma alteração?<br />
– Dormir eu durmo, mas tem muitos anos que tomo um remedinho, acho que é o nome é rivoti,<br />
revotil.<br />
– Rivotril?<br />
– Isso mesmo. Se não tiver não durmo, não tem jeito.<br />
– E o apetite?<br />
– Como um nadinha, só fastio.<br />
– A senhora tem algum tipo de <strong>do</strong>r?<br />
– Todas, <strong>do</strong>utora, já me chamo Maria das Dor, meu pai podia me chamar Maria das Alegria, podia<br />
não?<br />
– Passa em sua cabeça a ideia de tirar sua própria vida?<br />
– Me matar?<br />
– Isso, já passou?<br />
– Tá amarra<strong>do</strong>, em nome de Jesus.<br />
– A senhora já teve <strong>do</strong>ença psiquiátrica?<br />
– Loucura? Eu não.<br />
– Na sua família já teve caso de <strong>do</strong>ença psiquiátrica?
– Dizem que um tio meu morreu num hospício, eu nem lembro direito.<br />
– Já aconteceu da senhora por algum tempo ficar com a mente muito acelerada, se achan<strong>do</strong> muito<br />
importante, gastan<strong>do</strong> além da conta, esbanjan<strong>do</strong>, com muita vontade de namorar?<br />
– Eu não <strong>do</strong>utora, que conversa estranha.<br />
– A senhora quan<strong>do</strong> está muito triste faz algum ritual pra aliviar seu sofrimento?<br />
– Que é ritual, <strong>do</strong>utora? Só conheço ritual de magia, eu não bulo com essas coisas.<br />
– Assim: algum comportamento que a senhora faça que alivie quan<strong>do</strong> os pensamentos perturbam?<br />
– Não <strong>do</strong>utora.<br />
– E a senhora chega a ouvir vozes?<br />
– Doutora, acha que eu tô <strong>do</strong>ida? Ainda não en<strong>do</strong>idei não!<br />
– Não acho que a senhora seja <strong>do</strong>ida! Está com depressão.<br />
– Eu quero remédio <strong>do</strong>utora, a senhora me ajuda!<br />
– Sim senhora, está aqui a receita.<br />
Maria das Dores da Silva<br />
Uso oral:<br />
1) Fluoxetina 20 mg –––– 60 cp<br />
tomar 2 cp VO antes de <strong>do</strong>rmir<br />
Datada, carimbada e assinada.<br />
– Obriga<strong>do</strong>, <strong>do</strong>utora, agora vou melhorar?<br />
– Vai, mas vai demorar uns quatorze dias pro remédio fazer efeito.<br />
– Só posso agradecer, agora tenho fé que vou ser curada!<br />
– Depressão não costuma ser curada, mas a senhora vai melhorar, essa receita é para trinta dias,<br />
marque retorno para daqui a um mês.<br />
– Que Jesus lhe cubra com suas bênçãos. Em primeiro lugar: Deus, abaixo de Deus: os <strong>médico</strong>s.<br />
– Obriga<strong>do</strong>. Tenha um bom mês a senhora e sua família.<br />
Silêncio.<br />
– Agradecida, <strong>do</strong>utora, mas família eu já não tenho. Meu mari<strong>do</strong> bebia cachaça e batia muito em<br />
mim, um dia quan<strong>do</strong> nosso filho já tinha dezessete anos, ele tava me dan<strong>do</strong> uma surra que eu tava<br />
perden<strong>do</strong> as forças, o menino chegou em casa e tentou apartar. Tentou. O pai empurrou ele com<br />
ignorância e continuou baten<strong>do</strong> em mim. Nosso filho pegou um cabo de vassoura e deu na cabeça <strong>do</strong><br />
pai, ele me soltou. O menino não viu. Ele não tinha enxerga<strong>do</strong>. Na ponta <strong>do</strong> cabo tinha um prego<br />
compri<strong>do</strong>. O prego enterrou na cabeça de meu mari<strong>do</strong>, bem na nuca. Ele caiu duro. Mortinho. Meu<br />
filho só queria me defender, ele não queria fazer desgraça. Ficou desespera<strong>do</strong>. Enterramos o pai. No<br />
dia seguinte quan<strong>do</strong> acordei tinha um vulto no quintal. Meu menino arranjou uma corda, se enforcou<br />
na porta de casa. To<strong>do</strong> dia quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong> penso que ele vai estar em casa, daí me lembro da cara<br />
dele, azul, inchada. Ai que <strong>do</strong>r. Ainda bem que achei a senhora pra me dar esse remédio, tenho fé que<br />
daqui pra frente eu vou melhorar. Tenho fé. Vou melhorar.
Sífilis secundária<br />
Homem alto, de um metro e noventa, uns cem quilos. Era forte. Tinha quarenta anos, sorria com jeito<br />
de menino, era irrequieto, ficava mexen<strong>do</strong> as mãos e se balançan<strong>do</strong>. Pueril.<br />
– Bom dia, Cosme, o que aconteceu?<br />
A moça bonita que lhe acompanha toma a palavra.<br />
– Bom dia, <strong>do</strong>utor, eu sou Clara, irmã <strong>do</strong> Cosme. Eu cui<strong>do</strong> dele, ele tem um pouco de retar<strong>do</strong><br />
mental, teve aquela <strong>do</strong>ença que aumenta a pressão na cabeça e botou válvula, mas ficou com sequela,<br />
então eu que vou dizer. Trouxe ele aqui por causa dessas manchas que apareceram nas mãos tem<br />
quase uma semana.<br />
– Posso ver?<br />
– Claro, mostra Cosme!<br />
Lesões avermelhadas e acastanhadas nas palmas das mãos, bordas elevadas, anelares.<br />
– Essas lesões parecem ser de sífilis secundária.<br />
– Sífilis, aquela <strong>do</strong>ença que pega por sexo?<br />
– Isso mesmo.<br />
– Impossível <strong>do</strong>utor, ele nunca teve relação com ninguém. Tem mentalidade infantil, nunca<br />
namorou. Tem outro jeito de pegar?<br />
– Só se for congênito, de mãe para filho.<br />
– Não, <strong>do</strong>utor, desculpe, não estou duvidan<strong>do</strong>, mas não pode ser.<br />
– Eu não sou <strong>do</strong>no da verdade, pode ser outras coisas também, alergia a remédio...<br />
– Mas ele não tomou nada, nenhum remédio.<br />
– Então, como dizia alergia a remédio e vasculites podem dar esse tipo de lesão, mas não é muito<br />
comum. Não posso ignorar o aspecto das lesões, gostaria de pedir o exame confirmatório. A senhora<br />
permite?<br />
– Sim, vamos fazer, mas vai dar negativo.<br />
– Está aqui o pedi<strong>do</strong>. Até breve.<br />
Clara fica com a cara um tanto incrédula, um tanto desesperada.<br />
– Doutor, o meu padrasto morreu no mês passa<strong>do</strong>, tinha umas manchas iguais a essas. Iguais. Não<br />
sei que <strong>do</strong>ença ele tinha. Não desconfio de nada não, mas vou providenciar o exame. Ele vai fazer o<br />
exame.
Infarto agu<strong>do</strong> <strong>do</strong> miocárdio<br />
“aos coleciona<strong>do</strong>res de miocárdios:<br />
cuida<strong>do</strong>!<br />
não queiram o meu<br />
pouca valia tem.”<br />
Lu´z Ribeiro<br />
Cheguei às dezenove horas para o plantão, havia treze pacientes na observação <strong>do</strong> pronto-socorro<br />
entre leitos monitoriza<strong>do</strong>s e macas espalhadas nos corre<strong>do</strong>res. Não era muito compara<strong>do</strong> aos dias<br />
mais trabalhosos.<br />
Terminamos a passagem de plantão quase às dezenove e trinta.<br />
Assumi a triagem. Trinta e três pessoas esperan<strong>do</strong> atendimento. Algumas com <strong>do</strong>enças graves que<br />
precisariam de intervenção médica imediata, outras com problemas agu<strong>do</strong>s, que consideramos auto–<br />
limita<strong>do</strong>s porque se resolveriam sem nenhum tratamento, mas que podem ser abranda<strong>do</strong>s por<br />
analgésicos e outros sintomáticos, as que já foram a muitas portas e estão fazen<strong>do</strong> mais uma tentativa<br />
porque não tiveram suas queixas resolvidas, porta<strong>do</strong>ras de <strong>do</strong>enças crônicas que não conseguiram<br />
renovar suas receitas e vão tentar a sorte, outras que demandavam atesta<strong>do</strong>s por que acordaram<br />
sentin<strong>do</strong> mal estar e não conseguiram nem ir trabalhar.<br />
Já sei como é o expediente comum. Quan<strong>do</strong> começo a atender ouço: até que enfim, é por isso que<br />
a gente paga nossos impostos, precisa morrer para ser atendi<strong>do</strong> aqui. Respiro fun<strong>do</strong>. Vou à porta<br />
chamo o primeiro paciente. Nesse momento ao menos dez me pedem para que eu os atenda antes, que<br />
o caso é só ver um exame, ou que mora longe, ou que está com <strong>do</strong>r. Eu enten<strong>do</strong> o sofrimento de to<strong>do</strong>s<br />
ali. Realmente, quem quer estar numa espera de atendimento <strong>médico</strong> com desconforto? Mas digo com<br />
serenidade: "o seu problema é importante e você precisa cuidar dele, mas eu preciso cuidar de seu<br />
problema e de todas as outras pessoas que estão esperan<strong>do</strong>, não prefiro um ou outro, vou atender na<br />
sequencia". Mantra.<br />
Tento fazer triagem mais objetiva possível principalmente para fazer cumprir a missão <strong>do</strong> prontosocorro,<br />
o próprio nome diz: prestar socorro imediato a pessoas com risco iminente de vida.<br />
Por volta das vinte e três e trinta, eu me preparava para fazer uma pausa, ir ao banheiro, bexiga<br />
cheia. Já tinha atendi<strong>do</strong> muita gente! Toque. Toque. Toque–toque. Abre a porta uma mulher jovem,<br />
agitada, menos de trinta anos.<br />
– Meu mari<strong>do</strong> está morren<strong>do</strong>. Dor forte no peito. Gritan<strong>do</strong>. Ataque cardíaco.<br />
– Boa noite. Calma. Que horas começou?<br />
– Nem meia hora. Corremos logo pra cá.<br />
– Quantos anos ele tem?<br />
– Trinta.<br />
– Ele tem alguma <strong>do</strong>ença? Diabetes? Pressão alta? Fuma? Pai ou mãe morreram <strong>do</strong> coração? Está
com falta de ar?<br />
Não. Nada. Não.<br />
– Ele usa cocaína? Essa informação é importante!<br />
– Não. Afe. Nunca usou nada. Você não vai atender logo não?<br />
Cerca de dez i<strong>do</strong>sos esperan<strong>do</strong>. Homem jovem sem <strong>do</strong>ença cardíaca, sem diabetes, é improvável<br />
infartar sem usar cocaína, ou outra droga semelhante. Quer dizer, pode acontecer, mas ganhar na<br />
loteria é mais fácil<br />
– Por favor, espere a vez dele.<br />
Bate a porta. Grita no saguão. Os velhos olham consterna<strong>do</strong>s.<br />
– Ele está morren<strong>do</strong>. Ninguém vai atender meu mari<strong>do</strong>!<br />
Eu preciso ir ao banheiro. Pedi ao guarda que acompanhasse o casal até a emergência. Lá ele<br />
seria avalia<strong>do</strong> pelo residente prontamente, Leandro estava a postos. Eu conseguiria continuar os<br />
atendimentos das pessoas que estavam esperan<strong>do</strong>.<br />
Sabe o que é liberdade? É fazer xixi depois de quatro horas senta<strong>do</strong>, seguran<strong>do</strong> firme, suan<strong>do</strong> frio.<br />
Pronto.<br />
No PS Leandro atendeu Pedro. Dor no peito. Começou uma hora atrás. Jogava capoeira. Deu um<br />
mau jeito.<br />
Jogava bola três vezes por semana. Dor no tórax nunca antes. Doença nenhuma. Cocaína: Deus me<br />
livre, <strong>do</strong>utor, tá tiran<strong>do</strong> de nóia?<br />
Não tinha nenhuma característica de infarto, nenhuma. Leandro achou estranho o jeito que ele<br />
ficou quan<strong>do</strong> perguntou da cocaína. Consterna<strong>do</strong> demais. O conduziu à sala de emergência mais para<br />
poder conversar fora <strong>do</strong> campo de visão da esposa <strong>do</strong> que por acreditar que ele podia ter um<br />
problema cardíaco.<br />
Eletrocardiograma. Supradesnivelamento de segmento ST em parede anterior, quer dizer: era<br />
infarto <strong>do</strong> miocárdio. Grave.<br />
Infarto é quan<strong>do</strong> não chega sangue a uma determinada região, não chega oxigênio, aquele órgão<br />
sofre necrose, o teci<strong>do</strong> morre. Miocárdio é o músculo <strong>do</strong> coração. Nesses casos as artérias<br />
coronárias que são responsáveis por levar sangue com oxigênio para to<strong>do</strong> o coração ficam entupidas,<br />
com o que chamamos de trombo. Se esse infarto for muito grande e o <strong>do</strong>ente entrar em choque, ou se<br />
tiver determinadas arritmias pode morrer na hora.<br />
O residente me chamou para eu orientar o tratamento. Medicamos. Iniciaríamos a trombólise,<br />
infusão lenta de um medicamento com objetivo de “desfazer o trombo” e desobstruir a coronária.<br />
Enquanto a enfermeira prepara o medicamento, observei que havia um tipo de caspa no bigode <strong>do</strong><br />
paciente.<br />
– Pedro, você não usa cocaína mesmo não, nunca? Não se trata de julgamento moral, quem infarta<br />
por cocaína não pode usar os mesmos medicamentos de quem não usa.<br />
– Na verdade, <strong>do</strong>utor, já usei. Uso de vez em quan<strong>do</strong>, mas a Ana não pode nem sonhar. Não conta<br />
pra ela!<br />
– Você usou hoje à noite?<br />
Fica quieto. Não olha meu olho. Suas pupilas fogem e quan<strong>do</strong> elas estão <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> universo<br />
ele nega. Entendi<strong>do</strong>.<br />
Chamo ao consultório a esposa de Pedro. Ela me olha com os olhos um tanto avermelha<strong>do</strong>s,<br />
cheios de inconformidades.
– Boa noite de novo, Ana.<br />
– Boa noite.<br />
– Meu nome é Asclépio. Sou <strong>médico</strong> responsável pelo Pronto-Socorro. Você entendeu o que se<br />
passa com o Pedro?<br />
– Parece que é um ataque cardíaco.<br />
– É isso mesmo, ele está ten<strong>do</strong> um infarto <strong>do</strong> coração. É grave. Vamos tratar. Pode ficar ótimo.<br />
Mas você precisa saber que nesse momento ele está em risco de vida.<br />
Respira rápi<strong>do</strong>. Aperta os olhos como se não me enxergasse. Pede uma cadeira. A acomo<strong>do</strong>.<br />
– Preciso voltar para a sala para continuar o atendimento. Quer dizer alguma coisa?<br />
– Cuida bem dele. É a coisa mais importante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pra mim.<br />
Na sala, Pedro deita<strong>do</strong> na maca, cheio de eletro<strong>do</strong>s e cabos, monitoriza<strong>do</strong>, os materiais para uma<br />
eventual parada cardíaca to<strong>do</strong>s checa<strong>do</strong>s. O carrinho de parada faz um barulho: pi... pi... pi. Corre<br />
soro fisiológico na veia <strong>do</strong> braço direito. No esquer<strong>do</strong> corre o trombolítico.<br />
O medicamento começa a ser administra<strong>do</strong>. A pressão cai. Cai muito. Recebe soro. Pressão não<br />
sobe. Para o procedimento, desliga a bomba de infusão. Não normaliza. Mais soro. Pressão normal.<br />
O residente está suan<strong>do</strong> frio mas concentra<strong>do</strong>, dedica<strong>do</strong>, cuida de Pedro enquanto saio da sala,<br />
telefono para o Hospital de Cardiologia, solicito um cateterismo de urgência, somos atendi<strong>do</strong>s. Tem<br />
vaga. Preparar a transferência.<br />
Um colega se prontificou a conduzir o paciente até o outro hospital.<br />
Aviso a Ana que o quadro dele se agravou. Risco de vida imediato. Precisa transferir.<br />
Coloca Pedro na Ambulância UTI. Ele fica com muita falta de ar. Sai uma espuma cor de rosa<br />
pela boca. Edema agu<strong>do</strong> de pulmão. Ana se assusta, chora, pega a mão de Pedro. Retornam à<br />
emergência.<br />
Leandro intubou sem dificuldades, Pedro respira bem com auxílio de aparelho, o ventila<strong>do</strong>r<br />
mecânico. Volta à ambulância UTI. Para o cateterismo. Vai.<br />
Soube que o cateterismo ocorreu sem complicações e que não encontrou nenhuma obstrução! Ou<br />
seja, o infarto foi causa<strong>do</strong> por contração da artéria, que é causada por... cocaína!<br />
Retornou ao hospital, três dias na UTI, <strong>do</strong>is dias de enfermaria. Teve alta, estava recupera<strong>do</strong>.<br />
A partir de então to<strong>do</strong>s os problemas que tinha, desde uma <strong>do</strong>r de garganta até uma <strong>do</strong>r no dedão<br />
<strong>do</strong> pé ele achava que era infarto. Voltava ao hospital.<br />
Ontem cheguei ao hospital e ele estava lá de novo. Eu mesmo fui dar alta a ele.<br />
– Boa tarde Pedro.<br />
– Boa tarde <strong>do</strong>utor Asclépio.<br />
– Você está de alta! Não fique tão encana<strong>do</strong>. Você fez o cateterismo e não mostrou nenhum<br />
problema no coração. Se você não voltar a usar aquele negócio, não infarta mais tão ce<strong>do</strong>.<br />
– Obriga<strong>do</strong>, mas sabe que o gato escalda<strong>do</strong>...<br />
– Posso fazer uma pergunta. O que sua esposa achou de te ver aqui naquela situação?<br />
– Ela achou que eu fui bem atendi<strong>do</strong>, agradece a equipe. Mas ela ficou magoada com você. Triste.<br />
Eu falei pra ela relevar que era muito trabalho, mas sabe como é?<br />
– Ela achou que não cuidei bem de você?<br />
– Não, ela ficou triste porque falou lá na frente que eu estava morren<strong>do</strong>, você não acreditou na<br />
palavra dela, virou as costas e saiu andan<strong>do</strong>.<br />
E eu achan<strong>do</strong> que era a espuma cor de rosa.
Dor torácica<br />
“no meu peito<br />
não tem miséria,<br />
é carne farta<br />
de coração”<br />
Sinhá<br />
O <strong>médico</strong> estava nos últimos momentos de seu expediente no pronto-socorro. Onze horas e quarenta<br />
e poucos minutos de trabalho: conduziu casos graves com risco de morte iminente, acolheu familiares<br />
de <strong>do</strong>entes que se encontravam absolutamente vulneráveis em seus derradeiros instantes de vida em<br />
macas ordinárias distribuídas nos corre<strong>do</strong>res, atendeu um sem número de pessoas com queixas das<br />
mais diversas: <strong>do</strong>res de cabeça de todas as intensidades, diarreias, resfria<strong>do</strong>s, até quem fazia ficha<br />
para ter com quem conversar e quem lhe tocasse.<br />
Solidão.<br />
Cansaço.<br />
Chega Maria, vinte e três anos, repositora de supermerca<strong>do</strong>, sem <strong>do</strong>enças conhecidas.<br />
O que motivou a procura ao PS?<br />
Dor no braço esquer<strong>do</strong> e no peito <strong>do</strong> mesmo la<strong>do</strong>. Profundas pontadas.<br />
Desde quan<strong>do</strong>?<br />
Desde que nasceu a filha, numa tarde sem sol de setembro.<br />
O <strong>médico</strong> procura ser o mais objetivo possível!<br />
– Já sei por que você está com <strong>do</strong>r!<br />
– É? Que bom!<br />
– É de amamentar! Segura a bebê com o braço que não tem costume de carregar peso. Pode ficar<br />
<strong>do</strong>en<strong>do</strong>.<br />
– Mas <strong>do</strong>utor, não estou amamentan<strong>do</strong>.<br />
– Não? Mas nem a pega no colo?<br />
Ela olha pra baixo, profunda, respira bem lentamente.<br />
– Não.<br />
– Por quê?<br />
Silêncio. Segun<strong>do</strong>s. Eternidade.<br />
– Por quê? Houve algum problema com você ou sua filha?<br />
Calada tu<strong>do</strong> diz. O <strong>médico</strong> fica constrangi<strong>do</strong>. Fala embargada, não mira os olhos de Maria.<br />
– Sua filha... sua filha faleceu?<br />
– Foi <strong>do</strong>utor, nasceu de trinta e duas semanas, ficou internada, morreu aqui nesse hospital.<br />
Agora é ele quem fica quieto. Olha o chão. Procura–se.<br />
Além dessas <strong>do</strong>res não <strong>do</strong>rmia bem, desgostosa <strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong>s amigos, nada tinha graça!
Parecia que to<strong>do</strong> dia era segunda–feira.<br />
Bom esta<strong>do</strong> geral, corada, hidratada, anictérica, afebril, eupneica.<br />
Pulsos simétricos. Pressão normal.<br />
Exame cardíaco e pulmonar normais.<br />
Dor à palpação digital da musculatura <strong>do</strong> tórax.<br />
– Desculpa. Fui sensível como um cavalo com você. Não devia falar que já sabia de seu caso, eu<br />
não sabia nada de você.<br />
– Obriga<strong>do</strong> <strong>do</strong>utor, você me examinou, não fique preocupa<strong>do</strong>, eu só quero saber se o problema<br />
está no meu coração.<br />
Ele fica com a voz embargada, estaria menos desconfortável se ela falasse alto, saísse baten<strong>do</strong> a<br />
porta, dizen<strong>do</strong> que ele era incompetente. Seria uma a mais.<br />
Voz quase não sai.<br />
– Minha opinião é que o seu problema não é <strong>do</strong> órgão coração, mas de seus sentimentos. Você está<br />
em luto, seu coração está em luto, isso causa angústia, ansiedade, tristeza. Isso deixa qualquer pessoa<br />
nervosa, com sensação de impotência. Fica tão tensa que os músculos, essas carnes que envolvem o<br />
peito e os ombros ficam <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>s.<br />
Por impossibilidade de lhe prescrever outra filha, prescreveu para uso interno:<br />
Um: relaxante muscular.<br />
Dois: analgesia.<br />
Três: anti-inflamatório.<br />
Quatro: encaminhamento à Unidade Básica de Saúde.<br />
Ela retribuiu com um sorriso, pegou em sua mão. Saiu agradecen<strong>do</strong>.<br />
Dezenove horas.<br />
Acabou o expediente.
Insuficiência cardíaca<br />
“Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingi<strong>do</strong>, sem sofrer os golpes da fatalidade, o<br />
termo de sua vida.”<br />
Sófocles<br />
No saguão <strong>do</strong> pronto-socorro havia dez leitos com monitores, aqueles aparelhos que mostram o<br />
tempo inteiro como está a pressão arterial, oxigenação, ritmo cardíaco. Nesses ficam os pacientes<br />
mais graves. Um deles era ocupa<strong>do</strong> pelo senhor Josef Müller. Já tinha si<strong>do</strong> admiti<strong>do</strong> havia quase uma<br />
semana quan<strong>do</strong> o conheci. Interna<strong>do</strong> por insuficiência cardíaca grave: to<strong>do</strong> incha<strong>do</strong>, tinha falta de ar<br />
mesmo em repouso, não conseguia deitar porque piorava o desconforto para respirar, estava com os<br />
pulmões cheios de líqui<strong>do</strong>!<br />
Em esta<strong>do</strong> de final de vida. Irreversível. Sozinho. Chamava atenção que não vinha nenhum<br />
familiar ficar com ele. Uma filha viera visita-lo duas vezes. O serviço social está envolvi<strong>do</strong> com o<br />
caso. Aban<strong>do</strong>no de i<strong>do</strong>so?<br />
Grave mas rude. Decrépito mas violento. Agredia verbalmente na sua língua pátria a equipe de<br />
enfermagem que tentava lhe prestar cuida<strong>do</strong>s. Ninguém entendia, ainda bem. Chegou a tentar enforcar<br />
uma enfermeira que ajeitava a sua máscara de oxigênio. Raiva. Estava em esta<strong>do</strong> de delirium, nessas<br />
<strong>do</strong>enças avançadas é comum que a pessoa perca a noção de si e que a consciência flutue. Delírio?<br />
A assistente social descobriu que o senhor Müller era pai de um colega que estudara medicina na<br />
nossa faculdade havia pouco tempo. Não chegou a concluir o curso. Nós também o chamávamos de<br />
Müller.<br />
O filho dele era um sujeito estranho. Poucas palavras, nenhum amigo. Isola<strong>do</strong>. Às vezes<br />
participava das aulas com frases de impacto, um tanto agressivo, parecia que queria causar me<strong>do</strong> nos<br />
colegas. Frequentava a faculdade de sobretu<strong>do</strong> preto mesmo nos dias mais quentes de verão e nós<br />
tínhamos receio – na verdade me<strong>do</strong>, de que um dia ele tirasse uma metralha<strong>do</strong>ra debaixo daquela<br />
roupa e matasse to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Disseram que durante uma cirurgia em que entrara como observa<strong>do</strong>r ouviu alguma palavra de<br />
desagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> cirurgião. Saiu da sala de operação. Pegou uma pistola no vestiário. Apontou para o<br />
<strong>médico</strong> que estava no meio <strong>do</strong> procedimento, paciente anestesia<strong>do</strong>, ab<strong>do</strong>me aberto, vísceras<br />
expostas. Chegou perto <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> dele e disse: aqui dentro somos diferentes, lá fora somos iguais.<br />
Ainda bem que não tirou a máscara nem tocou nos campos estéreis, aqueles panos colori<strong>do</strong>s que<br />
envolvem o paciente, poderia ter contamina<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.<br />
O Müller foi convida<strong>do</strong> a se retirar da faculdade. Nunca mais eu soubera dele.<br />
Agora soube.<br />
O velho Müller piorava a cada dia.<br />
A assistente social encontrou o filho.<br />
Ele chegou ao hospital com o habitual sobretu<strong>do</strong> preto de anos atrás. Fez questão de ver o pai<br />
antes de conversar com a equipe médica, ou seja, comigo!
Eu vi a cena, lembro como se tivesse visto no cinema.<br />
Entra no saguão, havia macas espalhadas, nelas: gente com cara de <strong>do</strong>r, coletores de urina e<br />
prontuários. Choro e gemer de dentes. Se aproxima <strong>do</strong> pai. Observa a cerca de um metro. O velho faz<br />
expressão de <strong>do</strong>r. Ele sorri. Um riso de satisfação plena. Olhos mareja<strong>do</strong>s. Percebe que o homem<br />
sofre, é perceptível que usa to<strong>do</strong>s os músculos <strong>do</strong> tórax e <strong>do</strong> pescoço para tentar respirar.<br />
Insuficiente. O jovem gargalha. Eu intervenho.<br />
– Bom dia Müller. Lembra de mim, da faculdade?<br />
– Claro, bom dia. Para mim está sen<strong>do</strong> um ótimo dia.<br />
– Ótimo, por quê?<br />
– Por quê? Sempre torci para que esse velho filho da puta sofresse muito, muito mesmo antes de<br />
morrer, não queria perder o prazer de ver essa cena.<br />
Silêncio.<br />
Não sei o que dizer. Müller, o filho, sabe. O pai já não sabe de nada.<br />
– Esse desgraça<strong>do</strong> sempre bateu em mim e nas minhas irmãs, abusou de minhas irmãs até elas<br />
saírem de casa, batia na cara de minha mãe. Tive que conviver com isso. Queria eu mesmo ter<br />
mata<strong>do</strong> ele. Mas não sabia como fazer pra ele morrer bem devagarinho. Desse jeito que está<br />
acontecen<strong>do</strong>. Bem devagarinho.<br />
Chega perto <strong>do</strong> ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai. Fala sussurran<strong>do</strong>: Bastard sterben! Grita para quem quiser ouvir:<br />
– Morra seu desgraça<strong>do</strong>, mas antes sofra muito e pague por tu<strong>do</strong> que fez.<br />
Olhos vermelhos. Cólera. Lágrima. Só uma comprida. Ele se recompõe.<br />
Peço para me acompanhar até o consultório. A cena no meio <strong>do</strong> saguão já deixara a equipe, os<br />
outros pacientes, os acompanhantes perplexos. Eu tinha sensação de desrealização.<br />
– Müller, você não tem nada para perguntar sobre o seu pai, nada? Entendi que vocês tiveram uma<br />
relação difícil. Agora ele está morren<strong>do</strong>. Tem algo que possamos fazer por vocês?<br />
– Tem sim. Quero saber quais os procedimentos necessários para <strong>do</strong>ar o corpo dele para as aulas<br />
de anatomia! Minha família não vai fazer velório e muito menos queremos gastar um centavo com<br />
enterro desse traste. Quem sabe depois de morto ele sirva pra alguma coisa. Disseca<strong>do</strong>.
Sangue<br />
“É <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>,<br />
mas sinta com intensidade essa cólica<br />
esse mal estar,<br />
mas sangre mais uma vez!”<br />
Elizandra Souza<br />
Desde que prestei vestibular para medicina eu queria ser obstetra. A ansiedade foi tanta que quase<br />
não <strong>do</strong>rmi na última noite, véspera de começar o meu estágio de obstetrícia no internato, aproveitei<br />
para imprimir uma foto linda que encontrei na internet de uma mulher com um recém–nasci<strong>do</strong> deita<strong>do</strong><br />
sobre seu ventre. Coisa mais linda! A usei para ilustrar a capa de meu caderno em que deixaria<br />
registra<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os casos que eu atendesse. Se você não sabe, internato é a fase <strong>do</strong> curso <strong>médico</strong> em<br />
que fazemos estágios em distintas áreas. É aí que acontece o aprendiza<strong>do</strong> na prática.<br />
Estou com necessidade de escrever sobre esse primeiro dia. Como ainda me emociono com os<br />
acontecimentos é bem possível que não os descreva de maneira tão objetiva. Provavelmente isso que<br />
escrevo como um diário nas primeiras folhas <strong>do</strong> caderno nunca será compartilha<strong>do</strong>. É para mim. Se<br />
você está len<strong>do</strong> esse texto deve ser alguém muito enxeri<strong>do</strong>. Não deveria ler essas coisas que são tão<br />
pessoais. Acredito que se tiver bom senso ou o mínimo de respeito não continuaria a ler. Então segue<br />
meu diário, de um único dia, por enquanto.<br />
Cheguei às sete da manhã ao Hospital Escola. O preceptor apresentou o curso. Teve gente de meu<br />
grupo que achou ele lin<strong>do</strong>. Eu não achei nada para falar a verdade, tinha interesse maior em conhecer<br />
a programação. Quase pulei de alegria quan<strong>do</strong> ele disse que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> precisava fazer ao menos<br />
<strong>do</strong>ze partos vaginais. Doze! Eu já me imaginava no meu primeiro parto. Acredito que Yuri Gagarin<br />
sentiu alguma coisa parecida pouco antes de ir pro espaço! Oba! Me candidatei a dar o primeiro<br />
plantão! Acho que eu teria um ataque cardíaco se ficasse até o dia seguinte para fazer o meu primeiro<br />
parto.<br />
Em trinta minutos eu me apresentaria no Centro Obstétrico (CO).<br />
Deu tempo de comer um chocolate bem <strong>do</strong>cinho. Consegui aguardar esses minutos eternos.<br />
Cheguei ao CO, era um espaço com oito macas para as gestantes, as paredes com tons pastéis, um<br />
bege monótono, luz branca artificial. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de roupa verde de uso hospitalar privativo, gorros<br />
e capinhas para os sapatos que se chamam pró–pés. Apresentaram–me à equipe da enfermagem, ao<br />
anestesista – ele olhou para mim com uns olhos de tara<strong>do</strong>, acho que meu rosto ficou vermelho. Asco.<br />
Enfim conheci o <strong>médico</strong> obstetra plantonista que muito provavelmente me orientaria no meu primeiro<br />
parto.<br />
Chegou minha primeira paciente: quinze anos, como ela é menor não posso dizer o seu nome,<br />
prefiro chama-la aqui de “Menina” <strong>do</strong> que de “Menor”. Vale a mesma letra M. Negra, magrinha,<br />
gemen<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r. Morava na comunidade nos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Hospital Escola.
Onde estava sua família? Seu companheiro?<br />
Não se sabia!<br />
Foi admitida desacompanhada. Só.<br />
– Bom dia Menina, vamos conversar?<br />
– Eu estou com <strong>do</strong>r aqui embaixo! Muita! Ai! Me<strong>do</strong>!<br />
Pega minha mão. Me<strong>do</strong>.<br />
Menina estava com as mãos geladas. Pulso bem fino. Pressão baixa. Sete por quatro. Dor forte no<br />
ab<strong>do</strong>me inferior. Observo uma mancha de sangue em sua calça. Cresce. Excêntrica. Faz um quasecírculo<br />
vermelho debaixo da pelve, da cintura até as coxas.<br />
– O que aconteceu?<br />
Menina não respondeu. A levei até à emergência, chamei a enfermeira e o <strong>médico</strong>. Começaram a<br />
dar soro na veia. Chamaram o anestesista.<br />
Menina não acordava.<br />
Chegou o anestesista. Compenetra<strong>do</strong>. Intubou a paciente, e a colocou para respirar com aqueles<br />
aparelhos, ventila<strong>do</strong>res mecânicos. Pediu sangue para transfundir, três concentra<strong>do</strong>s de hemácias.<br />
Sangue<br />
Eu fui para a Sala de Operação junto com a equipe. O <strong>médico</strong> plantonista me orientou a me lavar,<br />
e vestir a paramentação. Eu ajudaria na cirurgia.<br />
Peguei a escovinha com sabão degermante, aquele que mata bactérias hospitalares. Escovava–me<br />
em frente à grande pia de inox: de<strong>do</strong> por de<strong>do</strong>. Já não estava muito bem. Angústia. Tinha i<strong>do</strong> para o<br />
CO feliz, para ajudar nos partos. Meu primeiro procedimento seria uma curetagem?<br />
Chego à sala. Vejo o obstetra falan<strong>do</strong> com o anestesista. Seria uma histerectomia, to<strong>do</strong> o útero<br />
retira<strong>do</strong>. Menina estava com uma hemorragia muito grave. Tentara provocar um aborto com uma<br />
agulha de crochê. Acabou perfuran<strong>do</strong> o útero. Ficaria estéril ou morreria.<br />
Enquanto vestia o grande avental verde e o par de luvas estéreis eu tremia. Estava com vontade de<br />
chorar. Mas tinha que encarar! Concluiria o curso em pouco tempo. Teria que dar conta de outras<br />
situações como essa.<br />
Apresento-me em campo. De prontidão para o procedimento. Dói.<br />
Vi o obstetra falar pro anestesista na minha frente, na frente da equipe toda:<br />
– É nisso que dá! Essas meninas são um ban<strong>do</strong> de vacas, saem dan<strong>do</strong> que nem cachorra pra<br />
qualquer um que encontram na rua, engravidam, depois abortam e vem pra cá nessas condições. E a<br />
gente que salve!<br />
Senti enjoo. Quase vomitei. Tive cólica que retorceu meu ventre. Senti como se estivesse<br />
sangran<strong>do</strong>. Mas minha menstruação só desceria em uma semana. Relógio. Déjà vu.<br />
Comecei a tremer, meu coração acelerou, minhas mãos começaram a formigar e eu comecei a<br />
chorar ali mesmo. Chorava, soluçava, quase engasgava.<br />
A enfermeira se solidarizou. Abraçou-me, levou-me até o vestiário.<br />
Eu continuava choran<strong>do</strong>.<br />
Tirei minha roupa, observei meu corpo nu no espelho. Feminina. Não estava menstruada!<br />
Liguei o chuveiro, enquanto a água me afagava, lembrei como se fosse ontem de quan<strong>do</strong> eu tinha<br />
quinze anos.<br />
Eu tinha um namora<strong>do</strong>, com ele descobri o prazer <strong>do</strong> sexo a <strong>do</strong>is, a me sentir desejada. Gozo.<br />
Após três meses de namoro retiramos a camisinha. Aprendemos a fazer a tabelinha e confiávamos
um no outro. Era amor.<br />
Minha menstruação atrasou.<br />
Eu falei a ele.<br />
O meu amor disse que não devia ser nada.<br />
Fiz o teste de gravidez sozinha.<br />
Duas fitinhas. Positivo.<br />
Quan<strong>do</strong> contei a ele o resulta<strong>do</strong> ele perguntou... ele perguntou se eu tinha certeza de que era dele.<br />
Disse coisas. Era muito novo para ser pai. Ia iniciar a faculdade. Se os seus pais soubessem estava<br />
perdi<strong>do</strong>. Era para eu resolver o que ia fazer com isso. Muito me amava, muito.<br />
Pedi para ele me acompanhar quan<strong>do</strong> fui conversar com meus pais. Fui sozinha, não tinha<br />
condições, disse.<br />
Encarei meus pais. Souberam no mesmo momento que eu, a menininha deles, tinha vida sexual<br />
ativa, era mulher e que estava grávida. Não sei como consegui dizer aquilo tu<strong>do</strong>. Eles me olharam<br />
nos olhos espanta<strong>do</strong>s, choraram e me abraçaram. Eu sei que não foi fácil para eles mas disseram que<br />
me apoiariam no que eu decidisse. Disse que não me sentia em condições de ter o filho naquele<br />
momento. Não tinha. Eles foram juntos comigo a uma clínica onde... onde eu... onde eu abortei. Foi a<br />
coisa mais <strong>do</strong>lorosa de minha vida. A coisa mais sofrida de minha vida! Sangue.<br />
Se eu sofri daquele jeito imagine Menina! Vulnerável, chegan<strong>do</strong> só ao hospital depois de tentar um<br />
aborto por meios próprios. Violência. Que será que o pai dela falou? E o companheiro dela, onde<br />
estaria? Sozinha, sen<strong>do</strong> chamada de cachorra! De que eles me chamariam? E são <strong>médico</strong>s!<br />
Eu chorei tanto que perdi a noção de tempo.<br />
A água escorria quente pelo meu corpo.<br />
O sangue corria: transfundi<strong>do</strong> para a veia dela, <strong>do</strong> ventre dela para a maca e de minha alma - para<br />
onde?<br />
Sangue.<br />
Voltei para o CO. Menina resistiu ao procedimento. Foi transferida para UTI. O <strong>médico</strong><br />
plantonista me dispensou <strong>do</strong> resto <strong>do</strong> plantão. Olhou-me de cima. Disse para eu repensar minhas<br />
opções já que não demonstrei frieza num momento crítico e além <strong>do</strong> mais, obstetrícia não era uma<br />
boa especialidade para mulher.
"O bom <strong>médico</strong> é aquele que refaz, mesmo sem saber, a trajetória da medicina através <strong>do</strong>s tempos.<br />
Como Hipócrates (460 - 377 a.C.), sabe que a vida é curta, mas a arte é longa; sabe que a ocasião<br />
é fugidia, a experiência, engana<strong>do</strong>ra, o julgamento, difícil. Em suma: sabe que a <strong>do</strong>ença<br />
representa um extraordinário desafio tanto em termos de conhecimento quanto de equilíbrio<br />
emocional. Mas também sabe, como Hipócrates, que é preciso enfrentar o desafio com os meios<br />
que estão a seu alcance. E a isso não se recusa."<br />
Moacyr Scliar