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Televisão - Entre a Metodologia Analítica e o Contexto Cultural

Este livro tem sua origem no anseio de enfrentar uma dificuldade central para os Estudos de Televisão: como associar a metodologia analítica dos produtos televisivos com o conhecimento de aspectos contextuais? Análise e síntese – a combinação desses dois procedimentos cognitivos nunca é tão fácil quanto parece. Mais difícil ainda configura-se no caso dos Estudos de Televisão.

Este livro tem sua origem no anseio de enfrentar uma dificuldade central para os Estudos de Televisão: como associar a metodologia analítica dos produtos televisivos com o conhecimento de aspectos contextuais? Análise e síntese – a combinação desses dois procedimentos cognitivos nunca é tão fácil quanto parece. Mais difícil ainda configura-se no caso dos Estudos de Televisão.

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Copyright © 2016 by Simone Mari Rocha & Renato Luiz Pucci Jr.<br />

Editor: Gelson Santana<br />

Projeto gráfico: Livre Design Studio - Mauro Teles<br />

Revisão: Editora a Lápis<br />

Foto da Capa - “Designed by visnezh / Freepik”<br />

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)<br />

R672t<br />

P977t<br />

Rocha, Simone Maria.<br />

Pucci Jr., Renato Luiz.<br />

Televisão: entre a <strong>Metodologia</strong> Analítica e o <strong>Contexto</strong> <strong>Cultural</strong> /<br />

– São Paulo – Editora a lápis, 2016.<br />

180 p. : II 23<br />

Vários autores.<br />

ISBN: 978- 85-906623-7-2<br />

CDD: 700 CDU: 778.5<br />

Índices para catálogo sistemático:<br />

1. Televisão. 2. Cinema. 3 Cultura.<br />

I. Autores. II. Título


Sumário<br />

Introdução....................................................................................................9<br />

O realismo maravilhoso: uma matriz estética e cultural latino-americana<br />

e sua manifestação no estilo da telenovela brasileira..............................19<br />

Simone Maria Rocha, Matheus Luiz Couto Alves e Regiane Lucas de<br />

Oliveira Garcêz<br />

Discussões acerca do pós-moderno, da contemporaneidade e da (proto)<br />

transmidiação em Twin Peaks....................................................................37<br />

Rogério Ferraraz e Maria Ignês Carlos Magno<br />

Um bocadinho de chão: estilo televisivo, terra e figurações de mando<br />

em Renascer e O rei do gado................................................................ 53<br />

Reinaldo Maximiano Pereira<br />

O roteiro seriado: a estilística intermidiática no piloto de Mad Men..... 73<br />

Marcel Vieira Barreto Silva<br />

“A cara do Brasil” segundo o SBT.............................................................93<br />

Rafael Barbosa Fialho Martins<br />

Thriller à brasileira: ficção televisual transmídia na faixa das 23h........113<br />

Melina Leal Galante e Daniela Zanetti<br />

Humor de qualidade no audiovisual brasileiro: proposta metodológica<br />

de análise..................................................................................................133<br />

Gabriela Borges<br />

Conversação no estúdio do Bem Estar: a construção do apresentadorespecialista<br />

em saúde...............................................................................147<br />

Marialice Emboava e Simone Maria Rocha<br />

A experiência audiovisual de uma transmidiação de La invención de<br />

Morel, de Adolfo Bioy Casares................................................................165<br />

Vicente Gosciola<br />

7


Introdução<br />

Este livro tem sua origem no anseio de enfrentar uma dificuldade<br />

central para os Estudos de Televisão: como associar a metodologia analítica<br />

dos produtos televisivos com o conhecimento de aspectos contextuais?<br />

Análise e síntese – a combinação desses dois procedimentos cognitivos<br />

nunca é tão fácil quanto parece. Mais difícil ainda configura-se no caso<br />

dos Estudos de Televisão.<br />

O universo da televisão, ou seja, tudo o que envolve não apenas o<br />

produto, mas também produção, transmissão e recepção televisiva, é tão<br />

vasto que necessita amplas operações de síntese, a propor conexões que<br />

normalmente estariam para além do olhar desavisado ou não fundado<br />

em referenciais teóricos capazes de sustentar avanços no conhecimento.<br />

Por outro lado, a multiplicidade de objetos específicos, em sua variedade<br />

infinita, exige a operação analítica, a paciência do exame meticuloso<br />

em busca de indícios reveladores e de diferenças do que, num passado<br />

nada longínquo, era visto como produção em fluxo, com produtos tão<br />

diferenciáveis entre si quanto gotas d’água a sair de uma torneira. De<br />

fato, quanto mais se pesquisa, mais fica claro que não é de hoje que a<br />

produção televisiva apresenta uma rica variedade, em todos os sentidos<br />

da palavra.<br />

Uma facilidade e uma dificuldade são criadas pelo fato de os Estudos<br />

de Cinema, ao longo de décadas, terem desenvolvido a perspectiva<br />

analítica. Por um lado, o pesquisador da televisão não precisa partir do<br />

marco zero no que diz respeito à metodologia de análise, pois muito do<br />

que é praticado pelos pesquisadores de cinema pode ser transposto para<br />

o estudo dos programas televisivos ou, pelo menos, experimentado com<br />

larga chance de sucesso. Afinal, são duas mídias audiovisuais, que operam<br />

com imagem em movimento e som, que têm como tendência relevante a<br />

produção de narrativas, ficcionais ou não. São meios afins, como em outros<br />

tempos o foram o afresco e a pintura em tela. Nos termos daquilo que<br />

o filósofo Imre Lakatos denominou heurística negativa de um programa<br />

de pesquisa científica, ou seja, as regras metodológicas que indicam<br />

os caminhos a serem evitados (1978: 47-52), a relação entre cinema e<br />

9


televisão pode, por exemplo, alertar os pesquisadores da segunda mídia<br />

contra o descritivismo, tendo em vista o evidente desperdício de tempo e<br />

energia dos que, no âmbito dos Estudos de Cinema, confundem análise<br />

com descrição.<br />

Ainda assim, entre análise fílmica e análise televisual há diferenças<br />

não desprezíveis. A televisão possui uma particularidade que, se por um<br />

lado é uma de suas riquezas, por outro oferece as mais sérias dificuldades<br />

metodológicas: a longa duração dos produtos seriados. Quando se tomam<br />

filmes como referência, a comparação é simples. Nestes cada objeto possui<br />

duração média entre 90 e 120 minutos. Mesmo nos casos de trilogias e<br />

tetralogias fílmicas (que, diga-se, não são tão frequentes), multiplica-se<br />

o tempo de exibição por três ou quatro (por vezes, um pouco a mais<br />

nas serializações de maior sucesso), o que resulta em tramas com um<br />

total de poucas horas de duração. No âmbito dos Estudos de Televisão,<br />

os objetos são, em comparação, quase sempre gigantescos. A raridade<br />

está na existência de produtos unitários, isto é, que não sofrem nenhuma<br />

espécie de serialização. Minisséries chegam com frequência a mais de<br />

quarenta capítulos, telenovelas têm hoje em dia cerca de 170 capítulos<br />

(mas é bom não esquecer que em outros tempos chegavam a 400 ou<br />

mais). Séries podem ter mais de dez temporadas, ultrapassando a casa<br />

das centenas de episódios e outro tanto de horas totais de exibição. Há<br />

programas televisivos que perduram por décadas, em exibição diária, ou<br />

quase isso, como as soap operas e os telejornais.<br />

Eis o problema: como analisar produtos descomunais como esses?<br />

A análise de uma cena curta de um filme pode ser o suficiente para<br />

resolver um problema de pesquisa. O mesmo talvez seja verdade<br />

para um produto com centenas de capítulos, cada qual com cerca de<br />

quarenta ou quarenta e cinco minutos, caso das telenovelas. Talvez...<br />

É lícito indagar o que pode significar uma cena de, exemplificando,<br />

um minuto, num produto exibido em 150 horas, isto é, 9.000 minutos?<br />

Mesmo que a validade dos resultados da análise tenham credibilidade e<br />

possam mesmo ajudar na solução de relevantes problemas de pesquisa,<br />

como localizar a cena num produto tão imenso caso ela não tenha<br />

sido detectada ao assisti-lo pela primeira vez? Seria uma tarefa inglória<br />

assistir a tudo novamente apenas para localizar uma cena curta. Outra<br />

metodologia é necessária.<br />

10


Ao menos desde meados da primeira década deste século, têm sido<br />

realizadas tentativas mais bem sucedidas, no sentido de estabelecer<br />

os fundamentos da metodologia analítica de produtos televisivos. O<br />

nome de maior destaque é Jeremy Butler. Em Television style (2010),<br />

além de fazer o levantamento dos embates de pesquisadores e críticos<br />

diante dessa problemática, ele efetua análises que têm servido e ainda<br />

servirão de modelo. No entanto, Butler não responde à questão central,<br />

acima levantada: qual o peso heurístico, isto é, capaz de proporcionar<br />

conhecimento, da análise de cenas pertencentes a um produto de dimensões<br />

colossais? Ainda pesam sobre os pesquisadores as consequências dessa<br />

lacuna e de questões que lhe são afins.<br />

Não bastassem tantas dificuldades, como não perceber que são<br />

infinitas as conexões culturais/históricas/sociais levantadas por uma<br />

massa tão grande de capítulos, episódios ou apresentações? As relações<br />

entre essas duas perspectivas, quanto a qualquer desses ou de outros<br />

produtos televisivos, mostram-se ao mesmo tempo muito promissoras e<br />

a exigir esforço metodológico para dar conta dos aspectos envolvidos.<br />

Em relação às operações de síntese, a questão principal é: como<br />

estabelecer conexões entre quaisquer aspectos contextuais e elementos<br />

constituintes dos produtos em foco? Embora muitas tentativas nesse<br />

sentido tenham sido feitas na história do audiovisual, em se tratando<br />

de televisão muito poucas chegaram a um resultado plausível. Para<br />

conectar modo narrativo, construção de personagem, enquadramentos,<br />

iluminação, movimentos de câmera, ângulos de câmera ou qualquer<br />

outro elemento narrativo ou estilístico com a cultura, a vida social, a<br />

política, que constituem o contexto do produto, é preciso mais do que<br />

o associacionismo, a analogia ou supostas metáforas e alegorias. Não é<br />

tão recente a tradição de pensamento nessa direção, a relacionar objeto<br />

e contexto, embora, obviamente, não nos Estudos de Televisão. Ela é<br />

formada, exemplificando, por aquilo que o historiador da arte Erwin<br />

Panofsky chamou de iconologia, na primeira parte de Significação<br />

nas artes visuais: de forma bastante convincente, detalhes de pinturas<br />

e esculturas do Renascimento eram relacionados com elementos<br />

históricos (1979: 52-54). Os Estudos de Cinema, por sua vez, se lançaram<br />

inesgotavelmente à mesma empreitada, com resultados desiguais, ao<br />

menos desde a publicação do livro De Caligari a Hitler: uma história<br />

11


psicológica do cinema alemão, de Siegfried Kracauer, em 1947. Eis o que<br />

precisa ser tentado em relação à imensa produção televisiva, descontadas<br />

as inevitáveis diferenças em relação às artes e à mídia indicadas.<br />

É nesse quadro que surgiu o interesse comum a dois grupos de<br />

pesquisa: o COMCULT – Comunicação e Cultura em Televisualidades<br />

(Programa de Pós-graduação em Comunicação, da UFMG, em Belo<br />

Horizonte) e o grupo Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira<br />

(Programa de Pós-graduação em Comunicação, da Universidade Anhembi<br />

Morumbi, em São Paulo). Como em geral acontece quando há grupos de<br />

pesquisa em cena, tratava-se de enfrentar um problema de pesquisa que<br />

realmente exige mais do que a energia e a dedicação de pesquisadores<br />

isolados. Talvez ninguém domine sozinho campos tão vastos como os<br />

acima descritos, que exigem a análise microscópica e a síntese de larga<br />

amplitude.<br />

Durante as sessões dos Seminários de Televisão, realizados nos<br />

encontros anuais da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema,<br />

e do GT de Estudos de Televisão, da Compós, o interesse comum resultou<br />

em contatos que propiciaram a realização da I Jornada Intergrupos<br />

de Pesquisa, que recebeu o subtítulo “Análise Audiovisual e Aspectos<br />

Culturais na Produção Televisiva”. A data era 26 de setembro de 2014, na<br />

Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. Desse evento resulta a<br />

maior parte dos capítulos a seguir.<br />

Ambos os grupos tinham em sua respectiva proposta a conexão<br />

entre análise audiovisual e aspectos contextuais. O COMCULT expressa o<br />

interesse em sua ementa, que assume a ideia de que a perspectiva estética<br />

e as interrogações culturais e políticas não se opõem como enfoques<br />

contraditórios entre si, mas confluem na medida em que os produtos<br />

televisivos são constituídos por esses dois aspectos: de um lado, estilos,<br />

poéticas, modelos narrativos; de outro, matrizes históricas e políticoculturais,<br />

estético-populares e relações com a audiência.<br />

Por sua vez, o grupo Inovações e Rupturas possui a mesma dualidade<br />

inscrita no DNA, uma vez que os seus pesquisadores derivam das duas<br />

linhas de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Comunicação:<br />

Análises de Produtos Audiovisuais e Processos Midiáticos na Cultura<br />

Audiovisual. Nesse caso, o entendimento é o de que a colaboração de<br />

12


pesquisadores de linhas diferentes é uma exigência para que a pesquisa<br />

ultrapasse limites.<br />

A justificativa para essa confluência de especialidades está num fato<br />

que a cada dia se torna mais claro: os problemas de pesquisa com que<br />

nos deparamos na área da Comunicação são grandes demais para uma<br />

só pessoa ou para uma só especialidade. A perspectiva ampla, como é<br />

típico dos estudos da cultura, precisa se juntar ao olhar microscópico, que<br />

efetua o corpo a corpo com os objetos de pesquisa. Sem isso, fica-se, na<br />

melhor das hipóteses, a aguardar que outros pesquisadores se aventurem<br />

a completar o trabalho já realizado, como se tornou clichê incluir ao final<br />

de artigos e livros voltados para somente um lado dos problemas.<br />

Eis por que os dois grupos de pesquisa decidiram unir forças. O<br />

primeiro resultado está nos capítulos que se seguem, entre os quais estão<br />

contribuições de pesquisadores não vinculados ao COMCULT ou ao<br />

Inovações e Rupturas, mas que estão às voltas com a mesma problemática.<br />

São os casos de Marcel Vieira, Gabriela Borges e Daniela Zanetti e Melina<br />

Leal Galante.<br />

No capítulo “O realismo maravilhoso: uma matriz estética e cultural<br />

latino-americana e sua manifestação no estilo da telenovela brasileira”,<br />

Simone Rocha e Matheus Alves partem das matrizes culturais latinoamericanas<br />

presentes na produção ficcional seriada da TV brasileira e<br />

de como elas se manifestam através das escolhas estilísticas. De modo<br />

específico, o autores pretendem evidenciar de que modo o realismo<br />

maravilhoso – entendido enquanto uma matriz estético-cultural – está<br />

presente na forma como as telenovelas inserem em suas narrativas, numa<br />

operação de ruptura na continuidade e na linearidade do realismo, eventos<br />

da ordem do insólito e do estranhamento, a fim de criar metáforas, fazer<br />

críticas político-sociais, gerar encantamento e despertar o interesse do<br />

espectador.<br />

Rogério Ferraraz e Maria Ignês, em seu texto “Discussões acerca do<br />

pós-moderno, da contemporaneidade e da (proto) transmidiação em<br />

Twin Peaks”, apresentam como objeto de estudo a série Twin Peaks (EUA,<br />

1990-1991), criada por David Lynch e Mark Frost, a fim de compreender<br />

como o criador levou para televisão várias características pós-modernistas.<br />

Os autores buscam, também, apreender e demonstrar aspectos da<br />

13


contemporaneidade já presentes naquela obra (proto)transmidiática, que,<br />

de certa forma, antecipou a era da internet e da cultura participativa dos<br />

fãs, típica de nossos dias.<br />

Em “Um bocadinho de chão: estilo televisivo, terra e figurações de<br />

mando em Renascer e O rei do gado”, Reinaldo Maximiano empreende<br />

um esforço de análise do estilo televisivo e sua contribuição para a<br />

tematização da terra e as figurações de mando nas telenovelas de Benedito<br />

Ruy Barbosa. Ao analisar as figurações presentes em Renascer (1993) e O<br />

rei do gado (1996) o autor pretende captar como tais operações visuais<br />

e sonoras contribuem para i) a construção de sentidos sobre as relações<br />

de poder e subjugação; e ii) o estilo televisivo, em si. Como ponto de<br />

chegada, tal investigação busca identificar quais seriam as possíveis<br />

estruturas sociais, políticas e culturais sob as quais essas figurações se<br />

assentam.<br />

Marcel Vieira propõe em “O roteiro seriado: a estilística<br />

intermidiática no piloto de Mad Men” uma reflexão para entender a<br />

relação entre o roteiro e a obra audiovisual através de aproximações<br />

conceituais e metodológicas entre os estudos de intermidialidade,<br />

de literatura e de televisão. Com o objetivo de compreender “como<br />

considerar experiências estéticas diferentes a leitura do roteiro e<br />

o visionamento do filme/série?” Vieira encontra uma importante<br />

chave de entendimento, qual seja, o conceito de “produção de<br />

presença”, tal como desenvolvido por Gumbrecht, a partir do<br />

qual tenta transitar pelas zonas de fronteiras entre mídias, entre<br />

literatura e audiovisual. Com este instrumental em mãos, o autor<br />

analisa algumas cenas do episódio piloto da série de televisão<br />

norte-americana Mad Men e procura desvendar a relação que o<br />

texto do roteiro estabelece com o programa em sua materialidade<br />

audiovisual.<br />

No capítulo “’A cara do Brasil’ segundo o SBT”, Rafael Martins<br />

propõe um duplo movimento. Primeiro, o de captar qual é a proposta de<br />

interação entre o canal de televisão SBT e sua audiência através de uma<br />

análise estilística de vinhetas institucionais produzidas pela emissora. O<br />

segundo movimento tratou de perceber o quanto essa interação figurada<br />

pelas vinhetas está calcada numa certa “brasilidade” que foi forjada<br />

14


particularmente pela televisão. Na análise empreendida o autor destaca<br />

a figura do proprietário do Canal, Sílvio Santos, cuja trajetória pessoal<br />

estabelece grande afinidade com o público da emissora, bem como um<br />

posicionamento institucional que se traduz em um “estilo SBT”, capaz de<br />

contribuir para a interação com o telespectador.<br />

O capítulo “Thriller à brasileira: ficção televisual transmídia na faixa<br />

das 23h”, de Melina Galante e Daniela Zanetti, propõe-se a explorar<br />

um gênero específico na TV brasileira, o thriller, na tentativa de captar<br />

e entender se e como a reconfiguração temática e narrativa das séries<br />

de TV norte-americanas, em conjunção com a cultura da transmidiação<br />

digital, estão afetando o desenvolvimento de obras ficcionais seriadas no<br />

contexto de nossa televisão, estabelecendo novos parâmetros de criação<br />

e produção. Para a investigação desse “thriller à brasileira” as autoras<br />

escolheram O canto da sereia, Amores roubados e O rebu.<br />

Gabriela Borges, em “Humor de qualidade no audiovisual brasileiro:<br />

proposta metodológica de análise”, retoma uma reflexão acerca da<br />

qualidade no audiovisual para, a partir dela, apresentar uma metodologia<br />

de análise que se dedica a avaliar tal característica em programas de<br />

humor tanto da TV brasileira quanto de canais disponíveis no YouTube. A<br />

autora elegeu dois parâmetros para proceder à investigação da qualidade,<br />

quais sejam, o modo de representação e a experimentação, cujos<br />

desdobramentos alcançam o plano da expressão, o plano do conteúdo e<br />

a mensagem audiovisual.<br />

Em “Conversação no estúdio do Bem Estar: a construção do<br />

apresentador-especialista em saúde”, Marialice Emboava e Simone Maria<br />

Rocha partem do princípio de que figuras centrais na construção e<br />

publicização dos fatores de risco, os profissionais da saúde, em particular<br />

os médicos, são tidos como expertos em estilo de vida. Neste capítulo,<br />

as autoras verificam como se constrói a interação especialistas-audiência<br />

no programa Bem Estar (TV Globo) utilizando modos de endereçamento<br />

e análise estilística televisiva como métodos. O discurso técnico, os<br />

recursos visuais e as vestimentas dos especialistas conferem-lhes lugar<br />

de autoridade e contribuem para que operem como tecnologias difusas<br />

de governo indireto, tentando influenciar a conduta e os hábitos do<br />

telespectador.<br />

15


No capítulo “A experiência audiovisual de uma transmidiação de La<br />

invención de Morel de Adolfo Bioy Casares”, Vicente Gosciola apresenta<br />

uma proposta que abarca conceitos e características do processo de<br />

transmidiação, passando pelo seu planejamento e modos de execução até<br />

chegar a uma configuração dos princípios e da estruturação da narrativa<br />

transmídia em um exemplo concreto, desenvolvido na proposta de estágio<br />

pós-doutoral do autor, o da transmidiação como um desdobramento<br />

narrativo do livro La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares.<br />

Prosseguindo na linha de Jeremy Butler, do qual são devedores vários<br />

dos capítulos a seguir, esperamos que o livro contribua para a superação<br />

dos problemas apontados. Não se trata de uma obra com regras a serem<br />

seguidas, mas de trabalho analítico e de síntese, em ato. Quem sabe,<br />

levar outros pesquisadores a juntar-se em grupos e que aconteçam outras<br />

Jornadas Intergrupos de Pesquisa, com o mesmo objetivo.<br />

Simone Maria Rocha 1 e<br />

Renato Luiz Pucci Jr. 2<br />

1 Professora Associada do PPGCOM/UFMG e líder do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades<br />

(COMCULT). rochasimonemaria@gmail.com<br />

2 Professor do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, e líder do grupo de pesquisa Inovações<br />

e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira. renato.pucci@gmail.com<br />

16


Referências<br />

BUTLER, Jeremy. Television style. Nova York e Londres: Routledge, 2010.<br />

LAKATOS, Imre. Falsification and the methodology of scientific research programmes. In: WORRALL,<br />

John e CURRIE, Gregory (orgs.), The methodology of scientific research programmes. Cambridge (UK):<br />

Cambridge University Press, 1978, p. 8-101.<br />

PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo da Arte da Renascença. In:<br />

Panofsky, Erwin. Significado nas Artes Visuais. 2.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 45-87.<br />

17


O realismo maravilhoso: uma matriz estética e<br />

cultural latino-americana e sua manifestação no<br />

estilo da telenovela brasileira 3<br />

Simone Maria Rocha 4 ,<br />

Matheus Luiz Couto Alves 5 e<br />

Regiane Lucas de Oliveira Garcêz 6<br />

Introdução<br />

Para o dramaturgo Dias Gomes, que escrevia a primeira versão de<br />

Saramandaia em 1976, em plena ditadura militar, o absurdo fazia parte<br />

do cotidiano do brasileiro e não era possível entender este país sem levar<br />

em consideração essa conotação insólita. Inquietava ao autor a forma<br />

com que um contexto alastrado de dominação interna e uma consentida<br />

submissão externa era tratado de forma naturalizada em alguns produtos<br />

culturais, inclusive os da televisão. Em suas palavras “o Brasil é o país<br />

que desmoraliza o absurdo, porque o absurdo acontece. E não é possível<br />

entender e espelhar a nossa realidade dentro das regras do realismo puro”<br />

(GOMES, 2012: 98). Para ele, retratos desse Brasil violento tinham que vir<br />

à tona para provocar nas pessoas uma reflexão, um questionamento, uma<br />

perplexidade que fosse, sobre o que se passava em seu país.<br />

Essa posição crítica conduziu o dramaturgo à escrita de seus textos<br />

televisivos sob um outro registro, aquele que adota procedimentos<br />

estilísticos e estéticos inovadores na linguagem, pois, numa conjuntura<br />

marcada por um regime político fechado, relações políticas corruptas e<br />

inescrupulosas, restava à crítica recorrer à metáfora, ao insólito, ao humor<br />

3<br />

Agradecemos ao CNPq e à Fapemig pelo incentivo financeiro à nossa pesquisa.<br />

4<br />

Professora Associada do PPGCOM/UFMG e líder do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades<br />

(COMCULT). rochasimonemaria@gmail.com<br />

5<br />

Graduado em Publicidade e Propaganda pela UFMG. matheus.coutoalves@gmail.com<br />

6<br />

Regiane L. O. Garcêz: Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social/UFMG e pesquisadora do<br />

Grupo de Pesquisa Mídia e Esfera Pública do PPGCOM/UFMG. regiane.lucas@gmail.com<br />

19


e ao exagero, em outras palavras, ao realismo maravilhoso entendido<br />

enquanto uma matriz estético-cultural definida por dimensões de ordem<br />

etimológica, lexical, literária e histórica que o legitima como identificador<br />

da cultura latino-americana.<br />

Diante disso, este capítulo tem como objetivo evidenciar as referências<br />

a essa matriz adotadas por vários autores para inserir em suas narrativas<br />

eventos da ordem do insólito e do estranhamento a fim de criar metáforas,<br />

gerar encantamento e despertar o interesse do espectador. Afinal, a partir<br />

de que, por que e como estão falando?<br />

Um exemplo inicial de como o realismo maravilhoso se fez presente<br />

na televisão aconteceu na telenovela O Bem Amado (1973) escrita por Dias<br />

Gomes. A história se passou na cidade fictícia de Sucupira, onde o pescador<br />

Zelão, depois de se salvar do mar revolto que quase o matou, fez à Iemanjá<br />

a promessa de que construiria um par de asas para voar pela cidade a partir<br />

da torre da matriz. Mesmo sendo dispensando pelo padre de cumpri-la,<br />

por tê-la feito a uma entidade do candomblé, Zelão – ao acreditar ter tido<br />

uma visão de Iemanjá – não quis voltar atrás; afinal, isso poderia custar<br />

a sua vida. Na última cena, a personagem cumpriu o prometido. Quando<br />

Tião Moleza anuncia que Zelão vai tentar voar outra vez, os moradores<br />

saíram correndo, aglomeraram-se em frente à Igreja, olharam para o alto e<br />

constataram, espantados, o homem prestes a saltar. Antes do feito, o narrador<br />

explicou que “Zelão fez o sinal da cruz, pediu proteção ao Pai Oxalá, a<br />

Bom Jesus dos Navegantes e a todos os orixás. E então, abriu as asas e<br />

saltou”. Nesse momento a imagem foi congelada em um plano conjunto dos<br />

moradores a olhar sem acreditar no que estava prestes a acontecer. A imagem<br />

recebeu uma coloração em tom sépia de modo a criar uma suspensão e um<br />

distanciamento da realidade do espaço-tempo da narrativa, e a voiceover do<br />

narrador nos disse que, dali em diante, “o que se passa é de ouvir contar e<br />

quem não acredita é um homem sem fé”.<br />

O voo pode ser interpretado como uma metáfora de liberdade e de<br />

luta. Zelão persistiu a trama inteira para realizar seu prometido. Sua luta<br />

foi pela liberdade de escolha religiosa, estabelecendo, assim, um diálogo<br />

com o sincretismo religioso, tão característico da América Latina mestiça<br />

e plural. Esse contexto dotou de sentido o fato de Zelão ter feito sua<br />

promessa na intenção de Iemanjá e querer cumpri-la na torre de uma<br />

Igreja Católica.<br />

20


Aspectos inusitados como esses tornaram-se constantes em muitas<br />

telenovelas posteriores, não só nas de Dias Gomes. Conquanto nossa<br />

análise tome por base uma poética televisual, nossa visão do dispositivo<br />

não prescinde do terreno cultural. Em nosso entendimento o poético é<br />

sempre atravessado por conotações socioculturais e, assim, nosso estudo<br />

inclui as matrizes culturais de uma determinada construção estilística.<br />

<strong>Metodologia</strong>: proposta de articulação entre análise<br />

estilística e análise cultural<br />

Ainda que nossa análise pretenda voltar-se para elementos do estilo<br />

televisivo, torna-se relevante explicitar a premissa que fundamenta nossa<br />

investigação. Em nosso entendimento um produto como a telenovela<br />

deve ser apreciado enquanto uma produção artística, o que significa<br />

reconhecer marcas estilísticas próprias. Contudo, não devemos incorrer<br />

numa abordagem segundo a qual a forma adotada tende a obliterar<br />

o conteúdo compartilhado. Para evitar tal armadilha propomos um<br />

deslocamento que compreenda a telenovela como uma produção artísticocultural<br />

assentada em três pilares: 1) a arte, além de ser desenvolvida<br />

através de uma dinâmica social, está situada no interior da cultura; 2) a<br />

arte não é a única forma autorizada e legítima de experiência cultural; 3)<br />

a cultura não diz respeito às características imanentes ao objeto senão ao<br />

atravessamento de sentido que o objeto instaura e que o torna inteligível<br />

– em outras palavras, a cultura diz respeito à dinâmica comunicacional<br />

que o objeto, enquanto forma de mediação, aciona (MARTÍN-BARBERO,<br />

2001). Conceber uma produção artística enquanto produto cultural<br />

significa reconhecer que a mesma é portadora de uma cosmovisão que<br />

remete a práticas e valores específicos no interior da dinâmica social,<br />

ou seja, a obra oferece um registro dos processos sociais do momento<br />

histórico em que foi gestada.<br />

Como forma de operacionalizar a análise audiovisual, contamos com<br />

a abordagem de Jeremy Butler (2010), realizada em Television Style,<br />

que apresenta um entendimento de estilo como sendo qualquer padrão<br />

técnico de som-imagem que sirva a uma função dentro do texto televisivo<br />

(BUTLER, 2010: 11). Essa definição tem uma dupla importância para os<br />

estudos do estilo em televisão: 1) rejeita concepções que o consideram<br />

21


como a marca da genialidade individual em um texto ou como um floreio<br />

decorativo de camadas acima da narrativa (embora alguns estilos sejam<br />

decorativos); 2) possibilita concluir que todos os textos televisivos contêm<br />

estilo. Ou seja, o estilo pode ser visto como a manifestação física do tema<br />

e da narrativa e esses elementos estão sempre situados culturalmente. Por<br />

isso ele interroga o poder significante do som e da imagem na televisão.<br />

Butler afirma que o estilo existe na interseção de padrões econômicos,<br />

tecnológicos, industriais e códigos semióticos/estéticos.<br />

No exercício empreendido neste capítulo, daremos dois dos quatro<br />

passos da análise de Butler: a descrição do estilo e a função/análise do<br />

estilo. A análise histórica dependeria de um recuo nos programas do<br />

gênero a fim de identificar padrões. Até mesmo Butler entende a análise<br />

avaliativa como problemática pela falta de parâmetros mais específicos<br />

para se julgar a estética televisiva. A descrição seria o que o autor chama de<br />

passo básico. Para discutir estilo, deve-se primeiro ser capaz de descrevêlo.<br />

Embora pareça um passo óbvio, ele é um dos que têm causado muitas<br />

falhas analíticas e teóricas. A descrição do estilo exige que o analista<br />

opte por uma compreensão bem definida do que seja estilo e como<br />

ele funciona em televisão. Butler argumenta que a semiótica oferece o<br />

conjunto mais abrangente de ferramentas para se realizar uma descrição<br />

detalhada do estilo televisivo.<br />

O segundo passo, baseado nos estudos da “teoria funcional do estilo”<br />

no cinema, de Noël Carroll (apud BUTLER, 2010: 17), visa detectar os<br />

propósitos do estilo e suas funções no texto. O trabalho do estudioso do<br />

estilo, assim, constitui-se na desconstrução de como o estilo cumpre uma<br />

função. Butler aponta várias funções do estilo televisivo. Algumas herdadas<br />

do cinema, outras específicas que ele desenvolveu para este medium. São<br />

elas: denotar, expressar, simbolizar, decorar, persuadir, chamar ou interpelar,<br />

diferenciar e significar “ao vivo”. O estilo televisivo pode cumprir várias<br />

delas ao mesmo tempo, mas Butler sustenta que a pretensão de chamar e<br />

manter a atenção do telespectador é primordial em qualquer situação.<br />

Corpus de análise<br />

Para a realização da análise promovemos o agrupamento das<br />

telenovelas nas quais o realismo maravilhoso revelou-se: 1) como fio<br />

22


condutor do enredo; 2) como inspiração ou solução no desenrolar da<br />

narrativa e 3) como figuração nas novelas contemporâneas (a partir de<br />

2010). Esses três grupos levam em conta, também, o período histórico e o<br />

contexto mais amplo de produção e exibição dos produtos. 7<br />

Ainda que mencionemos exemplos de treze novelas, nosso corpus<br />

é constituído por três delas, analisadas em mais detalhes. Todas<br />

foram produzidas pela Rede Globo de Televisão e muitas alcançaram<br />

consideráveis índices de audiência revelando uma grande penetração no<br />

país. Produziram cenas que se tornaram emblemáticas sendo, inclusive,<br />

as selecionadas para uma análise.<br />

O real maravilhoso americano<br />

<strong>Entre</strong> os anos de 1940 e 1970, frente ao esgotamento da narrativa<br />

realista clássica, alguns autores (CARPENTIER, 2010; GARCIA MÁRQUEZ,<br />

1979) seguiram uma trilha própria, por vezes chamada de realismo<br />

mágico, por vezes de realismo maravilhoso, 8 para expor o choque cultural<br />

de uma América Latina encantada pela tecnologia vinda da Europa e dos<br />

Estados Unidos, bem como plural e diversa em virtude de sua origem<br />

múltipla, repleta de crenças e de fatos históricos surpreendentes. Para<br />

Vera L. Follain de Figueiredo (2013: 17)<br />

a vertente da ficção latino-americana que se convencionou chamar<br />

de “realismo maravilhoso” consistiu em uma afirmação identitária da<br />

7<br />

Esse corpus foi constituído a partir de um levantamento realizado em sites especializados em teledramaturgia<br />

(cf. www.teledramaturgia.com; www.memoria.globo.com; www.supertvemais.blogspot.com.br), bem como em<br />

referências bibliográficas que se dedicam a esse tipo de categorização, cf. Caderno Globo e Universidade, Rio de<br />

Janeiro, n.º 3, 2013.<br />

8<br />

Sabemos das controvérsias que envolvem essas noções. Para Vargas Llosa o realismo mágico já não constitui o<br />

traço comum entre os escritores da América Latina: “Há escritores realistas, fantásticos, urbanos, mas também há<br />

alguns na tradição da literatura rural. Talvez um dos poucos denominadores comuns seja a rejeição do realismo<br />

mágico”, emblema da literatura da região. A ideia irrita os escritores mais jovens, algo que Vargas Llosa considera<br />

normal: “O parricídio simbólico é fundamental para que cada nova geração afirme a sua identidade”. O próprio<br />

conceito de realismo mágico sempre lhe pareceu, aliás, “vago” e de um conteúdo “pouco sólido”, quando sob<br />

a sua capa se colocam escritores “tão diferentes” quanto o são, entre outros, o argentino Jorge Luís Borges,<br />

o cubano Alejo Carpentier ou o colombiano Gabriel Garcia Márquez”. Disponível em http://www.publico.pt/<br />

cultura/noticia/mario-vargas-llosa-admite-que-a-literatura-se-torne-marginal-no-futuro-1459876, acesso em 11 abr.<br />

2015. Não negamos as divergências e convergências em torno dessas questões. Preferimos adotar uma posição<br />

que compreende o realismo maravilhoso como um gesto literário e, de algum modo, político de escritores latinoamericanos<br />

que romperam com a narrativa realista. Sendo assim, o realismo maravilhoso pode conter traços do<br />

mágico, do fantástico, do estranho, do sobrenatural e o vemos como uma tentativa de seguir uma nova trilha que<br />

assume certas especificidades.<br />

23


América Latina e, ao mesmo tempo, numa revisão crítica da modernidade<br />

ocidental.<br />

O termo “maravilhoso” já tão consolidado na literatura foi adotado<br />

como predicado do real americano, por ser o que melhor expressa o<br />

fato cultural América Latina, com suas especificidades e características<br />

que a diferenciavam do mundo europeu. Foi Alejo Carpentier (2010)<br />

quem propôs o termo “real maravilhoso americano” ao observar tanto a<br />

dificuldade de nomeação da complexidade deste Continente, por parte<br />

dos exploradores, quanto por desejar expressar uma visão e uma posição<br />

crítica em relação à modernização seletiva e desigual que ocorria no<br />

Continente, já que nesse contexto conviviam o moderno e o arcaico;<br />

a razão, a crença e a imaginação. Para o escritor, a força da cultura da<br />

América Latina estava justamente na sua capacidade de negociar os<br />

contrários, de operar com sua não disjunção, de se identificar em meio a<br />

efetivas misturas e sincretismos. Para Chiampi (1973: 32):<br />

a constituição do real maravilhoso americano, segundo Carpentier, assim<br />

se constitui: a união de elementos díspares, procedentes de culturas<br />

heterogêneas, configura uma nova realidade histórica, que subverte<br />

os padrões convencionais da racionalidade ocidental. Essa expressão,<br />

associada amiúde ao realismo mágico pela crítica hispano-americana, foi<br />

cunhada pelo escritor cubano para designar, não as fantasias ou invenções<br />

do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que singularizaram<br />

a América no contexto ocidental.<br />

O Iluminismo e suas promessas de emancipação humana através<br />

do uso da razão não conseguiu evitar, por exemplo, duas guerras<br />

mundiais nem o horror do holocausto. Isso colocou em xeque a<br />

suposta superioridade europeia e abriu o caminho para que a cultura<br />

latino-americana, que não compartilhava totalmente aquele modelo de<br />

racionalidade, pudesse se erigir sob outras bases, outras temporalidades<br />

e encontrar seu próprio valor, calcado na diferença e não na semelhança.<br />

Para Carpentier (1987:79):<br />

Pela virgindade da paisagem, pela formação, pela ontologia, pela<br />

presença fáustica do índio e do negro, pela revelação que propiciou<br />

sua descoberta, pelas fecundas mestiçagens, a história da América Latina<br />

seria uma crônica do real maravilhoso.<br />

24


Esse foi o cenário de meados do século XX que levou à mencionada<br />

rejeição à narrativa realista europeia, sobretudo no que tange à sua causalidade<br />

e continuidade linear. Na narrativa realista maravilhosa é marcante a<br />

multicausalidade, a transitoriedade de tempos, a autorreferencialidade, a<br />

disjunção dos contrários e o estranhamento. Todas essas características<br />

assumem o propósito de contemplar a realidade sui generis da América<br />

Latina na qual convivem em condições de igualdade o acontecimento<br />

histórico e o mito, a lenda e o milagre. E esses aspectos poderiam ganhar<br />

forma em eventos encantadores, estranhos, insólitos; em metáforas que<br />

revelavam uma riqueza imaginativa que diz muito sobre a resistência desse<br />

povo diante dos fatos e acontecimentos muitas vezes absurdos.<br />

Ao tornar o insólito compreensível e possível, através da construção de<br />

metáforas, o realismo maravilhoso se tornou presente em nossa paisagem<br />

televisiva valendo-se de inúmeras possibilidades para resistir cultural e<br />

simbolicamente às limitações impostas ao Continente pelas mais diversas<br />

circunstâncias. Em que medida o realismo maravilhoso televisivo dá conta<br />

da diversidade cultural de uma América mestiça?<br />

O que queremos evidenciar, portanto, é que o realismo maravilhoso<br />

está presente em nossa televisão, quais seriam suas características e<br />

em que medida a articulação entre uma análise cultural e uma análise<br />

estilística detecta sinais de sua existência.<br />

O realismo maravilhoso nos tempos da ditadura: O Bem<br />

Amado (1973), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985)<br />

Eventos insólitos como o de Zelão, no ano de 1973 em O Bem Amado,<br />

voltaram à televisão na primeira versão da telenovela Saramandaia<br />

(1976), também de Dias Gomes. A história se passou na cidade fictícia<br />

de Bole-Bole e girou em torno da disputa pela mudança de seu nome<br />

para Saramandaia. Envolvidos nessa questão disputavam, de um lado, um<br />

coronel que soltava formiga pelo nariz toda vez que se sentia irritado,<br />

uma mulher que explodiu de tanto comer, um lobisomem que há anos<br />

não dormia, um homem que expunha o coração pela boca, sempre que<br />

ficava nervoso e, de outro, um jovem rapaz que possuía visões do futuro<br />

e escondia sob um colete de gibão um enorme par de asas e uma jovem<br />

virgem que era mal vista porque se incendiava quando se excitava.<br />

25


Essas escolhas por personagens estranhas não foi realizada de forma<br />

aleatória. Gomes admitiu que essa novela “tinha o duplo propósito de<br />

driblar a censura e experimentar uma linguagem nova na TV – o realismo<br />

absurdo” (GOMES apud SALIBA, 2013: 40). Essas personagens com<br />

características insólitas, aliadas à declaração de Gomes, permitem-nos<br />

vincular suas escolhas aos princípios do realismo maravilhoso nos quais<br />

os objetos, seres ou eventos gozam de uma probabilidade e de uma<br />

causalidade internas à diegese do texto. 9 Todas elas são de tal maneira<br />

estranhas aos padrões vigentes que, para compreendê-las, consideramos<br />

pertinente associá-las a esse realismo predicado de maravilhoso e como<br />

ele opera no espaço-tempo das narrativas.<br />

Tomemos como exemplo a personagem João Gibão. Por possuir<br />

um par de asas e o poder de prever acontecimentos futuros, ele se viu<br />

obrigado a esconder sua natureza, por medo de enfrentar a não aceitação<br />

dos outros. Autor do projeto de mudança do nome da cidade, João<br />

liderou o movimento dos “mudancistas” que, na verdade, aspirava por<br />

transformações políticas mais amplas. Durante toda a telenovela ele se<br />

preocupou em aparar suas asas e ocultá-las sob um colete de gibão –<br />

acessório que dá origem a seu apelido. Ao final da trama ele revelou do<br />

que era feita sua corcunda e realizou um voo sobre a cidade.<br />

O voo foi a última cena da novela. 10 Após descobrirem suas asas, João<br />

foi perseguido e encurralado pelo coronel Zico Rosado e seus capangas.<br />

Com medo de morrer, a personagem não hesitou, abriu suas asas e voou.<br />

A cena começou com um close do rosto amedrontado de Gibão que olhou<br />

em volta, soltou a arma da mão e, no momento em que a câmera fez um<br />

movimento de zoom out, preparou-se para voar. Sob olhares espantados<br />

dos seus perseguidores, João iniciou sua aventura. O que se seguiu<br />

foram planos mais fechados de Gibão, realizando seu voo, alternados<br />

com planos mais abertos dos capangas de Zico Rosado, atirando em<br />

sua direção, e com tomadas subjetivas expressando o ponto de vista de<br />

João sobre os moradores a admirar o seu feito. Essa alternância restrita<br />

9<br />

“Diegese” é uma palavra de origem grega que significa “narração”. É utilizada para indicar a instância representada<br />

no filme e na ficção televisiva (além de outros campos da ficção). Assim, por exemplo, tempo diegético é o tempo<br />

representado, ou seja, o tempo vivido pelos personagens (e não o tempo de exibição do produto audiovisual).<br />

10<br />

Cena disponível em: http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/saramandaia-1a-versao-voo-de-joaogibao/2472998/<br />

Acesso em 25 jul. 2016.<br />

26


de planos abertos e fechados nos diz de uma impossibilidade técnica<br />

para operar em uma dimensão visual mais elaborada, fazendo da edição<br />

o recurso estilístico fundamental na construção dessas sequências. O<br />

cruzamento de sensações – da plenitude de João (Fig. 1) e da euforia da<br />

cidade (Fig. 2) – reveladas pela edição nos conduzem a uma interpretação<br />

desse voo como sendo uma metáfora de liberdade. Apenas a partir dessa<br />

articulação, somada aos diálogos enunciados durante o feito, é que nos<br />

foi possível engendrar os sentidos mencionados.<br />

Fig. 1: a plenitude do voo de João<br />

Gibão<br />

Fig. 2: a euforia da cidade de<br />

Saramandaia<br />

É próprio do realismo maravilhoso evitar a contradição entre os<br />

elementos naturais e sobrenaturais. Nele, não faz sentido separar as esferas<br />

do real e do irreal. Seu valor não é referencial mas, sim, metafórico, pois<br />

ele oferece uma outra forma de cognição que se realiza muito mais pelo<br />

questionamento e pelo efeito de encantamento. O realismo maravilhoso<br />

encanta o espectador porque ele não rivaliza o insólito e o real. Porque<br />

maravilhoso, nas palavras de Chiampi (1973: 48),<br />

é o extraordinário, o insólito, o que escapa o curso ordinário das coisas<br />

e do humano (...) O maravilhoso recobre uma diferença não qualitativa,<br />

mas quantitativa com o humano; é um grau exagerado ou inabitual do<br />

humano, uma dimensão de beleza, de força ou riqueza, em suma de<br />

perfeição que pode ser mirada pelos homens. Assim, o maravilhoso<br />

preserva algo do humano em sua essência. A extraordinariedade se<br />

constitui da frequência ou densidade com que os fatos ou os objetos<br />

exorbitam as leis físicas e as normas humanas.<br />

Para Chiampi (1973: 33) os modos de manifestação do realismo<br />

maravilhoso se realizam através de duas ações. Ele altera e amplia o<br />

27


objeto real, bem como revela, ilumina e percebe através de uma operação<br />

mimética da realidade. E Gibão tem asas, o que pode ser visto como<br />

uma alteração do objeto real, pois é evidente que homens não têm asas.<br />

Podemos entender que tal manifestação contribuiu com a percepção do<br />

anseio do povo brasileiro de libertar-se das amarras da ditadura militar<br />

que vigorava neste País.<br />

Além disso, ao operar com a não disjunção dos contraditórios – o real<br />

e o irreal; o natural e o sobrenatural – a narrativa realista maravilhosa<br />

contribuiu para que Gomes pudesse trabalhar o modo pelo qual na<br />

realidade brasileira convivem o moderno e o arcaico – uma das expressões<br />

características de nossa mestiçagem. O ideologema 11 da mestiçagem é<br />

caracterizado pela não disjunção dos componentes culturais da América<br />

Latina – enquanto recorte da combinatória etnossocial gerada pelo<br />

sistema de colonização e, em especial, enquanto modo de assimilação de<br />

modelos contraditórios. Assim como o Caribe de Alejo Carpentier (2010)<br />

ou a Macondo de Gabriel Garcia Márquez (1967), em que pesem as<br />

particularizações regionais ou as do tempo representado, em Saramandaia<br />

ultrapassaram-se limites geográficos e históricos para que os elementos<br />

trabalhados na narrativa soassem como síntese significante da totalidade<br />

de um universo cultural brasileiro. Se Macondo foi a aldeia cuja história<br />

condensa as transformações básicas das sociedades latino-americanas,<br />

Saramandaia foi o microcosmo de um Brasil (e de uma América Latina)<br />

aviltado pela ditadura militar, estruturado sob desigualdades profundas, e<br />

marcado pela contradição em diversos níveis, convivendo com todas elas.<br />

Sobre Gibão, Dias Gomes (2012: 46) afirmou que “sua determinação<br />

de deixar crescer as asas e voar era uma clara alegoria a nosso anseio de<br />

liberdade”. Para Gomes, era necessário tratar das nossas mazelas a partir<br />

de uma narrativa que inserisse uma ruptura na ordem aparentemente<br />

“normal” da época. Sua novela implicou num gesto político: identificar o<br />

Brasil como parte de uma América Latina marcada por um contexto de<br />

violência e repressão e por uma modernização seletiva e marcada pela<br />

contradição. A luta pela liberdade de expressão e pelo livre exercício da<br />

11<br />

A partir das elaborações de Altamirano Carlos, Beatriz Sarlo e Mikhail Bakhtin entendemos ideologema como<br />

“a representação, na ideologia, de um sujeito, de uma prática, de uma experiência, de um sentimento social. O<br />

ideologema articula os conteúdos da consciência social, possibilitando sua circulação, sua comunicação e sua<br />

manifestação discursiva (...). Sendo parte da realidade social e, como representação, elemento do horizonte<br />

ideológico, o ideologema é um significante, uma forma das ideologias sociais”. Cf. CARLOS E SARLO: 1983: 35.<br />

28


política fazia-se urgente. Assim sendo, Saramandaia, mesmo imaginária,<br />

estava inserida naquelas territorialidade e temporalidade precisas.<br />

Saramandaia (1976) foi uma marco na TV brasileira. Ao adotar<br />

o realismo maravilhoso como uma matriz cultural a partir da qual se<br />

configuraram as estratégias de comunicabilidade do produto (MARTÍN-<br />

BARBERO, 2001), surpreendendo em vários momentos, a telenovela<br />

mostrou-se rica de sentidos e conquistou público e crítica.<br />

Já na novela Roque Santeiro (1985) a marca mais forte do realismo<br />

maravilhoso se deu na figura do lobisomem. Professor e diretor do Centro<br />

Cívico da cidade fictícia de Asa Branca, Astromar passou a trama inteira<br />

escondendo sua condição dúbia na esperança de conquistar o amor de<br />

Mocinha. Todavia, as suspeitas sempre se recaíram sobre ele. Por fim, ao<br />

perceber que não terá chances com a eterna noiva de Roque Santeiro,<br />

Astromar acaba transformando-se no lobisomem, numa noite de lua<br />

cheia, no cemitério da Cidade.<br />

Assim, os autores deste continente buscavam novos caminhos,<br />

interpretações (mais do que análises) e compreensões (mais do que<br />

explicações) para esta complexidade da América Latina tecida por<br />

muitos fios como as heranças coloniais; os conflituosos processos<br />

de formação nacional e construção das nacionalidades; os contrastes<br />

internos; a modernização seletiva e as conturbadas relações com Europa<br />

e Estados Unidos.<br />

O realismo maravilhoso na fase Aguinaldo Silva: Tieta<br />

(1989), Pedra Sobre Pedra (1992), Fera Ferida (1993) e A<br />

Indomada (1997)<br />

Embora as ditaduras militares tenham findado na América ao longo<br />

dos anos 1980, traços do realismo maravilhoso continuaram presentes<br />

em diversas produções. Em verdade, a matriz assumiu novas proporções<br />

tanto na literatura quanto na televisão. Todas as novelas selecionadas<br />

neste grupo foram de autoria de Aguinaldo Silva, e seus colaboradores,<br />

que iniciou sua carreira ao lado de Dias Gomes. Na esteira de seus<br />

trabalhos de coautoria com Gomes, Silva ajudou a desenvolver uma nova<br />

forma de adoção na qual o realismo maravilhoso é acionado em função<br />

de outros propósitos. Nossa hipótese é a de que nesse segundo grupo o<br />

realismo maravilhoso afastou-se de algum modo da matriz cultural que<br />

29


lhe deu origem (a América Latina mestiça, maravilhosa e complexa) e foi<br />

privilegiado enquanto estilo, ao articular os elementos audioverbovisuais<br />

mais em função do desenrolar das tramas do que como forma de inserir<br />

questionamento ou ruptura no cotidiano dos telespectadores.<br />

Como exemplo podemos citar a telenovela A Indomada (1997), que<br />

se passou na fictícia cidade nordestina de Greenville, colonizada pelos<br />

ingleses mantendo tradições e costumes desse povo. O enredo tratou<br />

da disputa entre a mocinha órfã Helena e sua ambiciosa tia Maria Altiva<br />

pela herança deixada pelo patriarca da família Menezes de Albuquerque<br />

e perdida no jogo por Pedro Afonso, marido de Altiva. O detentor da<br />

fortuna era o forasteiro Teolbado Faruk que, tendo sido apaixonado pela<br />

mãe da protagonista, promete devolver-lhe o patrimônio. Tal promessa<br />

causou a ira de Altiva – uma vilã soberba, preconceituosa e temida – que<br />

tentou impedir que Helena recebesse o que é seu.<br />

Nesse folhetim o que guardou afinidade com realismo maravilhoso<br />

foi o modo como vários acontecimentos foram abordados. Citemos como<br />

exemplos o do delegado Motinha, que caiu num buraco, foi parar no<br />

Japão e reapareceu com uma gueixa; o de Emanuel, que se transformou<br />

em anjo e sobrevoou a Cidade; aquele em que apareceu uma lua cheia<br />

dupla, e o acontecimento que será objeto de nossa análise, a morte da<br />

vilã Maria Altiva.<br />

Tudo começou quando Altiva tentou matar Helena, incendiando<br />

uma cabana onde a mocinha estava. Antes que o fogo se alastrasse,<br />

Helena foi salva por Teobaldo enquanto a vilã ficou presa em meio às<br />

chamas, recusando ajuda, afirmando que era imortal. Diante do fogo<br />

e da recusa de Altiva, Teobaldo desistiu de socorrê-la e explicou para<br />

Helena sua reação.<br />

A cabana explodiu diante de policiais impotentes e, durante o<br />

incêndio, Altiva proclamou sua imortalidade por se considerar acima do<br />

bem e do mal. Enquanto a madeira ia sendo consumida pelo fogo, um<br />

dedilhar de piano nos anunciava que algo para além da realidade nos<br />

seria apresentado. Raios emanavam de dentro da cabana e gargalhadas da<br />

vilã ecoavam pelos ares. Aos poucos, uma fumaça roxa ia sendo formada<br />

e um movimento vertical de câmera em direção ao céu nos permitiu<br />

acompanhar a transformação dessa fumaça no espírito da vilã que, em<br />

30


meio a sorrisos malévolos, toma o céus de Greenville. Os moradores<br />

começaram a sair de suas casas e se aglomerar na praça. Um plano geral<br />

se formou e, dentro dele, 2/3 foram tomados pela imagem da vilã dentro<br />

da nuvem de fumaça, evidenciando sua empáfia, oprimindo a tudo e a<br />

todos (Fig. 3). Diante de semblantes perplexos, Altiva promete: “I’ll be<br />

back. Me aguardem, eu voltarei”.<br />

Fig. 3: Altiva sobre a cidade de Greenville<br />

Nessa cena, podemos perceber que os realizadores optaram por<br />

representar visualmente uma desencarnação de modo a engrandecer<br />

a figura da personagem que pairava no céu da Cidade. Seu espírito<br />

ameaçador se espalhou sobre todos do mesmo modo com o qual sua<br />

arrogância e sua maldade se espalhavam enquanto ela era viva. O<br />

realismo maravilhoso foi adotado no sentido de exorbitar a dimensão<br />

da personagem, de mostrar que sua maldade estava para além dos<br />

limites humanos. Encarnar o espírito de Altiva numa grande nuvem<br />

foi a opção estilística encontrada para simbolizar sua soberba e<br />

prepotência.<br />

31


As demais novelas dessa “fase Agnaldo Silva” também nos parecem<br />

adotar o realismo maravilhoso não em função de propósitos de uma<br />

crítica política, mas, sim, enquanto forma estilística a colaborar no<br />

desenvolvimento do enredo. Em Tieta (1989), a personagem Perpétua<br />

foi cegada pela heresia que presenciou: sua irmã na cama com seu<br />

filho que era padre. Em Pedra sobre pedra (1992), a personagem<br />

Sérgio Cabeleira, ao sentir forte atração pela lua, terminou literalmente<br />

sugado pelo satélite. Já em Fera Ferida (1993), Flamel transformava<br />

tudo o que tocava em ouro, inclusive sua amada Linda Inês.<br />

Pode o realismo maravilhoso figurar temas da política<br />

contemporânea?<br />

Durante os anos 2000, o realismo maravilhoso sofreu uma retração<br />

na paisagem televisiva. Nesse período, o que pudemos perceber foi que<br />

algumas telenovelas apresentaram um ou outro elemento que guarda<br />

afinidade com essa matriz. Assim, tramas como Um anjo caiu do céu<br />

(2001), Porto dos Milagres (2001), Da cor do pecado (2004), Sete pecados<br />

(2008), Tempos modernos (2010) fizeram referência ao sincretismo<br />

religioso, ao onírico, às lendas e crendices para contar sua histórias, e<br />

analisá-las foge aos propósitos deste artigo.<br />

Em 2013, a TV Globo investiu numa segunda versão de Saramandaia.<br />

Escrita por Ricardo Linhares, a novela recente apresentou tanto as<br />

mesmas quanto novas alegorias. Mas seu sentido se revestiu de outras<br />

possibilidades frente ao contexto contemporâneo de sua produção.<br />

Acreditamos que essa última análise de nosso corpus é a que mais<br />

congrega as dimensões que definem o realismo maravilhoso enquanto<br />

uma matriz estético-cultural. Isso porque essa nova versão tanto tematizou<br />

questões do universo político, porém inseridas num contexto mais amplo,<br />

quanto procurou fazê-lo através de alegorias percebidas na configuração<br />

de elementos visuais.<br />

Em Saramandaia (2013) permaneceram as questões que motivaram<br />

as tramas e as personagens principais. O que houve de novo foi a<br />

inclusão de mais figuras cujas características geraram estranhamento.<br />

Um fazendeiro que, ao manter-se recluso e sentado durante todo o<br />

tempo em uma poltrona, criou raízes que se espalharam pelo chão;<br />

e uma senhora de quase noventa anos que conversava com galinhas<br />

32


imaginárias que a acompanhavam por toda parte e que só eram vistas<br />

por ela e pelo telespectador. Sobre a nova versão, Linhares esclareceu<br />

que “se Dias Gomes usou a novela, na sua época, como metáfora da<br />

ditadura militar, eu a transformei na metáfora da ditadura da intolerância,<br />

na qual continuamos vivendo, e talvez ainda continuemos por muito<br />

tempo” (LINHARES, 2013: 60).<br />

Falar em intolerância nos remete à discussão contemporânea sobre<br />

o multiculturalismo (TAYLOR, 1994). Em linhas gerais uma política<br />

multicultural visa motivar o reconhecimento mútuo e, para tanto,<br />

envolve um misto de políticas universais e políticas da diferença. As<br />

pessoas que almejam sua autorrealização lutam tanto por sua dignidade<br />

quanto para que suas particularidades sejam reconhecidas. Diferença,<br />

portanto, nos conduz aos conceitos de pluralidade, multiplicidade<br />

e heterogeneidade e nos sugere que o encontro e a convivência<br />

respeitosa entre as diferenças são fundamentais para o exercício da<br />

tolerância mútua.<br />

Isso pode ser refletido através da sequência de análise que mostrou<br />

o voo de João Gibão. Ele namorava Marcina e sempre escondeu dela e<br />

dos demais sua condição diferente, apesar da insistência da moça em ver<br />

sua corcunda. A atitude de João de ocultar a todo custo sua “diferencice”<br />

demonstra que a intolerância ainda está presente em nossa sociedade em<br />

relação àquele que foge dos seus padrões. Por isso torna-se interessante<br />

ressaltar a importância de Marcina ter aceito e se encantando por seu<br />

namorado quando este decidiu lhe revelar sua esquisitice. Ao ser aceito,<br />

João deixou de ser “outro”, ou seja, aquele que foge dos padrões e que<br />

“está de alguma forma diferente significativamente da maioria – ‘eles’<br />

em vez de ‘nós’” (HALL, 1997: 229).<br />

Numa sequência posterior, motivado pela aceitação de Marcina,<br />

Gibão correu feliz pelas ruas da cidade e, do alto de uma pedra,<br />

realizou seu primeiro voo na trama. Essa cena começou com um plano<br />

geral no qual estavam enquadradas a pedra, a lua cheia, as nuvens no<br />

céu e João, no instante do salto. 12 Ao som de Pavão Mysteriozo, Gibão<br />

sobrevoou Saramandaia também com expressão de plenitude (Fig. 4).<br />

12<br />

Cena disponível em: http://globotv.globo.com/rede-globo/saramandaia/v/gibao-voa-feliz-e-tem-uma-visaoassustadora-com-a-sua-morte/2793660/<br />

Acesso em 25 jul. 2016.<br />

33


Em virtude das possibilidades trazidas pelos novos recursos técnicos,<br />

foi possível construir essa sequência baseada predominantemente em<br />

planos gerais que, ao mostrarem a agilidade do voo em tela, valorizam<br />

os movimentos da personagem pelo céu da cidade simbolizando o<br />

sentimento de liberdade vivenciado naquele momento (Fig. 5).<br />

Fig. 4: João Gibão sobrevoav Saramandaia<br />

Fig. 5: Movimentos de João pelo céu<br />

A aceitação de Marcina foi uma condição de possibilidade do voo<br />

de João. Em termos de uma política da diferença, o reconhecimento<br />

pelo outro é parte fundamental da garantia da plena realização das<br />

capacidades e da autorrelação íntegra de um sujeito, pois as identidades<br />

são construídas intersubjetivamente (HONNETH, 2003). Somente num<br />

ambiente em que as diferenças são respeitadas e mutuamente aceitas<br />

é que o indivíduo pode se desenvolver completamente. Nesse sentido,<br />

Charles Taylor (1994) concebe a democracia como a única via para que<br />

o reconhecimento recíproco seja efetivamente alcançado, oferecendo<br />

aos sujeitos condições para que consigam lidar com os dilemas entre<br />

igualdade e diferença.<br />

Considerações finais<br />

É o valor metafórico do real maravilhoso americano que nos permite<br />

indagar sobre o modo pelo qual a linguagem narrativa tenta sustentar<br />

uma suposta identidade da América no contexto ocidental. E quais seriam<br />

as características dessa linguagem evidenciadas em nossa análise?<br />

Ao falar das características do realismo maravilhoso como uma<br />

renovação do instrumental do realismo, Chiampi (1973) enumera alguns<br />

traços que conformam as experiências técnicas mais frequentes. Embora<br />

a autora tenha em mente o texto literário, acreditamos ser possível<br />

34


compartilhar de algumas quando se trata de pensar as inovações na<br />

linguagem televisiva.<br />

No conjunto de novelas do primeiro período, vislumbramos nas<br />

representações construídas algo da consciência da dimensão histórica<br />

tanto do Brasil quanto da América Latina, incluindo traços que compõem<br />

esse universo como a mestiçagem, o hibridismo e a resistência. Ademais,<br />

nesse e nos demais períodos analisados, foi possível identificar outras<br />

características inovadoras tais como a supressão dos nexos de causa e<br />

consequência; a fragmentação da pessoa narrativa e o diálogo com o<br />

telespectador (como foi o caso do narrador voiceover de O Bem Amado);<br />

as personagens que possuem características insólitas, mas não causam<br />

nenhum espanto nas demais; o tom de humor e ironia; e a língua marcada<br />

pelos neologismos, jogos de palavras e bordões.<br />

Enquanto gênero literário, o projeto do realismo maravilhoso era o de<br />

produzir um questionamento sistemático do romance e da atividade de<br />

escrita, além de exercer uma crítica contundente da tradição literária que<br />

visava estabelecer uma linguagem totalizadora da experiência cultural<br />

específica dos latino-americanos (CHIAMPI, 1973). Enquanto matriz<br />

estética e cultural, adotada pela televisão, ele tanto criou oportunidades de<br />

um questionamento do momento histórico e político do Continente dos<br />

anos de 1960 e 1970, quanto se mostrou fértil às inúmeras apropriações<br />

que os realizadores fizeram no desenrolar da trama também do ponto de<br />

vista da configuração visual, com a criação de cenas emblemáticas que<br />

ficaram na memória dos telespectadores brasileiros.<br />

O estilo contribuiu para o enriquecimento da percepção dos sentidos<br />

que cada metáfora quis trabalhar. Nesse ponto reforçamos nossa definição<br />

do realismo maravilhoso enquanto matriz cultural, mas também estética,<br />

que contribui para a configuração de representações do real na cultura<br />

latino-americana. A dimensão visual das cenas mostrou-se muito adequada<br />

ao propósito dessa narrativa. O insólito, o estranho, o exagero tornam-se<br />

muito mais potentes quando flagrados também em uma composição visual.<br />

O voo como metáfora da liberdade, o sincretismo religioso, as relações de<br />

opressão e poder, a intolerância, os gestos de resistência são algumas das<br />

marcas que se manifestaram em mais de uma obra aqui analisada.<br />

Ademais, algumas marcas ficcionais das telenovelas aqui analisadas<br />

guardam afinidade com outras narrativas midiáticas e não midiáticas, que são<br />

35


identificadas como realistas maravilhosas. É possível estabelecer aproximações<br />

entre elas e a pintura de Frida Kahlo; a literatura de Gabriel Garcia Márquez,<br />

como Cem anos de Solidão (1967) e A triste história de Cândida Erêndira e<br />

sua avó desalmada (1972) e os romances de Jorge Amado, como O sumiço<br />

da Santa (2010). <strong>Entre</strong> os elementos em comum citamos as cidades fictícias,<br />

os neologismos e as metáforas. Essas intertextualidades e afinidades nos<br />

permitem evidenciar a força e a presença de mitos antigos e recentes, lendas<br />

e crenças que estruturam o imaginário coletivo e as maneiras como dialogam<br />

com as instâncias reais, históricas, políticas e culturais às quais pertencemos<br />

e que sustentam uma noção de latinidade.<br />

Referências<br />

AMADO, Jorge. O sumiço da santa. SP: Cia das Letras, 2010.<br />

BUTLER, Jeremy. Television style. New York & London: Routledge, 2010.<br />

CARLOS, Altamirano; SARLO, Beatriz. Literatura/sociedad. Buenos Aires: Libreria Edicial, S/A. 1983.<br />

CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. SP: Martins Fontes, 2010.<br />

CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. SP: Revista dos Tribunais, 1987.<br />

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. SP: Perspectiva, 1973.<br />

FIGUEIREDO, Vera Lúcia Foullain. Realismo maravilhoso: o realismo de outra realidade. Caderno<br />

Globo Universidade, n.º 3, tema: Realismo Mágico no Século XXI. BETING, Graziella; JEBAILI, Paulo.<br />

(Eds). RJ: Globo, 2013.<br />

GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Fantasía y creación artística en América Latina y el Caribe. Texto Crítico,<br />

jul.-set. 1979, n.º 14, p. 3-8. Centro de Investigaciones Linguistico-Literarias. Universidad Veracruzana,<br />

México. Disponível em : http://bir.ly/14HQi5g, acesso em 11 abr. 2014.<br />

GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. A triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. RJ: Record, 1972<br />

GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. RJ: Record, 1967.<br />

GOMES, Dias. O Brasil é um país que ridiculariza o absurdo. <strong>Entre</strong>vista publicada no Suplemento<br />

Literário de Minas Gerais, em 22.06.1982. In: GOMES, Luana e GOMES, Mayra (Orgs.). Encontros<br />

Dias Gomes. RJ: Beco do Azougue, 2012.<br />

HALL, Stuart. Representation. London: Routledge, 1997.<br />

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. SP: Editora 34, 2003.<br />

LINHARES, R. <strong>Entre</strong>vista concedida ao Caderno Globo e Universidade, n.º 3, tema: Realismo Mágico<br />

no Século XXI. BETING, Graziella; JEBAILI, Paulo. (orgs.) RJ: Globo, 2013.<br />

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. RJ: UFRJ, 2001.<br />

SALIBA, Elias Thomé. Os tons da comédia em Saramandaia. Caderno Globo Universidade, n.º 3,<br />

tema: Realismo Mágico no Século XXI. BETING, Graziella; JEBAILI, Paulo (orgs.) RJ: Globo, 2013.<br />

TAYLOR, Charles. (1994). The politics of recognition. In: GUTMANN, Any.<br />

(org.), Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton/Chichester: Princeton<br />

University Press, p. 25-73.<br />

36


Discussões acerca do pós-moderno, da<br />

contemporaneidade e da (proto) transmidiação em<br />

Twin Peaks 13<br />

Rogério Ferraraz e<br />

Maria Ignês Carlos Magno 14<br />

A partir de uma conversa sobre diferentes narrativas envolvendo<br />

cidades nos romances e nos filmes e mais propriamente sobre as<br />

formas como a vida urbana era descrita por autores modernistas e<br />

pós-modernistas, acabamos enredados em uma discussão sobre o<br />

surrealismo. Logo, veio um questionamento que nos motivou: como<br />

os surrealistas estruturaram suas narrativas na literatura, no cinema e,<br />

por que não, na televisão? A partir daí, o centro de nossas discussões<br />

passou a ser a série televisiva Twin Peaks (EUA, 1990-1991), de David<br />

Lynch e Mark Frost, mais especificamente o universo lynchiano e<br />

a estrutura narrativa dessa série. Como o debate se ampliou para<br />

questão das narrativas transmídia, decidimos nos dedicar ao estudo<br />

ampliado da série expandida, além de propor uma análise de como<br />

Lynch trouxe para a televisão várias características pós-modernistas,<br />

mas com grande influência do surrealismo, em um programa narrativo<br />

ficcional, e tentar apreender também a contemporaneidade já presente<br />

naquela obra, especialmente aspectos ligados às experiências online e<br />

à chamada cultura participativa.<br />

Do moderno ao pós-moderno<br />

Quando Lynch e Frost lançaram Twin Peaks na TV aberta,<br />

causando, como já demonstraram autores como Cássio Starling<br />

13<br />

Este capítulo é decorrente do trabalho “A contemporaneidade de/em Twin Peaks (1990-1991): a junção entre<br />

o moderno e o pós-moderno no jogo (proto) transmidiático do seriado criado por David Lynch e Mark Frost”,<br />

aprovado pelo Grupo de Trabalho Cultura das Mídias do XXIII Encontro Anual da Compós, ocorrido na<br />

Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. O texto não chegou a ser apresentado porque<br />

os autores não puderam comparecer ao evento por razões médicas.<br />

14<br />

Rogério Ferraraz: professor do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, doutor em Comunicação e<br />

Semiótica (PUC-SP), e-mail: rogerioferraraz@anhembimorumbi.edu.br. Maria Ignês Carlos Magno: professora do<br />

PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, doutora em Ciências da Comunicação (USP), e-mail: unsigster@<br />

gmail.com . Ambos os autores integram o grupo de pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira.<br />

37


Carlos (2006), Jean-Pierre Esquenazi (2011), David Lavery (1995),<br />

entre outros, uma revolução nas narrativas seriadas no início dos<br />

anos de 1990, 15 o pensamento teórico-acadêmico ainda andava às<br />

voltas com os acirrados debates sobre o novo cenário histórico que<br />

emergia e com uma de suas mais polêmicas temáticas: a discussão<br />

sobre os conceitos de modernidade e pós-modernidade nos mais<br />

diferentes campos do conhecimento, como a literatura, as artes<br />

plásticas, as ciências sociais, a música, a arquitetura, o cinema e<br />

a filosofia. Se a expressão “modernidade” era estudada, entre<br />

outros aspectos, na sua ambiguidade, uma vez que podia, segundo<br />

Haroldo de Campos (1989: 65), ser tomada tanto de um ponto de<br />

vista diacrônico, historiográfico-evolutivo, como através de uma<br />

perspectiva sincrônica, aquela que corresponde a uma poética<br />

situada, necessariamente engajada no fazer de uma determinada<br />

época, e que constitui o seu presente em função de certa “escolha”<br />

ou construção do passado, a expressão “pós-modernidade” também<br />

era buscada desde suas origens linguísticas e usos.<br />

Os estudiosos voltavam ao contexto dos estudos literários hispanoamericanos,<br />

desde o ano de 1934, e anglo-americano, a partir de 1940. O<br />

termo conheceu, a partir dos anos de 1960, uma difusão cada vez maior,<br />

primeiro nos EUA, sobretudo, segundo Michael Köhler:<br />

como termo da crítica literária, depois também como crítica da arte e<br />

da cultura. É expressão de uma compreensão transformada da nossa<br />

época, e neste sentido opõe-se ao conceito de Moderno na arte e<br />

àquele do que ‘pertence à idade moderna’ na historiografia em geral<br />

(KÖHLER, 1989: 9).<br />

Das primeiras críticas ligadas à arquitetura modernista e o desejo de<br />

romper com aquele estilo e substituir o que consideravam de excesso de<br />

cimento por uma nova forma de pensar o espaço, escritores e arquitetos<br />

nos anos de 1960 optaram pelo uso do termo “pós-moderno”. No início<br />

dos anos de 1970, o conceito se cristalizou, conforme explica Steven<br />

Connor, quando:<br />

15<br />

Além dos autores mencionados, vale ressaltar que a importância da série Twin Peaks para a história da televisão<br />

norte-americana (e mundial), como marco de transformações estéticas e narrativas, foi analisada no artigo “O<br />

mundo estranho de Twin Peaks: um pequeno marco nos seriados de televisão” (FERRARAZ, 2007), decorrente de<br />

paper apresentado no GT Mídia e <strong>Entre</strong>tenimento do XVI Encontro da Compós, em junho de 2007.<br />

38


afirmações sobre a existência desse fenômeno social e cultural tão<br />

heterogêneo começaram a ganhar força no interior e entre algumas<br />

disciplinas acadêmicas e áreas culturais, na filosofia, na arquitetura, nos<br />

estudos sobre cinema e assuntos literários (CONNOR, 1993: 13).<br />

Foi, no entanto, o texto de Jean-François Lyotard, A Condição Pós-<br />

Moderna, de 1979, que inaugurou um espaço polêmico sobre a temática,<br />

principalmente, quando Jürgen Habermas respondeu a ele dizendo que<br />

o pós-moderno corresponderia a uma forma de neoconservadorismo. De<br />

acordo com Eduardo Campos Coelho, a discussão profunda e acirrada<br />

entre franceses e alemães seguiu até:<br />

Albrecht Wellmer, em 1985, distinguir entre um pós-modernismo conservador<br />

e um pós-modernismo libertador e acaba por propor uma espécie de síntese<br />

não necessariamente dialética entre o espírito da modernidade e o sentido<br />

afirmativo pluralista da pós-modernidade. (COELHO, 1989: 5)<br />

Os anos 1980 fizeram, então, a passagem de um pós-moderno ligado<br />

a lances específicos da cultura contemporânea para um debate chamado<br />

de pós-moderno filosófico. O centro do debate estava na crítica da falência<br />

do projeto moderno constituído, segundo Sébastien Charles,<br />

com base em grandes narrativas, as metanarrativas (sociedade sem<br />

classes, felicidade universal, realização do espírito, emancipação dos<br />

indivíduos) que não funcionam mais e cujo esvaziamento gerou a<br />

crise de uma História concebida como um caminho único e universal<br />

(CHARLES, 2009: 19-20).<br />

Embora a polêmica tenha contado com diferentes pensadores<br />

que orientaram os debates referentes à pós-modernidade nos seus<br />

aspectos políticos, econômicos e sociais, como Fredric Jameson<br />

e Jean Baudrillard, além do próprio Lyotard, muitos outros autores<br />

participaram das polêmicas até o momento em que, conforme aponta<br />

Coelho (1989: 5), as discussões e usos do conceito entraram numa<br />

“espécie de cansaço ou impaciência” por volta de 1986, quando o<br />

próprio Lyotard passou a ter maior precaução no uso do termo no texto<br />

A pós-modernidade explicada às crianças, para acabar por recusar o<br />

próprio vocábulo em O inumano (1997). A partir de 1989, propunhase<br />

o abandono puro e simples da palavra em função dos excessivos<br />

equívocos. De acordo com Eduardo Prado Coelho (1989), quem aponta<br />

39


isso é Guy Scarpetta, em L’impureté, posteriormente corroborado por<br />

Omar Calabrese (1999), em A idade neobarroca, para quem havia pelo<br />

menos três acepções, assim resumidas: o pós-moderno como retorno ao<br />

passado na modalidade paródia ou pastiche; o pós-moderno como fim<br />

das grandes narrativas da história; o pós-moderno como revolta contra<br />

o Modernismo (e seu funcionalismo e racionalismo). É claro que cada<br />

uma dessas acepções comportava uma infinidade de outros debates,<br />

sendo um deles a necessidade de rever os excessos, as contradições e<br />

as fragilidades conceituais da pós-modernidade como, por exemplo,<br />

a do desaparecimento das grandes narrativas que bastava aos pósmodernos<br />

para falarem da liquidação do projeto moderno e que não<br />

levava em conta toda a complexidade da sociedade contemporânea.<br />

Ou o da marca representativa da modernidade, ou seja, a cultura da<br />

novidade e da mudança, que perdeu seu atrativo inicial:<br />

o culto que dedicaram os modernistas à arte praticamente não encontra<br />

mais adeptos, a fórmula “fazer da sua vida uma obra de arte” perdeu<br />

seu charme, os combates vanguardistas de hoje empolgam somente os<br />

especialistas da arte contemporânea (CHARLES, 2009: 20).<br />

Nesse quadro quase de combate entre defensores e opositores do<br />

conceito de pós-modernidade, muitas vozes surgiram e se impuseram<br />

nos debates não pela oposição ou alinhamento, mas porque entenderam<br />

a pós-modernidade numa outra perspectiva. Um deles foi o crítico<br />

literário Ihab Hassan, cuja posição particular na discussão sobre a<br />

pós-modernidade foi fundamental para a compreensão do conceito.<br />

Segundo Connor:<br />

um dos problemas mais evidentes para quem quiser tentar extrair da<br />

obra de Hassan uma definição do que o pós-modernismo poderia<br />

ser é a sua resoluta insistência em que o “espírito pós-moderno<br />

está enrodilhado no grande corpo do modernismo” (CONNOR,<br />

1993: 93-94).<br />

Nesse pós-moderno “enrodilhado no grande corpo do modernismo”,<br />

é que podemos pensar o conjunto das obras de David Lynch e,<br />

particularmente, pensar a contemporaneidade de Twin Peaks no contexto<br />

da pós-modernidade.<br />

40


Não se trata de pensar a produção de Lynch a partir de Hassan, 16<br />

nem de estabelecer relações da produção lynchiana com o que possa ser<br />

estritamente moderno ou pós-moderno, porque uma das características<br />

de sua obra está exatamente na ausência de hierarquia entre movimentos,<br />

modelos e escolas, mas propor uma análise, ou mesmo uma discussão,<br />

de como Lynch traz essas características para a televisão, e mais<br />

especificamente para uma rede aberta, a ABC, em horário nobre, 21h.<br />

O universo lynchiano<br />

É claro que, à primeira vista, a explicação pode parecer simples,<br />

ligada ao fato da formação de Lynch, 17 e de seu vasto conhecimento<br />

das vanguardas artísticas; quando centramos o olhar para essas ligações,<br />

é claro que percebemos afinidades e influências entre artistas que ele<br />

admirava e sua produção, não só artistas plásticos e literários. 18 Ou,<br />

se vamos aos estudos dos movimentos e de suas propostas, também<br />

observamos que Lynch, embora tenha o surrealismo muito presente em<br />

16<br />

Em 1982, Ihab Hassan reviu suas primeiras posições sobre modernismo-pós-modernismo. De acordo com<br />

Steven Connor: “The Dismemberment of Orpheus contém um ‘Posfácio’ acrescentado na edição de 1982 que<br />

faz um movimento diferente. Embora continue a afirmar não haver ruptura absoluta entre o modernismo e<br />

o pós-modernismo, já que a ‘história é um palimpsesto e a cultura é permeável ao tempo passado, presente,<br />

futuro’ (TPL, 264), Hassan agora tem muito mais confiança para estabelecer os termos que permitam ver o pósmodernismo<br />

como oposto ao modernismo, e não como reformulação dele.” (CONNOR, 1993: 94).<br />

17<br />

Por volta dos dezoito anos, David Lynch decidiu estudar pintura no Corcoran School of Art, em Washington DC,<br />

e acabou dividindo um pequeno apartamento com seu amigo Jack Fisk, que posteriormente acabaria se tornando<br />

um colaborador frequente nos primeiros trabalhos audiovisuais do diretor. Eles moraram por pouco tempo<br />

juntos, pois Lynch mudou-se e foi estudar no Boston Museum School, onde ficou durante um ano. Decidiu viajar,<br />

junto com Fisk, para a Europa, onde pretendiam permanecer por três anos estudando artes plásticas. Ele tinha<br />

dezenove anos na época. Lynch conseguira uma carta de recomendação de um professor de pintura do Boston<br />

Museum School e iria estudar com o pintor Oskar Kokoschka. A viagem de Lynch e Fisk, no entanto, durou<br />

apenas quinze dias. De volta aos EUA, Lynch trabalhou em casas de arte, em lojas de molduras, enfim, teve vários<br />

empregos, mas não permanecia muito tempo em nenhum deles. Conseguiu, então, entrar para a Pennsylvania<br />

Academy of Fine Arts, na Filadélfia, em 1965, seguindo conselho de Fisk. Dois anos depois, em 1967, inspirado<br />

por artistas como Francis Bacon e Edward Hopper, Lynch concluiu o curso apresentando uma coleção de pinturas<br />

em que as cores escuras e pesadas predominavam. Sua única decepção era que, infelizmente, seus quadros, suas<br />

imagens não se movimentavam. Daí ao cinema foi um passo. Para outras informações, ver FERRARAZ (2003).<br />

18<br />

Lynch sempre declarou seu fascínio pelos cinemas de vanguarda, como deixou claro no documentário que<br />

escreveu e narrou para o programa Arena, da rede BBC, em 1987, por ocasião do impacto causado por seu filme<br />

Veludo azul (Blue Velvet, EUA, 1986), na Europa. No documentário, chamado David Lynch Presents Ruth, Roses<br />

and Revolver (título inspirado no episódio “Ruth Roses and Revolvers” escrito por Man Ray para o filme-coletânea<br />

Dreams that Money Can Buy, dirigido por Hans Richter, em 1947), Lynch citava alguns filmes que marcaram sua<br />

formação artística e acadêmica, feitos por alguns dos mais importantes artistas do século, segundo ele. Na lista de<br />

Lynch estavam <strong>Entre</strong>ato (Entr’acte, França, 1924), de René Clair, Emak Bakia (Reino Unido, 1927), de Man Ray,<br />

Sangue de um poeta (Le sang d’um poète, França, 1932), de Jean Cocteau, o próprio Dreams that Money Can Buy<br />

(EUA, 1947), entre outros. Para outras informações, ver FERRARAZ (2003).<br />

41


sua obra, 19 escapa à total filiação a essa ou aquela escola, tanto no tocante<br />

aos estilos como às ideias ou mesmo às ideologias que sustentavam os<br />

diferentes movimentos da vanguarda. O que fica evidente na sua produção<br />

é a constante experimentação, característica essencial da modernidade e<br />

das vanguardas artísticas. Pensando nessa característica do movimento<br />

modernista em geral e das vanguardas em especial, pensamos que Twin<br />

Peaks pode ser discutido como um exemplo de experimentação artística<br />

em um dos meios de comunicação de massa ao qual “parece não existir<br />

um modernismo pré-existente satisfatório” (CONNOR, 1993: 109).<br />

Aqui está um dos aspectos interessantes e talvez uma das entradas<br />

para entendermos como e por que Twin Peaks revolucionou a forma de<br />

fazer programa para TV aberta. Ainda na esteira de Connor:<br />

a TV e o vídeo abrangem, tal como o filme, os dois mundos da cultura<br />

de massa da cultura minoritária de vanguarda. Outro modo de dizê-lo é<br />

que o vídeo exemplifica de maneira particularmente intensa a dicotomia<br />

pós-moderna entre estratégias disruptivas de vanguarda e os processos<br />

mediante os quais essas estratégias são absorvidas e neutralizadas. É a<br />

própria familiaridade da TV e a disseminação global do conhecimento<br />

da TV, tanto na produção como no consumo, que fazem essa questão<br />

da transgressão e incorporação ressurgir com tal persistência violenta<br />

(CONNOR, 1993: 129).<br />

Mas, antes de continuarmos nessa discussão, vale resgatar um pouco<br />

o histórico e o enredo da série. Em 1990, mesmo ano em que recebeu a<br />

Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, por Coração selvagem<br />

(Wild at Heart, EUA, 1989), o cineasta David Lynch criou, para a rede<br />

de televisão norte-americana ABC, a série Twin Peaks, em parceria com<br />

Mark Frost, que já havia trabalhado na TV nos anos oitenta, colaborando<br />

na série Hill Street Blues (1981-1987). Twin Peaks tornou-se logo um<br />

sucesso e uma mania nos Estados Unidos. Uma pergunta se espalhou<br />

rapidamente entre os telespectadores norte-americanos desde a noite<br />

de 08 de abril daquele ano, quando foi ao ar o episódio piloto: “Quem<br />

matou Laura Palmer?”. A série teve, em sua primeira temporada, oito<br />

episódios, incluindo o piloto. O sucesso da primeira temporada fez com<br />

que o programa tivesse continuação e os novos episódios começaram<br />

19<br />

As relações entre os trabalhos de Lynch e a estética surrealista foram bastante estudadas e analisadas por<br />

FERRARAZ (1998; 2001) e apontadas por CAÑIZAL (2006), entre outros autores.<br />

42


a ir ao ar a partir de 30 de setembro daquele mesmo ano – até ser<br />

encerrado em 10 de junho de 1991, no 30.º episódio, após perder<br />

público e entrar em declínio de audiência. 20<br />

A trama se passa na pequena cidade madeireira de Twin Peaks,<br />

próxima à fronteira com o Canadá, onde é encontrada morta, envolta<br />

por um saco plástico, a garota mais popular do lugar: a jovem Laura<br />

(Sheryl Lee, que também interpreta a prima de Laura, Maddy). 21 Um<br />

agente especial do FBI, Dale Cooper (Kyle MacLachlan), é chamado<br />

para comandar as investigações, junto com o xerife local, Harry Truman<br />

(Michael Ontkean). A partir daí, tem início um verdadeiro desenrolar<br />

de fatos inusitados e sinistros e acontecimentos fantásticos, que acabam<br />

mostrando que todos ali têm algo a esconder. Assim, para solucionar o<br />

assassinato, o agente terá que descobrir o lado oculto e os segredos dos<br />

indivíduos de Twin Peaks – e também os seus próprios, iniciando um<br />

mergulho em sua subconsciência e inconsciência, marcado formalmente<br />

pelas suas gravações em fita cassete a uma suposta (e desconhecida)<br />

Diane. Dale Cooper contará com métodos incomuns, num caso que<br />

envolverá tanto personagens vivos quanto espíritos.<br />

Para se compreender a riqueza de Twin Peaks, deve-se buscar<br />

subsídios em diversas áreas, como, por exemplo, a História da Arte,<br />

a do Cinema e a da Televisão. Além disso, é importante observar<br />

também como a série liga-se a outras obras de Lynch, o que o insere<br />

num projeto criativo e complexo muito maior, que parece propor uma<br />

espécie de quebra-cabeça audiovisual em que as peças vão sendo<br />

espalhadas aos poucos por diversas mídias diferentes. Todo esse<br />

amalgama estético, artístico e narrativo foi um dos diferenciais que<br />

fizeram da série objeto de culto e de reflexão e que acabou, inclusive,<br />

influenciando programas posteriores, como Carnivàle (2003-2005),<br />

Bates Motel (2013-), entre outros.<br />

20<br />

Uma nova temporada de Twin Peaks, a ser escrita e dirigida por David Lynch, está anunciada para 2016 pelo canal<br />

norte-americano Showtime, vinte e cinco anos após o término abrupto da série.<br />

21<br />

A entrada em cena de Madeleine “Maddy” Ferguson, prima de Laura – que já está morta –, vivida pela mesma<br />

atriz, Sheryl Lee, faz lembrar tanto a reaparição da personagem Laura, interpretada por Gene Tierney, no<br />

filme noir Laura (EUA, 1944), de Otto Preminger, quanto a entrada em cena de Judy, que antes usava o nome<br />

Madeleine, vivida por Kim Novak, em Um corpo que cai (Vertigo, EUA, 1958), de Hitchcock. A escolha de Lynch<br />

de usar o mesmo nome para sua personagem é uma espécie de homenagem a Hitchcock, um de seus cineastas<br />

de referência – vale lembrar que Ferguson era também o sobrenome de Scottie, o personagem de James Stewart,<br />

amante de Madeleine/Judy, no mesmo filme.<br />

43


Twin Peaks é parte da construção de uma obra maior, lynchiana. 22<br />

Trata-se de um conjunto de produções que estabelecem uma espécie de<br />

jogo, interno com as referências, e externo, com a cultura participativa<br />

(dos fãs) e a chamada inteligência coletiva na sociedade emergente. A<br />

importância da série para esse novo contexto da cultura midiática foi<br />

apontada por Henry Jenkins em nota de rodapé de seu livro Cultura da<br />

convergência (2008), denominada “Flashback de Twin Peaks”. Tratava-se,<br />

conforme Jenkins, do primeiro fenômeno da TV ligado às possibilidades<br />

que a era da internet criava.<br />

São vários os elementos constitutivos desse jogo lynchiano.<br />

Em suas obras, por exemplo, verificam-se experimentações com a<br />

fragmentação da língua, de forma análoga ao que ele faz com a própria<br />

linguagem audiovisual. No quadro So This Is Love (1992), observase<br />

a utilização das letras maiúsculas separadas formando o título da<br />

obra, desenhadas como se fossem datilografadas em pequenos papéis<br />

recortados. Um motivo linguístico recorrente em muitos quadros de<br />

Lynch, como Ants In My House (1990) ou Red Headed Party Doll<br />

(1990), foi também utilizado em obras audiovisuais, desde um de<br />

seus primeiros curtas, The Alphabet (1968), até, e principalmente, em<br />

Twin Peaks e em Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer, em<br />

que o espírito assassino BOB (Frank Silva), cujo nome original era<br />

Robertson, insere as letras R, B, e T (RoBerTson) embaixo das unhas<br />

de suas vítimas, numa macabra e narcísica forma de marcar a autoria<br />

de seus crimes.<br />

Nas obras de Lynch, acontece um retorno ao passado, que aparece<br />

quase sempre idealizado – mas uma idealização que parece falsa,<br />

envolvida em uma atmosfera quase sempre sinistra, acabando por<br />

causar angústia e inquietação. Assim ocorre também na série Twin<br />

Peaks. Lynch é fascinado pelos anos de 1950, e isso fica evidente em<br />

22<br />

Se ficarmos apenas com os longas dirigidos por Lynch para o cinema, até a exibição de Twin Peaks na televisão,<br />

temos: Eraserhead (EUA, 1977), O homem elefante (The elephant man, EUA, 1980), Duna (Dune, EUA, 1984),<br />

Veludo azul (Blue velvet, EUA, 1986) e Coração selvagem (Wild at heart, EUA, 1990). Após a exibição da série:<br />

Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks – Fire walk with me, EUA, 1992), A estrada perdida<br />

(Lost highway, EUA, 1997), História real (The straight story, EUA, 1999), Cidade dos sonhos (Mulholland Dr.,<br />

EUA, 2001) e Império dos sonhos (Inland empire, EUA, 2006). Vale ressaltar que o longa Twin Peaks – Os últimos<br />

dias de Laura Palmer, filme posterior ao programa televisivo, conta com uma trama que se passa antes dos<br />

acontecimentos do enredo vistos na série. Essa estratégia também compôs o cardápio (proto) transmidiático do<br />

universo ficcional Twin Peaks.<br />

44


suas obras. No entanto, a forma com que esse passado é inserido<br />

na diegese 23 causa estranhamento, pois os elementos típicos daquele<br />

tempo idealizado são utilizados fora de seu contexto. As histórias,<br />

geralmente, passam-se no tempo presente, mas as paisagens imagéticas<br />

e sonoras não condizem com ele, pois fazem alusão a uma época<br />

passada.<br />

Essa verdadeira obsessão de Lynch pelos anos 1950 não é negada por<br />

ele, como mostra nessa entrevista a Ana Maria Bahiana:<br />

Sou louco pelos anos 50 e tudo o que se refere aos anos 50. Mas, para<br />

mim, quando eu me refiro aos anos 50, tanto em imagem quanto em<br />

som, estou me referindo na verdade a uma lembrança dos anos 50 (...)<br />

Uma coisa nostálgica (BAHIANA, 1996: 42)<br />

Essa mistura de universos artísticos e estilísticos e de ícones de<br />

épocas distintas – com destaque aos anos cinquenta na obra de Lynch<br />

–, numa visão ao mesmo tempo nostálgica e crítica, pode ser vista,<br />

conforme vimos, como uma das características da chamada arte pósmoderna.<br />

É interessante observar a forma como o próprio Lynch, em junho de<br />

1995, quando começou a trabalhar no roteiro de A estrada perdida (Lost<br />

highway, EUA, 1997), descreveu o que viria a ser o filme, evidenciando a<br />

mistura de gêneros e o jogo com a questão temporal:<br />

Um filme de horror noir do século 21.<br />

Uma investigação gráfica sobre crises de identidade paralelas.<br />

Um mundo onde o tempo está perigosamente fora de controle.<br />

Um passeio aterrorizante pela estrada perdida.<br />

David Lynch<br />

Junho de 1995<br />

(LYNCH E GIFFORD, 1997: 3 – tradução dos autores)<br />

23<br />

Seguimos aqui o conceito trabalhado no livro A estética do filme: “A diegese é, portanto, em primeiro lugar, a<br />

história compreendida como pseudomundo, como universo fictício, cujos elementos se combinam para formar<br />

uma globalidade. A partir de então, é preciso compreendê-la como o significado último da narrativa: é a ficção<br />

no momento em que não apenas ela se concretiza, mas também se torna una.” (AUMONT et al., 1995: 114).<br />

45


A mistura de gêneros observada em A estrada perdida e descrita<br />

pelo próprio Lynch não é exclusiva dessa obra. Em praticamente todos<br />

os seus filmes e particularmente em Twin Peaks, dada a natureza do<br />

programa televisivo, Lynch trabalha com temas e características de<br />

gêneros variados, adicionando, ainda, elementos intertextuais, como<br />

referências aos seus outros trabalhos e citações a filmes de outros<br />

cineastas e a programas de TV.<br />

A apresentação que Michael Atkinson faz de Veludo azul (mas que<br />

poderia muito bem ser sobre Twin Peaks também) atenta para essa<br />

complexidade das obras de David Lynch:<br />

um filme de estúdio hollywoodiano da década de 80 tão radical,<br />

visionário e cabalístico quanto qualquer produção de vanguarda; um<br />

filme cult misteriosamente simbólico e subterrâneo, que apesar disto<br />

conta com estrelas reconhecíveis e distribuição ampla; um “quadro de<br />

gênero” com a ambiência de um temível e hiper elaborado pesadelo; um<br />

“filme de arte” americano feito pelo único diretor conceituado de “filme<br />

de arte” de Hollywood (ATKINSON, 2002: 11).<br />

É interessante observar que Veludo azul, com frequência, foi apontado<br />

como exemplo de filme pós-moderno. Autores como Arthur Kroker<br />

e Michael Dorland afirmam que “Veludo azul é a imagem cinemática<br />

perfeita para cultura pós-moderna” (KROKER & DORLAND, 1993: 11), 24<br />

apontando ainda que: “Veludo azul é o mundo pós-moderno. Aqui,<br />

apenas os predadores, como Frank [personagem de Dennis Hopper], tem<br />

energia e podem fazer as coisas acontecerem” (KROKER & DORLAND,<br />

1993: 11). 25 Não por acaso, Frank será comparado ao assassino BOB<br />

(Frank Silva) de Twin Peaks por Chris Rodley, no livro de entrevista que<br />

fez com Lynch em 1997 (LYNCH & RODLEY, 1997: 144).<br />

Sobre essas personagens extremadas e complexas (muitas vezes<br />

aproximando-se da fantasmagórica aparição do duplo, o doppelgänger)<br />

que habitam o universo lynchiano, 26 vale ressaltar o que o próprio Lynch<br />

24<br />

Tradução dos autores. Texto original: “Blue Velvet is a perfect cinematic image for a postmodern culture.”<br />

25<br />

Tradução dos autores. Texto original: “Blue Velvet is the postmodern world. Here, only the the predators, like Frank,<br />

have energy and can make things happen.”<br />

26<br />

O caso de BOB e Dale Cooper em Twin Peaks talvez seja o mais intrigante, pois eles são, respectivamente, o vilão<br />

e o herói do programa. No entanto, são opostos que se completam. Nada mais pertinente que a série terminar<br />

com o espírito de BOB se apossando do duplo de Cooper. No trigésimo e último episódio, dirigido por Lynch e<br />

46


falou sobre um de seus quadros. Na tela I See Myself (1992), o artista<br />

mostra duas figuras de mesmo formato e cores diferentes, divididas<br />

por uma linha diagonal, funcionando como uma espécie de fronteira<br />

especular entre elas.<br />

Do culto à cultura participativa<br />

A construção de um universo próprio e particular, como essa feita por<br />

Lynch, é uma das características da chamada obra de culto, que pode,<br />

sem dúvida, ser aplicada aos trabalhos de Lynch. Na introdução do livro<br />

Full of Secrets: Critical Approaches to Twin Peaks (1995), que organizou<br />

sobre a série, David Lavery recorre às colocações de Umberto Eco sobre o<br />

assunto. Uma das regras apontadas por Eco, como um requisito para que<br />

uma obra se torne cultuada, é justamente sua capacidade de:<br />

proporcionar um mundo totalmente equipado para que seus fãs possam<br />

citar personagens e episódios como se fossem aspectos do mundo sectário<br />

privativo dos próprios fãs, um mundo sobre o qual se podem fazer testes<br />

e jogos de trívia para que os adeptos dos segredos reconheçam, uns<br />

através dos outros, uma experiência compartilhada (ECO apud LAVERY,<br />

1995: 7). 27<br />

Twin Peaks talvez seja a peça central desse “mundo próprio” criado<br />

por David Lynch. Ele e Mark Frost acabaram também alimentando a<br />

paixão dos fanáticos seguidores, lançando um “guia turístico” chamado<br />

Welcome to Twin Peaks: access guide to the town (LYNCH, FROST,<br />

WURMAN, 1991), o livro O diário secreto de Laura Palmer: visto por<br />

Jennifer Lynch (LYNCH, 1996), escrito por Jennifer Lynch, filha do diretor,<br />

e Dale Cooper: minha vida, minhas gravações / como foram ouvidas por<br />

escrito por Mark Frost, Harley Peyton e Robert Engels (este último seria, posteriormente, autor, junto com Lynch,<br />

do roteiro de Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer), Cooper entra no Black Lodge (uma espécie de salão<br />

de outro mundo, um lugar habitado por personagens bizarros e atormentados que, possivelmente, são espíritos),<br />

para tentar salvar sua namorada, Annie Blackburn (Heather Graham), levada para lá por Windom Earle (Kenneth<br />

Welsh), inimigo do agente do FBI. Numa longa, bela e memorável sequência, Cooper entra e sai de diversos<br />

quartos, atravessando as cortinas vermelhas que os separam e encontrando diversos personagens da estória. Num<br />

desses momentos, o anão, ou o Man from Another Place (Michael J. Anderson) – que parece ser o comandante<br />

daquele lugar – anuncia: “Doppelgänger!” Vê-se, então, surgir outro Cooper, o seu duplo, que passa a perseguir<br />

o primeiro. É o doppelgänger que, ao final, sai do Black Lodge com Annie e é resgatado pelo xerife Truman<br />

(Michael Ontkean), que não percebe tratar-se de um duplo.<br />

27<br />

Tradução dos autores. Texto original: “provide a completely furnished world so that its fans can quote characters<br />

and episodes as if they were aspects of the fan’s private sectarian world, a world about which one can make up<br />

quizzes and play trivia games so that the adepts of the secret recognize through each other a shared experience.”<br />

47


Scott Frost (FROST, 1991), as transcrições das fitas cassete do agente Dale<br />

Cooper, escritas por Scott Frost, um dos roteiristas de Twin Peaks. Essa<br />

estratégia, aliada ao fato de esse “mundo” ter sido exibido pela televisão,<br />

tornou a série justamente objeto de culto: por muitos anos foi editada<br />

uma revista sobre o programa, chamada Wrapped in Plastic – frase dita<br />

por Pete Martell (Jack Nance), no início do episódio piloto, quando ele<br />

liga para a delegacia para afirmar que encontrou o corpo de uma garota<br />

morta envolta em um saco plástico, que vem a ser Laura Palmer; são<br />

feitas convenções anuais de fãs de Twin Peaks, na cidade onde a obra<br />

foi gravada, em que atores, roteiristas e diretores da série são convidados<br />

para dar conferências; até hoje, a série é citada e/ou homenageada por<br />

vários programas televisivos, como a série Psych (2006-2014) e o desenho<br />

animado Scooby-Doo! Mystery Incorporated (2010-2013), entre outros.<br />

Essa forte relação que se criou entre a série e os fãs é justamente a<br />

questão central daquela discussão iniciada por Henry Jenkins (2008). 28<br />

Naquele texto, Jenkins relata como foi sua introdução à internet e às<br />

comunidades de fãs através da alt.tv.Twin Peaks, em 1991, e o que<br />

representou a série tanto para a televisão aberta como para a entrada<br />

da sociedade e da cultura na era da internet e os debates sobre as<br />

comunidades do conhecimento, uma nova discussão que começava na<br />

época. 29<br />

Para Jenkins, porém, Twin Peaks não era importante apenas pela<br />

formação de grupos de discussão e fãs que criavam listas e se articulavam<br />

para trocar informações pela rede. Para o autor, o importante era o fato<br />

de a lista funcionar como um espaço onde as pessoas podiam, juntas,<br />

colher as pistas e examinar as especulações sobre o gancho central da<br />

narrativa – quem matou Laura Palmer? Importante também porque Twin<br />

Peaks era a obra perfeita para uma comunidade baseada no computador,<br />

combinando a complexidade narrativa de um mistério com os complexos<br />

28<br />

Jenkins já havia discutido o caso de Twin Peaks em texto anterior, “‘Do You Enjoy Making the Rest of Us Feel<br />

Stupid?’: alt.tv.Twin Peaks, theTrickster Author, and Viewer Mastery”, publicado no livro Full of Secrets: Critical<br />

Approaches toTwin Peaks (LAVERY, 1995).<br />

29<br />

Sobre este aspecto específico, da série Twin Peaks servir como uma espécie de embrião do que mais tarde se<br />

configuraria como narrativas transmidiáticas, os autores deste paper escreveram o artigo “Para além dos episódios,<br />

diários e fitas cassetes: a (proto) transmidiação em Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost”, para a coletânea<br />

resultante de projeto interdisciplinar e interinstitucional financiado pelo Edital CAPES/PROMOB e FAPITEC<br />

(MAGNO E FERRARAZ, 2014).<br />

48


elacionamentos de personagens de uma soap opera, 30 e uma estrutura<br />

serializada que deixava muita coisa não resolvida e sujeita a debates e,<br />

principalmente, pela descoberta do que era trabalhar em grupo, com a<br />

força conjunta de milhares de pessoas tentando desvendar o que viam<br />

na televisão.<br />

Enquanto a comunidade online estava fascinada com a descoberta<br />

da força do trabalho em grupo e com as possibilidades apresentadas<br />

pelo videocassete para o estudo detalhado da trama, dois acontecimentos<br />

colocaram a série à prova, segundo Jenkins: de um lado os críticos<br />

reclamavam que a série estava tão complicada a ponto de se tornar<br />

incompreensível à medida que a temporada avançava; de outro, os fãs<br />

reclamavam que Twin Peaks estava se tornando muito óbvio.<br />

Twin Peaks, portanto, ao mesmo tempo em que é parte de uma obra<br />

maior, lynchiana, é também uma produção dos anos 1990, sendo, dessa<br />

forma, parte de um conjunto de trabalhos que compunham a produção e<br />

as discussões sobre a chamada pós-modernidade ou da modernidade tardia,<br />

como querem alguns teóricos, bem como parte da nova era da internet e da<br />

emergência de uma sociedade em que as experiências online e a realidade<br />

virtual passaram a fazer parte de nossa vida e realidade. De acordo com<br />

Vicente Gosciola, apoiando-se em estudos de Hans Ulrich Gumbrecht:<br />

[...] três conceitos podem nos auxiliar a compreender essa realidade.<br />

O conceito da destemporalização que nos situa na diluição do<br />

passado, presente e futuro; o de destotalização que reconhece o fim<br />

das teorias que tentam individualmente explicar tudo, da globalização<br />

e dos etnocentrismos presentes em qualquer tipo de análise; e o de<br />

desreferencialização que nos explica a perda de referências, em<br />

que a objetividade na representação do mundo exterior é abrandada<br />

(GOSCIOLA, 2012: 7).<br />

30<br />

Expressão em inglês que designa esse tipo de narrativa seriada televisiva nos Estados Unidos, que se aproxima<br />

um pouco do formato da telenovela. Curioso observar que dentro do universo ficcional de Twin Peaks, os<br />

personagens também acompanhavam a trama de uma soap opera chamada Invitation to Love, que acabava<br />

dialogando com os acontecimentos amorosos, sexuais e criminosos da própria cidade de Twin Peaks, em uma<br />

espécie de construção metalinguística. Além disso, vale ressaltar que há uma recriação/homenagem no final<br />

da primeira temporada de Twin Peaks, quando o agente Dale Cooper leva um tiro na porta de seu quarto no<br />

hotel: trata-se de uma espécie de citação/homenagem ao final da terceira temporada da soap opera Dallas (EUA,<br />

1978-1991), que apresentou um dos ganchos mais surpreendentes da televisão mundial, elevando o suspense ao<br />

máximo com o protagonista da história, J.R. Ewing (Larry Hagman), levando um tiro na última cena (não se sabe<br />

quem atirou, por qual motivo, o que acontece com J.R., se vive ou se morre, entre outras perguntas que ficam no<br />

ar, até o início da quarta temporada).<br />

49


Se acompanharmos o texto de Gosciola sobre a narrativa transmídia<br />

e os três conceitos expostos e pensarmos em Twin Peaks a partir desses<br />

conceitos, podemos reconhecê-los em vários aspectos e momentos da<br />

série.<br />

Em Twin Peaks, embora não haja propriamente a diluição total<br />

dos tempos, eles aparecem embaralhados. Lynch trabalha com a<br />

simultaneidade dos tempos históricos, os três tempos (passado, presente<br />

e futuro) concomitantemente, reforçando uma vez mais uma ligação<br />

com o surrealismo, pois essa era uma das características daquela estética<br />

(ressignificada na contemporaneidade). Trata-se de uma forma de mostrar<br />

também que mesmo sabendo que a história tem uma linearidade, pois<br />

tem começo, meio e fim (ainda mais se tratando de uma narrativa seriada<br />

ancorada nos moldes da soap opera e das séries de mistério), a linearidade<br />

é atravessada por outros tempos narrativos.<br />

Já a destotalização pode ser percebida desde o enredo até as escolhas<br />

dramatúrgicas e narrativas. Como resume Ferraraz ao descrever o<br />

programa:<br />

Uma premissa intrigante, que serve como ponto de partida para<br />

um seriado marcado por diversas tramas que se entrelaçam. Vários<br />

personagens centrais, cada um com uma história pregressa secreta e<br />

repleta de passagens obscuras que, aos poucos, vai sendo revelada.<br />

Acontecimentos estranhos, bizarros, que se sucedem, envolvendo<br />

praticamente todos os personagens. Perguntas sem respostas; poucas<br />

certezas, muitas dúvidas (FERRARAZ, 2007: 1).<br />

Twin Peaks trazia diversas tramas e personagens principais, o<br />

que favorecia os desdobramentos da história em múltiplas narrativas<br />

complementares, oferecidas nas mais diferentes mídias e telas. Essas<br />

relações com a narrativa transmídia e os conceitos de Gumbrecht (apud<br />

GOSCIOLA, 2012) são exemplos não só da contemporaneidade da série,<br />

mas uma marca característica da obra de Lynch, uma obra aberta, em<br />

que as questões podem ou não ser solucionadas, parte delas são e outras<br />

continuam indefinidas.<br />

Quanto à desreferencialização, a perda de referências e de objetividade<br />

na representação do mundo em Lynch não se relaciona não apenas<br />

à noção de falta de um mundo concreto, ideia diretamente ligada às<br />

50


concepções de realidade virtual e comunidades online, mas é um dos<br />

universos sobre o qual Lynch constrói seus trabalhos. Lynch realiza obras<br />

audiovisuais limítrofes, que se encontram nas fronteiras do ilusionismo e<br />

do anti-ilusionismo, da narrativa clássica e das propostas de vanguarda,<br />

do cinema comercial e do filme experimental. Ele tanto explora as<br />

convenções narrativas quanto promove uma renovação da linguagem<br />

audiovisual.<br />

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51


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52


Um bocadinho de chão: estilo televisivo, terra e<br />

figurações de mando em Renascer e O rei do gado 31<br />

Reinaldo Maximiano Pereira 32<br />

Introdução teórico-metodológica<br />

Neste capítulo, o esforço de investigar as marcas do estilo televisivo<br />

se concentra na análise das operações visual e sonora para a construção<br />

de sentidos sobre as relações de poder e subjugação em cenas extraídas<br />

das telenovelas Renascer (1993) e O rei do gado (1996), assinadas por<br />

Benedito Ruy Barbosa, e dirigidas por Luiz Fernando Carvalho. Nosso<br />

objetivo é, por meio de análise estilística (Butler, 2010), interpretar como<br />

foram figuradas a temática da terra e as personificações de estruturas<br />

de mando nessas telenovelas, bem como a evocação de elementos da<br />

cultura popular e do melodrama.<br />

Compreendemos a tevê a partir do Circuito da Televisão, tal proposto<br />

por Jason Mittell (MITTELL, 2010: 9), que reúne seis dimensões: indústria<br />

comercial, instituição democrática, forma textual, representação cultural,<br />

prática cotidiana e meio tecnológico. 33 Dessas, a dimensão das formas<br />

textuais enseja uma maior atenção no campo dos estudos da televisão,<br />

pois tem sido negligenciada. Pesquisadores, como Renato Pucci Jr. (2014) e<br />

Simone Maria Rocha, Matheus Luiz Couto Alves; Lívia Fernandes de Oliveira<br />

(2013) consideram a forma textual como fundamental para entender a<br />

televisão, hoje, uma vez que os produtos desse meio mostram-se cada vez<br />

mais elaborados em termos das estratégias de composição audiovisual.<br />

Nesse sentido, observar as telenovelas, especificamente, como<br />

produções artístico-culturais implica em reconhecer as marcas do estilo<br />

31<br />

Este capítulo é um recorte do projeto de tese cujo título é Um bocadinho de chão: uma investigação sobre o tema<br />

da terra na teledramaturgia de Benedito Ruy Barbosa e suas ramificações na cultura, a partir de uma análise<br />

televisual, e corresponde a um primeiro investimento de análise a partir da obra de Barbosa.<br />

32<br />

Doutorando do PPGCOM/UFMG, integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades<br />

(COMCULT).<br />

33<br />

Mittell analisa a função da TV na cultura dos EUA, mas essas dimensões podem ser observadas, também, na<br />

sociedade brasileira, respeitando-se as diferenças culturais.<br />

53


decorrentes de um esforço coletivo, ou seja, a união de expertises em<br />

diferentes estágios da produção (fotografia, sonoplastia, cenários,<br />

figurinos) e as estratégias sincréticas de composição do produto televisivo,<br />

as mestiçagens (MARTÍN-BARBERO, 2009) e hibridismos que tornam mais<br />

complexas as ficções seriadas televisivas.<br />

Segundo Jeremy Butler (2010: 21), considerar o potencial artístico dos<br />

produtos televisivos e adentrar na análise estilística requer reconhecer<br />

que o estilo existe e deixa marcas nos textos televisivos que não são<br />

meros “adornos” na composição audiovisual, em determinados casos.<br />

Assim, é, pois, preciso a compreensão de que TV é texto (palavra-somimagem)<br />

e prática cultural; de que a TV tem operacionalizações próprias<br />

e é dotada de capacidade de reelaboração de seus padrões, processo<br />

produtivos e de construção de narrativas complexas, em dado contexto<br />

(MITTELL, 2012: 33).<br />

De acordo com Butler, o estilo na televisão diz da “rede que mantém<br />

juntos seus significantes e através do qual os seus significados são<br />

comunicados” (2010: 15). 34 Assim, para discutir o estilo televisivo devemos<br />

ser capazes de descrevê-lo. Para isso, Butler enumera quatro dimensões<br />

de análise: 1) a descritiva, com a colaboração da semiótica; 2) a analítica,<br />

a partir da interpretação da análise fílmica; 3) a avaliativa, com auxílio da<br />

estética para avaliar a composição do texto (palavra-som-imagem); 4) a<br />

histórica que requer um recuo histórico para identificar marcos do estilo<br />

televisivo.<br />

Iremos nos concentrar na dimensão descritiva, pois segundo Butler,<br />

sobre ela podem ser construídas as dimensões interpretativa e a estética.<br />

Ainda de acordo com o autor, a análise histórica 35 se estende para a<br />

investigação de padrões e para isso é preciso num recuo nos programas<br />

televisivos. Por ora, isso não se ajusta à economia deste texto.<br />

Ainda para efeito dessa reflexão, destacamos a vertente latino-americana<br />

dos Estudos Culturais, sobretudo as proposições de Jesús Martín-Barbero<br />

34<br />

Do original: “style is their texture, their surface, the web that holds together their signifiers and through which their<br />

signifiers are communicated.” Tradução do autor.<br />

35<br />

Destacamos a importância dessa dimensão, em termos do recuo histórico, para identificar marcos do estilo<br />

televiso e iniciamos um percurso, nesse sentido, ao tentar organizar e categorizar as obras de Barbosa, como<br />

aparece mais ao final do capítulo.<br />

54


acerca do conceito de mediação e sua importância conceitual para os<br />

estudos de televisão. De acordo com Martín-Barbero (2009), para estudar<br />

o modo como os indivíduos interagem com as mensagens midiáticas, é<br />

preciso considerar suas interações no contexto cultural, as mediações<br />

entre a comunicação, a cultura e a política.<br />

Ao considerarmos as mediações, observamos a telenovela “por<br />

seu significado cultural” e por configurar um inventário de produções que<br />

permitem “entender a cultura e sociedade de que é expressão” (LOPES,<br />

2004: 125). Martín-Barbero (2009) compreende a telenovela como um<br />

gênero latino-americano, derivado do melodrama dos teatros populares<br />

ingleses e franceses, do século 18, que aportou em Havana no século 19,<br />

converteu-se em radionovela no século 20 e vem, hoje, se caracterizando<br />

como uma instância de mediação cultural e mestiçagem.<br />

A telenovela, como os demais gêneros televisivos, alia a capacidade<br />

de hibridização (CANCLINI, 1999) ao aprimoramento técnico e artístico<br />

(MORIN, 2002). Em termos de experiência de sociabilidade, segundo<br />

Lopes (2009: 28), a telenovela “aciona mecanismos de conversação,<br />

de compartilhamento e de participação imaginária”. No que concerne<br />

aos cruzamentos de fronteiras entre as matrizes culturais populares, a<br />

telenovela circunscreve-se em um universo de significação e intervenção,<br />

onde a audiência, no processo de recepção, reconhece e reinterpreta<br />

hábitos e valores representados na trama (LOPES, 2002).<br />

Neste sentido, filiamos nossa perspectiva, também, às proposições<br />

de Mittell (2010) para compreender a televisão e seus produtos como<br />

categoria cultural caracterizada pela hibridização, em termos criativos e<br />

estilísticos. Segundo o autor, esse hibridismo complexifica as narrativas<br />

seriadas, e deve ser compreendido a partir das operações próprias da TV.<br />

Para Mittell, essa complexidade é potencializada pelo esgarçamento das<br />

práticas institucionalizadas do meio e pelo trânsito com outros regimes<br />

de narrativas audiovisuais.<br />

Dessa forma, nossa análise tenta se debruçar sobre os elementos do<br />

estilo televisivo (Butler, 2010) e o potencial artístico da televisão, em<br />

oposição à perspectiva, tradicional nos estudos de TV, que observa esse<br />

meio apenas como transmissivo. Ao filiarmo-nos às proposições de<br />

Butler, estamos ainda admitindo a existência do estilo na televisão e que<br />

55


ele interage o contexto sociocultural. Assim, o estilo, em vez de ser uma<br />

marca individual do diretor ou do autor, seria proveniente de um esforço<br />

de equipe.<br />

Análise das cenas: Quem manda e quem obedece?<br />

Para o exercício da análise descritiva foram colhidas duas cenas<br />

que confrontam uma personagem de posses e uma personagem sem<br />

posses em negociação que envolve concessão de terra. Os excertos são<br />

das telenovelas Renascer 36 e O rei do gado 37 que integram o grupo que<br />

nomeamos como Histórias de fazendeiros. 38 A cena de Renascer reúne<br />

o coronel Zé Inocêncio (Antônio Fagundes) e Tião (Osmar Prado).<br />

Inocêncio é o protagonista, cujo passado é incerto. Inocêncio chegou à<br />

zona cacaueira de Ilhéus (BA), em algum momento do ciclo do cacau,<br />

onde toma posse de uma extensão de terra, elimina inimigos por meio<br />

de tocaia e prospera ao longo dos anos. Conhecido como “coronelzinho”,<br />

por ser o mais jovem dos mandões locais, Zé Inocêncio é visto como um<br />

homem justo. Na meia idade, sobre ele recaem lendas como a de ter sido<br />

costurado vivo, na juventude, de ter o corpo fechado e de possuir um<br />

Cramulhão a quem deve a prosperidade.<br />

Já a personagem Tião é um ex-catador de caranguejos que se transfere<br />

com a família, a mulher Joaninha (Tereza Seiblitz) e os dois filhos, para<br />

a zona do cacau na esperança de melhorar de vida. Ele se emprega<br />

na fazenda do coronel Teodoro (Herson Capri), rival de Zé Inocêncio.<br />

Na região, Tião toma conhecimento da mística que cerca Inocêncio: em<br />

época da florada do cacau, o coronel monta num bode preto que voa<br />

e urina sobre a plantação, aumentando a produtividade, lenda que Zé<br />

Inocêncio não rechaça. Iletrado e crédulo, Tião recorre à intercessão do<br />

coronel para que este lhe ensine a forma de criar um Cramulhão para<br />

ter “um bocadinho de chão”, como a personagem diz. Esse é o mote da<br />

36<br />

Exibida pela TV Globo entre 8 de março e 14 de novembro de 1993. A reprise foi exibida pelo Canal Viva (Canais<br />

Globosat) entre 7 de novembro de 2012 e 5 de setembro de 2013.<br />

37<br />

A telenovela Renascer foi exibida pela TV Globo entre 16 de junho de 1996 e 15 de fevereiro de 1997. A reprise<br />

foi exibida pelo Canal Viva (Canais Globosat) entre 9 de fevereiro de 2011 e 30 de novembro de 2011.<br />

38<br />

As temáticas relacionadas à terra (posse, propriedade, negociações, grilagens, herança, etc.) são mais que<br />

recorrentes na teledramaturgia de Barbosa, elas são transversais. Essa constatação nos permite categorizar a<br />

obra do dramaturgo e criar grupos específicos de acordo com a natureza da produção (roteiro original e roteiro<br />

adaptado), como veremos ao final do capítulo.<br />

56


cena do capítulo 25, exibido em 5 de abril de 1993, cujos frames estão<br />

destacados na Imagem 1.<br />

Imagem 1 – Telenovela Renascer, capítulo 25: No diálogo entre Tião e o coronel Zé<br />

Inocêncio, a alternância de planos fechados e médios e de perfis de personagens entre<br />

vítima e clown (Tião) e entre justiceiro e traidor (o coronel).<br />

O cenário é sala da casa-grande da fazenda de Zé Inocêncio. A primeira<br />

linha corresponde aos primeiros 4 minutos da cena. Nela observamos<br />

a alternância de planos fechados e médios que mostram Tião em pé,<br />

segurando o chapéu junto ao peito, em posição de reverência ao coronel<br />

a quem ouve atentamente. Zé Inocêncio, por sua vez, está sentando em<br />

sua poltrona de patriarca, onde permanece dando as instruções, com o<br />

dedo indicador em riste denotando a postura de mando. No primeiro<br />

minuto, há uma trilha incidental, sons de instrumentos de percussão<br />

africanos que conferem tensão à cena e auxiliam na ambiência mística.<br />

Nos minutos seguintes o diálogo prossegue sem background (BG). O<br />

coronel enfatiza que o que está em cena é um negócio, uma troca, e que<br />

jamais o conteúdo da conversa deve ser revelado, pois isso comprometeria<br />

o pacto. A primeira recomendação é a de criar uma galinha preta que<br />

nunca tenha sido “galada”. Segundo o coronel, o primeiro ovo que ela<br />

botar será do diabo, numa noite de Sexta-feira Santa, e jamais poderá tocar<br />

o chão. As recomendações seguintes são: cortar o pescoço da galinha,<br />

fazer o sangue jorrar em torno da casa e chocar o ovo na axila esquerda,<br />

por 21 dias e 21 noites. Neste momento, o ingênuo Tião faz cara de<br />

espanto, e num gesto cômico, olha para a axila esquerda e profere com<br />

seu sotaque: “Debaixo do suvaco? Mas’ié?”<br />

57


Há algo do maravilhoso que a cena deste diálogo enseja, pois o<br />

estatuto demiúrgico da posse é atribuído pela população local ao coronel,<br />

assim seu poderio não é questionado. A lenda local de que Inocêncio<br />

“plantou” seu facão aos pés de um jequitibá-rei e que ele não morrerá<br />

enquanto o facão e a árvore lá estiverem encontram respaldo no fato de o<br />

coronel ter sobrevivido ileso de diversas tocaias. De acordo com Irlemar<br />

Chiampi (1980), o realismo maravilhoso tem raízes que remontam à<br />

colonização e ao relacionamento que o europeu (espanhol e português)<br />

estabeleceu com o ambiente de flora e fauna consideradas insólitas;<br />

e com diversos nativos de diferentes mitologias e mestiçagens (talvez<br />

o aspecto mais notável em termos dessa matriz cultural). Poderíamos<br />

resumir esse estranhamento na forma como Pero Vaz de Caminha se<br />

referiu ao Brasil, por exemplo: “Nesta terra em se plantando tudo dá”. Um<br />

aspecto notável do maravilhoso é que ele convive com as personagens<br />

em um dado espaço, sem que elas estranhem a sua manifestação, ou<br />

seja, sua existência é observável e classificável, mas não questionada<br />

(CHIAMPI, 1980: 19).<br />

Assim, cremos, em concordância com Martín-Barbero (2009), que o<br />

popular sobrevive dentro do massivo por meio da mestiçagem. A telenovela<br />

Renascer mostra diversas estruturas sincréticas da cultura popular (BAKHTIN,<br />

1993) inseridas no enredo. Já nos referimos ao pacto com diabo, ao facão<br />

aos pés do jequitibá-rei, mas há, ainda, as referências ao bumba-meu-boi, ao<br />

culto aos santos, às festas da colheita, o ritual de “beber o defunto”. Há, ainda,<br />

as formas orais pelas quais a lenda de que Zé Inocêncio tem um pacto com o<br />

diabo e, logo, pertence à outra casta de indivíduos, e as formas do vocabulário<br />

popular em expressões como “mas’ié”, “pr’a mode’que” e “vosmicê” que<br />

evidenciam os processos de formação de palavras (morfologia), por meio de<br />

justaposição e de aglutinação.<br />

Observamos, ainda, a sobrevivência do popular no melodrama 39 ,<br />

quando notamos a sobrevivência de quatro possibilidades dramáticas<br />

baseadas em quatro sentimentos fundamentais (MARTÍN-BARBERO,<br />

2009: 167-172): do medo emerge uma situação terrível, executada pelo<br />

arquétipo do traidor, típico dos romances; do entusiasmo, sobressai uma<br />

situação excitante, encenada pelo justiceiro, típico das epopeias; da dor,<br />

39<br />

Segundo Martín-Barbero (2009: 166-167), proveniente do teatro popular, do século 18, marcado pela censura, que<br />

se valia da expressão corporal, da pantomima e dos efeitos musicais para discutir os padrões morais da época.<br />

58


advém a reação de identificação e piedade para com a vítima, típica das<br />

tragédias; do riso, emerge o burlesco, a farsa e a paródia, na figura do<br />

bobo, do bufão ou do clown, típicos da comédia. Esses elementos, hoje,<br />

estão presentes nas telenovelas. No caso de Renascer, ora Zé Inocêncio<br />

oscila entre a composição estrutural de justiceiro e ora como traidor.<br />

Já o seu interlocutor, Tião, ora é associado à posição da vítima, ora à<br />

identificação com o clown.<br />

É evidente, nesse primeiro momento, que Zé Inocêncio faz uma<br />

troça com Tião. Assim, ele não só endossa a lenda local, que ele mesmo<br />

sugestivamente “plantou”, como torna a receita, para ter o “diabinho”<br />

numa garrafa, complexa e difícil de ser executada. O coronel assim o faz,<br />

na medida em que seu interlocutor demonstra consentir com os termos da<br />

proposição. Desse modo, investido do poder de uma deidade, o coronel,<br />

novamente, com o dedo em riste, sentencia:<br />

ZÉ INOCÊNCIO – Tem mais uma coisa! No momento em que o diabinho<br />

quebrar o ovo e sair pra vida, um dos seus filho vai morrer. O Cramulhão<br />

é que vai fazer a escolha e alminha dele vai ta lá, nas profunda!<br />

O primeiro frame da segunda linha corresponde ao momento dessa<br />

sentença, Zé Inocêncio é enquadrado em plano fechado. O BG retorna,<br />

desta vez com instrumentos de cordas conferindo suspense ao clímax<br />

do diálogo. Há um corte para Tião que é enquadrado em primeiríssimo<br />

plano. Não há fala, apenas expressão facial que denota o instante em que<br />

Tião reflete sobre a barganha e, ainda, em primeiríssimo plano, em perfil,<br />

profere:<br />

TIÃO – Eu vou sacrificar um pra sarvar o outro e o resto dos filho que eu<br />

vou fazer com minha Joana, depois que a gente enricar. Senhor coronel<br />

José Inocêncio, eu não vou dizê pra ninguém, eu não vou contá pra<br />

ninguém, essa prosa que nóis acabamo de ter aqui.<br />

O último frame da segunda linha e o primeiro da terceira mostram Zé<br />

Inocêncio, em plano fechado, enquanto o BG prossegue, com a expressão<br />

de perplexidade diante do conformismo de Tião, este ainda enquadrado<br />

em primeiríssimo plano. A sequência termina, em plano conjunto ainda<br />

com o BG: o coronel se levanta, encerra a conversa e se despede de Tião,<br />

mas, antes, recomenda ao interlocutor que retire de casa todas as imagens<br />

59


de santos para não atrapalhar o pacto. Zé Inocêncio caminha em direção<br />

à saída, abre da porta e trabalhador rural sai de cena.<br />

As operações visuais e sonoras desse diálogo constroem uma<br />

atmosfera mística que tem o protagonista da trama, Zé Inocêncio, como<br />

uma deidade, aquele que não morrerá, nem de “morte matada”, nem de<br />

“morte morrida”. Dessa forma, o coronel não é apenas um proprietário de<br />

uma vasta extensão de terras produtivas, visto que os demais fazendeiros<br />

da região estão em crise, mas uma divindade. As posições das personagens<br />

em cena expressam uma relação de reverência do sem posses diante desse<br />

potentado que, em seu trono, decide o destino do outro, reafirmando a<br />

estrutura de poder e de mando.<br />

É importante não lermos a personagem Zé Inocêncio, apesar<br />

da alcunha de “coronel” 40 que ele ostenta, como uma expressão do<br />

coronelismo ou como uma personagem herdeira do coronelismo. De<br />

fato, a trama, apesar de ambientada em 1993, faz referência ao ciclo de<br />

produção do cacau, na Bahia. O ciclo cacaueiro foi deflagrado entre 1889<br />

e 1930, período em que este produto passou a ser um recurso estratégico<br />

para a economia da Primeira República. É, justamente, neste período<br />

histórico que José Murilo de Carvalho (1997) e Vitor Nunes Leal (1997)<br />

localizam o coronelismo como um momento específico do mandonismo.<br />

Isto é, o coronelismo é um sistema datado, historicamente, teria iniciado<br />

com o federalismo implantado pela República (1889), em substituição ao<br />

centralismo do Império, e terminado com a implantação do Estado Novo.<br />

Para evitar a imprecisão é, pois, necessário um esforço para distinguir<br />

os conceitos de coronelismo, mandonismo e clientelismo. De acordo com<br />

Leal (1997: 40), o coronelismo é um “compromisso de troca de proveitos<br />

entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente<br />

influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”,<br />

ou seja, está relacionado à estrutura de poder agrário brasileiro e ao<br />

declínio das grandes fazendas de monocultura. 41<br />

40<br />

O termo “coronel” deriva dos títulos da Guarda Nacional, criada no Império. De acordo com Carvalho (1997), essa<br />

instituição patrimonial foi um mecanismo de cooptação dos proprietários rurais que compravam suas patentes e<br />

tinham o controle da população local.<br />

41<br />

A progressão de uma série de fatores reduziu o poder da estrutura coronelística: o crescimento demográfico, a<br />

urbanização e a industrialização reordenavam a organização social e demandavam a criação de novas instituições<br />

públicas com trabalho especializado. No entanto, esses fatores se sucederam de maneira desigual em diferentes<br />

regiões do Brasil.<br />

60


O mandonismo, de acordo com Leal (1997) e Carvalho (1997), se<br />

refere às estruturas oligárquicas e personalizadas de poder arbitrário. Há<br />

várias designações: mandão, potentado, chefe e coronel. Geralmente,<br />

qualifica o indivíduo que tem a posse algum recurso estratégico para<br />

o ciclo econômico. Historicamente, o mandonismo envolve detenção<br />

de cargos públicos, por representantes dos mandões locais, que tinham<br />

acesso ao erário e facilidades de crédito, pelo “voto de cabresto” e pelas<br />

disputas com outros mandões. Cumpre ressaltar, em concordância com<br />

Carvalho (1997), que o mandonismo não é um sistema, é uma característica<br />

da política tradicional existente desde colonização. Segundo o autor, a<br />

tendência é que o mandonismo desapareça à medida que os direitos civis<br />

se estendem para a população nos limites do território nacional.<br />

Já o conceito de clientelismo refere-se, de acordo com Leal (1997)<br />

e Carvalho (1997) às relações bilaterais de troca entre atores sociais e<br />

políticos de poder desigual. Segundo Carvalho, o clientelismo é um tipo<br />

de relação que envolve concessão de benefícios públicos, fiscais, de<br />

crédito, de isenções e de troca de apoio político. Os autores explicam<br />

que o clientelismo e o mandonismo são fenômenos mais amplos que o<br />

coronelismo, mas elucidam que é inegável que o coronelismo envolve<br />

relações de troca de natureza clientelística. Carvalho esclarece, ainda, que<br />

as expressões do mandonismo e do clientelismo mudam, historicamente,<br />

“de acordo com os recursos controlados pelos atores políticos, em nosso<br />

caso pelos mandões e pelo governo” (CARVALHO, 1997).<br />

Assim, cremos que Zé Inocêncio, nos momentos em que é enquadrado<br />

com o dedo indicador em riste, tem sua composição assentada numa<br />

estrutura de mando, pois esta é, em termos históricos e políticos, mais ampla<br />

e ostensiva. A dimensão do maravilhoso amplia a pretensa confiabilidade<br />

de suas palavras, pois alça o mandão ao pedestal das deidades. Não há<br />

comiseração, nem no instante em que ele percebe que Tião crê em suas<br />

palavras e o tem na conta de um justiceiro, em verdade um traidor que<br />

subjuga seu interlocutor. No dedo em riste não há apenas, ao que salta aos<br />

nossos olhos, uma expressão de instrução, mas de sentença.<br />

Tião, ao sair dali, dará consecução ao plano e criará, de fato, uma<br />

galinha preta dentro de uma gaiola, da qual não se separará nem para<br />

dormir, ou seja, ele se agarrará à possibilidade desesperada de tirar a<br />

família da miséria, sabendo que perderá um filho. A personagem passa<br />

61


a ser conhecida e nomeada como Tião Galinha, carregará o estigma<br />

de louco, será apartado do convívio social (ele é preso acusado de<br />

assassinato) e morrerá no final da trama sem conseguir realizar o sonho<br />

de ter “um bocadinho de chão”. Observamos, ainda, que as personagens<br />

em cena oscilam suas composições estruturais. No caso de Zé Inocêncio,<br />

ele se assenta na posição de herói de um homem justo, mas se expressa<br />

numa postura de mando e de forma consciente trai seu interlocutor e<br />

admirador. No caso de Tião, a ingenuidade e a credulidade o arrebatam<br />

na estrutura de clown, mas esta ainda enseja outra dimensão que diz da<br />

piedade que o conduz à representação da vítima.<br />

A cena de O rei do gado, por sua vez, reúne o fazendeiro Bruno<br />

Mezenga (Antônio Fagundes) 42 e Regino (Jackson Antunes). Bruno é o<br />

protagonista da telenovela, um homem que possui terras no Sudeste,<br />

Centro-oeste e Sul do país. O pecuarista vive em Ribeirão Preto (SP), é<br />

criador de gado de corte e conhecido, popularmente, como o “Rei do<br />

gado”. Portanto, temos, novamente, o potentado. A personagem ostenta<br />

a obstinação capitalista de ampliação de suas propriedades e partidário<br />

da ideia que uma pessoa deve vencer por seus próprios méritos, ditar as<br />

regras e não estabelecer uma dependência com as ações do Estado, a não<br />

ser relações de concessão de benefícios fiscais e de crédito.<br />

Bruno Mezenga rejeita, veementemente, a alcunha de coronel: “Isto<br />

é coisa do passado” – ele diz, em certa altura do enredo, aludindo ao<br />

momento histórico de declínio das grandes fazendas de monocultura e o<br />

caráter arbitrário do poder político dos fazendeiros, na Primeira República.<br />

Mas, nem por isso, a sua composição deixa de se assentar numa estrutura<br />

de mando, ele tem a pretensa tendência conciliadora para tentar preservar<br />

“tudo como está”. Na trama, quando algumas de suas fazendas foram<br />

invadidas por trabalhadores rurais sem terra, Bruno evita confrontos e<br />

tenta, ainda no início da trama, retira-os para outros assentamentos do<br />

governo. O fazendeiro é amigo do senador Caxias (Carlos Vereza), um<br />

político honesto preocupado com a reforma agrária. Ambos estabelecem<br />

uma relação de apoio, embora Bruno não reconheça vigor no político.<br />

42<br />

É, pois, sugestivo que em ambas as obras, o mesmo ator, Fagundes, tenha sido escalado para os papéis de<br />

protagonista e potentado. Sabemos que o ator era proprietário de uma fazenda de três mil hectares fica próxima<br />

à Campo Grande (MS) e foi “garoto propaganda” das Fazendas Reunidas Boi Gordo. A empresa foi à falência, em<br />

2001, após ser condenada pela justiça por prática de pirâmide financeira. Retornaremos ao tema em texto futuro.<br />

62


Já Regino é o líder dos trabalhadores sem terra, na região de Ribeirão<br />

Preto. É um homem honesto, com vocação para o trabalho rural, sem<br />

filiação partidária e que entra em confronto com outras lideranças do<br />

movimento, na economia do enredo. Foi no acampamento de Regino<br />

que Bruno conheceu a segunda esposa, Luana (Patrícia Pillar), mulher<br />

cuja identidade verdadeira é desconhecida. Em retribuição aos cuidados<br />

que Regino e a esposa Jacira (Ana Beatriz Nogueira) – e seu filho –<br />

dispensaram à moça, Bruno se reúne com o líder dos sem terra para lhe<br />

propor um negócio. Esse é o mote da cena do capítulo 109, exibido em<br />

11 de junho de 2011, 43 durante a reprise no Canal Viva, cujos frames estão<br />

destacados a seguir, na Imagem 2.<br />

Imagem 2 – Telenovela O rei do gado, capítulo 109: No diálogo entre Bruno Mezenga<br />

e Regino a iluminação, o cenário e objetos de cena marcam o distanciamento entre as<br />

personagens.<br />

O cenário é o escritório da casa de Bruno Mezenga, em Ribeirão Preto.<br />

A primeira linha corresponde aos 2min50seg iniciais da sequência. O<br />

primeiro quadro mostra o enquadramento de nuca, perspectiva pela qual<br />

visualizamos Regino de frente. O líder dos sem terra está em um ponto<br />

mais escuro do cenário, em tom azulado, e, relativamente distanciado de<br />

seu interlocutor. Ambos estão sentados, um de frente para o outro. No<br />

quadro seguinte, o plano conjunto permite observar, com mais clareza,<br />

as posições distintas que as duas personagens ocupam em cena. Bruno<br />

está posicionado no ponto mais iluminado e mais adornado do cenário.<br />

43<br />

Na exibição original na Rede Globo, esse capítulo foi ao ar no dia 21 de outubro de 1996.<br />

63


<strong>Entre</strong> os interlocutores está a mesa de trabalho de Bruno, com papéis,<br />

pastas, envelopes e na extremidade da mesa (próximo a Regino) está uma<br />

escultura de carro-de-boi. Esses elementos decorativos dão a expressar,<br />

novamente, a natureza dos negócios do protagonista, a pecuária; e o<br />

volume de papéis denota a extensão desses negócios. A mesa metaforiza,<br />

ainda, o “abismo” que separa os interlocutores em termos de posses. Por sua<br />

vez, Regino está, nitidamente, constrangido naquele espaço. Nos quadros<br />

em que Regino está destacado, em plano médio, o fundo aparece escuro<br />

e desfocado, ou seja, a personagem está imersa num universo de dúvidas.<br />

No quarto frame da primeira linha, próximo à cabeça da personagem,<br />

está um abajur acesso, é a única fonte de luz desse enquadramento.<br />

Com frequência, o olhar de Regino fita o chão e, por poucas vezes, seu<br />

interlocutor. Cumpre registrar que a cena prossegue sem BG.<br />

Bruno inicia a proposição de negócio ressaltando as virtudes<br />

morais de Regino (a honestidade, o senso de justiça e sua índole<br />

pacificadora), mesmo em face das dificuldades de liderar os sem-terra<br />

para assentamentos. Em capítulos anteriores, houve um conflito entre o<br />

movimento e homens armados numa fazenda improdutiva. Não houve<br />

vítimas, mas a família de Regino ficou exposta e o movimento teve que<br />

ceder. O assunto é mencionado no diálogo. Interessante notar que, para<br />

oficializar a proposta de ceder terras para criação de gado ao acuado<br />

Regino, Bruno o retira do acampamento e o hospeda, com a esposa, na<br />

mansão, garantindo a eles toda comodidade que as posses permitem. O<br />

terceiro frame da primeira linha corresponde ao momento em que Bruno<br />

faz a proposta num diálogo de frases curtas:<br />

REGINO – Mas de que jeito?<br />

BRUNO – O jeito, eu ajeito.<br />

REGINO – Mas e as terra?<br />

BRUNO – As terra, eu arranjo.<br />

REGINO – Tá certo, seu Bruno. Mas e os boi?<br />

BRUNO – Os boi, eu forneço, pelo menos até ocês começarem. E,<br />

também, ensino o jeito de lidar com eles.<br />

No quarto frame, Regino expressa contentamento com a proposta<br />

entendendo que haverá, por parte de Bruno Mezenga, a cessão,<br />

a doação, de uma extensão de terra para ele e sua gente. Regino<br />

pergunta: “Pois, então, eu quero que o senhor me diga, o que é que a<br />

64


gente tem que fazer, pra merecer uma bondade dessa?”. O fazendeiro<br />

é incisivo: “Não é bondade, não, Regino. Eu tô lhe propondo um<br />

negócio. Não vou lhe dar nada de graça, não. Nem as terra, nem os<br />

boi, nem a ajuda que vocês precisarem. Vocês vão me pagar tudo com<br />

trabalho.”. Na segunda linha, os frames correspondem ao clímax do<br />

diálogo, ou seja, ao momento em que Bruno elucida a natureza da<br />

proposta que envolve abandonar a causa dos sem-terra e trabalhar<br />

para o fazendeiro em regime de parceria de produção. Assim, o<br />

enquadramento alterna o primeiro e o primeiríssimo plano, pois as<br />

minúcias do negócio serão pormenorizadas por Bruno, com o dedo<br />

em riste, sendo ouvido atentamente por Regino:<br />

BRUNO – Veja só, as terra que eu vou dá pra vocês, eu não vou invadir,<br />

não. Eu vou comprar. Os boi, eu não vou tirar do meu rebanho porque<br />

isso não me custou barato. E nem a ajuda que vocês precisarem, eu vou<br />

dar esse dinheiro de graça pra vocês. Eu vou dar a vocês é um crédito<br />

que banco nenhum daria. E a única garantia que eu vou querer é a sua<br />

palavra.<br />

REGINO – Pelo que eu tô entendendo, seu Bruno, você quer que a gente<br />

seja vosso empregado.<br />

BRUNO – Não. Eu quero que vocês sejam meus parceiro.<br />

Há, na sequência, um corte para outra cena, na sala da mansão<br />

de Bruno Mezenga, onde uma ansiosa Jacira espera o resultando da<br />

conversa do marido com o “Rei do Gado”, ao lado de Luana e o casal de<br />

filhos do fazendeiro. Há outro corte e retornamos ao escritório. A terceira<br />

linha corresponde, justamente, a esta parte e é, pois, a ocasião em que<br />

observamos a mudança mais sensível de enquadramento. O diálogo se<br />

reinicia com Regino, em pé, em primeiro plano, de costas para Bruno.<br />

Nesse momento, como os interlocutores não estão mais frente a frente,<br />

é possível observar no primeiro, segundo e quarto frames as reações e<br />

a postura de cada personagem em cena. Desta vez, Regino, em primeiro<br />

plano, está mais iluminado dando ênfase em seu momento de hesitação e<br />

o fato de estar de costas para o latifundiário prenuncia o seu desacordo.<br />

Bruno está ao fundo, ainda sentado à mesa de trabalho e, agora, fumando<br />

cachimbo. A sequência evolui destacando a postura emocional e grave<br />

de Regino, diante da postura racional de Bruno. O líder dos sem-terra<br />

65


ecebe a confirmação de que não poderá levar todo o seu grupo de<br />

trabalhadores rurais para a nova fazenda.<br />

Há um corte para Regino que é, novamente, enquadrado em<br />

primeiríssimo plano, em perfil, no momento em que ele pergunta: “Mas o<br />

que que eu faço com os outro?”. A câmera, então, deriva para esquerda e<br />

enquadra Bruno que responde, sem tirar o cachimbo da boca, de forma<br />

firme e racional: “Isso aí, você que vai ter que resolver, Regino.”. A câmera<br />

deriva, novamente, em movimento reverso e enquadra, em primeiríssimo<br />

plano, a reação de tristeza de Regino. O diálogo termina com BG de<br />

suspense. Novamente, observamos que o fazendeiro se assenta nas<br />

posições de justiceiro e traidor, pois assegura ao interlocutor uma benesse<br />

e prejudicará um movimento social organizado de trabalhadores rurais; já<br />

Regino está composto como vítima que se depara com um dilema ético<br />

e moral.<br />

Considerações finais e a tentativa de agrupar a obra<br />

Analisar os enquadramentos e as operações visuais e sonoras das<br />

duas cenas mostra-se importante, pois revela a forma como na televisão<br />

e na telenovela esses recursos se integram como auxiliares do constructo<br />

não apenas da encenação, em seu aspecto técnico, mas da dimensão<br />

subjetiva e narrativa. Trata-se, em cada cena, de personagens reunidas,<br />

em um trato particular em que fica exposta a diferença em termos de<br />

poder. Em ambas, temos duas personagens sem posses em dilema ético<br />

que envolve a terra: para Tião, sacrificar um filho para enriquecer; para<br />

Regino, abandonar a liderança dos sem-terra em proveito próprio.<br />

As duas propostas envolvem, em certo sentido, um “apadrinhamento”.<br />

No caso de Tião esse seria o resultado de uma aliança com uma entidade<br />

que facilitaria o acesso à terra, visto que esse trabalhador está desiludido.<br />

Em Renascer, há esse aspecto do maravilhoso em relação à terra e à<br />

política em torno da discussão sobre mobilidade na estrutura das classes<br />

sociais. O próprio Tião Galinha, ao ser interpelado pela esposa sobre a<br />

obstinação em enriquecer, em cena anterior do mesmo capítulo, profere:<br />

“Mas eu quero ser patrão! Deus quando fez o mundo, Joana, não deu<br />

terra pra ninguém. Pegaram seus pedaços, os que foram mais espertos”. O<br />

aspecto político relacionado à distribuição da riqueza e à reforma agrária,<br />

nos anos 1990, na dimensão televisual, se erige, ainda, nas conjecturas<br />

66


metafóricas e poéticas que esse trabalhador rural iletrado faz no decorrer<br />

da trama: “Quem trabalha e mata a fome, não come o pão de ninguém.<br />

Mas quem ganha mais do que come, sempre come o pão de alguém!”.<br />

Em O rei do gado, o aspecto do debate sobre a terra se distancia do<br />

maravilhoso e tem uma referencialidade mais política. Nessa telenovela,<br />

as personagens falam a favor da reforma agrária, tema dos discursos<br />

do senador Caxias que critica e desqualifica as ações do governo para<br />

resolver a distribuição de terra no país. Cremos que o momento histórico<br />

era oportuno, pois na época, 1996, o Movimento dos Trabalhadores Sem<br />

Terra (MST) ganhou projeção na imprensa nacional com as ações de<br />

assentamentos e após o massacre de Eldorado dos Carajás (PA). 44<br />

Assim, num percurso histórico, observamos uma mudança na<br />

abordagem política do tema em obras de Barbosa, embora as estruturas<br />

de mando permaneçam inalteradas, ou pouco modificadas. Em O rei<br />

do gado, as duas vozes que discursavam em favor da reforma agrária<br />

foram silenciadas em momento de confronto, o senador Caxias e Regino,<br />

deixando, assim, aberta a discussão da terra como algo que no debate<br />

político brasileiro, este externo à trama da telenovela, permanece como<br />

uma ação em curso e não resolvida.<br />

O estilo televisivo, nesse caso, e a construção de sentido sobre as<br />

posições de mando, pelas vias da referencialidade com o real sóciohistórico<br />

compartilhado, revelam a potência da telenovela, no regime<br />

de sua autoria, de interagir com temas do cotidiano social e político,<br />

configurando-se, dessa forma, como uma produção cujo estilo se assenta<br />

numa experiência que é estética e cultural (LOPES, 2003). As ficções<br />

televisivas de Barbosa, ao partirem da terra evocam não apenas uma<br />

dimensão política, ainda mal resolvida em nosso país (como em demais<br />

países latino-americanos), como evocam, também, a cultura popular e<br />

a dimensão do sagrado que emana da terra e que integra o humano à<br />

natureza, no campo da vivência.<br />

A partir da análise de cenas de Renascer e O rei do gado, foi possível,<br />

ainda, observar que a terra se configura como tema transversal na<br />

44<br />

Em 17 de abril de 1996 trabalhadores rurais sem-terra (integrantes do MST) protestavam, na BR-155, contra a<br />

demora da desapropriação de terras da Fazenda Macaxeira. A Polícia Militar foi encarregada de desobstruir a via<br />

que liga Belém ao sul do estado. No confronto, 19 trabalhadores rurais foram mortos com tiros à queima roupa.<br />

67


teledramaturgia de Benedito Ruy Barbosa, desde a década de 1960.<br />

Verificamos que esse tema, em sua visualidade, revela as estruturas de<br />

mandonismo e de clientelismo figuradas, em um determinado grupo, na<br />

personagem identificada por coronel. Essa personagem presente quer seja<br />

no protagonismo ou nas posições secundárias das tramas, na maioria das<br />

vezes, é masculina, 45 e, obviamente, controladora de recursos estratégicos<br />

para um determinado ciclo econômico, em diferentes estágios da História<br />

da República Brasileira.<br />

Lopes caracteriza as telenovelas de Barbosa, especificamente,<br />

como as que mais trabalham “com a temática rural” (LOPES, 2003:<br />

27). Concordamos, em parte, com essa perspectiva, mas sugerimos o<br />

acréscimo de uma componente notável 46 , em termos da observação da<br />

nossa realidade sociopolítica: a terra, não só como fonte de recursos e<br />

produção e, assim, catalisadora das relações de poder e mando; mas,<br />

também, como espaço simbólico em que emerge o estatuto demiúrgico<br />

da posse e as constantes manifestações do imaginário (DURAND, 2002) e<br />

do realismo maravilhoso (CHIAMPI, 1980).<br />

A teledramaturgia de Barbosa representa, ainda, a diversidade étnica<br />

e as identidades culturais que caracterizam o Brasil e, também, os demais<br />

países latino-americanos. De início, delineamos seis grupos temáticos 47 :<br />

Grupo 1: Histórias de fazendeiros – composto por dez telenovelas (entre<br />

1971 e 2016) cujos protagonistas são os fazendeiros e destacam a posse<br />

da terra. Estão nesse grupo as telenovelas: Velho Chico (TV Globo, 2016);<br />

Meu pedacinho de chão (TV Globo, 2014 e 1971); Paraíso (TV Globo,<br />

2009 e 1982); O rei do gado (TV Globo, 1996/97); Renascer (TV Globo,<br />

1993); Pantanal (TV Globo, 1990); Voltei pra você (TV Globo, 1983/84)<br />

e Jerônimo, o herói do sertão (TV Tupi, 1972).<br />

Grupo 2: Histórias das imigrações – reúne quatro telenovelas (entre<br />

1981 e 2003) cujos protagonistas são imigrantes italianos, espanhóis e<br />

portugueses, notadamente. Estão nesse grupo as telenovelas: Esperança<br />

45<br />

Registramos as personagens femininas em: 1) Esperança, com Francisca “Mão-de-ferro” (Lúcia Veríssimo), viúva<br />

de um grande produtor de café no interior paulista; 2) Sinhá moça (1986 e 2006), em que a protagonista, Maria<br />

da Graça (Lucélia Santos/Débora Falabella) herda do pai, a fazenda de café, também, no interior paulista.<br />

46<br />

No sentido de digno de atenção.<br />

47<br />

Os grupos foram organizados, por nós, a partir das sinopses que oscilam entre a proposição de roteiros originais<br />

e de roteiros adaptados.<br />

68


(TV Globo, 2003); Terra nostra (TV Globo, 1999), Vida nova (TV Globo,<br />

1989) e Os imigrantes (TV Globo, 1981).<br />

Grupo 3: Adaptações literárias – abriga 13 produções (11 telenovelas,<br />

um seriado infanto-juvenil e uma minissérie), entre 1966 e 2006. Em<br />

parte, trata-se de obras ajustadas à lógica de produção dos anos 1970 e<br />

1980, que consolidou no horário das 18h, e produções do período de<br />

consolidação da telenovela, nos anos 1960, nas emissoras de televisão<br />

da época. Estão nesse grupo obras como: Sinhá moça (TV Globo, 2006<br />

e 1986); Mad Maria (TV Globo, 2004); Cabocla (TV Globo, 2004 e 1979),<br />

Sítio do pica-pau amarelo (TV Globo,1978/80) dentre outras.<br />

Grupo 4: Histórias urbanas – composto por apenas duas telenovelas<br />

(entre 1980 e 1986) que tratam da vida das classes trabalhadoras na<br />

cidade de São Paulo. Integram esse grupo as telenovelas: De Quina pra<br />

Lua (TV Globo,1985/86); Pé de vento (TV Bandeirantes, 1980).<br />

Grupo 5: Telenovelas pioneiras – concentra cinco telenovelas que<br />

remontam ao período em que Barbosa atuou como supervisor e produtor<br />

da Colgate-Palmolive: Simplesmente Maria (TV Tupi, 1970); Algemas de<br />

ouro (TV Record, 1969); A última testemunha (TV Record, 1968); O décimo<br />

mandamento (TV Tupi, 1968); O anjo e o vagabundo (TV Tupi, 1967).<br />

Grupo 6: Remakes – um grupo de quatro telenovelas (entre 2004 e<br />

2014), já agrupadas em Histórias de fazendeiros e Adaptações literárias,<br />

mas que envolvem novas tecnologias de produção que reconfiguram<br />

o estilo televisivo. Reúne: Meu pedacinho de chão (TV Globo, 2014);<br />

Paraíso (TV Globo, 2009); Sinhá moça (TV Globo, 2006) e Cabocla (TV<br />

Globo, 2004).<br />

A proposição desses grupos não almeja um caráter normativo, apenas<br />

facilita, no aspecto metodológico, a visibilidade dos eixos temáticos que<br />

conformam o protagonismo dos enredos assinados por Barbosa, bem<br />

como características ostensivas do traço autoral. Nos grupos 1 e 2, por<br />

exemplos, podemos observar um olhar insistente sobre os contextos<br />

socioculturais do Brasil, nos primeiros anos da República e no período<br />

da redemocratização. O viés da tematização da terra varia de acordo a<br />

vocação de cada obra (as tramas rurais, as tramas urbanas, as tramas<br />

históricas e as contemporâneas). As figurações de mando e de propriedade<br />

da terra atravessam a teledramaturgia de Barbosa e explicitam como<br />

essas questões estão, ainda, abertas em nossa agenda política. A terra,<br />

69


em Barbosa, apresenta um caráter movediço: ora é o problema debatido<br />

nos diálogos das personagens, ora é o espaço de cena para a ação das<br />

personagens (conflitos, tocaias, massacres, grilagens, etc.) e ora alça a<br />

condição de quase personagem das tramas expressando certa relação de<br />

contiguidade com o humano. Terra e homem se entretecem no aspecto<br />

universal da existência, é fator de vida.<br />

Referências<br />

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François<br />

Rabelais. SP - Bsb: HUCITEC-EDUNB, 1993.<br />

BUTLER, Jeremy. Television style. New York: Routledge, 2010.<br />

CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de<br />

Janeiro: Editora UFRJ, 1999<br />

CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual.<br />

Dados, Rio de Janeiro , v. 40, n. 2, 1997 . Disponível em: . Acesso em 1 de Maio de<br />

2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003.<br />

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São<br />

Paulo: Perspectiva, 1980.<br />

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia<br />

geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />

LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Nova Fronteira, 1997.<br />

LOPES, Maria Immacolata Vassallo et al. Vivendo com a telenovela: mediações, recepção e<br />

teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.<br />

LOPES, Maria Immacolata Vassallo. A telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Revista<br />

Comunicação & Educação, n.º 25. São Paulo, jan/abr de 2003.<br />

LOPES, Maria Immacolata Vassallo de (org.). Telenovela: internacionalização e interculturalidade. São<br />

Paulo: Loyola, 2004.<br />

LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Telenovela como recurso comunicativo. São Paulo: ECA-USP.<br />

MATRIZes, ano 3, n.º 1, ago./dez. 2009, p. 21-47.<br />

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de<br />

Ronald Polito e Sérgio Alcides. 2.ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.<br />

MITTELL, Jason. Television and American Culture. New York: Oxford University Press, 2010.<br />

MITTELL, J. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. MATRIZes, Brasil, v.<br />

5, n.º 2, 2012. Disponível em: http://200.144.189.42/ojs/index.php/MATRIZes/article/view/8138.<br />

Acessado em 13 jul. 2016.<br />

70


MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense-<br />

Universitária, 2002.<br />

PUCCI JR., Renato L. Inovações estilísticas na telenovela: a situação em Avenida Brasil. Revista<br />

Famecos, vol. 21, n.º 2, 2014, Porto Alegre (RS), p. 675-697. Disponível em: http://revistaseletronicas.<br />

pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/16648 Acesso em: 20 out. 2016.<br />

ROCHA, Simone Maria; ALVES, Matheus Luiz Couto. O realismo maravilhoso: uma matriz estéticocultural<br />

latino-americana e sua manifestação no estilo da telenovela brasileira. Seminário – Ficção,<br />

Mídia e Política: Processos e intersecções. Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, 17 de maio de 2014.<br />

ROCHA, Simone Maria; ALVES, Matheus Luiz Couto; OLIVEIRA, Lívia Fernandes de. A História através<br />

do estilo televisivo: a Revolta da Vacina na telenovela Lado a Lado. Revista Eco Pós (Online), v. 16,<br />

2013.<br />

Telenovelas:<br />

O REI DO GADO. Novela de Benedito Ruy Barbosa. Escrita por Benedito<br />

Ruy Barbosa, Edmara Barbosa e Edilene Barbosa. Direção: Luiz Fernando<br />

Carvalho. Elenco: Antônio Fagundes, Patrícia Pillar, Raul Cortez, Carlos<br />

Vereza e outros. Rio de Janeiro, 20h, 17 de junho de 1996 a 15 de<br />

fevereiro de 1997, 209 capítulos, cor. (acervo pessoal).<br />

RENASCER. Novela de Benedito Ruy Barbosa. Escrita por Benedito Ruy<br />

Barbosa, Edmara Barbosa e Edilene Barbosa. Direção: Luiz Fernando<br />

Carvalho. Elenco: Antônio Fagundes, Adriana Esteves, Herson Capri,<br />

Osmar Prado e outros. Rio de Janeiro, 20h, 8 de março de 1993 a 14 de<br />

novembro de 1993, 213 capítulos escritos, 216 apresentados, cor. (acervo<br />

pessoal).<br />

71


O roteiro seriado: a estilística<br />

intermidiática no piloto de Mad Men<br />

Marcel Vieira Barreto Silva 48<br />

Introdução à intermidialidade do roteiro<br />

Olhar para uma série televisiva e pensar a sua estética não<br />

precisamente na análise expressiva dos programas ou na qualidade<br />

singular das emissões, e sim no movimento pendular entre o texto escrito<br />

no roteiro e a forma audiovisual empregada em imagens/sons, configura<br />

um desafio de pesquisa. Em primeiro lugar, é preciso observar o roteiro,<br />

esse documento de pré-produção a um só tempo fundamental para a<br />

prática e desprezado pela academia, sem incorrer em assertivas genéricas<br />

que apenas iluminem a sua evidente importância para o processo criativo<br />

em geral. Além disso, é necessário ter habilidade para identificar, no texto<br />

escrito, elementos de linguagem capazes iluminar a leitura do programa<br />

televisivo em sua mais vasta teia de significados? Isso implica que a análise<br />

do roteiro não se sustenta apenas como mais um índice da bisbilhotice<br />

espectatorial sobre o processo criativo - no limite mesmo em que a crítica<br />

genética evita se imiscuir em fofoca de bastidores. Estudar um roteiro,<br />

ainda por cima de um episódio piloto de uma série dramática, é perceber<br />

como o texto não apenas abre, mas também sintetiza, uma boa parte dos<br />

elementos que serão replicados durante os anos seguintes do programa.<br />

O fato é que o roteiro é uma peça do passado, uma lembrança caduca,<br />

um mobiliário empoeirado que decora com perfeição uma casa que a<br />

gente só consegue ver por fora. Ninguém, para além dos profissionais<br />

interessados no fazer prático ou dos fãs com a sua curiosidade insaciável,<br />

faz da leitura de roteiros um hábito enraizado de sua formação cultural.<br />

Isso é uma evidência que põe em xeque a capacidade que o texto<br />

dramático construído no roteiro possuiria de carregar consigo um potência<br />

estética imanente – visto que sua função originária é ser uma peça de<br />

48<br />

Professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade<br />

Federal da Paraíba.<br />

73


pré-produção que circula entre o processo de viabilização comercial do<br />

projeto e a própria realização audiovisual do programa imaginado. A<br />

escrita do roteiro, portanto, com os seus códigos bem delimitados em<br />

um formato rígido de organização sintagmática (capa, cabeçalho, rubrica,<br />

diálogos e transições), já impregna o texto com uma tecnicidade que<br />

difere, de cara, das configurações possíveis do texto literário: a linguagem<br />

verbal, para a literatura, é sempre autocentrada, sua matéria-prima se<br />

abre e se fecha nas próprias possibilidades da escrita de organizar ou<br />

reorganizar a experiência da linguagem. No roteiro, por outro lado, a<br />

linguagem verbal é quase sempre um meio-termo, uma ponte imaginada<br />

para o filme ou a série por vir. É enfim o código técnico através do qual,<br />

durante o processo produtivo da cadeia do audiovisual, os produtores,<br />

diretores, atores e demais técnicos engajados na realização conseguem<br />

visualizar de antemão a dramaturgia ficcional tramada no texto.<br />

Essa condição marginal do roteiro – não é “literatura”, nem é “cinema”<br />

ou “televisão” –, a um passo que sopesa a curiosidade em torno de sua<br />

natureza, coloca também obstáculos no desenvolvimento de qualquer<br />

pesquisa específica sobre o tema. Visto que não é “literatura”, não podemos<br />

simplesmente importar os referenciais teóricos dos estudos literários, tais<br />

como a análise do discurso, a narratologia ou mesmo os estudos de<br />

gênero, bem como suas rotinas metodológicas, sejam elas extrínsecas ou<br />

intrínsecas ao estudo do texto literário. Semelhantemente, visto que não<br />

é “cinema” ou “televisão”, não parece indicado recorrer a esse repertório<br />

teórico, com a preferência por pesquisas sobre a imagem, a montagem,<br />

a mise-en-scène e a autoria, de um lado, e de cunho sociológico e<br />

culturalista, do outro lado, nem mesmo às limitadas especificidades<br />

metodológicas desenvolvidas pelo campo, da análise fílmica à análise<br />

histórica, passando pelos estudos de recepção e das mediações.<br />

Portanto, qualquer percurso que desejemos traçar aqui não pode<br />

ser exclusivo. Isso significa que, dada a posição indeterminada que o<br />

roteiro ocupa para os estudos de cinema/televisão e de literatura, o<br />

caminho teórico-metodológico proposto para a sua análise nunca será<br />

satisfatoriamente desenhado tendo no horizonte ou só o cinema/televisão<br />

ou só a literatura. O desafio, portanto, consiste em pôr em perspectiva os<br />

estudos literários e cinematográficos/televisivos, a fim de pensar zonas de<br />

fronteira, que seriam também zonas de confronto, de desconforto, em que<br />

74


o texto escrito projeta uma imagem e um som, ainda que essa projeção<br />

seja aparentemente metafísica: está naquele lugar nebuloso, vacilante,<br />

oriundo da semântica do texto, mas cuja potência estética só se manifesta<br />

adiante, nas imagens e sons cuja presença se produz, de fato, in absentia.<br />

Ao falarmos, portanto, de estudo do roteiro, uma seara teórica fecunda,<br />

que sintetize a preocupação com a estrutura sintática e com a semântica<br />

cultural, constitui um terreno ainda pouco desbravado. 49 Isso, ao passo<br />

que impõe severas dificuldades teórico-metodológicas, também nos<br />

oferece um instigante desafio, uma página em branco em que podemos<br />

traçar novos caminhos, rotas imprevistas que poderão quiçá nos conduzir<br />

a uma leitura menos ortodoxa das relações entre imagem e palavra, entre<br />

literatura e audiovisual e, mais especificamente, entre a análise televisiva<br />

e as inúmeras possibilidades do roteiro seriado, enquanto texto específico<br />

de construção de dramaturgia contemporânea.<br />

Para isso, vamos propor aqui um diálogo com alguns conceitos que,<br />

julgamos, podem iluminar a nossa análise. Não se trata, pelo menos<br />

por enquanto, da elaboração de um modelo analítico particular para a<br />

análise de roteiros de séries – em um ponto ulterior de nossa pesquisa,<br />

poderemos talvez desenhar isso com mais clareza. Por ora, vamos ensaiar<br />

algumas aproximações conceituais e metodológicas entre os estudos de<br />

intermidialidade, de literatura e de televisão.<br />

Inicialmente, devemos aqui refletir sobre o conceito de intermidialidade,<br />

a partir do qual podemos pensar a relação entre o texto do roteiro e o<br />

episódio realizado como um complexo sistema de trocas e misturas de<br />

códigos, signos e sentidos. Isso significa que não estamos considerando<br />

mais, entre roteiro e programa, uma relação apenas “intertextual”, base<br />

para boa parte das pesquisas que investigam as relações entre literatura<br />

e cinema/televisão, sobretudo nos estudos de adaptação e de tradução.<br />

Adalberto Müller procura estabelecer com clareza essa distinção<br />

importante entre os estudos de intertextualidade e intermidialidade:<br />

Dentro desse processo, literatura e cinema devem ser entendidos como<br />

mídias que se interrelacionam de modos diversos, dentro de um universo<br />

midiático bastante amplo, que inclui mídias diversas como a oral, a<br />

49<br />

Uma importante referência nesse tipo de análise pode ser encontrada na tese de doutorado de Pablo Gonçalo<br />

(2015), em que ele estuda a relação entre cinema e literatura na colaboração entre Wim Wenders e Peter Handke.<br />

75


popular, o rádio, a imprensa escrita, a televisão, as artes visuais, a internet,<br />

o videogame etc. O estudo dessas interrelações configura o campo<br />

da intermidialidade. Esse termo não deve ser confundido com certos<br />

campos teóricos, dos quais ele se alimenta, como o da intertextualidade,<br />

ou o campo dos estudos interartes. Em relação a esses últimos, devese<br />

observar que os estudos de intermidialidade, assim como os de<br />

teoria da mídia, não são necessariamente estudos de estética. (…) No<br />

que concerne o domínio da intertextualidade, a diferença dos estudos<br />

de intermidialidade está, a meu ver, relacionado a uma mudança de<br />

paradigma importante nos últimos anos. O conceito de intertextualidade<br />

parece-me estar ligado a uma vertente de pensamento, sobretudo<br />

francês, derivado da Linguística saussureana, onde o paradigma central<br />

é a relação entre significação, e os termos essenciais são o signo, o<br />

discurso, o texto. Trata-se, a meu ver, de um paradigma essencialmente<br />

ligado a questões de linguagem, quando não à cultura do livro. Ora,<br />

para a teoria da mídia, o livro - e consequentemente tudo o que a ele<br />

se relaciona, inclusive a literatura – é apenas uma etapa na história das<br />

mídias (MÜLLER, 2008: 48).<br />

Isso implica que a relação entre o roteiro e o episódio, ou seja, entre<br />

a linguagem escrita e a linguagem audiovisual, não será compreendida<br />

apenas como uma relação “entre textos”, mas sobretudo como um processo<br />

“entre mídias”. No roteiro, o texto verbal é a força motriz de organização<br />

da dramaturgia, mas é importante perceber que se trata de um texto<br />

que agrega, na sua própria lógica interna de funcionamento, índices que<br />

procuram representar a materialidade da experiência audiovisual. Nesse<br />

sentido, buscaremos mostrar que planos, sequências, transições e mesmo<br />

enquadramentos, com a sua indicialidade específica, são incorporados<br />

– e aqui “corpo” é um termo cuja materialidade se anuncia também no<br />

texto – à linguagem do roteiro em diferentes modalidades. De maneira<br />

semelhante, o produto audiovisual também integra para si elementos<br />

textuais presentes no roteiro (o diálogo, sem dúvida, é sempre lembrado,<br />

mas não é o único) que demonstram como a intermidialidade, no caso da<br />

relação roteiro e filme/série, é uma via de mão dupla.<br />

Nessa linha, outro conceito que nos interessa é o de materialidade.<br />

Resultado de um demorado processo de reflexão teórica que buscou, nos<br />

estudos da linguagem e da comunicação, avançar para além da tradição<br />

hermenêutica ocidental – que costuma apregoar que a experiência da<br />

linguagem se dá sobretudo na dimensão do sentido, da decodificação<br />

76


–, os estudos das materialidades, de origem primordialmente alemã, 50<br />

buscam entender como as mídias por meio das quais são transmitidos<br />

os sentidos contribuem ou atrapalham, organizam ou desorganizam,<br />

influem, modulam e interferem diretamente na produção do sentido.<br />

Trata-se de uma guinada teórica que busca atentar para a própria<br />

experiência concreta de contato, de toque, de manuseio da mídia, cuja<br />

tecnologia determina, diretamente, a relação que, por exemplo, leitor<br />

ou espectador estabelecem com uma obra literária ou audiovisual. Hans<br />

Ulrich Gumbrecht (2010), relembrando o processo que levou à definição<br />

dessa mudança epistemológica, nos mostra que “‘Materialidades da<br />

Comunicação’, foi então decidido, ‘são todos os fenômenos e condições<br />

que contribuem para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos,<br />

sentido’” (2010: 28). Isso implica, avançando no destrinchamento do<br />

conceito, que:<br />

falar em “materialidades da comunicação” significa ter em mente que<br />

todo ato de comunicação exige a presença de um suporte material para<br />

efetivar-se. Que os atos comunicacionais envolvam necessariamente a<br />

intervenção de materialidades, significantes ou meios pode parecer-nos<br />

uma ideia já tão assentada e natural que indigna de menção. Mas é<br />

precisamente essa naturalidade que acaba por ocultar diversos aspectos<br />

e consequências importantes das materialidades na comunicação – tais<br />

como a ideia de que a materialidade do meio de transmissão influencia e<br />

até certo ponto determina a estruturação da mensagem comunicacional<br />

(FELINTO, 2001: 3).<br />

Isso nos traz um importante ponto de reflexão para entender a<br />

relação entre o roteiro e a obra audiovisual: visto que ambos buscam<br />

contar a mesma história, mesmos personagens, mesma dramaturgia,<br />

mesma organização de cenas, sequências e transições, como considerar<br />

experiências estéticas diferentes a leitura do roteiro e o visionamento do<br />

filme/série? Uma importante chave de entendimento, aqui, é o conceito de<br />

“produção de presença”, desenvolvido por Gumbrecht (2010). Segundo<br />

ele, não se pode entender o relacionamento entre os sujeitos e as obras<br />

artísticas apenas no âmbito do sentido, do inteligível, do significado, visto<br />

que cada obra impõe determinadas condições materiais de existência, e<br />

50<br />

No Brasil, trata-se de um campo ainda recente de investigações, mas já com uma sólida tradição tanto no universo<br />

dos estudos literários, quanto no campo da comunicação. Sobre isso, cf. FELINTO, 2006.<br />

77


essas condições trabalham diretamente para produzir efeitos específicos,<br />

que Gumbrecht chama de “efeitos de presença”. Ou seja, não se trata de<br />

uma superação do sentido pela presença, do significado pelo significante,<br />

mas de uma atenção renovada para o modo como as materialidades<br />

trabalham na produção da experiência estética, concebida então “como<br />

uma oscilação (às vezes, uma interferência) entre ‘efeitos de presença’ e<br />

‘efeitos de sentido’” (GUMBRECHT, 2010: 22).<br />

O roteiro produz efeitos de presença muito diferentes do episódio<br />

exibido na televisão. Embora contem a mesma história, evoquem a mesma<br />

dramaturgia, roteiro e episódio promovem vivências diversas. O que<br />

constitui, portanto, os efeitos de presença produzidos pelo roteiro? Para<br />

tentar responder a essa pergunta, inserimos a nossa preocupação aqui com<br />

uma estilística do roteiro audiovisual dentro de um universo conceitual<br />

específico, que, assim o julgamos, pode contribuir determinantemente<br />

para a melhor compreensão desse fenômeno. Trata-se de uma guinada<br />

bastante significativa no próprio horizonte de preocupações dos estudos<br />

de televisão, visto que pretendemos trabalhar nos interstícios, nas zonas<br />

de fronteiras entre mídias, entre literatura e audiovisual. Talvez, só assim,<br />

possamos entender melhor o que caracteriza o roteiro como obra de<br />

passagem, uma presença oculta, de temporalidade indeterminada, a meio<br />

caminho entre a matéria e o desaparecimento.<br />

Algumas hipóteses metodológicas<br />

Nosso objetivo neste artigo é analisar algumas cenas do episódio piloto<br />

da série de televisão norte-americana Mad Men, escrita por Matthew Weiner,<br />

e exibida entre 2007 e 2015 pelo canal a cabo AMC, tendo como foco o<br />

modo como o texto escrito no roteiro indica, inaugura e, em último caso,<br />

presentifica elementos de linguagem audiovisual que serão determinantes<br />

para o programa em sua longa vida. Para tanto, pretendemos conciliar –<br />

talvez com menos sucesso do que verdadeiramente desejado, mas com<br />

a certeza do risco da aposta – uma análise cotejada entre o texto e as<br />

imagens/sons, querendo com isso não apenas identificar os índices de<br />

uma tradução intersemiótica evidente, mas sobretudo compreender como<br />

o roteiro, textualmente, é capaz de produzir uma série de “efeitos de<br />

presença”, que funcionam em três níveis dinâmicos e inter-relacionados:<br />

o nível linguístico, o nível sensório e o nível dramático/narrativo. Nossa<br />

78


hipótese, portanto, é que o movimento instável e tenso entre esses níveis<br />

– em que um contribui e atrapalha o outro, simultaneamente –, define<br />

em grande medida a relação que o texto do roteiro estabelece com o<br />

programa em sua materialidade audiovisual.<br />

Para iniciar, é importante estabelecermos um recorte para o problema<br />

da coleta do material. Dentro de um esquema produtivo em que o roteiro,<br />

muitas vezes, não se prolonga como um membro a mais da cadeia produtiva<br />

que cerca o filme ou o programa – através, por exemplo, de sua publicação<br />

na forma de livro –, como podemos ter acesso aos diferentes tratamentos<br />

que compõem o processo criativo de construção da dramaturgia seriada<br />

contemporânea? Mesmo no caso de uma publicação, sempre devemos<br />

levar em conta, exatamente, que versão do roteiro está sendo publicada:<br />

é a versão final antes de ser gravado, é a versão utilizada no processo<br />

de avaliação institucional do projeto, ou mesmo uma versão revista e<br />

atualizada feita especialmente para o caso da publicação? Já aí temos uma<br />

série de problemas a serem avaliados, mas podemos acrescentar mais um:<br />

muitas vezes, a publicação dos roteiros de séries não é feita na versão<br />

script, mas transcript, ou seja, uma transcrição em palavras das cenas e<br />

diálogos que aparecem nas imagens, o mais literalmente possível. Afinal,<br />

qual ou quais roteiros podemos tomar como referência para o tipo que<br />

análise que pretendemos realizar?<br />

Aqui nos vemos mais uma vez diante de escolhas de escopo e recorte<br />

metodológico que implicam, invariavelmente, limitações no horizonte da<br />

análise. No caso de Mad Men, o piloto fora escrito no início do ano 2000,<br />

como um spec pilot, 51 mas sua produção só ocorreu seis anos depois,<br />

tendo a série estreado em sequência, em 2007. Há que se imaginar a<br />

quantidade de alterações, ajustes, acréscimos e supressões de cenas,<br />

diálogos e mesmo personagens, ocorridos durante esses anos. Por isso<br />

mesmo, ao invés de buscarmos definir uma versão específica do roteiro<br />

como aquela mais adequada para a análise, ou mesmo recuperar, em um<br />

esforço hercúleo de cartografia genética, todas as versões escritas durante<br />

o processo de roteirização, torna-se mais válido analiticamente, e mais<br />

51<br />

De acordo com William Rabkin (2011: 2. Tradução nossa), um spec script “é, com certeza, um roteiro escrito em<br />

especulação – ou seja, um roteiro que ninguém solicitou, ninguém vai pagar por ele, e ninguém quer de fato<br />

ler”. No caso de Mad Men, o roteiro era um piloto de especulação, escrito por Weiner inicialmente para servir<br />

como parte do seu portfólio para futuros empregos. Foi assim, na verdade, que David Chase, criador da série The<br />

Sopranos, contratou Weiner para ser parte do seu staff de roteiristas.<br />

79


justo com as possibilidades de investigação, indicar quais tratamentos<br />

estão sendo estudados, como eles foram obtidos e, por fim, apontar,<br />

dentro do esquema de produção, a que distância cada versão do roteiro<br />

está para a realização concreta do programa.<br />

Em entrevista, junto com produtores e atores da série no The Paley<br />

Center for Media, 52 Matthew Weiner explica que, no episódio piloto exibido<br />

na televisão, ele acrescentou apenas três situações pontuais em relação<br />

ao spec pilot escrito anos antes (um diálogo cômico para o personagem<br />

Roger Sterling sobre a campanha à presidência de Richard Nixon, o fato<br />

de Don Draper possuir uma medalha de guerra chamada Purple Heart –<br />

entregue pelos Estados Unidos àqueles mortos ou feridos em combate –<br />

e, por fim, a cena em que Don, deitado no sofá do seu escritório, observa,<br />

entre fascinado e apreensivo, uma mosca presa no plafon de acrílico que<br />

ilumina o ambiente). De resto, todo o episódio perfaz, quase literalmente,<br />

todas as sequências de cenas e diálogos previstas no roteiro do piloto<br />

apresentado para a AMC.<br />

Com isso em mente, podemos avaliar as duas principais versões do<br />

piloto de Mad Men que circulam em sites especializados na internet. A<br />

primeira, datada de 17 de fevereiro de 2006, se aparenta mais à primeira<br />

versão do roteiro, com mudanças pontuais de descrição de cena, de<br />

diálogos, mas com a mesma estrutura de concatenação da história que o<br />

episódio exibido na televisão. A segunda versão, datada de 20 de abril de<br />

2006, já se aproxima com bastante precisão do que foi ao ar, mantendo<br />

a mesma estrutura da versão anterior, mas acrescentando mudanças<br />

importantes de diálogo e, sobretudo, as cenas que o próprio Weiner<br />

comentou ter acrescentado para a produção.<br />

Uma mudança fundamental, no entanto, deve ser comentada: o<br />

centro nervoso do episódio segue Don em sua sofrida tentativa de criar<br />

uma campanha nova para os cigarros Lucky Strike, depois de a Reader’s<br />

Digest, importante revista da época, imprimir uma matéria informando<br />

descobertas científicas que relacionavam o consumo de tabaco ao<br />

câncer de pulmão. Na primeira versão do roteiro, a campanha não é<br />

para Lucky Strike, mas para outro cigarro, chamado Old Gold. Tratase<br />

de uma mudança crucial, visto que Lucky Strike era, à época, uma<br />

52<br />

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q6oJJO3am5I. Acesso em: 09 fev. 2016.<br />

80


marca mais valiosa e, portanto, trazia à agência Sterling Cooper, onde<br />

Don Draper trabalhava, um dado de distinção mais evidente que Old<br />

Gold. Atualmente, o Old Gold é um cigarro low-cost, enquanto o Lucky<br />

Strike continua uma das marcas mais conhecidas internacionalmente. Se<br />

lembrarmos bem, na primeira cena do episódio, Draper conversa com<br />

um busboy, um copeiro negro, tentando descobrir os seus motivos para<br />

fumar o seu cigarro. Enquanto Don, na segunda e definitiva versão do<br />

roteiro, fuma um Lucky Strike, o copeiro fuma um Old Gold. Na primeira<br />

versão do roteiro, é exatamente o contrário.<br />

Fumaça que embaça a vista: intermidialidade no piloto de<br />

Mad Men<br />

Para analisar o roteiro do piloto de Mad Men, vamos restringir o foco<br />

na versão final do texto (chamada usualmente de Final Shooting Script),<br />

na tentativa de observar, precisamente, três elementos formais, talhados<br />

na própria escrita, que funcionam para caracterizar a natureza singular do<br />

roteiro e, mais especificamente, do piloto de série dramática televisiva:<br />

uma estrutura de linguagem capaz de produzir, através de uma estilística<br />

própria, traduções intermidiáticas de procedimentos audiovisuais<br />

(movimentos de câmera, transições etc.), sem recorrer necessariamente<br />

a uma codificação técnica (nível linguístico); uma iconografia particular,<br />

que busca construir o universo visual e auditivo da série, bem como<br />

uma atmosfera, um Stimmung 53 de ambiguidade e indeterminação (nível<br />

sensório); e, por fim, uma determinada organização das cenas, dos atos e<br />

dos arcos com o objetivo de produzir uma dramaturgia da ambivalência,<br />

da incerteza, da dúvida (nível dramático/narrativo). Para discutir cada um<br />

desses elementos, vamos discutir algumas cenas do piloto de Mad Men<br />

que ilustram, tanto quanto escancaram, as dificuldades de uma efetiva<br />

leitura do roteiro que considere, por fim, o que lhe é específico.<br />

53<br />

Gumbrecht (2014) recorre ao conceito de Stimmung para argumentar que o efeito produzido pela experiência<br />

estética não se restringe à interpretação e à decodificação, mas aos modos como as obras acionam atmosferas,<br />

climas e mesmo afetos. O conceito de Stimmung nos parece muito interessante para o estudo de roteiros, tentando<br />

ir além das análises puramente literárias, em direção a uma leitura que busque entender, nos modos específicos<br />

de organização da escrita do roteiro, como ela é capaz de modular, de subsumir, de efetivamente evocar a<br />

atmosfera de uma época, o clima de um período histórico particular e, finalmente, os afetos provocados pela<br />

própria linguagem. O que Gumbrecht nos convoca a avaliar quando fala de Stimmung é menos a indicialidade<br />

da representação (ou seja, de que modo a linguagem de fato remete a elementos concretos do mundo histórico),<br />

mas a experiência física e sensória que a linguagem pode engendrar ao construir os mundos ficcionais, os<br />

personagens e as tramas narrativas do modo que o faz.<br />

81


Nossa hipótese, em suma, é de que, em cada um desses níveis – e nos<br />

três simultaneamente –, o roteiro do piloto de Mad Men consegue edificar<br />

um sólido alicerce para a série, cujos noventa e dois episódios seguintes<br />

tentarão replicar. Ou seja, a fumaça que embaça a vista – Smoke gets in<br />

your eyes, como no título do piloto – é o único canal possível de entrar no<br />

programa, seja pela chuva que cai na estrada e esfumaça o para-brisas de<br />

um Buick 1958 verde-musgo, seja pela identidade confusa de Don Draper,<br />

a um só tempo um brilhante diretor de criação e um sobrevivente de<br />

guerra que roubara o nome de seu antigo superior, ou um pai devotado<br />

a sua família de subúrbio e um sex addict inveterado, justo e cruel, bemsucedido<br />

e miserável, dono do mundo e filho de uma puta.<br />

Para pensar o primeiro nível, o linguístico, devemos prestar atenção<br />

ao modo como se constroem as cenas no roteiro, mais detidamente,<br />

a própria escrita e sua utilização particular da linguagem verbal. De<br />

antemão, é importante dizer que o modelo de roteiro utilizado nas séries<br />

televisivas nos Estados Unidos é bastante codificado – escrito em softwares<br />

de edição no modelo master scenes –, tendo em vista a sua função dentro<br />

de um modelo industrial por excelência. Por isso, devemos sempre<br />

pensar no roteiro em sua relação com a cultura institucional em que está<br />

inserido, já que, além de passar por diversas etapas de configuração e<br />

reconfiguração (por produtores, diretores e mesmo outros roteiristas que<br />

produzem diferentes tratamentos no material), o roteiro carrega em si, na<br />

sua formatação, as marcas discursivas da estrutura organizacional dentro<br />

da qual é gerido.<br />

Portanto, a linguagem do roteiro pode ser compreendida como uma<br />

tentativa de equilibrar a sua formatação excessivamente codificada e o uso<br />

de uma linguagem verbal que descreva, narre e represente, através de um<br />

texto literário, uma encenação audiovisual que se performatiza em imagens<br />

e sons que as palavras, no roteiro, buscam traduzir. É aí, precisamente, que<br />

concebemos o roteiro como um produto intermidiático por excelência.<br />

Sua escrita é verbal, mas também é audiovisual. Como em uma equação<br />

quântica, matéria e energia parecem aqui perfazer o mesmo caminho de<br />

indeterminação característico do modelo intermidiático do roteiro.<br />

No caso de Mad Men, vamos apontar um momento específico em<br />

que a linguagem do roteiro busca colidir, tensionar ou mesmo implodir<br />

os limites que separam as mídias. Trata-se de uma sequência no<br />

82


primeiro ato, em que acompanhamos os três personagens cujos arcos<br />

particulares montam a estrutura do episódio piloto: Don Draper, Pete<br />

Campbell e Peggy Olson. A sequência os acompanha no início de um<br />

dia aparentemente ordinário de trabalho: Don está preocupado com a<br />

campanha da Lucky Strike, Pete se prepara para a sua despedida de<br />

solteiro e Peggy segue o seu primeiro dia na agência como secretária de<br />

Don. A sequência é composta por seis cenas, que ocorrem em um fluxo<br />

de ações que atravessa diferentes espaços – desde a entrada do prédio,<br />

passando pelo elevador, pelos corredores do escritório e pelas salas de<br />

Pete e Don. Um primor de organização da narrativa, de apresentação<br />

dos personagens, dos espaços e dos problemas dramáticos que a série,<br />

em larga medida, enfrentaria pelos próximos oito anos. Assim começa a<br />

sequência, na cena 8:<br />

EXT. ARRANHA-CÉU EM MANHATTAN - DIA<br />

Do alto, vemos um prédio elegante, moderno, todo de vidro. Embaixo,<br />

os chapéus sobre as cabeças dos homens pululam como formigas<br />

atravessando portas-giratórias (WEINER, 2006b: 07). 54<br />

A primeira singularidade que nos interessa aqui é o uso do símile,<br />

uma figura de linguagem pouco indicada para a escrita do roteiro tal<br />

como apregoam os manuais mais famosos. Como coloca Robert McKee<br />

(2006: 368): “Pobre do roteirista, ele não pode ser poeta. Ele não pode<br />

usar metáfora e símile, assonância e aliteração, ritmo e rima, sinédoque<br />

e metonímia, hipérbole e mesóclise, os grandes tropos”. No entanto, essa<br />

cena, que funciona como o que Madeline Dimaggio (2008: 28) chama de<br />

establishing scene – ou seja, a cena que estabelece o espaço da ação –, usa<br />

a imagem de um enxame de formigas para representar, via comparação,<br />

a chegada ao trabalho de uma horda de homens e mulheres pela manhã.<br />

Se lermos o roteiro de modo objetivo, talvez haja a necessidade de<br />

transformar a indicação comparativa no roteiro em uma montagem por<br />

correspondência: um plano de formigas desordenadas se chocando e,<br />

em seguida, outro plano de Nova Iorque, com a sua população apressada<br />

correndo para chegar ao serviço.<br />

54<br />

Original em inglês: “8 EXT. TOWERING MANHATTAN SKYSCRAPER - MORNING From the air, we see an elegant<br />

modern glass building. Below, the hats on the tops of men’s heads swarm like ants through revolving doors”.<br />

Tradução nossa. As referências seguintes serão todas, portanto, por nós traduzidas.<br />

83


Mas não é isso que acontece. O estilo da série, mais clássico e<br />

narrativo, não comporta esse tipo de montagem expressiva. O símile,<br />

portanto, funciona como uma operação estilística, que possui duas<br />

funções: a primeira, mais superficial, de comparar os indivíduos a animais<br />

que andam em bando – e aí, a montagem por correspondência poderia<br />

fornecer uma solução; a segunda, mais profunda, de promover o raccord<br />

espacial de fora para dentro do prédio. Isso porque a cena seguinte já se<br />

inicia, no roteiro, dentro do elevador, o que pode indicar um corte brusco,<br />

seco, no tempo-espaço da encenação. Porém, é precisamente a imagem<br />

das formigas atravessando portas giratórias que garante o movimento<br />

exigido pelo raccord para produzir a continuidade. No episódio exibido<br />

na televisão, a tomada de cima, em contraplongée, não é feita imóvel, mas<br />

em uma panorâmica que acompanha, pelo raccord, o giro da porta por<br />

onde passam as pessoas. Vejamos como isso ocorre:<br />

Fig. 1: Movimento panorâmico de câmera, em contraplongée. Fonte: Mad Men, DVD da<br />

Primeira Temporada, AMC.<br />

84


Fig. 2: Após um corte seco, tilt up da câmera. Fonte: Mad Men, DVD da Primeira<br />

Temporada, AMC.<br />

Ou seja, não há formiga alguma na imagem. O símile então ocupa o<br />

lugar de um elemento tipicamente audiovisual, que é o raccord. Embora<br />

não indique, no texto, que a transição da cena 8 para a cena 9 será feita<br />

com um raccord de movimento, esse símile carrega, na linguagem verbal,<br />

a potência desse procedimento. É precisamente esse tipo de escrita que<br />

define a natureza intermidiática do roteiro. Para além da codificação<br />

verbal de um elemento da linguagem televisiva, esse estilo de roteiro<br />

gravita em uma órbita de intersecção, em que literatura e audiovisual se<br />

mesclam, se imiscuem, enleados em uma rede discursiva intermidiática<br />

por excelência.<br />

Sabemos que, com o passar dos tempos, o roteiro foi abandonando o<br />

máximo possível as codificações técnicas, como movimentos de câmera,<br />

enquadramentos, enfoques etc. No entanto, como a sua natureza<br />

intermidiática requer, essas indicações de procedimentos audiovisuais<br />

85


foram se incorporando a uma linguagem verbal menos explícita, de<br />

modo a traduzir o audiovisual como literatura. Como bem explica Steven<br />

Price:<br />

O roteiro pode descrever uma locação ou personagem em termos<br />

literários que aparentemente excedam ou não possam ser representados<br />

na linguagem fílmica, mas a linguagem verbal pode levar a imaginação<br />

do diretor a fornecer uma imagem, um clima ou uma textura correlativa<br />

(PRICE, 2010: 117). 55<br />

Em outras palavras, o estilo do roteiro, por mais que requeira<br />

objetividade, clareza e precisão descritiva, muitas vezes recorre a outros<br />

artifícios para representar a sua proposta audiovisual. A descrição<br />

dos ambientes, com os seus detalhes de arquitetura e decoração, e a<br />

caracterização dos personagens, física e psicológica, também funcionam<br />

como um importante elemento de construção do mundo ficcional,<br />

indicando as cores, os sons, os gestos, os corpos em que os sujeitos na<br />

cena devem se presentificar. No caso especifico do roteiro de Mad Men,<br />

é nessa descrição que podemos ver também, de modo mais efetivo,<br />

como se constituem as relações de raça, gênero e poder institucional<br />

que a série encenaria nos anos seguintes, do episódio piloto ao series<br />

finale.<br />

A sequência que estamos analisando, portanto, é crucial para definir<br />

essas relações. O ascensorista do prédio é caracterizado, na cena 9, como<br />

um “homem negro de meia-idade”. Em seguida, “três jovens executivos,<br />

KEN, DICK e HARRY, vestindo ternos aparentemente idênticos, tiram os<br />

seus chapéus e se postam no fundo do elevador lotado” (WEINER, 2006b:<br />

7). Aqui já temos relações sociais que se inscrevem na caracterização<br />

dos personagens. Ou seja, a descrição do ascensorista como um homem<br />

negro e a ausência de marcas raciais nos três executivos faz a gente<br />

subsumir, pelo período histórico em que se passa a série, que Ken, Dick<br />

e Harry são brancos. Essa omissão é uma maneira de inserir no subtexto,<br />

nas camadas mais fundas da escrita, a ordem social que impera entre os<br />

indivíduos.<br />

55<br />

Original em inglês: “the script may describe a setting or character in literary terms that apparently exceed or<br />

cannot be resolved into the language of film, but the verbal language may prompt the director’s imagination into<br />

providing a correlative image, mood, or texture”.<br />

86


Fig. 3: Três executivos brancos e o ascensorista negro. Fonte: Mad Men, DVD da Primeira<br />

Temporada, AMC.<br />

Em seguida na cena, “uma jovem e atraente secretária, segurando<br />

a bolsa à frente do peito, sobe no elevador e vira as costas para eles.<br />

Os três homens se entreolham e acenam a cabeça afirmativamente”<br />

(WEINER, 2006b: 7). Depois de um comentário malicioso de Ken, os<br />

outros rapazes olham de modo lascivo para a jovem secretária, que se<br />

contrai recatada e olha para baixo. Além de um ordenamento racial<br />

bem estabelecido – o homem negro precisa ser caracterizado, o homem<br />

branco é subentendido –, a cena rapidamente nos aponta que a questão<br />

de gênero estará no horizonte da série (nas temporadas seguintes, ainda<br />

que a questão racial tenha emergido com as lutas por direitos civis nos<br />

Estados Unidos, nenhum personagem negro vira protagonista ou mesmo<br />

coadjuvante de destaque. O mesmo não se pode dizer do papel que as<br />

personagens femininas desempenham até o final).<br />

Essa jovem secretária que entra no elevador é Peggy, figura central<br />

para a história. Além dessa caracterização mais direta, “jovem e atraente”,<br />

Peggy só será descrita de novo mais adiante, quando Joan Holloway a<br />

introduz ao novo ambiente de trabalho, fazendo comentários tanto sobre<br />

a estrutura organizacional da agência quanto sobre o melhor modo de<br />

agradar o padrão: “Eu não sei quais são os seus objetivos aqui, mas não<br />

exagere no perfume” (WEINER, 2006b: 11) 56 . E mais adiante explica para<br />

56<br />

Original em inglês: “I don’t know what your goals are, but don’t over-do it with the perfume”.<br />

87


Peggy, com uma sutileza quase explícita, qual o seu papel enquanto<br />

secretária de Don Draper:<br />

JOAN<br />

Ele pode agir como se quisesse uma secretária, mas na maior parte do<br />

tempo eles procuram algo entre uma mãe e uma garçonete. O resto do<br />

tempo, bem –– (confidencialmente)<br />

Vá para casa, pegue um saco de papel, e corte dois furos. Ponha na sua<br />

cabeça, tire a roupa, e se olhe no espelho. Avalie realmente quais são os<br />

seus fortes e os seus fracos. E seja honesta. (WEINER, 2006b: 11) 57<br />

Essa e outras cenas, já posicionadas aí, no primeiro ato, quando pela<br />

primeira vez adentramos nos corredores da Sterling Cooper Advertising,<br />

tem uma série de funções na organização de um piloto. Primeiro,<br />

apresentam os personagens e os espaços que o programa vai repetir,<br />

semana após semana, na sua estrutura seriada. Além disso, constroem<br />

a atmosfera particular de uma grande corporação, com as suas disputas<br />

internas e a sua estratificação de gênero, em uma época de explosão da<br />

sociedade do espetáculo e da publicidade (antes mais relacionada ao seu<br />

uso político e social) como força motriz da expansão das indústrias de<br />

bens de consumo. É o American way of life atravessando uma década, os<br />

anos sessenta, em que o nacionalismo, a luta pelos direitos civis, a defesa<br />

do capitalismo durante a Guerra Fria, a transformação comportamental<br />

e mesmo o antibelicismo hippie são construídos através de modulações<br />

climáticas, que se presentificam em cores, sons, arquiteturas, corpos e<br />

performances que, em vez de endossar um possível ufanismo nacionalista,<br />

procura investir em uma atmosfera de dúvida, de crise subjetiva, quase<br />

contraditória.<br />

No roteiro do piloto, um elemento é crucial para estabelecer, no nível<br />

sensório, essa atmosfera de indeterminação: a fumaça, que serpenteia<br />

dispersamente pelo ar, saindo em baforadas das bocas ansiosas, mas que<br />

está nas cenas noturnas, em casas de show (como a que Pete e seus<br />

57<br />

Original em inglês: “He may act like he wants a secretary, but most of the time they’re looking for something<br />

between a mother and a waitress. The rest of the time, well – (confidentially) Go home, take a paper bag, cut<br />

eyeholes out of it. Put it over your head, get undressed and look at yourself in the mirror. Really evaluate where<br />

your strengths and weaknesses are. And be honest.”<br />

88


amigos comparecem para a sua despedida de solteiro), em restaurantes<br />

(como o que Don leva Rachel no terceiro ato) ou mesmo no trem e no<br />

automóvel que levam Don para a sua mulher e filhos no subúrbio. Ou<br />

seja, a fumaça, para além de sua função no nível dramático/narrativo (a<br />

campanha do Lucky Strike como conflito central do episódio piloto) ou<br />

mesmo o mote para uma abordagem sociológica, que busque discutir o<br />

lugar do tabaco na vida dos norte-americanos, funciona como um efeito<br />

de presença, no nível visual, sensório, que muitas vezes embaça a visão<br />

que nós, espectadores, temos dos personagens.<br />

Fig. 4: Don, Rachel e a fumaça. Fonte: Mad Men, DVD da Primeira Temporada, AMC.<br />

Essa noção da fumaça como um elemento de criação de atmosfera,<br />

que estamos defendendo aqui, pode ser muito bem percebida no episódio<br />

exibido na televisão, endossado ainda pelo uso recorrente de chiaroscuro<br />

na fotografia, e mesmo do consumo indistinto, na narrativa, de maços e<br />

maços de cigarro tanto pelos homens quanto pelas mulheres.<br />

89


No entanto, antes de aparecer materializada nas imagens e sons<br />

transmitidos na televisão, ou vistos em arquivos baixados da internet, ou<br />

ainda admirados na alta definição dos blu-rays com seu material extra,<br />

essa atmosfera de indeterminação, essa visão nebulosa que o vapor dos<br />

cigarros torna sempre muito ambígua, já estava construída nas páginas<br />

do roteiro. Estava, por exemplo, na descrição dos ambientes, já em sua<br />

primeira cena, no bar em que Don conversa com o copeiro negro:<br />

4 INT. KNICK KNACK BAR<br />

Estofamento de vinil e paredes espelhadas, mas tudo muito novo. É<br />

depois do trabalho, mas as mulheres mantêm o cabelo arrumado, e<br />

o nó das gravatas está bem apertado no pescoço dos homens. Copos<br />

de uísque com soda e de Martini retinem sob uma música calma, e<br />

em todo canto há imagens e sons de pessoas fumando (WEINER,<br />

2006b: 1) 58<br />

É a primeira cena da série, a primeira imagem mais específica<br />

de um espaço e de corpos que transitam nele. Imagens e sons<br />

de pessoas fumando, como está na rubrica, seria então um tropo<br />

bastante recorrente na série – a ponto, por exemplo, de Betty Draper<br />

contrair, na última temporada, um câncer de pulmão. No entanto,<br />

o que o roteiro propõe não é apenas o cigarro e a fumaça como<br />

um elemento narrativo, que produz relações entre os personagens<br />

e determina, em larga medida, o arco dramático de Don Draper<br />

na primeira temporada. Junto a esse nível dramático/narrativo, o<br />

roteiro utiliza a fumaça para produzir, em nível sensório, um efeito<br />

determinado na materialidade da imagem. Talvez o momento mais<br />

evidente em que a fumaça desempenha essa função seja durante a<br />

despedida de solteiro de Pete Campbell:<br />

27 INT. O Quarto Escorregadio.<br />

Notas de jazz chiam ao fundo. Uma STRIPPER loira e rechonchuda está<br />

no palco. Ela desabotoa o seu vestido nas costas e devagar o joga para<br />

o chão.<br />

58<br />

Original em inglês. Tradução nossa. “Vinyl upholstery and mirrored walls, but brand new. It’s after work, but the<br />

women have their hair done and each man’s tie is pushed to the top of his collar. Highballs and martinis clink<br />

under quiet music and everywhere are the sights and sounds of smoking”.<br />

90


Através do ar cheio de fumaça nós vemos Ken, Dick, Harry, Salvatore<br />

e Pete sentados em uma cabine no canto. Eles estão bebendo e sorrindo,<br />

mas Pete não está no clima para participar (WEINER, 2006b: 42) 59 .<br />

Aqui, o ar cheio de fumaça e o clima de Pete na festa são indicações<br />

diretas de uma atmosfera, da criação de uma ambiência particular em que<br />

o visível, no nível sensório (a fumaça) está diretamente relacionado com<br />

o afetivo, no nível dramático (o espírito de Pete na própria festa), ambos<br />

mediados por um estilo de escrita específico (nível linguístico). Mad Men,<br />

enquanto narrativa seriada, buscou em sua longa vida replicar essa lógica<br />

de organização do mundo ficcional, até o último plano da série, quando<br />

Don Draper, mesmo iluminado por um sorriso discreto ao som de um<br />

sino meditativo, teria (ou não?) planejado a famosa campanha da Coca-<br />

Cola, Hilltop, ao som de uma canção louvando a humanidade, tão cínica<br />

quanto emblemática.<br />

É portanto ao usar a fumaça para produzir, sensorialmente, essa<br />

atmosfera de ambiguidade que tão bem define Mad Men, que o roteiro<br />

do episódio piloto desempenha com perfeição o seu ofício: define que<br />

é, e o que será, numa repetição que eternamente se inova, não só os<br />

personagens, o modelo episódico ou mesmo os conflitos que a longo<br />

prazo se tensionam, mas o próprio espírito seriado que tão fortemente<br />

afeta os seus espectadores e assim garante, para além de uma publicidade<br />

deslumbrada ou de fidelizações circunstancialmente emotivas, uma<br />

experiência estética de fato singular.<br />

Referências<br />

DIMAGGIO, Madeline. How to write for television. New York: Touchstone, 2008.<br />

FELINTO, Erick. Passeando no labirinto: Ensaios sobre as Tecnologias e as Materialidades da<br />

Comunicação. Porto Alegre: PUCRS, 2006.<br />

____________. Materialidades da comunicação: por um novo lugar da matéria na teoria da<br />

comunicação. Ciberlegenda, n.º 05, 2001. Disponível em: http://www.ciberlegenda.uff.br/index.<br />

php/revista/article/view/308 Acesso em: 11 jul. 2016.<br />

59<br />

Original em inglês. Tradução nossa. “Live jazz sizzles in the background. A buxom blonde STRIPPER is onstage.<br />

She unzips her dress in the back and slowly shakes it to the floor. Through the smoke-filled air we see Ken, Dick,<br />

Harry, Salvatore, and Pete sitting at a corner booth. They are drinking and laughing, but Pete is in no mood to<br />

participate”.<br />

91


GONÇALO, Pablo Pires de Campos Martins. O cinema como refúgio da escrita:ekphrasis e roteiro,<br />

Peter Handke e Wim Wenders, arquivos e paisagens. Tese de doutorado. Escola de Comunicação –<br />

UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.<br />

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da literatura.<br />

Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2014.<br />

______________________. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana<br />

Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010.<br />

MCKEE, Robert. Story: Substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita do roteiro. Curitiba: Arte<br />

e Letra, 2006.<br />

MÜLLER, Adalberto. Além da literatura, aquém do cinema? Considerações sobre a intermidialidade.<br />

Outra Travessia, UFSC, n.º 7, Florianópolis, 2008, p. 47-53.<br />

PRICE, Steve. The screenplay: authorship, theory and criticism. Londres: Palgrave Macmillan, 2010.<br />

RABKIN, William. Writing the pilot. New York: moon & soon & whiskey inc., 2011.<br />

WEINER, Matthew. Smoke gets in your eyes. 2006a. Disponível em: . Acesso em: 13 mai. 2015.<br />

_________________. Smoke gets in your eyes. 2006b. Disponível em: <br />

Acesso em: 09 fev. 2016.<br />

92


“A cara do Brasil” segundo o SBT<br />

Rafael Barbosa Fialho Martins 60<br />

Breve contextualização da pesquisa<br />

Este trabalho é parte da pesquisa de mestrado intitulada “A TV mais feliz<br />

do Brasil: As vinhetas institucionais do SBT como proposta de interação<br />

com a audiência”, que pretende compreender a relação fortemente<br />

afetiva e passional dos telespectadores com o referido canal de televisão.<br />

Desde meados de 2010 encontramos, em sites e fóruns sobre televisão<br />

e audiência, uma participação expressiva de internautas defendendo o<br />

SBT – são os “SBTistas”, que, autodenominados, organizam-se em blogs e<br />

redes sociais desde 2005, interagindo e expressando sua admiração pelo<br />

SBT (MARTINS, 2013; MARTINS E TORRES, 2014).<br />

Assim, buscando esmiuçar essa “amizade” entre o público e o canal,<br />

focamos na dimensão estilística do SBT que, quando não ignorada, é<br />

apenas criticada por destoar do padrão estético estabelecido pela TV<br />

Globo. Este estudo vem, então, debruçar-se sobre as imagens das vinhetas<br />

do canal, tentando perceber como elas constroem um posicionamento<br />

institucional que se traduz em um “Estilo SBT” capaz de contribuir para a<br />

interação com o telespectador.<br />

O presente artigo é um excerto da análise de algumas vinhetas de<br />

nosso corpus principal e apresenta-se como um verdadeiro exercício<br />

inicial de contato com o objeto e a metodologia do estilo televisivo<br />

(BUTLER, 2010). As vinhetas aqui analisadas foram produzidas em<br />

2008, com o mote principal “O nosso carinho é pra você”; o intuito<br />

das peças era agradecer a fidelidade do telespectador brasileiro com<br />

a Emissora, que afirmava que ela devia tudo a seu público – se a<br />

audiência devotava grande carinho ao SBT, era o canal que devia<br />

agradecer, e não o contrário.<br />

60<br />

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais;<br />

integrante do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT). E-mail: rafaelbfialho@<br />

gmail.com.<br />

93


Caracterização das vinhetas<br />

Para expressar tais agradecimentos, as vinhetas obedeciam a um roteiro<br />

simples: aparição dos artistas do SBT dentro da tela de uma televisão<br />

conversando com telespectadores de cada região/estado do Brasil.<br />

Sabemos que foram produzidos exemplares com vários membros do cast<br />

do SBT, mas serão analisadas apenas as peças com a presença de Silvio<br />

Santos; primeiramente porque foram as únicas encontradas na internet,<br />

porque são um raro momento em que Silvio Santos atua diretamente nas<br />

vinhetas e também porque acreditamos que elas têm representatividade<br />

sobre os elementos centrais do “Estilo SBT” que buscamos delimitar<br />

em nossa pesquisa de mestrado, acenando como uma oportunidade de<br />

aprofundamento e exercício de análise.<br />

Nosso corpus é composto por oito vinhetas (YOUTUBE, 2008) de<br />

25 segundos cada, nas quais há a proposta de retratar alguns estados<br />

brasileiros e alguns sentimentos pelos quais o SBT agradece a quem o<br />

assiste. Descreveremos, abaixo, apenas a vinheta relativa ao estado da<br />

Bahia, mas ressaltamos que ela repete a estrutura narrativa de todas as<br />

outras peças.<br />

A vinheta começa com uma mulher vestida com trajes típicos da<br />

baiana vendedora de acarajé, com turbante e vestido brancos. Enquadrada<br />

em plano médio, ela usa vários colares, brincos de argola e segura<br />

uma espécie de pilão. O cenário retrata uma praia, onde vemos o mar,<br />

palmeiras e uma igreja. Devido ao guarda-sol e às comidas que vemos em<br />

primeiro plano (acarajé, feijoada, arroz e feijão), presumimos que ela é a<br />

responsável pela barraca. Ela está em pé, parada defronte a uma televisão<br />

e, quando a TV emite a imagem do mapa do Brasil composta com parte<br />

da bandeira brasileira, de onde surge a logomarca do SBT, ela diz “SBT, a<br />

nossa admiração é pra você!”.<br />

Logo em seguida, ouvimos um efeito sonoro que sugere mágica<br />

e, ao som incidental de Silvio Santos vem aí, Silvio Santos aparece na<br />

televisão e diz, em tom de ressalva: “Não, não, não, a nossa admiração<br />

é pra você!”. O apresentador estende as mãos, que ultrapassam a tela<br />

do televisor, e cumprimenta a mulher com um aperto de mão. O plano<br />

médio conjunto iguala as posições dos personagens dentro do quadro.<br />

A música muda para uma trilha instrumental de background que dá a<br />

94


sensação de dinamismo. A baiana se surpreende e, animada, pergunta:<br />

“Ô meu rei, meu Nosso Senhor do Bonfim! É o senhor mesmo, seu<br />

Silvio?”. Ele responde: “Claro que sou eu, ora!”. Ela puxa Silvio levemente<br />

para fora da tela e convida-o: “Venha, venha provar do meu acarajé!”.<br />

Enquanto ouvimos o apresentador perguntar “Será que é bom?”, a<br />

imagem diminui de tamanho e dá lugar a uma composição gráfica com<br />

o mapa do Brasil, a logo do SBT, a bandeira do Brasil e um ponto<br />

turístico do local retratado (no caso, o elevador Lacerda). O letreiro diz:<br />

“A nossa admiração é pra você!”<br />

Fig. 1 Frames da vinheta analisada. Reprodução.<br />

Análise<br />

O que as vinhetas dizem?<br />

Ao lançar o olhar – ou melhor, os ouvidos – para nosso objeto,<br />

perguntamos o que as vinhetas dizem por meio do som, importante<br />

elemento estilístico. Isso porque consideramos “estilo televisivo” conforme<br />

a definição de Jason Mittell (2010: 176), para quem o estilo é a utilização<br />

sistemática de técnicas expressas em imagem e som de modo a cumprirem<br />

uma função dentro do texto; ou seja, uma variedade de elementos formais<br />

que são usados em todos os produtos televisivos para comunicar significados<br />

e obter respostas dos telespectadores. Os elementos do estilo – encenação,<br />

movimento de câmera, edição, som e artes gráficas – embora sejam os<br />

mesmos vistos no cinema, muitas vezes assumem usos e apropriações<br />

diferentes na televisão (MITTELL, 2010: 176).<br />

95


O som, especificamente, divide-se em fala, música e efeitos sonoros.<br />

Embora apresente efeitos sonoros e músicas incidentais, as peças em<br />

análise têm como base principal o diálogo, o discurso verbal; se pensarmos<br />

que a situação retrata a proximidade entre o SBT e seu público, o diálogo<br />

torna-se uma escolha pertinente, uma conversa informal e descontraída.<br />

É interessante observar que nas peças analisadas, o SBT não agradece<br />

ao público pela audiência dada ao canal – até porque os números da<br />

época não eram tão dignos de comemoração –, mas exalta os valores<br />

provenientes da interação canal-público; por isso as vinhetas dizem:<br />

“O (A) nosso (a) amor/carinho/atenção/confiança/simpatia/admiração/<br />

amizade/alegria é pra você”.<br />

Por isso, nas vinhetas em análise, a todo momento Silvio Santos tenta<br />

frisar, em tom de modéstia e humildade, que é o SBT que deve agradecer,<br />

admirar, amar, confiar, alegrar-se e dar carinho ao telespectador. O estilo<br />

– a fala de Silvio, especificamente – cumpre aqui a função de saudar/<br />

interpelar o telespectador:<br />

Paraibana: – SBT, a nossa amizade é pra você!<br />

Silvio: – Não, não, paraibana, a nossa amizade é pra vocês que moram<br />

na Paraíba!<br />

Paraibana: – Silvio Santos, o povo da Paraíba te ama!<br />

Silvio: – Ah, eu é que agradeço o povo paraibano a atenção que dão a<br />

mim e aos programas do SBT!<br />

Acreditamos que quando os personagens se colocam diante da<br />

televisão que transmite o SBT dizendo por exemplo “Nosso amor é pra<br />

você”, há aqui um exemplo claro daquilo que François Jost (2010: 51)<br />

chamou de “emissora como pessoa”. Segundo o autor, para a delimitação<br />

de sua identidade, uma emissora televisiva lança mão de duas instâncias:<br />

como “responsável pela programação” e “como pessoa”. A primeira<br />

diz respeito às escolhas da grade de programas, que criam sentido e<br />

forjam um diferencial do canal. Já a segunda refere-se à imagem de si<br />

mesma que a emissora projeta, uma personalidade construída aos olhos<br />

do telespectador que conta com operadores para que esse ethos seja<br />

comunicado: a publicidade, a autopromoção, a “vestimenta” (entendida<br />

por nós como a unidade gráfico-visual) e a logomarca.<br />

96


Assim, ao dirigir sua fala ao SBT tratando-o como “você”, os<br />

personagens reforçam uma já consolidada identidade do canal que<br />

permite o reconhecimento e o tratamento de quem o assiste como se ele<br />

fosse uma pessoa. Se pensarmos que, no caso em questão, Silvio Santos<br />

é o próprio dono do SBT e influencia diretamente sua programação, a<br />

reflexão de Jost torna-se um caso literal em que a identidade de uma<br />

emissora ganha corpo.<br />

Fernanda Freitas (2011), em análise das vinhetas do SBT sob uma<br />

perspectiva das relações públicas, constata que, no caso de Silvio Santos,<br />

o que se vê é uma mitificação de sua figura, o que contribui para a<br />

mitificação do SBT como um todo, já que seu dono personifica a marca.<br />

Assim, a identificação do público é facilitada graças ao carisma de Silvio<br />

Santos, que acena com um discurso praticamente “evangelizador” – o que<br />

nos possibilita entender o fenômeno de adoração dos SBTistas à emissora<br />

e o endeusamento que proporcionam ao comunicador:<br />

este caráter disciplinar e evangelizador nos mostraram que não somente<br />

o Poder e o Carisma proporcionam isso à empresa, mas a maneira como<br />

a Marca foi construída definiu como ela se comunica com seus Públicos.<br />

Não obstante o Mito nos pareceu justificar este comportamento, esta<br />

personalidade do SBT, já que o mesmo acrescentou à Organização uma<br />

qualidade quase que intangível de fidelização (FREITAS, 2011: 140).<br />

Nesse sentido, Silvio Santos acena como síntese da cumplicidade<br />

entre SBT e público, e, por se tratar de uma pessoa real, concretiza os<br />

bens simbólicos circulantes nesta amizade, como o amor, a confiança, a<br />

atenção e outros sentimentos que perpassam a história e a programação<br />

de seu canal.<br />

O que as vinhetas mostram?<br />

Encaramos o estrato visual das vinhetas segundo a concepção de<br />

Jason Mittell (2010), que o classifica como a encenação, ou seja, a mise<br />

en scène, tudo o que aparece na frente da câmera: cenário, adereços,<br />

maquiagem, iluminação, figurino e performance dos atores (atuação).<br />

No que diz respeito à atuação dos personagens, que encarnam<br />

telespectadores do SBT, ela soa de certo modo artificial, afetada,<br />

excessiva, pouco natural ou realista, refletindo o tipo de atuação que se<br />

97


vê, por exemplo, nas novelas da mesma Emissora, que apresenta forte<br />

tradição em novelas mexicanas dubladas e remakes nacionais de tramas<br />

latinas.<br />

De modo geral, os personagens se surpreendem com a presença<br />

de Silvio Santos, que desperta um afeto transmitido não só pelo<br />

texto do diálogo (que associa Silvio Santos à alegria do samba, por<br />

exemplo), mas também pela expressão corporal – a pernambucana<br />

fica empolgada, a paulistana leva a mão ao peito, o brasiliense se<br />

curva – e pela entonação de voz. Já Silvio Santos atua da mesma<br />

forma que em seus programas, demonstrando cordialidade, carinho,<br />

atenção e tentando frisar a todo momento que é o SBT quem tem que<br />

agradecer ao telespectador pela relação construída entre eles, e não<br />

o contrário. Embora a face dos telespectadores não seja enquadrada<br />

de frente, percebe-se que eles estão alegres ao assistir ao SBT e se<br />

deparar com sua figura mais importante.<br />

Silvio Santos: a personificação do SBT<br />

A presença efetiva de Silvio Santos nestas vinhetas merece destaque<br />

não apenas por ser uma situação atípica (já que em outras peças ele<br />

costuma aparecer por meio de imagens de arquivo), como também<br />

pela maneira em que ele se apresenta. Como já dissemos, de modo<br />

geral, sua performance não destoa de sua atuação nos programas,<br />

pois Silvio Santos conversa com os telespectadores de forma bem<br />

humorada e simples, como se fossem realmente “colegas de trabalho”,<br />

como costuma dizer.<br />

Silvio Santos aparece com o visual que o consagrou, impecavelmente<br />

vestido e com o microfone atrelado ao peito, com o objetivo de deixar<br />

claro que, se o telespectador brasileiro agradece o carinho, a confiança, a<br />

amizade do SBT, é o Canal que deve esse agradecimento – nem que para<br />

isso seu próprio dono tenha que fazê-lo. Contudo, não bastariam palavras<br />

de Silvio Santos dirigidas ao público ou qualquer outra alternativa: é<br />

preciso sair da televisão, ir ao encontro do telespectador, pegar em sua<br />

mão e saudá-lo até que a vinheta acabe. 61<br />

61<br />

Silvio Santos fica de mãos dadas com os personagens até o fim das vinhetas; as exceções são os casos da<br />

pernambucana e do carioca. Na vinheta da gaúcha, ela não chega a cumprimentar o apresentador porque segura<br />

um chimarrão com as duas mãos.<br />

98


Talvez a principal função da presença de Silvio Santos em tais<br />

peças seja materializar e personificar o canal. Silvio Santos é o SBT<br />

porque, primeiro, surge na tela da TV que mostra a logomarca do canal<br />

e também porque agradece sempre no plural: “Não, não, o nosso amor<br />

é pra vocês, pernambucanos” – diz a frase levando a mão à região do<br />

peito.<br />

Logo, sua fala evoca não apenas sua pessoa, mas todos os<br />

profissionais do SBT representados em sua corporeidade; Silvio não<br />

é apenas um mascote, um símbolo ou um garoto propaganda do<br />

canal, mas ele é o próprio Canal, já que, além de ser o dono, atua<br />

diretamente nas escolhas de programação. Por isso o apresentador<br />

configura-se como um bom exemplo para discutir as categorias<br />

delimitadas por Jost – emissora como pessoa, como programação e<br />

como marca –, já que reúne as três. Podemos sugerir que a figura de<br />

Silvio Santos facilita a adesão ao SBT, constituindo sua “face humana”,<br />

que pode ser facilmente assimilada, se pensarmos no carisma, tradição<br />

e popularidade que ele representa. 62<br />

SBT: a cara do Brasil?<br />

Notamos uma característica inusitada: as atrizes que interpretam a<br />

paraibana e a pernambucana têm sotaque e entonação marcadamente<br />

semelhante àquele que pode ser ouvido em São Paulo. Embora o Brasil<br />

seja um país multicultural e diverso, soa incoerente, por exemplo,<br />

uma pernambucana com entonação de voz semelhante àquela falada<br />

por paulistas. Por outro lado, esse aspecto pode ser explicado pelo<br />

fato de o SBT concentrar sua produção de rede em São Paulo, e<br />

por isso é mais comum ver lugares, falas e sotaques daquela região;<br />

algo semelhante ocorre com a TV Globo, cujos artistas, locações de<br />

novelas e participantes de programas remetem ao Rio de Janeiro,<br />

onde o canal tem sua sede.<br />

<strong>Entre</strong>tanto, mais do que denotar uma possível falha de escalação de<br />

elenco, que poderia ter primado por atores realmente nativos das regiões<br />

retratadas ou que pelo menos tentassem copiar traços de sotaques<br />

62<br />

A título de comparação, podemos citar o caso da Rede Globo, que não conseguiu empreender tão satisfatoriamente<br />

a estratégia de associar sua imagem à de seu proprietário, Roberto Marinho.<br />

99


específicos, esse aspecto nos intrigou e ampliou em grande medida nosso<br />

percurso de análise pretendido inicialmente.<br />

Ao deixarmos nosso objeto falar, ele abriu nossos olhos para uma<br />

questão até então não enxergada nas vinhetas em tela; aparentemente<br />

“ingênuas”, percebemos que elas podiam ser pensadas como tentativas<br />

de representação e figuração do Brasil. Com esse viés de interpretação<br />

em mãos, vimos que a suposta identidade nacional encenada pelo SBT<br />

poderia e deveria ser alvo de reflexão. Afinal, qual é o Brasil que as<br />

vinhetas constroem? Quais são as “feições” do canal que já chegou a se<br />

autointitular “a cara do Brasil” e que se pretende ser o Sistema Brasileiro<br />

de Televisão?<br />

Tal discussão se faz importante dada a proeminência da televisão em<br />

nosso país: atualmente os brasileiros passam, em média, 4h31 por dia<br />

em contato com a televisão de segunda a sexta-feira e 4h14 nos finais<br />

de semana (BRASIL, 2014). 63 Segundo informações contidas em seu site,<br />

o SBT opera em sinal aberto que abrange todos os estados do país, com<br />

uma cobertura de 97,7% dos lares com televisão, atingindo 204 milhões<br />

de telespectadores e 62 milhões de lares por meio de suas 114 emissoras<br />

(SBT, 2016).<br />

Essa exposição expressiva à televisão dá, então, inúmeros espaços<br />

para que as mais variadas representações sejam veiculadas e recebidas<br />

pelo telespectador; entre elas está a de “[...] um sentimento nacional,<br />

que articula incluídos e excluídos em torno de uma certa ideia básica de<br />

Brasil, e existe ao mesmo tempo como unidade e diversidade” (PRIOLLI,<br />

2003: 15).<br />

Stuart Hall (2006) nos recorda de que as culturas nacionais são<br />

constituídas também por símbolos e representações, um discurso que<br />

influencia nossas práticas cotidianas e a concepção que temos de<br />

nós mesmos; ou seja, uma identidade da nação produzindo nossas<br />

identidades individuais. Seguindo o raciocínio do autor, as identidades<br />

nacionais não nascem conosco, mas são formadas a partir da<br />

representação. Uma certa “brasilidade” foi forjada em nossa sociedade<br />

e apresentada a nós por meio da literatura, dos costumes populares<br />

63<br />

Tais índices são superiores aos encontrados na Pesquisa Brasileira de Mídia referente ao ano de 2013, quando o<br />

brasileiro assistia a 3h29 durante a semana e 3h32 aos sábados e domingos.<br />

100


e, particularmente, pela televisão – o que reitera a pertinência da<br />

presente discussão.<br />

Mittell (2010) reforça o potencial da televisão em influenciar<br />

comportamentos, crenças, atitudes e a ideia que concebemos de<br />

nosso país de origem, e, embora o autor analise a TV e a sociedade<br />

norte-americana, tal pensamento pode ser estendido ao contexto<br />

brasileiro. Isso porque Mittell considera que todos os significados<br />

veiculados no fluxo televisivo são visões que não se apresentam<br />

como um reflexo fidedigno do mundo, mas como se fossem<br />

aqueles espelhos de parque de diversões que alteram e distorcem<br />

imagens: alguns aspectos ficam maiores, outros menores, outros<br />

desaparecem. Há então o processo de representação, pelo qual a<br />

televisão apresenta o “mundo real” que, na verdade, é alterado com<br />

seleções e omissões.<br />

Acreditamos que no caso de nosso objeto, os aspectos relacionados<br />

à televisualidade nos ajudam a compreender as maneiras pelas quais<br />

uma certa ideia de Brasil é representada, e por isso exploramos agora a<br />

“imagem” que as vinhetas dão a ver. Partimos da análise estilística porque<br />

ela dá forma a essa representação – como Mittell atesta, “[...] tudo a que<br />

assistimos é moldado pelas técnicas de filmagens e edição, que destacam<br />

alguns aspectos do mundo e deixam outros para fora da tela” (MITTELL,<br />

2010: 270). 64<br />

Atestando que as peças engendram e refletem representações acerca<br />

de nosso país, nosso objetivo central é explorar a maneira pela qual<br />

elas são figuradas no nível estético/estilístico no caso do SBT – sem,<br />

claro, desvinculá-las do contexto cultural a que pertencem – formando<br />

um regime visual sobre o Brasil.<br />

Cenografia, objetos de cena e figurino<br />

Contribuem em maior medida para essa figuração a dimensão<br />

estilística da encenação, seja na atuação dos atores (como já abordamos),<br />

seja na cenografia e no figurino, elementos pormenorizados no quadro<br />

na página 102:<br />

64<br />

Tradução livre do trecho: “[...] everything we see is shaped by the techniques of camerawork and editing, which<br />

highlighting some aspects of the world while leaving others off-screen”.<br />

101


UF Cenário Adereços de cena Sotaque/Expressões Figurino Referências (visuais/verbais)<br />

Panelas de barro, pratos de comida,<br />

BA Praia com uma igreja<br />

plantas, pilão<br />

“Ô meu rei”, “Meu Nosso Senhor do<br />

Bonfim”<br />

Baiana (vestes brancas), colares,<br />

Elevador Lacerda, acarajé<br />

brincos, pulseiras<br />

Avenida Paulista, carros<br />

SP<br />

Cadeiras e mesas de restaurante Sotaque paulista Blazer MASP, Avenida Paulista, Catedral da Sé<br />

passando<br />

Fachada do Congresso<br />

DF<br />

- Sotaque indefinido Camisa e calça social, maleta, relógio Palácio do Planalto<br />

Nacional<br />

PB<br />

Quiosque de praia, mar<br />

com um barco passando<br />

Cocos, máquina de extração de água<br />

de coco<br />

Sotaque paulista Biquíni, tanga, pulseira, brincos João Pessoa<br />

Rua de paralelepípedos,<br />

PE<br />

Guarda-sol Sotaque paulista Roupa de frevo, sombrinha Frevo, carnaval<br />

bloco de frevo dançando<br />

RJ Lapa, bonde passando Holofote, caixas de som, microfone Sotaque carioca<br />

Traje do “malandro” (blazer e calça<br />

branca, chapéu)<br />

Samba, Pão de Açúcar<br />

RN Quiosque na praia Buggy, mesa Sotaque indefinido Boné, camiseta, calça jeans Dunas, Natal, Fortaleza dos Reis Magos<br />

Campo, casa no estilo<br />

europeu, Maria Fumaça<br />

RS<br />

passando, borboletas Chimarrão, saco de ervas “Bah”, Sotaque gaúcho Vestido Chimarrão, Monumento aos Açorianos<br />

passando<br />

Quadro 2: O Brasil segundo o SBT. Elaborado pelo autor.<br />

102


O conteúdo do quadro revela que os objetos de cena, os cenários<br />

e figurinos escolhidos para representar os estados baseiam-se em<br />

estereótipos: a baiana vendendo acarajé, a gaúcha tomando chimarrão,<br />

a pernambucana dançando frevo e o carioca malandro são construções<br />

simbólicas já consagradas que apresentam visões limitadas da rica cultura<br />

brasileira, o que ocorre em outras vinhetas do SBT e dos demais canais:<br />

Fig. 2: Frames de vinhetas do SBT: a baiana do acarajé, o frevo pernambucano, o nordestino<br />

vaqueiro e a sulista branco-europeia. Reprodução.<br />

Fig. 3: Representação da baiana em vinheta da RedeTV! e da TV Cultura. Reprodução.<br />

103


Parece-nos também que os cartões postais das cidades são uma<br />

espécie de “esquema” encontrado pelos produtores de vinhetas quando<br />

produzem peças que retratam o Brasil, o que pode ser visto em peças do<br />

SBT e de outras emissoras:<br />

Fig. 4: O Brasil visto no SBT a partir de seus cartões postais: Av. Paulista (SP), Elevador<br />

Lacerda (BA), Congresso Nacional (DF), Cristo Redentor (RJ), Cataratas do Iguaçu (PR)<br />

e Jardim Botânico (PR). Reprodução.<br />

Fig.5: Cartões postais em vinhetas. Cristo Redentor (Band), Pão de Açúcar (TV Brasil),<br />

Congresso Nacional (Record) e MASP (TV Cultura). Reprodução.<br />

104


A recorrência das mesmas imagens, símbolos e referências tidas como<br />

“brasileiras” revela uma tentativa de incluir uma “iconografia” da identidade<br />

nacional que abarque todo o país por meio da televisão. Contudo, se a<br />

TV no Brasil nasceu regional, gradualmente as redes de micro-ondas e os<br />

satélites contribuíram para a consolidação de um modelo de produção<br />

centralizada no eixo RJ-SP que promoveu a circulação de um imaginário<br />

homogêneo pretensamente “brasileiro”. Tais aspas são explicadas por<br />

Gabriel Priolli (2003), que lembra que<br />

a televisão brasileira, assim como o próprio país, é controlada por uma<br />

elite majoritariamente branca, radicada na região sudeste mas exógena,<br />

voltada para a Europa e os Estados Unidos, de onde acredita provirem<br />

todo o progresso e a civilização que a espécie humana pode almejar.<br />

Essa elite, que vive de costas para o restante do Brasil, cria a sua peculiar<br />

imagem do país, quase sempre folclorizando e discriminando índios,<br />

negros e asiáticos, pelo ângulo racial; mulheres e homossexuais, pelo<br />

ângulo do gênero; e nordestinos e nortistas, pelo ângulo geográfico<br />

(PRIOLLI, 2003: 16).<br />

Ana Lúcia Medeiros (2006) lembra que durante muito tempo<br />

na TV notava-se a ausência de sotaques variados, os quais foram<br />

homogeneizados para a consolidação de um padrão estético – uma<br />

“norma culta da televisão brasileira” que reduzia as características locais<br />

a uma prosódia pretensamente neutra, mas fortemente influenciada por<br />

sotaques paulistas e cariocas – um “carioquês paulistano”. <strong>Entre</strong>tanto, a<br />

autora reconhece que esse padrão vem sendo flexibilizado, e hoje se dá<br />

mais espaço a outros sotaques. Porém, permanecem incongruências, já<br />

que, conquanto na telenovela haja tentativas de aproximação com falas<br />

locais, no telejornalismo ainda ocorre um distanciamento.<br />

Como consequência desse posicionamento excludente, Priolli (2003:<br />

17) destaca a difusão, no plano cultural, de uma determinada imagem do<br />

Brasil – construída por um grupo de profissionais, redatores, produtores,<br />

roteiristas e artistas – influenciada por valores, mentalidade, expressões,<br />

gírias e inflexões das coloquialidades carioca e paulista:<br />

A “identidade nacional”, portanto, ou a visão que os brasileiros têm<br />

de si mesmos e do país passou a ser mediada fortemente pelo ponto<br />

de vista das duas maiores metrópoles. [...] Culturas regionais fortes,<br />

como a nordestina ou a gaúcha, perderam qualquer chance de uma<br />

105


difusão nacional autônoma, a salvo da interpretação, em geral redutora<br />

e folclorizante, que lhes dão as emissoras paulistas e cariocas (PRIOLLI,<br />

2003: 17).<br />

Hall (2006: 54) destaca algumas estratégias para a construção de<br />

uma identidade nacional, tais como a criação de uma narrativa da nação,<br />

a ênfase nas origens, a invenção de tradições, a difusão de um mito<br />

fundacional e de uma ilusão de um povo “puro” representante genuíno<br />

daquela nação.<br />

Cientes das questões culturais envolvidas nessa disputa por<br />

representações, interessa-nos o modo pelo qual ela é codificada em<br />

escolhas estilísticas; nosso gesto de pesquisa principal está centrado<br />

na interseção estilo-cultura, buscando evidenciar marcas estéticas<br />

provenientes de dinâmicas culturais da sociedade e da produção televisiva.<br />

Como vimos nos exemplos e figuras acima, os padrões estereotípicos<br />

acerca da identidade brasileira são traduzidos em termos estilísticos<br />

principalmente nas escolhas de figurino, cenário, adereços de cena,<br />

efeitos gráficos e som (fala). Voltando a Hall (2006), poderíamos dizer<br />

que nas vinhetas o estilo serviria para dar voz, textura, cor, imagem e<br />

ação a “tradições inventadas”, “[...] um conjunto de práticas de natureza<br />

ritual ou simbólica que buscam inculcar certos valores e normas de<br />

comportamentos através da repetição [...]” (HALL, 2006: 54).<br />

O que notamos é um regime visual limitado sobre o Brasil, baseado<br />

nos mesmos personagens, lugares, falas e esquemas ou, nos termos do<br />

autor, “patrimônios” que ajudam a contar a “narrativa de nação” do Brasil<br />

– não é por acaso, por exemplo, que a figura da baiana apareça tantas<br />

vezes em vinhetas institucionais da televisão.<br />

Silvio Santos e o mito da brasilidade<br />

Suzana Kilpp (2003), buscando compreender as maneiras pelas quais<br />

a televisão conforma imaginários, reconhece a tentativa de construção de<br />

uma brasilidade televisiva:<br />

Assim, se, de um lado, a brasilidade enunciada pela televisão torna-se a<br />

ethicidade dos brasileiros enunciada pela televisão – o que, obviamente,<br />

não é o mesmo que a ethicidade dos brasileiros –, também é verdade,<br />

de outro lado, que ocorre a conformação de um imaginário social – uma<br />

106


enunciação de personas brasileiras, por meio das quais reconhecemos ou<br />

não, como espectadores, a nossa própria e singular brasilidade (KILPP,<br />

2003: 207).<br />

Acreditamos que, dentre as várias personas oferecidas a nós pela<br />

televisão, aquela construída por Silvio Santos parece ser aglutinadora dos<br />

sentidos referentes à brasilidade evocada nas vinhetas. Embora não haja<br />

qualquer tipo de fala em direção ao que é “ser brasileiro”, a própria figura<br />

do apresentador já suscita esse modelo.<br />

Recorramos à trajetória pessoal de Silvio Santos para explicar. Nascido<br />

Senor Abravanel, em 12 de dezembro de 1930, na cidade do Rio de<br />

Janeiro, Silvio é originário de família de classe média. Precocemente,<br />

passou a se dedicar ao comércio nas ruas do Rio de Janeiro, onde vendia<br />

bugigangas contando com seu indiscutível poder de persuasão e retórica;<br />

ou seja, era camelô. Depois de se dedicar a outras atividades profissionais<br />

e ganhar vários concursos de locução, foi para São Paulo trabalhar na<br />

Rádio Nacional, onde, a cada dia, angariava mais sucesso. Depois, com<br />

o “Baú da Felicidade” e outras empresas, Silvio comprou horários em<br />

diversas emissoras até conquistar a sua (SILVA, 2001).<br />

Assim, tal história de vida – amplamente divulgada em livros, revistas<br />

e programas – faz de Silvio Santos um “homem-narrativa”, personagem<br />

constituído por um conjunto de características que formam uma história<br />

virtual que, ou é a mesma vivida por muitos brasileiros, ou representa<br />

uma trajetória de sucesso pretendida por seu público – que na TV ou<br />

nos negócios, sempre foram as classes C, D e E. Queremos dizer que,<br />

nas vinhetas, a atuação de Silvio Santos aciona todo um imaginário<br />

consolidado do brazilian way of life que, no apresentador, encontra um<br />

modelo palpável:<br />

O Silvio que vemos é uma espécie de retrato do homem-médio brasileiro<br />

idealizado: trabalhador, honesto, simples e animado. Aliás, Silvio leva a<br />

sério a máxima criada por ele que diz que “domingo é dia de alegria”;<br />

como sua presença na televisão ocorre marcadamente no domingo, podese<br />

inferir que Silvio Santos também é sinônimo de alegria (MARTINS,<br />

2011: 7).<br />

É justamente por ser “gente como a gente”, um “brasileiro que não<br />

desiste nunca”, que nas vinhetas Silvio vem a nós, telespectadores, para<br />

107


dizer que somos nós os principais responsáveis por seu sucesso (e do<br />

SBT).<br />

SBT, a TV dos brasileiros<br />

Priolli (2003) expõe a fragilidade do conceito de identidade nacional,<br />

uma suposta entidade sociológica, linguística e histórica forjada ao longo<br />

de nossa história e que produziu um imaginário de tolerância racial,<br />

distensão social, alegria de viver e demais atributos pacíficos e positivos;<br />

nosso estudo sinaliza que essa “entidade” também tem fortes dimensões<br />

televisivas e televisuais que tentam dar uma “cara” à brasilidade.<br />

Percebemos que o SBT investe nesse ideal positivo de Brasil, quando diz,<br />

por exemplo, que<br />

O povo brasileiro é essencialmente alegre. A felicidade está sempre<br />

estampada no rosto, e ele quer ver na tela da TV a mesma alegria que<br />

ele sente no coração. E só por isso o SBT é feliz: por fazer uma televisão<br />

especialmente para o povo, especialmente para alegrar a vida, para<br />

trazer as estrelas mais perto de todos (YOUTUBE, 2009). 65<br />

Nossos estudos com os fãs do SBT já evidenciavam a vinculação entre<br />

o canal e a brasilidade:<br />

Assim, assistir à emissora evoca construções simbólicas de um ethos do<br />

brasileiro, como superação, força de vontade, alegria, popularidade; um<br />

“jeitinho brasileiro” que o SBT assume e exalta – já que é o sistema<br />

brasileiro de televisão (MARTINS E TORRES, 2014: 199).<br />

Todavia, se de modo geral o SBT acaba repetindo padrões estilísticos<br />

utilizados pelas outras emissoras para enunciar uma brasilidade<br />

supostamente compartilhada por todos nós, ainda assim acreditamos que<br />

o “jeitinho brasileiro” do canal de Silvio Santos guarda algumas diferenças<br />

em relação às demais emissoras; 66 essa singularidade já foi notada também<br />

por Kilpp (2008), que afirmou que as tentativas de representações<br />

brasileiras<br />

65<br />

Ao som da música instrumental incidental com a “Balada do louco” – Os Mutantes.<br />

66<br />

Vale recordar que a extinta TV Manchete apostou, durante algum tempo, na estratégia de divulgar uma certa<br />

brasilidade através de suas novelas como Pantanal e A história de Ana Raio e Zé Trovão. Com o slogan “A<br />

Manchete mostra o Brasil que o Brasil não conhece”, era claro um investimento na valorização das belezas<br />

naturais e riquezas culturais do país (BECKER, 2010).<br />

108


[...] são também construções técnicas e estéticas que se mostram em<br />

panoramas televisivos das duas emissoras de maior audiência no país,<br />

sendo que o Brasil institucional, dos cidadãos e do presente moderno,<br />

aparece mais na Rede Globo de Televisão, e do compadrio, das pessoas<br />

e do passado atrasado, no SBT (KILPP, 2008: 79).<br />

Assim, as dicotomias estéticas entre o “Padrão Globo de Qualidade”<br />

e o “Estilo SBT” seriam sintomas não apenas de posicionamentos<br />

institucionais distintos, mas também de um panorama televisivo<br />

complexo no qual<br />

[...] não existe um, mas dois brasis: um rico e outro pobre; um moderno<br />

e outro atrasado; um euro-americano e outro tupiniquim; um das elites e<br />

outro do povo; um da casa grande e outro da senzala, um que aparecia<br />

no Jornal Nacional e outro que era “real” (KILPP, 2008: 79).<br />

Logo, o Brasil do SBT seria o Brasil dos pobres, atrasado, do povo,<br />

genuinamente tupiniquim e real; tal diferenciação pode ser vista em<br />

slogans como “SBT é Brasil, é sistema brasileiro de televisão”, “A cara do<br />

Brasil”, “SBT, a TV dos brasileiros” ou “SBT, a TV mais feliz do Brasil”.<br />

Kilpp (2008) considera que, se o brasileiro construído pela Globo é<br />

aquele moderno cidadão da sociedade brasileira, o SBT se destina a um<br />

indivíduo tradicional, enquistado e apadrinhado. Embora a autora conclua<br />

tal diferença a partir da análise de reality shows das duas emissoras, é<br />

possível inferir que nas vinhetas em tela essa afirmação também faça<br />

sentido.<br />

Isso porque a figura do “padrinho” Silvio Santos contribui para uma<br />

relação com a audiência que a trata como pessoa, e não como mero<br />

indivíduo; as vinhetas não conversam com uma massa de brasileiros, ou<br />

com os estados do país, mas com gente comum que poderia realmente<br />

viver neles. O que nos marca, à primeira vista, é literalmente o que as<br />

vinhetas mostram: Silvio Santos conversando com uma pessoa, e só<br />

depois, numa segunda camada de sentido, mais ao fundo, entende-se<br />

que é o SBT comunicando-se com o Brasil. Nas palavras da autora, Silvio<br />

Santos seria o “pai-patrão”, o “bom compadre”, figura tão comum em<br />

nossa cultura cotidiana do apadrinhamento.<br />

Se pensarmos no SBT como uma espécie de estabelecimento<br />

comercial no qual o grande vendedor é Silvio Santos, as vinhetas em<br />

109


tela soam como aquelas ocasiões às quais estamos acostumados: a de<br />

comprar algo sempre no mesmo lugar, conversando diretamente com o<br />

dono do negócio. Pensando assim, inferimos que a relação que o canal<br />

propõe a nós não é a de público, telespectador ou fiel, mas de freguês;<br />

aquele que se habituou a “comprar” no mesmo lugar, embora saiba que<br />

nem sempre as opções serão boas. A analogia faz sentido se pensarmos<br />

na grade da emissora como uma “programação camelô”, que preza pelo<br />

que está vendendo – ou seja, dando audiência.<br />

Talvez isso explique a maneira como Silvio Santos trata sua empresa,<br />

tirando subitamente do ar o que não encontra muitos compradores, e<br />

buscando produtos que satisfaçam a clientela, repetindo-os se assim o<br />

público quiser – o que ele próprio confirma: “Não, eu sempre me vi como<br />

produto, um produto meu. Sou um bom vendedor. Sou um vendedor que<br />

usa a eletrônica para vender seus produtos, artistas, programas” (FOLHA,<br />

2013 apud MARTINS, 2013: 55). Assistir ao SBT é então um ato de amor,<br />

confiança, carinho; um “trato” feito com o próprio dono e selado com um<br />

expressivo aperto de mãos.<br />

Logo, o personalismo talvez seja a principal característica do SBT ao<br />

se colocar diante do Brasil, instaurando uma relação afetiva de expressiva<br />

intimidade na qual circulam bens simbólicos como confiança, amizade,<br />

amor, carinho, atenção – e não apenas audiência –, e a ideia que se<br />

tem é que importam mais os afetos envolvidos e menos os números<br />

conquistados pelo canal; o telespectador do SBT não é mais um índice de<br />

audiência, um “brasileiro-indivíduo”, mas um “brasileiro-pessoa”, querido,<br />

responsável pelo sucesso do canal.<br />

Conclusão<br />

Nossa análise mostra que, se conceitualmente o SBT sempre tentou<br />

ser uma alternativa popular, a figuração que ele faz do Brasil não difere<br />

muito do que se vê nas outras emissoras, 67 o que o torna particular frente<br />

67<br />

Arlindo Silva (2001) lembra que desde sua gênese, o SBT se denominou um sistema e não uma rede justamente<br />

porque “rede” subentende uma programação rígida, imposta do centro para fora, obrigando as emissoras afiliadas<br />

a transmitir a mesma programação gerada pela matriz, ignorando as conveniências e as peculiaridades regionais.<br />

Ser um sistema significaria teoricamente maior liberdade de programação regional. Mira (1994: 76) expõe as<br />

palavras do próprio Silvio Santos a respeito disso: “Rede é, na minha opinião, uma fórmula arcaica de televisão...<br />

Eu sou contrário a você ter uma estação de TV no Ceará e não poder ser o dono dessa estação. – Ou você<br />

exibe toda minha programação ou não te dou nenhuma... O diálogo tem que ser outro: – Eu tenho estes<br />

110


a elas é que essa representação é pincelada com forte verniz de afeto,<br />

chegando a um nível de proximidade com o telespectador e tentando<br />

induzi-lo a acreditar que só no SBT ele é fielmente retratado.<br />

Para isso, a Emissora lança mão de escolhas estilísticas relativas a<br />

cenários, figurinos e diálogos do telespectador com o dono do canal, e<br />

o excesso de afetividade é transmitido por um excesso visual. A busca<br />

por uma brasilidade, no caso do SBT, ainda é mais questionável se<br />

pensarmos que a Emissora historicamente sempre sofreu forte influência<br />

de programas e gêneros latinos, mexicanos e norte-americanos.<br />

Silvio Santos, por sua vez, age como uma espécie de corporificação<br />

tanto do SBT quanto do “ser brasileiro”, já que com sua história de vida ele<br />

torna-se um “homem-narrativa”, personagem constituído por um conjunto<br />

de características que formam “uma história virtual que é a história de sua<br />

vida”. Este fato também faz dele um “homem do povo”, já que sua história<br />

é semelhante à de muitos brasileiros, ou pelo menos simboliza o desejo<br />

da camada da população a que, como dito mais atrás, seus programas se<br />

destinam, as classes C, D e E.<br />

Logo, a “cara” do Brasil que vemos nas vinhetas do SBT é popular,<br />

paulista, simplista, caricaturizada e folclorizada, quase infantil; o brasileiro<br />

seria aquele que vive feliz num país rico de belezas naturais e pontos<br />

turísticos considerado “um grande auditório que faz acontecer”, como<br />

diz uma vinheta.<br />

Assim como Hall (2006), acreditamos que por mais que haja estratégias<br />

de unificação da identidade nacional, elas nem sempre logram êxito.<br />

Por isso, ao invés de pensarmos as culturas nacionais como algo puro,<br />

devemos enxergá-las como constituidoras de um dispositivo discursivo<br />

que preza pela diferença como unidade; ou seja, que as culturas sejam<br />

identificadas a partir das heterogeneidades que possuem. Estendemos a<br />

reflexão para o âmbito televisual, defendendo que, no caso da figuração<br />

acerca do Brasil, o estilo pode e deve servir para expressar não uma<br />

representação homogênea, mas diversa, longe do senso comum – talvez<br />

assim o SBT torne-se, de fato, “a cara do Brasil”.<br />

programas: tenho Golias, tenho Silvio Santos, tenho Aragão. O que é que interessa a você comprar?”. Se antes<br />

os programas de Silvio eram realmente vendidos por fitas cassete a outros canais, não sabemos em que medida<br />

atualmente essa diferença realmente é praticada; todavia, nossa análise mostra que, pelo menos no nível visual,<br />

essas particularidades regionais parecem não terem sido levadas em conta no canal.<br />

111


Referências<br />

BECKER, Beatriz. O sucesso da novela Pantanal e as novas formas de ficção televisiva. In: Ribeiro,<br />

Ana Paula Goulart; Roxo, Marco; Sacramento, Igor. História da Televisão no Brasil, São Paulo:<br />

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em http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-decontratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf.<br />

Acessado em 25 jan. 2016.<br />

BUTLER, Jeremy. Television style. New York: Routledge, 2010.<br />

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Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, PUCRS, Porto<br />

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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.<br />

JOST, François. Compreender a televisão. Porto Alegre: Sulina, 2010.<br />

KILPP, Suzana. Ethicidades televisivas. Sentidos identitários na TV: moldurações homológicas e<br />

tensionamentos. São Leopoldo: Unisinos, 2003.<br />

___. Audiovisualidades do voyeurismo televisivo: Apontamentos sobre a televisão. Porto Alegre: Zouk,<br />

2008.<br />

MARTINS, Rafael; TORRES, Hideide. Memória e afeto como estratégia de fidelização da audiência<br />

televisiva: o caso dos SBTistas. Verso e reverso, São Leopoldo, v. XXVIII, n.º 69, set-dez 2014. Disponível<br />

em: http://revistas.unisinos.br/index.php/versoereverso/article/view/ver.2014.28.69.05/4413. Acesso<br />

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MARTINS, Rafael. Da tela à rede: a construção da identidade SBTista. Monografia (Graduação<br />

em Comunicação Social/Jornalismo) – Departamento de Comunicação Social da Universidade<br />

Federal de Viçosa, Viçosa, 2013.<br />

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- LITERATURA, CULTURA E SOCIEDADE, 2011, Viçosa. Caderno de Resumos do I Simpósio<br />

Internacional - Literatura, Cultura e Sociedade, Viçosa, 2011.<br />

MEDEIROS, Ana Lucia. Sotaques na TV. São Paulo: Annablume, 2006.<br />

MIRA, Maria Celeste. Circo Eletrônico: Silvio Santos e o SBT. São Paulo: Loyola, 1994.<br />

MITTELL, Jason. Television and American Culture. New York: Oxford University Press, 2010.<br />

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televisão brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.<br />

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Acesso em: 23 jan. 2015.<br />

SBT. SBT em números. Disponível em: . Acesso<br />

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___. SBT - A TV mais feliz do Brasil 28 anos - PROMO. 2009. Disponível em: . Acessado em 25 jan. 2016.<br />

112


Thriller à brasileira: ficção televisual<br />

transmídia na faixa das 23h<br />

Melina Leal Galante 68 e<br />

Daniela Zanetti 69<br />

Introdução<br />

Este capítulo traz alguns apontamentos para se pensar se e como a<br />

reconfiguração temática e narrativa das séries de TV norte-americanas<br />

(o que vem ocorrendo desde o final dos anos 90), em conjunção com<br />

a cultura da transmidiação digital (que se estabelece a partir dos anos<br />

2000), estão afetando o desenvolvimento de obras ficcionais seriadas<br />

no contexto da televisão brasileira, estabelecendo novos parâmetros de<br />

criação e produção.<br />

Para tanto, tem-se como objeto de investigação obras de ficção seriada<br />

produzidas e exibidas pela Rede Globo de Televisão (RGT), principal<br />

emissora brasileira e também responsável pela criação e produção da<br />

maior parcela dos produtos de teleficção no Brasil. O estudo privilegiou<br />

produtos desenvolvidos para o horário das 23 horas, e que se caracterizam<br />

por se vincular a um gênero específico, o thriller, em diálogo com<br />

o folhetim e a novela policial, privilegiando o suspense em torno da<br />

resolução de um conflito que se estabelece a partir de um crime (ou<br />

desvio moral).<br />

As produções escolhidas para esta pesquisa foram O canto da Sereia<br />

(2013), Amores roubados (2014) e o remake de O rebu (2014), exibidas<br />

pela TV Globo, e que guardam em comum também o fato de estarem<br />

vinculadas a um mesmo núcleo dentro da RGT, no qual se destacam as<br />

figuras do diretor José Luiz Villamarim, do diretor de fotografia Walter<br />

68<br />

Bacharel em Direito, estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Aluna<br />

de iniciação científica do Grupo de Pesquisas em Cultura Audiovisual e Tecnologia (CAT).<br />

69<br />

Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades e do curso de Cinema e<br />

Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Grupo de Pesquisas em Cultura<br />

Audiovisual e Tecnologia (CAT).<br />

113


Carvalho e do roteirista George Moura. Essas três obras foram escritas<br />

por George Moura (juntamente com outros colaboradores) e tiveram a<br />

direção-geral de José Luiz Villamarim. Esse aspecto é bastante relevante ao<br />

se considerar uma dimensão sociológica das obras, na qual se evidencia<br />

a relação entre autor/produtor, tipo de obra, gêneros narrativos, temas<br />

tratados e, por vezes, especificidades estéticas (BOURDIEU, 1996; SOUZA<br />

E WEBER, 2009).<br />

Ainda que o remake de O rebu tenha sido divulgado pela emissora<br />

como sendo uma “novela das 23 horas” – por ter se originado de uma<br />

telenovela de fato e talvez para não descaracterizar a obra original<br />

–, agregamos esta obra ao estudo para compor, juntamente com as<br />

minisséries O canto da Sereia e Amores roubados, um conjunto de<br />

produtos que, além dos aspectos elencados acima, também possuem<br />

em comum uma quantidade reduzida de episódios (36, 4 e 10,<br />

respectivamente), se comparados com as telenovelas tradicionais. Além<br />

disso, como critério de seleção desses materiais, considera-se que<br />

essas obras permitem fornecer elementos para analisar como ocorre a<br />

incorporação da complexidade narrativa e o investimento em fluxos de<br />

compartilhamento e intercâmbio de informações e conteúdos pela Web,<br />

demonstrando influências dos modelos de produções seriadas televisivas<br />

de sucesso internacional, porém sem desconsiderar as especificidades<br />

das matrizes culturais brasileiras. Dessa forma, também são produtos<br />

adequados às demandas relativas à incorporação de estratégias<br />

transmidiáticas, contando com elementos na internet vinculados à<br />

narrativa central que se desenrola na TV.<br />

Inovações na narrativa seriada televisual<br />

As obras destacadas neste estudo poderiam se enquadrar num tipo<br />

de narrativa seriada constituído por uma única narrativa (ou várias<br />

entrelaçadas e paralelas) que se alterna(m) de uma forma quase linear<br />

ao decorrer dos capítulos. Os teledramas, telenovelas e algumas séries<br />

e minisséries são exemplos desta forma de serialidade teleológica, pois<br />

ela se resume fundamentalmente num (ou mais) conflito(s) básico(s),<br />

que propõe inicialmente desequilíbrio estrutural, e toda evolução dos<br />

acontecimentos consiste num empenho em restabelecer o equilíbrio<br />

perdido (MACHADO, 2005: 84).<br />

114


No que diz respeito aos formatos seriados já consagrados na televisão<br />

brasileira, destaca-se a telenovela clássica, o formato mais extenso da<br />

TV, que em média possui 150 capítulos. Por sua extensão é, em geral,<br />

considerada uma obra aberta, passível de reformulações em função<br />

da audiência, por exemplo. A minissérie, por sua vez, é considerado<br />

o formato “mais completo do ponto de vista estrutural e o mais denso<br />

do ponto de vista dramatúrgico” (BALOGH, 2002: 96) e, no Brasil, é<br />

geralmente exibida após às 22h, pressupondo um público mais exigente.<br />

As mais longas chegam a ter mais de trinta episódios (BALOGH, 2002).<br />

Considerando que na televisão brasileira prevalecem as telenovelas e<br />

as minisséries, esses formatos já se apresentam como característicos de<br />

nossa tradição audiovisual. No contexto da TV norte-americana, contudo,<br />

o modelo que prevalece são as séries com capítulos semanais e divididas<br />

em temporadas que, se bem-sucedidas, podem durar anos 70 . Na tentativa<br />

de articular uma categorização das narrativas seriadas na TV, Esquenazi<br />

define como minisséries (na acepção americana) as ficções desenvolvidas<br />

e terminadas em poucos episódios, estando no limite do universo das<br />

séries: “o desfecho anunciado, a unidade de uma história mesmo que<br />

contada em várias histórias parecem incompatíveis com o projeto tanto<br />

cultural como econômico das séries televisivas” (ESQUENAZI, 2011: 29).<br />

É sabido que a TV norte-americana tem passado por uma nova fase,<br />

principalmente em função da renovação de suas séries ficcionais que,<br />

pelo menos desde o fim dos anos 90, trazem novas propostas estéticas,<br />

narrativas, temáticas e formais (ESQUENAZI, 2011; CARLOS, 2006;<br />

MARTIN, 2014). Tais mudanças vêm sendo protagonizadas especialmente<br />

pelos canais fechados, como a HBO, que atuam também como produtoras.<br />

A partir da década de 90, majoritariamente na indústria audiovisual norteamericana,<br />

observa-se claramente a intensificação de um fazer televisivo<br />

que incorpora experimentações e inovações, destacando-se dos modelos<br />

e tradições às quais produtores e consumidores estavam acostumados.<br />

As tramas se tornaram verdadeiros emaranhados, os arcos narrativos<br />

passaram a se desenrolar em camadas, os personagens se tornaram mais<br />

70<br />

Ainda que essa forma de consumo semanal esteja sofrendo modificações em função das novas plataformas<br />

digitais online de exibição de filmes e séries – um modo de consumo estabelecido por plataformas por demanda<br />

(video on demand – VOD), porém já iniciado pelos fãs por meio da prática dos downloads de arquivos – esse<br />

aspecto não será considerado aqui.<br />

115


complexos e humanizados, distanciando-se do maniqueísmo. A televisão<br />

se reinventou, incorporou aspectos de linguagem, estilística e estética de<br />

outros meios audiovisuais (cinema, vídeo e internet) e entrou em uma<br />

nova era, a da complexidade narrativa, baseada em “aspectos específicos<br />

do storytelling que aparentemente são inadequados à estrutura seriada<br />

que diferencia a televisão do cinema e também a distingue dos modelos<br />

convencionais de formatos seriados e episódicos” (MITTELL, 2012: 30-<br />

31). Segundo Esquenazi (2011), é nos anos 90 que as séries americanas<br />

se libertam de certas regras e modelos e, desde então, uma sequência de<br />

obras-primas – como as séries 24 horas, Lost e Família Soprano – foram<br />

sendo criadas, revolucionando a paisagem televisiva a partir do estímulo<br />

à inovação e à criatividade.<br />

Portanto, a ideia de inovação em produção seriada neste estudo<br />

pressupõe um conjunto de elementos relativos à estrutura formal, que tornam<br />

as narrativas mais complexas, tais como descontinuidade, não linearidade,<br />

embaralhamento (temporal e espacial) e fragmentação do conteúdo.<br />

Refere-se ainda a uma narrativa em estrutura modular, com profusão de<br />

personagens e de histórias que começam e não necessariamente terminam<br />

no mesmo episódio, podendo ser ou não retomadas posteriormente<br />

(CARLOS, 2006: 27). Outro fator de inovação decorre da abordagem de<br />

temas mais polêmicos ou mesmo ordinários, porém tratados de maneira<br />

menos óbvia. Também diz respeito à presença de personagens mais<br />

complexos do ponto de vista psicológico, coerentes em suas trajetórias<br />

pessoais, mas nem por isso previsíveis. Essas mudanças foram possíveis em<br />

função da efetivação de novas condições de produção, considerando que<br />

alguns canais inovaram ao possibilitar que seus roteiristas tivessem mais<br />

liberdade de criação (CARLOS, 2006: 22).<br />

Fundamental é ressaltar que as mudanças trazidas neste processo são,<br />

sobretudo, frutos de estratégias de mercado, pensando-se em como atrair<br />

mais público, mais audiência e mais patrocinadores, reconhecendo uma<br />

atividade econômica inserida na lógica das indústrias culturais.<br />

Considerando este cenário, como pensar a incorporação desses<br />

elementos às minisséries brasileiras?<br />

Todavia, antes de realizar essa verificação por meio das análises dos<br />

produtos, cabe ainda discorrer sobre outro fenômeno contemporâneo<br />

116


que tem afetado diretamente o consumo de teleficção: a convergência<br />

das mídias e as estratégias de transmidiação.<br />

<strong>Entre</strong> a TV e a Web: fluxos transmidiáticos<br />

A convergência entre televisão e internet agrega uma série de<br />

características que sintetizam o que Scolari (2008: 226-229) chama de<br />

hipertelevisão: a) multiplicidade de programas narrativos, que proporciona<br />

uma multiplicação de histórias e de narrativas; b) fragmentação das telas,<br />

que resultam em uma mutação da tela de televisão ao incorporar elementos<br />

da interface do computador; c) ritmo acelerado, resultante de um tipo<br />

de montagem/edição que incorpora maior volume de conteúdo em um<br />

tempo mais reduzido; d) intertextualidade desenfreada, uma característica<br />

pós-moderna que se amplia em ambientes virtuais, muito em função da<br />

própria cultura da remixagem; e) extensão narrativa, aspecto relativo à<br />

cultura da serialização; f) rupturas da sequencialidade, que se baseia na<br />

noção de não linearidade.<br />

Na Web, a descontinuidade da narrativa é favorecida pela lógica do<br />

hipertexto. A fragmentação potencializa a dimensão do acúmulo e da<br />

multiplicidade de conjuntos de conteúdos no ciberespaço – sob a forma<br />

de playlists, ou seja, listas de reprodução de vídeos, textos e imagens –,<br />

enquanto a serialização permite manter o interesse do espectador. Esses<br />

materiais integram estratégias transmidiáticas, ampliando as narrativas<br />

e compondo conjuntos de paratextos que potencializam os produtos<br />

principais. Para Duarte:<br />

Nessa interconexão entre a televisão e as novas tecnologias, há uma<br />

conversão dos espaços da internet em verdadeiras extensões dos<br />

programas. Hoje praticamente todos os produtos ficcionais experimentam<br />

o online, originando, com isso, todo o tipo de extensões, responsável<br />

pela produção de uma gama infinita de paratextos constituídos pelas<br />

modernas narrativas transmidiáticas (DUARTE, 2012: 336).<br />

Diante deste contexto, defende-se que a TV não está esmaecendo por<br />

causa do fortalecimento da cultura audiovisual na internet, mas sim se<br />

“expandindo”, e talvez se tornando mais popular em certo sentido, uma<br />

vez que produtores de televisão tem encontrando na Web suporte para<br />

potencializar seus produtos, experimentar novos formatos e linguagens,<br />

117


aferir a audiência e se aproximar dela. Miller (2009) defende que os<br />

usos do YouTube, por exemplo, tem impulsionado a TV norte-americana,<br />

considerando que “apesar de o conteúdo amador constituir a maior parte<br />

do que se encontra no YouTube, ele mal é assistido em comparação aos<br />

textos das indústrias culturais” (MILLER, 2009: 21).<br />

Para Fechine e outros, entende-se por transmidiação:<br />

Um modelo de produção orientado pela distribuição em distintas<br />

mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos associados entre si e<br />

cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas interacionais<br />

propiciadas pela cultura participativa estimulada pelo ambiente de<br />

convergência (2013: 26).<br />

A convergência das mídias estabelece uma lógica comercial e uma<br />

forma cultural que implica novos modelos de negócios. Nesse contexto,<br />

emergem as ações transmídia, que incluem, entre outras, a construção<br />

de universos ficcionais que se desdobram em duas ou mais mídias,<br />

pressupondo ainda uma participação ativa do público (JENKINS, 2008).<br />

O planejamento de operações transmídia se traduz como um<br />

conjunto de estratégias, conteúdos e práticas institucionalizadas por<br />

parte das chamadas indústrias de entretenimento, ou indústrias criativas<br />

ou, ainda, indústrias de conteúdo (LOPES E GÓMEZ, 2014: 72).<br />

Pelo menos desde 2011, o Observatório Ibero-Americano da Ficção<br />

Televisiva (OBITEL) já traz em seus anuários dados relativos a estratégias<br />

e participação transmídia nas televisões latino-americanas. Segundo o<br />

anuário de 2011, por exemplo, as pesquisas empíricas mostraram que,<br />

na Web, a<br />

interação da audiência com as ficções aconteceu principalmente nos<br />

espaços interativos dos sites ou blogs das ficções criados pelos produtores<br />

e através de três redes sociais que mais se destacaram: Facebook,<br />

YouTube e Twitter (LOPES E GÓMEZ, 2011: 63).<br />

No ano de 2013, dentre as estratégias transmídia implementadas pelos<br />

produtores (no contexto dos países que integram o Obitel), 71 destacamse<br />

os sites oficiais de emissoras e sites dos produtos ficcionais, atuação<br />

71<br />

Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, México, Peru, Portugal, Uruguai e<br />

Venezuela.<br />

118


nas redes sociais, outros formatos de ficção (como as webséries, por<br />

exemplo), estratégias para celular e estratégias offline (LOPES E GÓMEZ,<br />

2014).<br />

O gênero como unidade de referência: o thriller em<br />

evidência<br />

A partir de uma perspectiva mais cultural, o gênero pode ser<br />

compreendido como uma chave para a análise de textos massivos<br />

televisivos, como aponta Jesús Martín-Barbero (2013). Para este autor, é<br />

por meio dos gêneros que atua a dinâmica cultural da televisão. O gênero<br />

é “a unidade mínima do conteúdo da comunicação de massa (pelo menos<br />

no nível da ficção, mas não apenas)”, e a “demanda de mercados por<br />

parte do público (e do meio) aos produtores se faz no nível de gênero”<br />

(MARTÍN-BARBERO, 2013: 300). Essa compreensão de gênero contribui<br />

para refletir de que modo as especificidades dos produtos em destaque<br />

neste estudo deixam entrever novas dinâmicas textuais televisivas, como a<br />

própria criação de materiais narrativos capazes de trazer “inovações” para<br />

o público a partir de algo já conhecido (uma trama policial, porém numa<br />

atmosfera carnavalesca, por exemplo); ou ainda a articulação de diferentes<br />

plataformas de consumo de um mesmo produto, proporcionando novas<br />

ritualidades no processo de fruição da obra.<br />

O gênero funciona como uma estratégia de comunicabilidade, um<br />

dispositivo que ativa a competência cultural do público, dando conta<br />

das diferenças sociais a ela inerentes. Desse modo, estabelece-se a<br />

mediação fundamental entre as lógicas do sistema produtivo e as do<br />

sistema de consumo, entre a lógica do formato e a lógica dos modos<br />

de ler, dos usos. As regras dos gêneros configuram os formatos, e<br />

nestes se ancora o reconhecimento cultural dos grupos. Considerando<br />

que “cada gênero se define tanto por sua arquitetura interna quanto<br />

por seu lugar na programação” (MARTÍN-BARBERO, 2013: 304), e que<br />

articula narrativamente diferentes serialidades, este conceito funciona<br />

como chave para a análise dos textos massivos, em especial dos<br />

televisivos.<br />

Para Esquenazi (2011: 83), o gênero é a “ligação entre um esquema<br />

narrativo e um universo cultural”. Segundo o autor, essa aliança<br />

se efetiva pela “repetição de uma orientação” como, por exemplo,<br />

119


o restabelecimento da ordem no policial ou o reconhecimento da<br />

inocência no melodrama. “Uma fórmula resulta da ancoragem do<br />

gênero: certos elementos são fixados, enquanto outros permanecem<br />

variáveis” (ESQUENAZI, 2011: 83). Os gêneros, nesse sentido, se valem<br />

de fórmulas, que representam a “expressão mais imediata da negociação<br />

entre o econômico e o cultural ou, mais exatamente, uma situação<br />

econômica, social e política e a história especificamente cultural da<br />

ficção popular” (ESQUENAZI, 2011: 83). Certas características, então, são<br />

bastante particulares de cada gênero, que também podem se diferenciar<br />

entre si caso ocorra uma mistura de gêneros (drama, policial, comédia<br />

etc.) num mesmo produto.<br />

O thriller de suspense se caracteriza por ser um gênero folhetinesco<br />

de narrativa seriada, principalmente pela lógica de seu encadeamento,<br />

e muitas vezes se articula a uma narrativa policial ou criminal. Para<br />

Esquenazi (2011), qualquer narrativa policial resulta da articulação da<br />

história da investigação com a história do crime, sendo que algumas<br />

giram em torno da identificação do criminoso, como é o caso das obras<br />

aqui estudadas. Na última década pode-se observar na televisão norteamericana<br />

um aumento considerável de séries cujos temas centrais<br />

envolvam investigações policiais, crimes com vários suspeitos, e os<br />

dramas pessoais dos envolvidos.<br />

Já na América Latina, segundo Lusvarghi – em estudo que teve como<br />

objetivo examinar “de que forma se dá o diálogo entre os formatos<br />

hollywoodianos do gênero e a tradição audiovisual latina” (2013: 11) –, a<br />

partir do sucesso de filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles e<br />

Kátia Lund, 2002) e Tropa de Elite 2 (José Padilha, 2011), surgiram diversas<br />

séries policiais e de ação na TV brasileira, como Força-Tarefa (Fernando<br />

Bonassi, 2009-2011), 9 MM: São Paulo (Roberto d’Avila, Newton Cannito<br />

e Carlos Amorim, 2008-2011), A Lei e o Crime (Marcílio Moraes, 2009) e<br />

Mandrake (Rubem Fonseca e José Henrique Fonseca, 2005-2007). Ainda<br />

segundo a autora, fenômeno similar ocorre em outros países latinoamericanos,<br />

com destaque para Poliladrón (Adrián Suar, 1995-1997),<br />

Epitáfios (Alberto Lecchi, 2004-2009), a franquia Hermanos y Detectives<br />

(Patrício Vega, 2006) e o mexicano Capadócia (Epigmenio Ibarra, 2008-<br />

2010). A autora sustenta que esses seriados trazem uma identidade visual<br />

própria e contribuem para “deixar de lado, definitivamente, a ideia de<br />

120


ficção seriada latina como mera paródia de seriado americano ou ainda<br />

como sinônimo de telenovela e melodrama” (LUSVARGHI, 2013: 9),<br />

hipótese que também pode ser sustentada pela presente investigação.<br />

O Brasil contemporâneo nas estruturas de superfície:<br />

experimentações no horário das 23 h<br />

Para Souza e Weber (2009: 82), é possível estabelecer relações entre a<br />

posição de autores de telenovelas em um dado contexto e “as estratégias<br />

textuais estilísticas associadas a temas recorrentes que demarcam o<br />

reconhecimento autoral de roteiristas-autores”, em especial aqueles<br />

vinculadas à RGT, maior produtora e distribuidora de telenovelas das<br />

últimas quatro décadas. Nessa cadeira produtiva, há autores-roteiristas<br />

associados a temas e faixas de horário específicos e que são distribuídos<br />

de acordo com critérios de audiência.<br />

Deve-se enfatizar que a presença do escritor George Moura e de<br />

diretor José Luiz Villamarim nessas três obras já estabelece, do ponto de<br />

vista das condições de produção, uma espécie de núcleo especializado<br />

no gênero aqui destacado. Pode-se inferir que a trajetória desses dois<br />

profissionais já indica não somente sua vinculação a determinados tipos<br />

de trabalhos – que podem apontar para certas recorrências estilísticas –,<br />

mas também o lugar ocupado por eles dentro da empresa e o tipo de<br />

reconhecimento e consagração já conquistados no campo da produção<br />

audiovisual brasileira.<br />

O pernambucano George Moura, seis vezes indicado ao Emmy<br />

International Awards, é um consagrado dramaturgo e roteirista, tendo<br />

assinado filmes como Linha de passe (2008) e Os últimos dias de Getúlio<br />

(2014), e as séries Cidade dos homens (2003) e Carga Pesada (2003). O<br />

mineiro José Luiz Villamarim dirige produções ficcionais da Rede Globo –<br />

RGT desde os anos 90, assumindo a direção geral de várias telenovelas, entre<br />

elas Mulheres apaixonadas (2003) e Bang Bang (2005), e a minissérie Mad<br />

Maria (2005), além de outros dois trabalhos considerados inovadores na<br />

emissora: a telenovela Avenida Brasil (2012) e a série Força-Tarefa (2011).<br />

O canto da Sereia<br />

Baseada numa obra de Nelson Motta, a minissérie O canto da Sereia é<br />

de autoria de George Moura e Patrícia Andrade, escrita com a colaboração<br />

121


de Sérgio Goldenberg, e supervisão de texto de Glória Perez. A direção<br />

de fotografia e de câmera é de Walter Carvalho e a direção geral é de José<br />

Luiz Villamarim. Foi exibida entre 8 e 11 de janeiro de 2013, totalizando<br />

quatro capítulos, cada um com cerca de 45 minutos.<br />

A história trata do misterioso assassinato de uma famosa cantora<br />

baiana de axé, Sereia (Ísis Valverde), durante o carnaval de Salvador. Na<br />

metade do primeiro episódio ocorre o assassinato e tal fato servirá de<br />

mote para o início do suspense em torno da descoberta do criminoso.<br />

A tensão é construída desde a primeira cena da cantora, quando Sereia<br />

é apresentada ao espectador num momento de instabilidade emocional.<br />

A trama é recortada por um vai-e-vem temporal que mostra a<br />

investigação particular do crime, realizada pelo chefe da segurança pessoal<br />

de Sereia, Augustão (Marcos Palmeira) e seu braço-direito, Vavá (Fábio<br />

Lago), a pedidos de Mara (Camila Morgado), empresária da cantora. A<br />

investigação vai desvendando as origens de Sereia, seus últimos passos<br />

e as relações por ela estabelecidas até se descobrir o assassino e sua<br />

motivação.<br />

O thriller se configura a partir de um mistério que vai sendo revelado<br />

aos poucos, trazendo suspense, excitações, tensões, pistas e twists ao<br />

longo da narrativa, pois já no primeiro episódio, após o assassinato de<br />

Sereia, deixa aos espectadores pistas (falsas) sobre quem poderia ser o<br />

autor do crime. A princípio, muitos dos personagens envolvidos com<br />

Sereia (o ex-namorado, a empresária, o marqueteiro, o governador etc.)<br />

são suspeitos potenciais aos olhos do espectador. A obra se aproxima das<br />

novelas de detetive (KOTHE, 1994), ao fazer com que os caminhos da<br />

resolução dos conflitos – neste caso, o principal, o assassinato de Sereia –<br />

sejam descobertos simultaneamente pelo investigador e pelo espectador,<br />

independente do trabalho da polícia.<br />

O tempo é contemporâneo, identificado também pelo fato de a história<br />

ter como pano de fundo a indústria do carnaval baiano. Constantemente,<br />

são citados os nomes das principais cantoras de axé hoje na Bahia (Ivete<br />

Sangalo e Cláudia Leite). Sua relação espacial se desenvolve quase que<br />

totalmente na capital baiana, explorando pontos turísticos como a Barra<br />

e o Pelourinho, além de mercados, feiras populares, bares e ruelas. No<br />

último capítulo há também cenas que remetem à região do Recôncavo<br />

122


Baiano. Outra característica espacial é a permanente referência ao mar,<br />

que aparece em muitas cenas, às vezes compondo uma paisagem de<br />

fundo, e representando simbolicamente o universo da personagem Sereia.<br />

Esteticamente, a minissérie, ainda que seja uma trama policial, traz uma<br />

fotografia mais luminosa, diurna, com muitas cenas externas, o que de<br />

certo modo se vinculada a uma imagem mais disseminada de Salvador,<br />

uma cidade solar, normalmente associada à praia, carnaval, alegria,<br />

festividades, etc. A espacialização da obra se caracteriza, então, por alternar<br />

ambientes externos abertos, que mostram uma cidade histórica situada às<br />

margens do mar, e ambientes fechados com funções bem precisas: a casa<br />

de Sereia como espaço de intimidade; a casa de Augustão como lugar de<br />

trabalho e de descobertas acerca da investigação; a casa da Mãe de Santo<br />

Marina como ambiente místico, das confissões e dos conflitos espirituais.<br />

Destaca-se o fato de que a Mãe de Santo Marina, personagem forte na<br />

história, é a guia espiritual de Sereia, que, por sua vez, tem Iemanjá<br />

como entidade protetora, elementos simbólicos que indicam a presença<br />

do candomblé e da cultura afro-brasileira no universo ficcional.<br />

Outro aspecto que reforça a questão cultural de Salvador é a trilha<br />

sonora, composta não só por sucessos da axé music, como também<br />

por clássicas composições de cantores baianos. A música incidental é<br />

quase sempre marcada pelo som dos atabaques e por ritmos associados<br />

à música afro.<br />

O primeiro capítulo de O canto da Sereia começa de forma onírica,<br />

com imagens distorcidas de fogo e do que parece ser um homem<br />

queimando algo como um caderno, em que se pode ver o nome “Sereia”<br />

escrito na capa. Alguém chama pelo nome “Augustão” e a imagem se<br />

torna nítida, destacando em plano detalhe um caderno preto com um<br />

“S” impresso na capa. Vê-se, então, Augustão saindo de casa às pressas,<br />

carregando o caderno. Um fade out faz a transição para outra cena, que<br />

se inicia com o som de chuveiro ligado. Surge na tela o letreiro “uma<br />

semana antes”, pontuando um retorno ao passado e deixando em aberto<br />

o tempo da cena inicial. Em dado momento do capítulo final, esta cena<br />

inicial é retomada, e a conclusão da história parte deste ponto.<br />

Ao longo dos quatro capítulos, a construção da minissérie se dá por<br />

meio de flashbacks constantemente indicados por letreiros na tela (“três<br />

anos antes”, “duas semanas antes”, etc.), o que demonstra uma necessidade<br />

123


de explicitar – e explicar – ao espectador o atravessamento no tempo da<br />

narrativa. É uma trama bastante entrelaçada, mas que se torna de mais<br />

fácil compreensão com esses indicativos temporais marcados na tela.<br />

Como estratégia transmidiática, o site da minissérie conta com um<br />

espaço dedicado exclusivamente à cantora – “Site da Sereia” – que traz<br />

detalhes da vida e da obra da cantora fictícia, incluindo um videoclipe e a<br />

letras de seu maior sucesso “No ouvido da Sereia”; vídeos com depoimentos<br />

de artistas reais do carnaval baiano sobre Sereia (Chiclete com Banana,<br />

Cláudia Leite e Carlinhos Brown); uma minibiografia de Sereia e uma<br />

entrevista em vídeo (dividida em quatro partes); uma página para solicitar<br />

o autógrafo da cantora; além de outras informações complementares<br />

sobre a artista. Grande parte do conteúdo produzido para a Web, relativo<br />

a esta minissérie, tem a função de fortalecer a imagem da protagonista<br />

como uma “celebridade da axé music”. Outros materiais também trazem<br />

curiosidades sobre o Candomblé, “a religião escolhida por Sereia na<br />

série”, como descrito no site 72 , além de fragmentos importantes para se<br />

compreender o mistério em torno da morte da cantora.<br />

O canto da Sereia se enquadra nos moldes de uma história policial,<br />

aproximando-se, nesse aspecto, da trama de O rebu, que também tem<br />

um assassinato como ponto de partida. Contudo, aquela traz um núcleo<br />

dramático mais enxuto, trazendo poucos personagens à trama de um<br />

modo que suas inter-relações fiquem muito evidentes. Por outro lado,<br />

destaca-se justamente pelo fato de que a proximidade que existe entre os<br />

personagens é o que dá um mistério maior ao assassinato de Sereia. Não<br />

à toa, Augustão elabora uma espécie de listagem de suspeitos de acordo<br />

com o relacionamento que Sereia tinha com outros personagens. Esse<br />

aspecto, o condensado rol de personagens, reforça ares de um thriller em<br />

que o “inimigo mora ao lado”. Também dá margens para uma descoberta<br />

de um crime passional, motivado pela vingança, pelo ódio ou pela paixão.<br />

Amores roubados<br />

Minissérie de 10 capítulos, com cerca de 40 minutos cada, exibida<br />

entre 6 e 17 de janeiro de 2014, é de autoria de George Moura, que<br />

72<br />

Disponível em: http://gshow.globo.com/programas/sereia/Exclusivo-Web/noticia/2013/01/conheca-a-historia-docandomble-religiao-de-sereia-e-mae-marina.html<br />

Acesso em: 17 fev. 2016.<br />

124


escreveu o roteiro em colaboração com Sérgio Goldenberg, Flávio Araújo<br />

e Teresa Frota, e supervisão de texto de Maria Adelaide Amaral. A direção<br />

geral é de José Luiz Villamarim.<br />

A obra foi inspirada no romance A emparedada da Rua Nova, de<br />

Carneiro Vilela, e narra a história de Leandro Dantas (Cauã Reymond), um<br />

sommelier que deixou São Paulo para retornar à terra natal, no Sertão, e seu<br />

envolvimento com quatro mulheres: sua mãe, Carolina (Cassia Kiss Magro), e<br />

suas três amantes: Celeste (Dira Paes), Isabel Favais (Patrícia Pillar) e Antônia<br />

Favais (Ísis Valverde). Antônia é filha de Jaime Favais (Murilo Benício), dono<br />

da vinícola onde Leandro trabalha. Ao voltar de um período de estudos na<br />

Europa, Antônia se recusa a substituir o pai nos negócios. Leandro e Antônia<br />

vivem uma paixão intensa, interrompida pela descoberta do caso de Leandro<br />

com Isabel. O rapaz é assassinado a mando de Jaime.<br />

Toda a narrativa se passa em Sertão (um lugar fictício), numa região<br />

localizada às margens do rio São Francisco. É nesse cenário árido que<br />

as paixões e traições afloram em meio a questionamentos morais, pois<br />

Leandro, um conquistador, mantém casos com mulheres casadas, esposas<br />

de homens poderosos na região, mas que não aceita ser filho de uma<br />

prostituta e, por isso, renega a mãe. Celeste é casada com Roberto<br />

Cavalcanti (Osmar Prado) por visível interesse financeiro e o trai com<br />

Leandro. Cavalcanti ao saber da traição da mulher, se enfurece, mas está<br />

disposto a acobertar o fato e cede às chantagens de Carolina (Cassia<br />

Kis Magro), que descobre o caso. Isabel, insatisfeita em seu casamento,<br />

também é cortejada por Leandro e se apaixona por ele. Outro personagem<br />

importante é o ambicioso João (Irandhir Santos), afilhado e braço direto<br />

de Jaime, que mantém uma paixão obsessiva por Antônia e a pretensão<br />

de tomar o lugar de seu padrinho.<br />

A cultura nordestina, neste caso associada às tradições do sertão,<br />

com sua paisagem, sua música, suas crenças e festejos, são o pano de<br />

fundo de Amores roubados. Além da caracterização dos personagens<br />

(principalmente em função do sotaque e da linguagem adotados), as<br />

particularidades dessa cultura estão presentes na decoração das casas, no<br />

figurino e nos valores incrustados nos personagens.<br />

Assim como em O canto da Sereia, a história se inicia com uma<br />

cena de grande tensão que se passa num tempo presente, para, num<br />

125


segundo momento, se fixar no passado: dois carros em perseguição<br />

numa estrada isolada no meio do sertão, em uma paisagem árida.<br />

Leandro, o protagonista, está no carro da frente, gravemente ferido, e<br />

tenta atirar em direção ao carro de trás. Em paralelo, cenas de Antônia<br />

se sentindo mal. Não se sabe quem são aquelas pessoas, nem onde<br />

estão. <strong>Entre</strong>tanto, de antemão já se estabelece uma tensão que percorre<br />

boa parte da narrativa. Surge uma tela preta com a indicação temporal<br />

“quatro meses antes”. Essa sequência é retomada linearmente nos<br />

capítulos 5 e 6, quando se descobre o motivo da perseguição e seu<br />

desfecho. A série traz um desenvolvimento linear quase que completo<br />

após essa sequência inicial, salvo alguns flashbacks usados para explicar<br />

alguns pontos da história. Esses flashbacks aparecem de forma rápida,<br />

surgindo sem qualquer indicação verbal ou imagética.<br />

A fotografia de Amores roubados explora a aridez do sertão e traz<br />

a profundidade de campo até para as cenas internas, inserindo ainda<br />

imagens desfocadas. As cores bastante saturadas, o baixo contraste e o<br />

aproveitamento da luz natural reforçam a temperatura das paixões e do<br />

sertão. Outro destaque são as composições de quadro que, reforçadas<br />

pela direção de arte, dão ênfase aos conflitos internos dos personagens e<br />

às tensões de gênero e de classe que permeiam a trama.<br />

Com relação às estratégias transmidiáticas, o site oficial da minissérie<br />

traz, além das informações e curiosidades sobre a obra, elenco e<br />

bastidores, um álbum com “Fotos de Antônia”, contendo fotografias<br />

tiradas pela personagem em diversos momentos da história e que<br />

podem ser compartilhadas nas redes sociais. As imagens registram a<br />

realidade do sertão e reforçam o contexto cultural no qual se desenrola<br />

a trama. Também foi disponibilizado o quiz intitulado “O quanto você<br />

conhece sobre vinho?”, que ressalta um dos elementos que caracteriza<br />

o contexto da trama, ao mesmo tempo em que revela novas faces do<br />

Brasil contemporâneo: é em torno da indústria do vinho que conhecemos<br />

um sertão moderno, economicamente produtivo, representado por<br />

uma nova classe dominante – o empresário –, que assume os valores<br />

do “coronelismo” arcaico, porém “repaginado”. Esse conteúdo da Web<br />

contribui para reforçar as marcas contextuais da trama. O sertão da<br />

aridez e dos conflitos sociais – já bastante presente no imaginário e no<br />

contexto audiovisual brasileiro muito por conta das histórias de cangaço<br />

126


–, continua presente, mas dá lugar a uma espécie de oásis, que se destaca<br />

pela riqueza natural e cultural das margens do rio São Francisco.<br />

Diferentemente de O rebu e O canto da Sereia, Amores roubados não<br />

se caracteriza exatamente como um thriller policial, com investigadores<br />

tentando elucidar um crime. A ruptura da normalidade se estabelece<br />

a partir do entrelaçamento de pelo menos três triângulos amorosos,<br />

combustível do romance (e também da tragédia), criando um clima de<br />

suspense que se inicia já na primeira cena, com o protagonista ferido.<br />

Daí decorrem os conflitos familiares, o desejo de vingança, os danos<br />

psicológicos. O que se sobressai é uma questão moral.<br />

O Rebu<br />

O remake de O rebu foi exibido entre 14 de julho e 12 de setembro<br />

de 2014, contando com 36 capítulos de aproximadamente 35 minutos<br />

cada. Foi escrito por George Moura e Sérgio Goldenberg e colaboradores,<br />

com direção geral de José Villamarim e direção de fotografia de Walter<br />

Carvalho.<br />

A história se desenrola durante uma festa na mansão de Ângela Mahler<br />

(Patrícia Pillar), onde ocorre um assassinato misterioso, e se estende até o<br />

dia seguinte, enquanto se acompanha a investigação do crime. O grande<br />

trunfo narrativo de O rebu é recortar em 24 horas seu plot central e<br />

se valer de flashbacks para desenvolver suas subtramas, configurando<br />

uma narrativa complexa e sofisticada e revelando a profundidade de seus<br />

personagens em um emaranhado de histórias que se cruzam. A influência<br />

da nova era da televisão norte-americana na televisão aberta brasileira<br />

também pode ser observada na escolha dos enredos e temáticas. O rebu<br />

é claramente um thriller de suspense, envolvendo a investigação policial<br />

de um crime.<br />

Não obstante, para além de taxonomias e estruturas, o diálogo que a<br />

narrativa de O rebu criou com as mídias digitais e suas várias telas merece<br />

atenção por sua fluidez. Fazendo uso de ferramentas extradiegéticas, foram<br />

disponibilizados um vídeo de abertura que proporciona um passeio pela<br />

mansão Mahler no dia seguinte à festa; teasers convocando o público para<br />

a estreia; prévias dos capítulos seguintes e disponibilização de cenas, já<br />

exibidas, estendidas; um game de adivinhação, no qual pistas eram dadas<br />

127


e os internautas podiam fazer suas apostas no personagem que julgavam<br />

ser o responsável pelo crime da trama, além de comentar o ranking<br />

de suspeitos e compartilhar suas escolhas; e vídeos com integrantes do<br />

elenco nos bastidores, fomentando o mistério do assassinato. Todo esse<br />

material está disponível no GShow, nas seções “Extra” e “O Rebu no ar”.<br />

Mas o grande destaque fica para a seguinte construção: no decorrer<br />

dos capítulos, as cenas dos personagens tirando fotos na festa e as<br />

divulgando nas redes sociais são acompanhadas por takes de telas de<br />

computadores, smartphones e tablets mostrando as referidas postagens e<br />

suas interações nas redes sociais, principalmente Facebook e Instagram,<br />

estabelecendo uma conexão entre a narrativa e as telas que lhes são, a<br />

princípio, externas. Esse recurso se inseriu fluidamente na montagem por<br />

meio de uma edição ágil e em articulação com os temas musicais da trama,<br />

chegando a um ponto em que não se conseguia identificar facilmente o<br />

que estava ou não na tela dos celulares dos personagens. Fato curioso<br />

é que os próprios atores foram encarregados de produzir essas fotos<br />

durante as filmagens. 73 Outro elemento que caracteriza esse diálogo da<br />

obra exibida na TV com as redes sociais é a própria página da obra no<br />

GShow, seção que disponibilizou uma compilação das fotos “postadas”<br />

pelos personagens durante a festa da trama, legendadas, tratadas com<br />

filtros dos aplicativos de foto e tagueadas com “#FestaAngelaMahler”,<br />

havendo ainda a indicação do “autor” da foto. 74<br />

As matrizes culturais num contexto de convergência:<br />

mudanças em curso?<br />

Pelas análises apresentadas, infere-se que a transformação pela qual<br />

passa a produção ficcional na televisão aberta brasileira acompanha, a<br />

seu ritmo, as mudanças ocorridas no cenário audiovisual mundial. Ainda<br />

que não se possa detectar nessas obras, por exemplo, as narrativas<br />

modulares, em função do tamanho mais reduzido das obras, há um claro<br />

investimento num maior grau de complexidade narrativa, de modo a<br />

desenvolver novas estruturas, caminhos e modelos de experimentação,<br />

seja por força do mercado ou por demanda do próprio público.<br />

73<br />

Disponível em: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/06/25/redes-sociais-vao-ajudar-na-investigacaoda-morte-de-o-rebu.htm<br />

Acesso em: 17 fev. 2016.<br />

74<br />

Disponível em: http://especiaiss3.gshow.globo.com/novelas/o-rebu/a-festa/ Acesso em: 17 fev. 2016.<br />

128


A velocidade da narrativa, a alternância temporal por meio de<br />

flashbacks e flashforwards, a continuidade do suspense, a opção pelo<br />

gênero policial e a não adesão ao melodrama (o que implica também<br />

uma maior complexidade dos personagens) se articulam a uma camada<br />

de “brasilidade” – especialmente em O canto da Sereia e Amores<br />

roubados – que se revela nos temas, sotaques dos personagens, cenários,<br />

trilha musical, figurinos e aspectos culturais que caracterizam o contexto<br />

(visões de mundo, costumes, tradições etc.).<br />

No que se refere às estratégias transmidiáticas (que se referem neste<br />

estudo a ações de comunicação relativas a uma obra de ficção que<br />

articule duas ou mais mídias), nota-se uma predominância da articulação<br />

entre TV e Web. O site de O rebu traz conteúdos interativos capazes<br />

de expandir o universo narrativo de modo mais criativo e inovador em<br />

relação aos outros dois produtos, com foco nas redes sociais. Na página<br />

de Amores roubados a oferta de conteúdo complementar se restringiu<br />

ao mínimo necessário, com ênfase nos conteúdos informativos. As<br />

ações desenvolvidas para O canto da Sereia, embora mais elaboradas,<br />

parecem ter seguido o mesmo modelo adotado na novela Cheias de<br />

Charme (2012), porém sem obter o mesmo efeito, considerando que<br />

os recursos de extensão diegética e vivenciais associados à esta novela<br />

das sete alcançaram grande repercussão, tanto pela inovação quanto<br />

pela coerência entre a obra exibida na TV e as ações desenvolvidas na<br />

internet. 75<br />

Martín-Barbero (2013: 304) afirma que para a abordagem dos gêneros<br />

faz-se necessário compreender seu sistema em cada país, uma vez que em<br />

cada contexto social e cultural distinto deve-se observar uma combinação<br />

de elementos: configuração cultural, estrutura jurídica de funcionamento<br />

da televisão, grau de desenvolvimento da indústria televisiva nacional<br />

e modos de articulação com a indústria transnacional. Segundo Souza<br />

e Weber (2009), um traço comum que perpassa as telenovelas iberoamericanas<br />

é o fato desses produtos serem sustentador por:<br />

Um sistema de comunicação oligopolizado transnacional que produz<br />

uma ficção seriada marcada pela continuidade num longo período de<br />

tempo, de acordo com estratégias ficcionais melodramáticas que enfatizam<br />

75<br />

Ver estudo mais completo em BACCEGA, TONDATO e outros (2013: 61-94).<br />

129


temas, intrigas e personagens vinculados a realidades do cotidiano dos<br />

telespectadores (SOUZA E WEBER, 2009: 92)<br />

Reconhece-se que as obras destacadas nesta pesquisa são produzidas<br />

dentro deste paradigma, ou seja, no interior da um sistema de comunicação<br />

oligopolizado e transnacional (e não por produtoras independentes, por<br />

exemplo). Contudo, verifica-se nesses produtos uma tendência em se<br />

distanciar da matriz melodramática (e também da comédia) e permitir<br />

maior liberdade de criação dos autores.<br />

Entende-se que as transformações em curso decorrem do fato de que<br />

a Globo enfrenta uma forte concorrência não somente em relação às<br />

outras grandes emissoras de TV, mas especialmente em relação aos canais<br />

fechados e à internet. Num contexto de novas espacialidades e de novas<br />

territorialidades, a experiência doméstica se articula à televisão e ao<br />

computador, exigindo das produtoras novas formas de experimentação<br />

audiovisual.<br />

O conceito de mediações proposto por Martín-Barbero se faz ainda<br />

atual para se discutir as especificidades da comunicação na América<br />

Latina. Entendendo a comunicação como interação, o autor estabelece o<br />

conceito como sendo capaz de criar nexos entre diferentes dimensões de<br />

um mesmo processo comunicacional, no qual a produção é compreendida<br />

em diálogo com as demandas sociais. As indústrias culturais buscam<br />

atender às demandas que emergem do próprio tecido cultural e que se<br />

originam de novos modos de uso e de percepção (MARTÍN-BARBERO,<br />

2013). Desse modo, a RGT (bem como outras emissoras da América<br />

Latina) estão se vendo impelidas a desenvolver, de modo permanente,<br />

conteúdo transmídia para garantir suas audiências. 76<br />

No sentido de reforçar a presença de seus produtos na web, a RGT<br />

lançou em janeiro de 2014 o portal GShow, uma plataforma interativa que<br />

76<br />

Um exemplo de como a RGT tem se preocupado em se alinhar a essas tendências internacionais foi a realização,<br />

em fevereiro de 2015, do evento “Intercâmbio de experiências”, promovido pela área de Desenvolvimento e<br />

Acompanhamento da empresa”. O evento consistiu em realizar, na sede da Emissora, palestras com profissionais<br />

consagrados no campo da televisão e do cinema – Cary Fukunaga, Steve Ince, Alexandra Clert, Barry Schkolnick<br />

e M. Night Shymalah –, que vieram ao Brasil para participar da Rio Content Market, um encontro internacional<br />

sobre televisão e mídias digitais do qual a Globo é parceira. O objetivo deste intercâmbio foi justamente possibilitar<br />

uma aproximação dos profissionais da Globo com as experiências de criação e produção de conteúdos televisivos (e<br />

também para outras telas) de repercussão mundial, o que de certo modo demonstra uma preocupação da emissora em<br />

incorporar certos “parâmetros internacionais” necessários para se garantir o desenvolvimento de produtos com potencial<br />

transnacional.<br />

130


engloba todos os seus produtos de entretenimento, em especial aqueles<br />

produzidos pela própria emissora, como novelas, séries e reality shows. 77<br />

É pelo GShow que se tem acesso às páginas oficiais desenvolvidas para<br />

cada obra veiculada na TV, reunindo conteúdos que integram estratégias<br />

de propagação e de expansão (FECHINE e outros, 2013: 37). De todo<br />

modo, as ações transmidiáticas relativas às obras aqui estudadas visam<br />

garantir uma adesão do internauta ao produto principal, que é a obra<br />

exibida na televisão.<br />

Ainda que se trate de produtos voltados para o horário das 23 horas,<br />

verifica-se que a experimentação na teleficção brasileira (representada<br />

aqui pela RGT) preserva alguns elementos essenciais que garantem a<br />

adesão do público. Estes estão mais presentes nas estruturas de superfície<br />

(temas, contextualização, presença de atores consagrados e de grande<br />

identificação com o público da emissora, entre outros elementos), do que<br />

propriamente nas estruturas formais e na dimensão narrativa, que por<br />

sua vez incorporam inovações que escapam à tradição do melodrama,<br />

buscando ainda manter o interesse do público e agregar novos tipos de<br />

espectadores ao propagar e expandir as narrativas na internet.<br />

Referências<br />

BACCEGA, Maria Aparecida; TONDATO, Marcia Perecin; e outros. Reconfigurações da ficção televisiva:<br />

perspectivas e estratégias de transmidiação em Cheias de Charme. In: LOPES, Maria Immacolata V. de<br />

(Org.). Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013.<br />

BALOGH, Anna M. O discurso ficcional na TV. São Paulo: EDUSP, 2002.<br />

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.<br />

CARLOS, Cássio S. Em tempo real: Lost, 24 horas, Sex and the city e o impacto das novas séries de TV.<br />

São Paulo: Alameda, 2006.<br />

DUARTE, Elizabeth. Televisão: Novas modalidades de contar as narrativas. Revista Contemporânea<br />

Comunicação e Cultura, v.10, n.º 2, ano 12, 2012, p. 324-339. Disponível em: http://www.portalseer.<br />

ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/6015/4393. Acesso em 16 de fevereiro de<br />

2015.<br />

ESQUENAZI, Jean-Pierre. As séries televisivas. Lisboa: Texto e Grafia, 2011.<br />

77<br />

Contudo, pelo menos desde 2006, a RGT desenvolve conteúdos interativos vinculados à ficção televisiva em seu<br />

site oficial. Sobre este tema cf. MÉDOLA E REDONDO, 2010.<br />

131


FECHINE, Yvana e outros. Como pensar os conteúdos transmídias na teledramaturgia brasileira? Uma<br />

proposta de abordagem a partir das telenovelas da Globo. In: LOPES, Maria Immacolata V. de (Org.).<br />

Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013.<br />

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.<br />

KOTHE, Flávio R. A narrativa trivial. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.<br />

LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; GÓMEZ, Guillermo Orozco. Obitel 2011 – Qualidade na<br />

ficção televisiva e participação transmidiática das audiências. Observatório Ibero-Americano de<br />

Ficção Televisiva. Rio de Janeiro: Globo Universidade, 2011.<br />

LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; GÓMEZ, Guillermo Orozco. Obitel 2014 – Estratégias de<br />

Produção Transmídia na Ficção Televisiva. Porto Alegre: Sulina, 2014.<br />

LUSVARGUI, Luiza. Prófugos: novos formatos e regionalização na ficção seriada de TV Latino-<br />

Americana. Revista Ciberlegenda. PPGCOM-UFF n.º 29, 2013. Disponível em:<br />

file:///C:/Users/ACER/Documents/CAT/Luiza%20Lusvargui%20Pr%C3%B3fugos.pdf Acesso em 2 de<br />

maio de 2015<br />

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 4.ª ed. São Paulo: Senac São Paulo, 2005.<br />

MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. 7ª edição. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.<br />

MARTIN, Brett. Homens difíceis: Bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano,<br />

Mad Men e outras séries revolucionárias. São Paulo: Aleph, 2014.<br />

MÉDOLA, Ana S.; REDONDO, Léo V. A ficção televisiva no mercado digital. In: RIBEIRO, Ana Paula<br />

G.; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco. História da televisão no Brasil. Do início aos dias de hoje. São<br />

Paulo: <strong>Contexto</strong>, 2010.<br />

MILLER, Toby. A televisão acabou, a televisão virou coisa do passado, a televisão já era. In: FREIRE<br />

FILHO, João. A TV em transição: tendências de programação no Brasil e no mundo. Porto Alegre:<br />

Sulina, 2009.<br />

MITTEL, Jason. “Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea”. In: Matrizes, v. 5,<br />

p. 29-52, jan./jun. 2012. São Paulo. Disponível em: http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/<br />

article/view/337<br />

SCOLARI, Carlos. Hipermediaciones. Elementos para una teoría de la comunicación digital<br />

interactiva. Barcelona, España: Editorial Gedisa, 2008.<br />

SOUZA, Maria C. J.; WEBER, Maria H. Autoria no campo das telenovelas brasileiras: a política em<br />

Duas caras e em A favorita. In: SERAFIM, José Francisco. Autor e autoria no cinema e na televisão.<br />

Salvador: Edufba, 2009.<br />

132


Humor de qualidade no audiovisual brasileiro:<br />

proposta metodológica de análise<br />

Gabriela Borges 78<br />

Introdução<br />

Este capítulo apresenta a metodologia para a análise da qualidade<br />

que está sendo construída pelo projeto O Humor no Audiovisual<br />

Brasileiro, que se insere nas atividades do Observatório da Qualidade<br />

no Audiovisual, criado na Universidade Federal de Juiz de Fora em<br />

2013. 79 Propomos uma metodologia de análise semiótica de produtos<br />

humorísticos veiculados na televisão aberta e por assinatura brasileira<br />

no período de 1960 a 2014 e canais de humor do YouTube em atividade<br />

em setembro de 2015.<br />

Esta metodologia está pautada na definição de dois parâmetros para<br />

a análise da qualidade, os modos de representação e a experimentação,<br />

e na elaboração de fichas de avaliação relativas ao Plano da Expressão,<br />

ao Plano do Conteúdo e à Mensagem Audiovisual. O Plano da Expressão<br />

analisa os recursos técnico-expressivos e a produção de sentido dos<br />

produtos; o Plano do Conteúdo analisa os indicadores de qualidade<br />

Oportunidade, Diversidade de sujeitos representados, Ampliação do<br />

horizonte do público e Estereótipo. E a Mensagem Audiovisual analisa os<br />

elementos encontrados nos dois planos anteriores de forma conjunta. Os<br />

indicadores de qualidade da Mensagem Audiovisual são Originalidade/<br />

Criatividade, Diálogo com/entre plataformas, Solicitação da participação<br />

ativa do público e Clareza da proposta.<br />

É importante ressaltar que esta proposta metodológica está em<br />

construção, uma vez que a análise dos produtos audiovisuais tem trazido<br />

78<br />

Professora do PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutora em Comunicação e Semiótica pela<br />

PUC-SP.<br />

79<br />

Este projeto está sendo realizado em conjunto com os bolsistas de iniciação científica financiados pela Fapemig e<br />

pela UFJF. Agradeço a colaboração de Danilo Terra, Hugo Queiroz, Veronica Bernadino, Guilherme Freire, Luma<br />

Perobeli e Monalisa Soares de Lima e da mestranda Raiza Campos.<br />

133


novos elementos que nos permitem repensar e, algumas vezes, refazer o<br />

percurso e questionar os pressupostos teóricos.<br />

A qualidade é um conceito controverso, que temos estudado há vários<br />

anos (BORGES, 2004, 2008, 2014) e neste trabalho nos propomos a discutilo<br />

em relação ao humor no audiovisual brasileiro. Percebemos que há<br />

uma lacuna na academia brasileira no que diz respeito aos estudos sobre<br />

o humor no audiovisual e, portanto, resolvemos estudá-lo sob o prisma<br />

da qualidade.<br />

O humor<br />

Diversos autores se debruçaram sobre a definição do conceito de<br />

humor e suas diferenças em relação ao conceito de cômico. Croce (apud<br />

PIRANDELLO, 1996: 128) concorda com Baldensperger e afirma que<br />

o humorismo é indefinível e que não existe, o que há são escritores<br />

humoristas. Pirandello distingue entre o humorístico e o cômico,<br />

ressaltando o caráter reflexivo do conceito por meio do sentimento do<br />

contrário presente numa obra de arte.<br />

A reflexão, durante a concepção, assim como durante a execução da<br />

obra de arte, não permanece inativa: assiste ao nascer e ao crescer<br />

da obra (...). E, comumente, no artista, no momento da concepção, a<br />

reflexão se esconde e permanece, por assim dizer, invisível: é quase,<br />

para o artista, como uma forma de sentimento. À medida que a obra<br />

se faz, ele a critica, não friamente como faria um juiz desapaixonado,<br />

analisando-a, mas improvisadamente, segundo a impressão que dela<br />

recebe (PIRANDELLO, 1996: 131).<br />

Na obra humorística a reflexão não se esconde nem permanece<br />

invisível como uma forma de sentimento, mas se mostra e analisa<br />

o sentimento como um juiz. Dessa análise, surge outro sentimento,<br />

o sentimento do contrário. Pirandello exemplifica com o texto de<br />

Dom Quixote, de Cervantes, em que nós gostaríamos de rir de tudo<br />

que há de cômico na representação de Dom Quixote, mas o riso<br />

não vem aos lábios de modo genuíno e fácil, sentimos que alguma<br />

coisa o impede, é um sentimento de comiseração e de admiração ao<br />

mesmo tempo. Temos uma representação cômica, mas dela emana<br />

um sentimento que nos impede de rir ou que torna o riso amargo.<br />

(PIRANDELLO, 1996: 134)<br />

134


Segundo Pirandello, o humor renuncia à superioridade e ao<br />

distanciamento, e nos leva a refletir sobre a razão do riso, o porquê da<br />

piada, através do sentimento do contrário. Esse sentimento do contrário<br />

leva a uma das principais características do humor, a crítica em suas<br />

diversas escalas, não só procurando levar as pessoas ao riso, mas fazendoas<br />

discutir e refletir sobre as mais variadas situações. O humor ironiza uma<br />

realidade e, ao mesmo tempo, constrói uma nova, tendo como matériaprima<br />

a representação dos defeitos, erros e males humanos.<br />

As características mais comuns do humorismo são a contradição<br />

fundamental e o ceticismo. A contradição se mostra por meio do desacordo<br />

entre o sentimento e a meditação, a vida real e o ideal humano, ou entre<br />

as nossas aspirações e as nossas fraquezas e misérias; como principal<br />

efeito, temos a perplexidade entre o pranto e o riso. O ceticismo colore<br />

cada observação, cada representação humorística e se mostra por meio de<br />

um “procedimento minuciosamente, e também, maliciosamente analítico”<br />

(PIRANDELLO, 1996: 126).<br />

Sendo assim, a reflexão gerada pelo humorismo paralisa o fluxo de<br />

ideias para permitir a análise do que está sendo representado, mas esta<br />

reflexão é sempre ambígua, porque está entre o riso, a comiseração e<br />

outros sentimentos contrários. Através do riso, o humorismo reflete sobre<br />

a realidade e expressa a crítica e a denúncia, fazendo surgir o sentimento<br />

do contrário.<br />

Para Pirandello, o cômico se diferencia do humorismo ao promover<br />

apenas a advertência do contrário, ou seja, notamos que algo está fora de<br />

lugar, mas não somos levados a refletir sobre isso. O cômico se sustenta<br />

pelo simples fato de fazer rir, de consumir uma situação o máximo<br />

possível. O humor despretensioso, sem reflexão sobre o riso, suas razões<br />

e consequências, caracteriza-se, na opinião do autor, como o riso cômico.<br />

O gênero humorístico no audiovisual brasileiro<br />

A partir dos anos 1980, a produção de programas humorísticos pela<br />

TV Globo é bastante prolífica, exibindo atrações que se diferenciaram no<br />

panorama audiovisual brasileiro, tais como Armação ilimitada (1985),<br />

TV Pirata (1988), Casseta & Planeta, Urgente (1992), entre tantos outros.<br />

Esses programas foram responsáveis, por um lado, pela renovação do<br />

135


humor que era feito na TV e, por outro lado, pela inovação no uso dos<br />

recursos técnico-expressivos da linguagem audiovisual. Apesar do gênero<br />

humorístico na TV ter como herança o rádio e o teatro, Arraes (apud SILVA<br />

JUNIOR, 2001: 182) relata que o humor que faziam naquele momento<br />

ressaltava o visual, muito mais do que o texto. Eram paródias visuais,<br />

pois os humoristas cresceram assistindo televisão e estavam acostumados<br />

a contar histórias com imagens. Arraes foi influenciado pelas chanchadas<br />

de Sílvio de Abreu e Carlos Manga. Como diretor, juntamente com Jorge<br />

Fernando, Arraes abrilhantou um pouco as chanchadas trazendo as suas<br />

características estéticas para as novelas de humor do horário das 19h na<br />

TV Globo. Arraes (apud SILVA JUNIOR, 2001: 179-181) afirma que estava<br />

preocupado em experimentar com a linguagem na produção daqueles<br />

programas nos anos 1980.<br />

Fechine (2008: 28), ao estudar a qualidade na produção audiovisual de<br />

Guel Arraes, sugere que a intenção do grupo formado por atores, diretores,<br />

redatores e roteiristas era “desconstruir modelos de representação vigentes<br />

no teatro, no cinema, no vídeo, no jornalismo e na própria televisão, tendo<br />

o humor como anteparo crítico e irônico”. Neste sentido, Fechine (2008:<br />

24) enfatiza que Programa legal e Brasil legal são dois dos formatos mais<br />

inovadores do Núcleo de Criação do diretor pernambucano, misturando<br />

documentário e jornalismo, humor e ficção.<br />

Nos anos 1990 e 2000 os canais da televisão por assinatura, com<br />

destaque para o Multishow, também investiram na produção de programas<br />

humorísticos que mesclavam a ficção, o jornalismo e o humor. Um<br />

pouco mais tarde, estes programas começaram a estabelecer um diálogo<br />

bastante profícuo com os humoristas que estavam surgindo nos canais<br />

de humor do YouTube ou nos blogs e vlogs na internet. Muitos desses<br />

humoristas atualmente criam conteúdos audiovisuais para serem exibidos<br />

tanto na televisão quanto na internet. Um dos formatos que é bastante<br />

utilizado é a stand up comedy, para o qual há até concursos de novos<br />

talentos, como o Prêmio Multishow de Humor, que está na sua quarta<br />

temporada e já revelou vários humoristas, tais como Gigante Léo, Paulo<br />

Vieira e Denis Lacerda. Em levantamento realizado para o Anuário da<br />

Rede Obitel Internacional (LOPES E MUNGIOLI, 2013: 128-9), constatouse<br />

um aumento da produção de conteúdos nacionais na televisão por<br />

assinatura, tendo o humorístico como gênero predominante. Os programas<br />

136


ficcionais, incluindo os humorísticos, cresceram de duas produções em<br />

2007 para vinte e duas em 2013 e trinta e três em 2014. Este crescimento<br />

deve-se, em parte, à aprovação da Lei 12.485/2011, conhecida como Lei<br />

da TV paga, que exige que os canais pagos veiculem durante o horário<br />

nobre, no mínimo, três horas e meia de conteúdo nacional por semana.<br />

Acrescente-se que metade dessa cota deve ser produzida por produtoras<br />

nacionais independentes, sem vínculo com os grupos de radiodifusão.<br />

Em 2013, do Top 10 da TV paga realizado pelo Obitel, oito programas<br />

eram humorísticos.<br />

No YouTube encontramos canais formados por coletivos tais como o<br />

Porta dos Fundos e Galo Frito; e também por humoristas profissionais,<br />

como o Filipe Neto e o PC Siqueira, que alimentam a plataforma com<br />

sketches e vídeos humorísticos e possuem milhões de visualizações.<br />

Com a convergência de mídias e o barateamento da tecnologia, ficou<br />

muito fácil produzir vídeos que podem se tornar virais. Alguns humoristas<br />

defendem que, devido ao modo de produção de vídeos para a internet se<br />

diferenciar bastante do modo de produção televisiva, os artistas podem<br />

ter mais liberdade criativa. Porém, percebemos que muitas vezes os<br />

artistas tornam-se conhecidos na internet e são contratados pelos canais,<br />

principalmente por assinatura, e podem até entrar na engrenagem da<br />

produção televisiva.<br />

Neste contexto de convergência midiática e cultural (JENKINS, 2006;<br />

JENKINS, GREEN E FORD, 2014) no qual estamos vivendo, nossos estudos<br />

têm o intuito de mapear e analisar as especificidades das novas formas de<br />

expressão que surgem com o advento da tecnologia digital. Procuramos<br />

enfocar as narrativas e dramaturgias dos conteúdos audiovisuais<br />

humorísticos que, em alguns casos, podem requerer diferentes formas<br />

de participação do espectador/interator, tanto em termos interventivos<br />

quanto colaborativos.<br />

Scolari (2008) propõe o termo hipertelevisão para entendermos a<br />

dinâmica desse meio e as diferenças em relação à neotelevisão, termo<br />

cunhado por Eco (1984), que se caracteriza pela diluição das fronteiras<br />

entre ficção e informação e pela representação que a televisão começa<br />

a fazer de si mesma nos anos 1980. A hipertelevisão reflete as mudanças<br />

ocorridas tanto no comportamento do espectador, que aprendeu a<br />

137


interagir com múltiplas mídias e especializou-se nas textualidades<br />

fragmentadas, quanto nas próprias formas narrativas que começaram a<br />

ser disponibilizadas também em decorrência dessas mudanças. Scolari<br />

ressalta que a especificidade da hipertelevisão se encontra na expansão<br />

narrativa em diferentes meios, muito mais do que na extensão das suas<br />

histórias.<br />

Neste sentido, o estudo sobre os produtos audiovisuais humorísticos<br />

tem o propósito de discutir as mudanças que aconteceram ao longo dos<br />

últimos 55 anos na televisão brasileira, pois percebemos uma mudança<br />

de tom do humor e também do cômico, considerando também que com<br />

o advento da internet surgiram novos produtos. Sendo assim, um dos<br />

nossos objetivos é investigar se estes novos produtos trazem novos modos<br />

de contar histórias e novas formas de comunicação. Considerando que<br />

o riso tem uma significação social, temos percebido que as formas de se<br />

fazer rir têm mudado e o que antes era socialmente aceito, hoje pode ter<br />

conotações politicamente incorretas. Isso traz uma reflexão bastante rica<br />

acerca do contexto cultural e social no qual o humor, que nos interessa<br />

especialmente, e o riso cômico estão inseridos.<br />

A qualidade no audiovisual<br />

O tema da qualidade na televisão tem sido debatido desde os anos<br />

1980 por acadêmicos e críticos e tem sido incorporado na legislação<br />

da mídia de diversos países, principalmente europeus, como tentamos<br />

demonstrar em estudo publicado recentemente a respeito da televisão<br />

pública portuguesa (BORGES, 2014). De fato, vários estudos procuraram<br />

mapear o conceito e propor parâmetros a respeito do serviço público<br />

de televisão e, no que diz respeito às televisões abertas e comerciais,<br />

o conceito de quality television passou a ser bastante debatido com a<br />

entrada dos programas ficcionais seriados da televisão por assinatura,<br />

tal como a HBO, nos anos 1990. Todavia, no que se refere ao gênero<br />

humorístico, encontramos uma lacuna nos estudos televisivos sob a<br />

perspectiva das discussões sobre a qualidade.<br />

A qualidade pode ser entendida a partir de diferentes prismas. Como<br />

já discutimos em outros estudos (BORGES, 2008, 2009), defendemos que<br />

o conceito pode ser definido objetivamente uma vez que o entendimento<br />

seja deslocado do simples julgamento de gosto e, portanto, de valor, para<br />

138


a análise de elementos estilísticos intrínsecos ao produto audiovisual.<br />

Entenda-se que esses elementos se relacionam com os temas abordados,<br />

a criação de personagens, o uso dos recursos técnico-expressivos, o<br />

engajamento do público, a complexidade narrativa, entre outros.<br />

Na opinião de Pujadas (2002), que vem ao encontro deste estudo,<br />

a valorização dos elementos internos aos próprios programas contém<br />

uma quantidade significativa de parâmetros de avaliação que permitem<br />

sistematizar de maneira clara o discurso sobre a qualidade do programa<br />

televisivo. A autora ressalta que nos estudos sobre a qualidade dos<br />

programas individuais, os parâmetros de avaliação contemplam, em<br />

geral, os seguintes critérios: 1) o conteúdo dos programas (tais como<br />

tema, uso de linguagem vulgar, não trivialização); 2) a forma dos<br />

programas (como a estrutura narrativa, a construção dos personagens,<br />

as tramas argumentativas); 3) a mensagem audiovisual (referente à forma<br />

e ao conteúdo), e 4) as referências ao gênero, isto é, em que medida<br />

o programa cumpriu a sua função de acordo com o gênero em que se<br />

insere, ou então com respeito à dificuldade de classificar o programa num<br />

determinado gênero<br />

Ao propor a análise de programas individuais na televisão e<br />

estender a proposta para a análise de vídeos de canais de humor na<br />

internet, procuramos centrar o estudo no produto audiovisual e suas<br />

peculiaridades, sem contudo deixar de lado a contextualização cultural<br />

e social que faz parte das construções narrativas humorísticas e que<br />

no nosso entender estão interligadas com a questão da qualidade. O<br />

humor só se efetiva se o público entende a piada, por isso o repertório<br />

cultural é bastante relevante. Sendo assim, estes elementos podem ser<br />

articulados metodologicamente por meio de parâmetros e indicadores de<br />

análise da qualidade que contribuam para a reflexão sobre as produções<br />

audiovisuais.<br />

Estamos definindo como humor de qualidade aquele que leva à<br />

reflexão crítica, gera o sentimento do contrário e trata de temas que são<br />

relevantes para serem discutidos em nossa sociedade e que, muitas vezes,<br />

têm muito mais impacto quando discutidos de modo descontraído e sem<br />

conceitos pré-estabelecidos. Podemos perceber que muitos programas<br />

reforçam estereótipos e preconceitos sociais de modo recorrente, mas que<br />

139


alguns produtos audiovisuais se diferenciam justamente por provocar um<br />

incômodo e propiciar a oportunidade do público dar asas à imaginação.<br />

Por outro lado, o riso cômico, conforme Bergson teoriza (1983), diz<br />

respeito às atitudes, gestos e movimentos do corpo humano, bem como<br />

às ações e situações do cotidiano. A comicidade está no terreno do que<br />

é propriamente humano, sendo a emoção o seu maior inimigo. Por isso,<br />

para que o riso cômico se efetive, não podemos ter piedade ou afeição e<br />

não podemos refletir sobre a situação. O cômico é casual e permanece,<br />

por assim dizer, na superfície da pessoa. Bergson (1983: 11) ressalta<br />

que “quando certo efeito cômico derivar de certa causa, quanto mais<br />

natural a julgarmos tanto maior nos parecerá o efeito cômico. De fato,<br />

rimos do desvio que nos é apresentado como simples fato”. O riso é<br />

gerado se ações e situações cômicas são construídas de tal modo que nos<br />

transmitam a ilusão da vida e a sensação de uma montagem mecânica,<br />

seja por meio da repetição, da inversão ou da interferência de duas séries<br />

de fatos independentes (BERGSON, 1983: 36, 48). A comicidade surgirá<br />

assim a partir daquele aspecto da pessoa, pelo qual ela parece uma coisa,<br />

ou dos acontecimentos humanos, que imita o mecanismo puro e simples,<br />

o automatismo, enfim, o movimento sem a vida (BERGSON, 1983: 43).<br />

Para definir a amostra de produtos audiovisuais relevantes para o nosso<br />

estudo e operacionalizarmos a análise, categorizamos o gênero humorístico<br />

no audiovisual em humor-jornalismo e humor-ficção. O humor-jornalismo<br />

se caracteriza pela reprodução de fatos reais e de interesse público de<br />

forma bem humorada (valendo-se de traços do humor, como a ironia, o<br />

grotesco ou a sátira); pela apropriação da estética jornalística, seja com o<br />

intuito de desconstruir o discurso jornalístico ou de aproveitar a forma de<br />

levar “fatos reais” culturalmente conhecidos pela sociedade para mostrar<br />

suas idiossincrasias através de relatos fictícios. O humor-ficção requer<br />

a criação de situações ou cenas ficcionais. São narrativas que possuem<br />

um enredo com um conjunto de personagens principais que têm um<br />

desenvolvimento ao longo da trama. São normalmente verossímeis, como<br />

os sitcons, com situações bem humoradas do dia a dia. Essas situações<br />

podem tanto ser de comédia quanto de humor, uma vez que podem<br />

provocar o riso imediato e despreocupado (uma queda, algum ocorrido<br />

inusitado), ou podem apresentar caricaturas e paródias, gerando um riso<br />

ambíguo e a reflexão sobre a realidade.<br />

140


Sendo assim, foram definidos parâmetros para a análise da qualidade dos<br />

programas humorísticos apresentados na televisão aberta e por assinatura<br />

e, principalmente, no trânsito e na interseção dos conteúdos divulgados<br />

nos canais de humor do YouTube. Esses parâmetros estão articulados a<br />

partir de dois conceitos: modos de representação e experimentação. Os<br />

modos de representação estão relacionados à criação e desenvolvimento<br />

dos personagens, na medida em que estes podem ser tanto caricatos,<br />

grotescos ou satíricos, independentemente das duas categorias estudadas.<br />

Além disso, os modos de representação estão ligados à reflexão sobre<br />

o papel desempenhado pelos personagens humorísticos em nossa<br />

sociedade, isto é, indagamos se reafirmam estereótipos e lugares-comuns;<br />

se criam bordões que se perpetuam; se criticam os costumes e/ou fazem<br />

algum tipo de crítica social; enfim, se contribuem para quebrar tabus e<br />

promover a diversidade em suas diversas acepções. Nosso interesse é<br />

perceber se a criação dos personagens humorísticos contribui de alguma<br />

forma para pautar temas relevantes socialmente e para deslocar a atenção<br />

da banalização social que a televisão e a internet reiteram incessantemente<br />

na maioria dos seus produtos. A experimentação está relacionada com a<br />

utilização dos recursos técnico-expressivos característicos da linguagem<br />

audiovisual de forma inovadora e criativa. Isto é, investigamos se os<br />

produtos humorísticos criam propostas audiovisuais originais ou apenas<br />

reciclam formatos já existentes; se os recursos técnico-expressivos<br />

contribuem para a construção de narrativas que promovem a diversidade<br />

e o debate de ideias e de pontos de vista. Discutimos também a forma<br />

como o produto incentiva a participação do público e dialoga com outras<br />

plataformas, principalmente na confluência entre a televisão e a internet.<br />

<strong>Metodologia</strong> de análise da qualidade de produtos<br />

audiovisuais humorísticos<br />

O Observatório da Qualidade no Audiovisual foi criado em 2013<br />

na UFJF com o objetivo de servir como um espaço de diálogo sobre a<br />

produção audiovisual contemporânea. O primeiro projeto desenvolvido<br />

foi sobre o Humor no Audiovisual Brasileiro. Nos primeiros anos do<br />

Observatório foi realizado o levantamento de 78 programas humorísticos<br />

e selecionada uma amostra de 26 programas da TV aberta e por assinatura<br />

no período de 1960 a 2014 para análise. De cada programa estão sendo<br />

141


analisadas cinco emissões 80 . Foi realizado também, no mês de setembro<br />

de 2015, o levantamento de 47 canais humorísticos do YouTube com mais<br />

de 100.000 inscritos, com atividade nos últimos trinta dias e periodicidade<br />

de publicação definida. Destes, foi selecionada uma amostra de 18 canais<br />

e estão sendo analisados cinco vídeos de cada canal 81 . A produção é<br />

prolífica e o mapeamento tentou buscar narrativas que de certo modo<br />

levavam à reflexão e não apelavam ao riso cômico. Apesar de este<br />

ter sido um dos critérios para a seleção da amostra, na análise nos<br />

deparamos com uma infinidade de formatos e temos percebido que tanto<br />

o humor quanto o riso cômico estão bastante presentes. Nos produtos<br />

audiovisuais selecionados para análise encontramos sketches, formatos<br />

seriados e paródias, mas também aqueles que primam pela imitação fácil<br />

de personagens estereotipados e inúmeros outros formatos.<br />

A análise dos produtos audiovisuais está sendo realizada a partir<br />

do modelo de análise semiótica que elaboramos em estudo sobre a<br />

qualidade do canal 2, da TV portuguesa (BORGES, 2014), que foi testado<br />

no âmbito do serviço público e adaptado para este projeto. Trabalhamos<br />

a partir de dois parâmetros de análise, os modos de representação e a<br />

experimentação. A partir daí criamos fichas de avaliação para avaliar cada<br />

uma das emissões estudadas.<br />

Sendo assim, a ficha de avaliação é composta por três partes, a Análise<br />

do Plano da Expressão, que contempla a forma do produto, a Análise do<br />

Plano do Conteúdo, que é avaliado a partir de quatro indicadores, e a Análise<br />

da Mensagem Audiovisual, que também é composta por quatro indicadores.<br />

Os aspectos considerados na Análise do Plano da Expressão são os<br />

seguintes: produção de sentido a partir dos elementos estéticos; uso dos<br />

recursos técnico-expressivos (áudio, vídeo, edição e grafismo); atuação<br />

dos personagens, apresentadores, entrevistados, comentadores. Assim, a<br />

análise caracterizou os elementos estéticos do programa nos seguintes<br />

códigos: visuais (câmera, iluminação, cenário, atuação do elenco, guarda-<br />

80<br />

A amostra dos programas televisivos foi selecionada com base na disponibilidade de cinco emissões completas<br />

encontradas na internet e em DVDs publicados pela Globo Filmes, pois consideramos que era muito importante<br />

para a análise ter acesso a um episódio completo do programa televisivo. No entanto, alguns deles eram muito<br />

antigos, tornando-se muito difícil conseguir as cinco emissões.<br />

81<br />

Alguns resultados parciais da análise de programas e canais de humor podem ser encontrados no site<br />

do Observatório da Qualidade no Audiovisual disponível em . Acesso em 04 fev. 2016.<br />

142


oupa e maquiagem, qualidade técnica da imagem); sonoros (tipos de<br />

áudio, qualidade técnica do áudio); sintáticos (edição, ritmo do programa)<br />

e gráficos (vinheta inicial, grafismos, rodapés, vinheta final).<br />

Para operacionalizar a análise, definimos indicadores de qualidade do<br />

conteúdo e da mensagem audiovisual a fim de permitir uma avaliação<br />

da qualidade com caráter empírico. Os parâmetros de análise qualidade<br />

(modo de representação e experimentação) nortearam o enquadramento<br />

das preocupações básicas a partir das quais os produtos são avaliados,<br />

enquanto os indicadores de qualidade foram criados para permitir<br />

a avaliação do conteúdo e da mensagem audiovisual. Para isso, cada<br />

indicador é avaliado a partir da seguinte escala: não consta, fraco,<br />

razoável, bom e muito bom.<br />

É importante mencionar que os indicadores de qualidade do Plano do<br />

Conteúdo discutem a qualidade em relação aos temas abordados seja na<br />

narrativa ou na caracterização dos personagens, enquanto os indicadores<br />

de qualidade da Mensagem Audiovisual atuam no intuito de refletir sobre<br />

os dados obtidos na análise do Plano da Expressão em conjunto com o<br />

Plano do Conteúdo. Para isso, a definição do formato e dos principais<br />

aspectos técnico-expressivos são tão importantes quanto a análise dos<br />

indicadores de qualidade do conteúdo, pois a mensagem audiovisual<br />

engloba os dois aspectos.<br />

No plano do conteúdo, os indicadores de qualidade definidos são os<br />

seguintes:<br />

Oportunidade: Nesse indicador de qualidade leva-se em conta se o<br />

produto audiovisual se pauta na agenda midiática para escolher os seus<br />

temas, e se esses temas são relevantes e agregam valores para o público.<br />

Sendo assim, procura-se aferir a pertinência e a relevância dos temas<br />

abordados em relação a uma dada conjuntura social, cultural e política.<br />

Ampliação do horizonte do público: procura aferir se as propostas são,<br />

por natureza, polêmicas, contraditórias e férteis, no sentido em que farão<br />

o público refletir sobre aquilo a que está assistindo. Tais propostas devem<br />

contribuir para ampliar o repertório cultural do público, dando a conhecer<br />

novas problemáticas e pontos de vista. Os temas levantados devem ter<br />

relevância ao ponto de ampliar a visão de mundo do público, contribuir na<br />

construção de valores éticos e estimular o pensamento e o debate de ideias.<br />

143


Diversidade de sujeitos representados: refere-se à representação dos<br />

diferentes grupos sociais bem como opiniões e pontos de vista pelo<br />

programa/canal. Para esse indicador devemos levar em consideração os<br />

mais diversos fatores que caracterizam a diversidade temática, geográfica,<br />

política, socioeconômica, cultural, étnica, religiosa, de gênero e sexual.<br />

Estereótipo: verifica se as formas de representação adotadas reforçam<br />

ou desconstroem estereótipos. O produto audiovisual reforça o<br />

estereótipo por meio do deboche e de situações que beiram o ridículo,<br />

generalizações e banalizações usadas que acabaram se consolidando<br />

ao longo dos anos? Como exemplo podemos citar as generalizações<br />

da loura burra, dos gordos, dos gays, etc. No caso de desconstruir o<br />

estereótipo procuramos avaliar se os produtos fazem os espectadores<br />

pensar por meio de textos absurdos e improváveis e/ou pelo exagero<br />

das atuações, enfim, se leva a refletir sobre o que se assiste. É importante<br />

ressaltar que este indicador é avaliado a partir da definição prévia se o<br />

produto audiovisual reforça ou desconstrói estereótipo.<br />

Na análise da mensagem audiovisual foram definidos os seguintes<br />

indicadores de qualidade:<br />

Originalidade/Criatividade: procura aferir em que medida o produto<br />

audiovisual apresenta um formato diferenciado com ideias novas que<br />

surpreendem o público, e experimenta com a linguagem audiovisual<br />

tanto em termos da apresentação e abordagem de temas quanto em<br />

relação a aspectos narrativos e dramatúrgicos.<br />

Diálogo com/entre plataformas: verifica se o produto audiovisual<br />

tem capacidade para se adaptar à convergência midiática, possibilitando<br />

uma interação entre diferentes tipos de plataformas e conteúdos, com<br />

destaque para os crossovers, no caso de vídeos do YouTube, e das<br />

menções às outras plataformas e conteúdos, comumente vistas na TV.<br />

Solicitação da participação ativa do público: refere-se à adoção de<br />

recursos técnico-expressivos e narrativos para estimular a participação<br />

ativa do público. Averigua as formas pelas quais o produto audiovisual<br />

pode apelar à curiosidade do público por meio dos sentidos visuais e<br />

auditivos e dos processos cognitivos de significação. Dentre as formas<br />

mais comuns estão a comunicação direta entre o emissor e o público; a<br />

citação do nome do espectador; o uso de gírias e/ou outras expressões<br />

e a forma de se dirigir ao público através da câmera.<br />

144


Clareza da proposta: Procura aferir se o produto tem uma estrutura<br />

bem organizada, com um formato bem delineado que se repete ao longo<br />

das emissões, permitindo assim que o público reconheça os códigos<br />

visuais, sonoros, gráficos e sintáticos do produto audiovisual.<br />

Considerações finais<br />

No início deste estudo nossa hipótese era a de que os programas<br />

apresentariam, majoritariamente, aspectos de humor de qualidade.<br />

<strong>Entre</strong>tanto, na análise que está sendo realizada a partir dos parâmetros<br />

e indicadores de qualidade propostos, estamos percebendo que, na<br />

verdade, o riso cômico está bastante presente.<br />

Até o início de 2016 foi possível analisar oito programas de televisão<br />

e cinco canais de humor do YouTube. De modo sucinto, pudemos<br />

constatar que dos oito programas da televisão analisados, seis deles -<br />

Sexo frágil (2003), Minha nada mole vida (2004), Os normais (2001),<br />

Furo MTV (2009), Tapas & Beijos (2011) e As canalhas (2013) têm a<br />

preocupação de levantar indagações e reflexões sobre os temas<br />

abordados, porém alguns têm mais êxito que outros. Os programas<br />

Quinta-Categoria (2008) e Comédia MTV (2010) se preocuparam pouco<br />

ou quase nada em ampliar o horizonte do público. Quinta-Categoria<br />

tem por base o improviso, e sua única intenção é provocar o riso (que faz<br />

muito bem). Comédia MTV, como o próprio nome indica, não pretende<br />

gerar o sentimento do contrário. Dos cinco canais do YouTube que<br />

analisamos até agora, todos têm a preocupação de entreter, gerar o riso<br />

e instigar a reflexão, mas nem todos conseguem colocar esta intenção<br />

em prática. Os canais Canal das Bee (2012), Põe na roda (2014) e Porta<br />

dos fundos (2012) se dedicam a estimular o pensamento e o debate de<br />

ideias e os canais Castro Brothers (2006) e Barbixas (2007) focam no<br />

riso despreocupado do espectador, mas sem deixar de lado o conteúdo<br />

que amplia o seu horizonte, pois trazem, ainda que em menor escala,<br />

temas que possibilitam a reflexão.<br />

Portanto, temos em conta que a análise trará novos elementos para<br />

reflexão que podem, até mesmo, fazer com que a nossa metodologia<br />

seja revista. Nesse sentido, acreditamos que esta é a riqueza da pesquisa<br />

científica, porque nos tira da zona de conforto e das certezas préestabelecidas.<br />

145


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146


Conversação no estúdio do Bem Estar: a<br />

construção do apresentador-especialista em saúde 82<br />

Marialice Emboava 83 e<br />

Simone Maria Rocha 84<br />

Há diversas pesquisas no Brasil sobre mídia e o indivíduo empreendedor<br />

de si mesmo que, apoiadas na matriz foucaultiana, analisam novas formas<br />

culturais que maximizam a dimensão do autogerenciamento do indivíduo<br />

(FREIRE FILHO, 2009, 2010, 2011; NASCIMENTO, 2014, CARDOSO, 2012;<br />

CARVALHO, 2007). Neste capítulo, utilizamos essa perspectiva para<br />

examinar a construção dos apresentadores-especialistas em saúde no<br />

programa Bem Estar, da TV Globo. Sonia Livingstone e Peter Lunt (1994)<br />

estudaram a construção midiática da expertise e do senso comum em<br />

programas com participação da audiência. No presente texto, no entanto,<br />

a participação da audiência não é ao vivo, embora a transmissão da<br />

conversação no estúdio o seja. Em um ambiente mais controlado, como<br />

se processa a construção deste especialista? Como ele interage com o<br />

telespectador?<br />

Na primeira parte, apresentamos o Bem Estar e as principais<br />

características do seu formato híbrido em que se misturam estratégias<br />

de comunicação de programas televisivos de estilo de vida e também<br />

técnicas de jornalismo. Em seguida, contextualizamos a saúde na<br />

contemporaneidade e, então, abordamos os modos de endereçamento<br />

e a análise estilística televisiva, ambos influenciados por estudos de<br />

cinema, como métodos para captar o endereçamento do Bem Estar e o<br />

posicionamento dos especialistas da área da saúde.<br />

82<br />

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no XXXVIII Congresso Brasileiro da Ciência da Comunicação,<br />

Rio de Janeiro, 2015.<br />

83<br />

Doutoranda do PPGCOM/UFMG, linha de Processos Comunicativos e Práticas Sociais; professora licenciada<br />

de jornalismo da PUC Minas; analista de projetos educacionais da ALMG; integrante do grupo de pesquisa<br />

Comunicação e Cultura em Televisualidades (COMCULT) marialice.emboava@gmail.com<br />

84<br />

Professora do PPGCOM/UFMG e coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura em Televisualidades<br />

(COMCULT).<br />

147


Bem Estar: estratégias da TV-realidade e de jornalismo 85<br />

Exibido diariamente desde fevereiro de 2011, nas manhãs da Rede<br />

Globo, Bem Estar é um programa sobre saúde apresentado por dois<br />

jornalistas e coapresentado por dois profissionais da área da saúde<br />

cuja especialidade muda conforme o tema do programa. Desde 2012,<br />

ele veicula quadros chamados, em seu site, de séries e de reality show<br />

(Tabela 1). Talvez pudéssemos dizer que esses quadros de transformação<br />

têm apenas a função de educar o telespectador, como faz com frequência<br />

o jornalismo ou mesmo os documentários, ao abordar, por exemplo,<br />

a obesidade. No entanto, ao disponibilizar especialistas para “tratar”<br />

dos personagens das séries, quadros ou reality, o programa intervém<br />

ativamente para resolver um problema. É o que Oullette e Hay (2008: 71)<br />

chamam de “uma forma aplicada de serviço público”, uma característica<br />

de diversos programas televisivos de estilo de vida.<br />

Algumas séries e reality show do Bem Estar<br />

Nome Ano Duração<br />

Viva mais leve*- (emagrecimento<br />

de 5 personagens)<br />

Meu filho não come (três<br />

crianças menores de 5 anos)<br />

Dieta Nostra* (homem de cerca<br />

de 30 anos com colesterol alto)<br />

Meu filho não dorme (três<br />

crianças menores de 2 anos)<br />

# eu resisti* (personagem quer<br />

comer melhor, pois trabalha<br />

viajando)<br />

Bola pra frente – (jogador de<br />

futebol Éder – emagrecer 70 kg)<br />

Cintura Fina – (uma comerciante<br />

e uma diarista; perda de peso<br />

com a ajuda de coachers)<br />

Afina Rocha (coapresentador do<br />

programa)<br />

2012 4 meses; equipe: psicólogo, cardiologista, nutricionista,<br />

educador físico<br />

2013 3 meses; follow up com 2 personagens em ago 2015;<br />

equipe: pediatra, nutricionista e chefe de cozinha<br />

2013 2 meses – equipe: nutricionista e cardiologista<br />

2014 2 meses – equipe: uma especialista em sono infantil<br />

2014 4 meses; consultas pela internet com nutricionista; uma<br />

consulta em São Paulo com o consultor Fábio Altui.<br />

2014 1 ano; equipe: psicólogo, nutricionista, educador físico,<br />

cardiologista<br />

2015 2 meses; coachers: uma profissional (educador físico e<br />

nutricionista) para cada uma<br />

2015 2 meses; equipe: cardiologista, psicólogo e nutricionista.<br />

* Personagens pediram ajuda ao Bem Estar para emagrecer ou diminuir colesterol<br />

Observamos, no entanto, marcas jornalísticas no Bem Estar e, mesmo<br />

sem a intenção de tratarmos de gênero neste capítulo, direcionamos<br />

85<br />

TV-realidade (reality TV) é um gênero que inclui uma grande variedade de programas sobre pessoas reais.<br />

Também chamada de televisão popular factual, está localizada em território fronteiriço entre informação e<br />

entretenimento; documentário e drama (HILL, 2005, p.2).<br />

148


nosso olhar para as páginas da internet do Bem Estar em um movimento<br />

inspirado em Jason Mittell (2001) que, ao tratar de gênero como categoria<br />

cultural, propõe examinarmos várias fontes de práticas discursivas: os<br />

documentos institucionais são uma das possíveis fontes arroladas por<br />

Mittell (2001: 9) em sua argumentação de como uma análise deve recolher<br />

diversas enunciações do gênero de maneira mais abrangente possível<br />

para que possa ir além do texto.<br />

A Rede Globo, em sua página Memória Globo, classifica o Bem Estar na<br />

categoria Telejornais e programas e, no endereço eletrônico globotv.globo.<br />

com, os vídeos do Bem Estar são encontrados na aba jornalismo. Nessas<br />

páginas institucionais, a emissora valoriza os elementos jornalísticos ao<br />

descrever os apresentadores como jornalistas e ao enfatizar a expertise<br />

da equipe de consultores médicos que é formada por profissionais de<br />

reconhecida reputação entre os seus pares, ou seja, o programa conta<br />

com fontes especializadas gabaritadas. Soma-se a isso o fato de levar ao<br />

ar muitas vezes temáticas sintonizadas com a atualidade em clara ligação<br />

com critérios de noticiabilidade. Ou seja, evidenciamos no Bem Estar a<br />

hibridização a que Mittell (2001: 7) se referiu e que valoriza as práticas<br />

da audiência: “A mistura de gêneros é um processo cultural ordenado<br />

pelo pessoal da indústria [televisiva], muitas vezes em resposta a práticas<br />

da audiência.” 86 Misturar elementos de reality show ou de game show a<br />

aspectos jornalísticos torna-se, assim, uma estratégia de comunicabilidade<br />

do Bem Estar para com os seus telespectadores. Essas características<br />

atestam a aproximação do Bem Estar com o formato programa televisivo<br />

de estilo de vida, tema da próxima seção.<br />

Programas televisivos de estilo de vida<br />

Nos anos 1990, a Grã-Bretanha viu novos programas da BBC,<br />

exibidos em horário nobre, deixar muitos acadêmicos e críticos da mídia<br />

perplexos: os programas foram considerados emburrecedores, um “muro<br />

de lazer”, em referência ao entretenimento que, deixando o hard news 87<br />

para mais tarde, tomava conta da grade das 20 horas (BRUNSDON et al,<br />

86<br />

Tradução nossa para: “The mixing of genres is a cultural process enacted by industrial personnel, often in<br />

response to audience viewing practices.”<br />

87<br />

Expressão que designa o noticiário de fatos relevantes, densos e complexos. Cf. RABAÇA, C. e BARBOSA, G.<br />

2001: 360.<br />

149


2001). Símbolo nacional para muitos britânicos, a BBC exportaria, em<br />

breve, esse tipo de programa que, para parte da audiência, foi sucesso<br />

total. Foi assim que Changing Room, em 1996, ganhou muitos países de<br />

língua inglesa, tornando-se o primeiro caso de exportação de sucesso de<br />

programa de estilo de vida. E o que é programa televisivo de estilo de<br />

vida? Segundo Jayne Raisborough, eles podem ser descritos como um<br />

subgênero de TV-realidade (reality TV):<br />

Este termo [lifestyle TV] abrange uma variedade de formatos que não só<br />

apresentam o comum/ordinário para o deleite ou horror da audiência,<br />

mas cuja tarefa principal é a sua transformação, aperfeiçoamento e<br />

gestão. (RAISBOROUGH, 2011: 7). 88<br />

Graças ao interesse dos pesquisadores dos estudos culturais, esse<br />

gênero tem sido mais estudado na televisão, mas ele está presente no<br />

rádio, no livro de autoajuda, no anúncio publicitário, na web etc. É um<br />

gênero que tem sido investigado a partir das racionalidades neoliberais<br />

(LEWIS, 2012; PALMER, 2003; OUELLETTE E HAY, 2008) e a partir da<br />

estética orientada para o consumo (BELL E HOLLOWS, 2005; TAYLOR,<br />

2002, BRUNSDON et al., 2001). <strong>Entre</strong>tanto, há autores, como Maureen<br />

Ryan (2015) e Sam Binkley (2007), que argumentam que o sujeito<br />

autogerenciado da televisão é interpelado mutuamente pelas forças<br />

interligadas das racionalidades governamentais e da estética orientada<br />

para o consumo. 89<br />

Em Better living through reality TV, Laurie Ouellette e James Hay<br />

(2008) examinam diversos programas de TV-realidade 90 exibidos<br />

nos Estados Unidos e sugerem que os programas são racionalidades<br />

neoliberais que enfatizam o governo a distância. “São técnicas<br />

práticas, altamente dispersas, para refletir, gerenciar e aperfeiçoar<br />

as múltiplas dimensões de nossa vida pessoal com os recursos<br />

disponíveis” (OUELLETTE E HAY, 2008: 2). 91 Para esses autores,<br />

88<br />

Tradução nossa para: “This term speaks to a range of formats that not only present the ordinary for an audience’s<br />

delight or horror, but whose primary task is with its transformation, betterment and management”.<br />

89<br />

O livro de Ouellette e Hay (2008) centra-se nas racionalidades neoliberais, mas também faz menção ao consumo.<br />

90<br />

Ouellette e Hay (2008) usam o conceito em sentido amplo, da mesma forma que o fazemos neste capítulo.<br />

91<br />

Tradução nossa para: “highly dispersed and practical techniques for reflecting on, managing, and improving the<br />

multiple dimensions of our personal lives with the resources available to us.”<br />

150


programas de estilo de vida são um desses recursos acessíveis para o<br />

autogerenciamento e autoaperfeiçoamento. O estudo de Gareth Palmer<br />

(2003) sobre programas de TV-realidade também se utiliza do conceito<br />

de governamentalidade. 92 Ele associa-o a processos de gerenciamento<br />

social e argumenta que esses programas funcionam como uma das<br />

muitas autoridades dispersas, atores e agências, que utilizam as<br />

tecnologias do self 93 com o objetivo de governar a distância: a televisão<br />

faria com que a audiência se identificasse com os participantes desses<br />

programas levando-os a adotar uma ética da autorreflexão, controle e<br />

transformação que incorpora um regime particular de verdade sobre o<br />

que constitui ser um bom cidadão.<br />

A televisão, de acordo com Ouellete e Hay (2008: 12), seria um recurso<br />

para adquirir e coordenar as técnicas para gerenciamento de vários<br />

aspectos da vida de um indivíduo. Ela seria, assim, considerada como<br />

uma analítica de governo e, nesse caso, é necessário procurar identificar<br />

as racionalidades específicas e as aplicações técnicas que compõem a<br />

televisão:<br />

Uma maneira [de identificar a racionalidade específica e as aplicações<br />

técnicas] é como uma tecnologia cultural que, trabalhando fora dos<br />

“poderes públicos”, governa ao apresentar indivíduos e populações<br />

como objetos de avaliação e intervenção, e solicitando a sua participação<br />

no cultivo de hábitos particulares, ética, comportamentos e habilidades<br />

(OUELLETTE E HAY, 2008: 13). 94<br />

Pensar a televisão como tecnologia cultural implica pensar em<br />

cultivação 95 (OUELLETTE E HAY, 2008: 13), termo apropriado aqui<br />

como a arte de burilar costumes, atitudes. Programas para cultivação<br />

oferecem maneiras de governar o pequeno, a tarefa banal do dia a dia,<br />

92<br />

Governamentalidade é um conceito de Michel Foucault e se refere a tipos particulares de poder geralmente<br />

guiados pelos especialistas (experts, saber) que procuram monitorar, observar medir e normalizar indivíduos e<br />

população (FOUCAULT, 1991). Este tipo de poder se exerce por meio de mecanismos difusos como discursos<br />

para promover a felicidade, a saúde através de certas condutas pessoais incluindo a autovigilância.<br />

93<br />

Tecnologias que permitem aos indivíduos realizar, por seus próprios meios, certas operações em seu próprio<br />

corpo, pensamento e conduta (Foucault, 1988).<br />

94<br />

Tradução nossa para: “One way is as a cultural technology that, working outside “public powers”, governmentalizes<br />

by presenting individuals and populations as objects of assessment and intervention, and by soliciting their<br />

participation in the cultivation of particular habits, ethics, behaviors and skills.”<br />

95<br />

Tradução nossa para “cultivation”.<br />

151


ligando conhecimento a habilidades para gerenciar a casa, a família.<br />

Outra dimensão da televisão enquanto tecnologia cultural refere-se à<br />

autocultivação como um autoaperfeiçoamento e autoconfiança sendo a<br />

ênfase dos autores no cuidado de si e na televisão funcionando como<br />

tecnologia de governança.<br />

Os programas da TV-realidade contribuem para a ideia do telespectador<br />

empreendedor de si mesmo (OUELLETTE e HAY, 2008: 12). De acordo<br />

com esses pesquisadores, o que unifica a diversidade dos programas<br />

da TV-realidade é sua preocupação em produzir cidadãos que não são<br />

apenas capazes, mas também gratos em aprender como aumentar sua<br />

capacidade de se autogovernar por meio das esferas privadas do estilo de<br />

vida, domesticidade e consumo.<br />

Conceito de saúde no Bem Estar<br />

Examinando as temáticas do Bem Estar entre 29/06 e 03/07/15,<br />

verificamos que versaram sobre hipertensão, saúde dos olhos infantis,<br />

câncer, ovário policístico e oleosidade da pele e maquiagem. Às sextasfeiras<br />

é comum haver programa dedicado à dança. A breve observação<br />

dessas temáticas nos permite avaliar que o Bem Estar adota o conceito<br />

ampliado de saúde. Esse, segundo Nikolas Rose (2001:17), não se limita<br />

mais a evitar a doença ou a morte prematura, mas engloba a otimização<br />

da corporalidade para atingir um bem-estar geral — beleza, sucesso,<br />

felicidade, sexualidade.<br />

Para promover a saúde, o programa utiliza-se do discurso dos fatores<br />

de risco orientado para mudanças comportamentais e de estilo de vida.<br />

Essa prática remonta à década de 1970, em que a instabilidade econômica<br />

reduziu o financiamento do Estado de Bem-Estar Social, sistema adotado<br />

por diversos países capitalistas desenvolvidos, o que levou ao surgimento<br />

de movimento de redução de custos de áreas sociais como saúde e<br />

educação.<br />

Uma das saídas encontradas foi a convocação da população a fazer a sua<br />

parte, não na definição de verbas e políticas públicas, mas no cuidado<br />

de si, por meio da adoção de comportamentos considerados saudáveis<br />

epidemiologicamente. É nessa época que se expandem pelo mundo<br />

os movimentos de autoajuda e de autocuidado (CASTIEL, GUILAM e<br />

FERREIRA, 2010: 35).<br />

152


A ideia de que saúde e doença são assuntos de responsabilidade<br />

individual, no entanto, não é nova. Suas raízes estão incorporadas às<br />

noções de doença e pecado que permeou (e ainda permeia) culturas ao<br />

longo dos anos. A doença e a saúde como responsabilidade individual na<br />

contemporaneidade, no entanto, assume características relacionadas ao<br />

indivíduo empreendedor, isto é, o indivíduo é livre para fazer escolhas e,<br />

se fizer escolhas corretas, poderá ter uma vida saudável (GALVIN, 2002:<br />

118; ROY, 2008: 465).<br />

Os pesquisadores que concordam com a máxima de que os<br />

indivíduos são responsáveis pela sua doença acreditam que o sujeito<br />

fica mais empoderado e que esta é a saída para os altos custos da saúde<br />

(CASTIEL, GUILAM, FERREIRA , 2010; GALVIN, 2002). Por outro lado,<br />

Rosa Galvin (2002: 117) enumera, citando trabalhos de outros estudiosos,<br />

diversos aspectos negligenciados por essa perspectiva: os que defendem<br />

a responsabilidade individual pela saúde se esquecem da origem social<br />

da doença; negam a pobreza enquanto causa de doenças; baseiam-se em<br />

análises de fatores simples ao invés de levar em conta a complexidade<br />

de doenças crônicas; contestam o valor da saúde como direito; usam<br />

como justificativa para cortar custos nos sistemas de saúde, entre outros<br />

aspectos.<br />

Saúde tornou-se, na sociedade contemporânea, sinônimo de felicidade,<br />

se adotarmos o paralelo de antropólogos que inseriram a doença sob<br />

a rubrica da infelicidade (MOULIN, 2008: 21). E, na empreitada para<br />

alertar sobre os riscos, os especialistas da área da ciência, medicina e das<br />

disciplinas “psi”, como psicólogos e psiquiatras, são centrais (LUPTON,<br />

2013: 46). Os médicos, cujo papel há muito ultrapassa a doença e sua<br />

cura, são considerados os experts em estilo de vida (ROSE, 2013: 47). Para<br />

verificar como eles constroem sua relação com a audiência do Bem Estar,<br />

apresentamos, abaixo, como modos de endereçamento e estilo televisivo<br />

vão nos guiar.<br />

Estilo televisivo como modo de endereçamento<br />

Nascido no cinema, o conceito modos de endereçamento foi ampliado<br />

para outros campos por Elisabeth Ellsworth (2001) que elaborou um<br />

método que reconhece o papel da produção no caminho até o produto<br />

midiático chegar ao telespectador.<br />

153


Na reconfiguração desse conceito, Simone Rocha e Guilherme<br />

Sant’Ana (2010) destacam a importância que as teorizações a respeito dos<br />

modos de endereçamento dão à centralidade da audiência no processo<br />

de construção dos sentidos dos filmes. “Uma ênfase demasiadamente<br />

semiótica, centrada exclusivamente na mensagem, é incapaz de remeter<br />

ao lugar no qual os sentidos são compartilhados no cotidiano: a cultura”<br />

(ROCHA e SANT’ANA, 2010: 366).<br />

Apropriando-se desse conceito para o estudo do telejornalismo, Itânia<br />

Gomes (2011) associa aos modos de endereçamento a palavra “estilo”,<br />

na intenção de identificar o tom com o qual um determinado programa<br />

se relaciona com sua audiência e o faz ser diferente dos demais. É nessa<br />

intersecção que modos de endereçamento apontam para os recursos<br />

estilísticos como escolhas imprescindíveis as quais os realizadores<br />

procedem na busca por estabelecer marcas identitárias diferenciadoras de<br />

um programa. Por considerar o estilo como um tipo de endereçamento<br />

é que nos propomos a agregar análise estilística televisiva (BUTLER,<br />

2010) aos modos de endereçamento enquanto um procedimento que nos<br />

ajudará a captar o endereçamento do Bem Estar.<br />

Dentre os recursos estilísticos fundamentais num programa está<br />

a atuação dos apresentadores e coapresentadores. A função que eles<br />

desempenham diz muito do modo como o programa deseja dialogar com<br />

sua audiência presumida — o posicionamento das câmaras, os recursos<br />

técnicos disponíveis, formatos de apresentação das informações, recursos<br />

da linguagem televisiva, entre outros aspectos. Assim como em modos<br />

de endereçamento, na análise estilística televisiva não há indicadores<br />

fixos para o estudo — a partir da assistência ao produto é o analista<br />

quem captará quais elementos contribuem para a configuração de um<br />

determinado endereçamento. Descrever a “superfície de percepção”, ação<br />

que Jeremy Butler (2010) propõe para iniciar toda análise televisiva, é<br />

importante para buscar a essência do estilo nos detalhes da transmissão<br />

de som e de imagem da televisão. 96<br />

No Brasil, alguns pesquisadores têm-se dedicado a análises estilísticas<br />

de programas televisivos (PUCCI JR., 2014; ROCHA, ALVES e OLIVEIRA,<br />

96<br />

Em nossas discussões no grupo de pesquisa COMCULT, verificamos que a análise estilística televisiva de Butler<br />

(2010) mostrou-se um indicador interessante para compreendermos o produto televisivo em si.<br />

154


2013; ROCHA, 2013). Esses estudos evidenciaram como o estilo ajuda a<br />

configurar narrativas da teledramaturgia a partir de aspectos culturais,<br />

tecnológicos e históricos, e ainda demonstraram mudanças expressivas<br />

no fazer televisivo que trouxeram novas possibilidades de produção de<br />

sentido e estratégias de comunicabilidade para o gênero telenovela.<br />

Para compreender como o Bem Estar dialoga com a sua audiência,<br />

propusemo-nos a fazer um recorte e examinar como ele constrói o<br />

apresentador-especialista: como os recursos estilísticos ajudam a construir<br />

e a revelar esses coapresentadores? Como os coapresentadores constroem<br />

vínculos com o telespectador? Esse exercício de análise insere-se em uma<br />

pesquisa mais ampla que estamos desenvolvendo. O corpus compõe-se<br />

de três edições (15, 22, 24/09 de 2014) que fizeram parte de discussões<br />

internas do nosso grupo de pesquisa COMCULT e que, à época, foram<br />

escolhidas aleatoriamente, mas, também, foram limitadas pelo acesso<br />

integral aos programas. Serão observados o discurso dos especialistas, a<br />

postura diante das câmeras e os recursos gráficos.<br />

Do discurso científico ao do estilo de vida<br />

Os dois jornalistas que comandam a transmissão do programa ao vivo<br />

dividem o estúdio com dois profissionais de saúde que, quando médico,<br />

é sempre apresentado com o título de doutor. Ao escolher profissionais<br />

que aconselharão o telespectador de acordo com a temática de cada<br />

edição, o programa Bem Estar estabelece legitimidade a essas orientações<br />

e se diferencia de outros programas como o quadro Você e o doutor, do<br />

Hoje em Dia (Record), que tem um único médico apresentador.<br />

Ao site do programa cabe a tarefa de identificar seus consultores<br />

sempre com uma biografia recheada de cursos de medicina conceituados<br />

e hospitais de renome de São Paulo. 97 Se o figurino, como afirma Sean<br />

Hagen (2009: 142), reforça simbolicamente laço de segurança, ordem e<br />

comando, tipicamente associados ao uniforme, não há dúvida de que<br />

estamos diante de profissionais que são fontes de certeza: homens e<br />

mulheres vestem o jaleco branco tanto no estúdio quanto no próprio<br />

consultório ou clínica quando se trata de reportagens externas. O que<br />

pode mudar é o uso ou não da gravata pelos homens e, em poucas<br />

97<br />

Nem todos profissionais que coapresentam o programa são consultores.<br />

155


ocasiões, o uso do terno no consultório durante reportagem externa. Há<br />

um médico que foge à regra: Roberto Khalil, cardiologista de políticos<br />

e ex-presidentes, veste a tradicional roupa branca que caracteriza os<br />

médicos. 98 Ele, por exemplo, é anunciado aos telespectadores com o<br />

adjetivo superlativo “conhecidíssimo Dr. Roberto Khalil”, pelo jornalista<br />

Fernando Rocha (15/09/2014), que tanto pode estar se referindo à fama<br />

do médico como à frequência com que ele participa do programa. De<br />

fato, somente naquele mês (setembro de 2014), ele participou de três<br />

edições.<br />

Cardiologistas Roberto Khalil (Fig.1) e Marcelo Sampaio (Fig. 2)<br />

Na função de especialistas, os cardiologistas Roberto Khalil (Fig. 1) e<br />

Marcelo Sampaio (Fig. 2), que participaram do programa em 15/09/2014<br />

sobre doenças cardiovasculares, têm lugares assegurados de autoridade.<br />

Khalil fita a câmera e, assim, tenta estabelecer laços com o telespectador.<br />

Sampaio, estreando no Bem Estar, encontra mais dificuldade e se<br />

volta para o jornalista apresentador. O uso de vocabulário relacionado<br />

à medicina, a constante citação de pesquisas e alusão à ciência, a<br />

construção mais formal e longa dos argumentos dão a eles a posição<br />

de seriedade e de detentores do saber. Marcelo Sampaio, cardiologista,<br />

ao explicar que apenas a dieta pode não ser suficiente para baixar a<br />

pressão, afirma que<br />

A base desta dieta é que os pesquisadores há 30 anos atrás tentaram tratar<br />

da pressão alta sem medicação. Eles fizeram um dieta com alimentos<br />

ditos vasos dilatadores com capacidade para reduzir a pressão. Estes<br />

alimentos eram baseados em três íons: o cálcio, o magnésio e o potássio<br />

(Programa exibido em 15/09/2014).<br />

98<br />

Os psiquiatras não usam roupa branca; normalmente portam um blazer; mas eles não fazem parte do corpus do<br />

presente trabalho.<br />

156


Os especialistas incorporam o lado sério do programa, e seu diálogo<br />

com o auditório virtual – como são chamados os telespectadores que<br />

enviam perguntas por e-mail – não é caloroso. Podem ser confiáveis<br />

aos olhos do telespectador, porém, nas edições analisadas, os médicos<br />

não fizeram gestos como iniciar a resposta a uma pergunta da internet<br />

dizendo o nome do remetente. “[Daniel], os sintomas da pressão alta<br />

são silenciosos”. Sabemos, no entanto, que os atos conversacionais<br />

entre o programa e seus telespectadores vão além das trocas dialogais<br />

explícitas entre os apresentadores e as convocações verbais feitas para<br />

os telespectadores. Envolvem também os usos de planos e movimentos<br />

de câmaras.<br />

Desse modo, enquanto as convocações são explícitas via texto verbal, os<br />

dispositivos visuais de conformação de diferentes posições e ênfases no<br />

diálogo são mais tácitos. Ainda assim, a moldura visual pela qual se vê o<br />

corpo dos sujeitos é importante estratégia de construção de posições e,<br />

consequentemente, de sentidos para os atos de fala (GUTMANN, 2012:<br />

68).<br />

Como era de se esperar, o plano americano (Fig. 1 e Fig. 2) e o<br />

primeiro plano são os modos mais usuais de posicionar o especialista 99<br />

— o plano americano enquadra-o na altura do busto “de modo a ratificar<br />

o seu lugar distanciado, hierarquicamente localizado como a autoridade<br />

do discurso” (GUTMANN, 2012: 68).<br />

De maneira menos incisiva que a dos jornalistas-apresentadores,<br />

os especialistas no corpus analisado solicitaram a participação do<br />

telespectador no cultivo de hábitos diários como a ingestão de pouca<br />

quantidade de sal para diminuir a pressão arterial e, consequentemente,<br />

os riscos ao coração. A fala longa pode distanciá-los do telespectador<br />

que, por outro lado, pode ser fisgado pelo que os médicos ensinam.<br />

Uma mesa, no estúdio, apresenta alimentos do cotidiano que estimulam<br />

o bom funcionamento da pressão arterial de um lado e, de outro, os que<br />

fazem mal e, portanto, uma simulação de uma seta holográfica vermelha<br />

os caracteriza. Nesse lado, há a imagem, entre outros produtos, de<br />

salgadinhos industrializados, mas não há nenhuma menção à contribuição<br />

da indústria alimentícia para a alta ingestão de sódio dos brasileiros:<br />

99<br />

A nomenclatura dos planos usada neste trabalho baseia-se na proposta por Gutman (2012).<br />

157


12 gramas diárias contra 5 recomendadas pela Organização Mundial da<br />

Saúde, segundo noticiário que predominou no mês anterior à exibição<br />

dessa edição do Bem Estar. 100 Em relação à necessidade de tomar remédio<br />

para a hipertensão a vida toda, Roberto Khalil explicou que:<br />

Depende muito do grau de hipertensão, porque a dieta e o exercício,<br />

inclusive uma reeducação alimentar, tirando ou diminuindo o sal da<br />

comida, você pega o hipertenso leve que começa a fazer exercício,<br />

sempre falo, o exercício é o elixir da vida, se a pessoa emagrece e regra<br />

na dieta, ele pode ficar sem remédio. Mas os hipertensos graves vão<br />

tomar remédio pelo resto da vida (Programa exibido em 15/09/2014).<br />

Não há muito espaço para a controvérsia na conversação do estúdio,<br />

embora a presença de pelo menos dois profissionais da saúde, além<br />

daqueles que aparecem nas externas, pudesse tender a diferentes pontos<br />

de vista. Quando a controvérsia surge, ela é, na maioria das vezes, sutil<br />

- o que não é esclarecedor ao telespectador. Um exemplo disso foi<br />

protagonizado pelo ortopedista Moyses Cohen (22/09/2014) que, ao vivo<br />

do estúdio, faz um reparo à reportagem gravada, que tinha acabado de<br />

ser exibida, indicando cirurgia para quem anda na ponta do pé:<br />

Não é todo andar na ponta do pé que vai ser indicado cirurgia. Acho que<br />

foi bem explicado isso [pelo colega ortopedista da reportagem gravada].<br />

Mas se você anda nas pontas dos pés e não se atrapalha em nenhuma<br />

atividade, a melhor coisa é não mexer. Deixe como está porque isto faz<br />

parte do seu organismo. (Programa 22/09/2014)<br />

Aprender e aplicar no dia a dia<br />

O discurso técnico, mais racional, dos convidados da área da saúde<br />

dos programas analisados é contrabalanceado pela interlocução com<br />

os dois jornalistas-apresentadores que, por meio de perguntas, tentam<br />

elucidar diferentes dúvidas e, assim, introduzir novos enfoques ao tema<br />

abordado durante o programa. As simulações de holografia e os recursos<br />

gráficos, ao mesmo tempo em que reforçam o tom professoral do discurso<br />

médico, também elucidam procedimentos, funcionamentos de sistemas<br />

do corpo humano, potencializando ao telespectador a oportunidade de<br />

100<br />

Em agosto de 2014, a imprensa divulgou os primeiros resultados do acordo estabelecido entre o Governo<br />

Federal e a Associação Brasileira de Alimentos para a redução de sal nos pães de forma, bisnaguinhas e massa<br />

instantânea.<br />

158


aprender. É também um recurso estilístico que valoriza a possibilidade<br />

de se popularizar o conhecimento. Esses recursos gráficos reiteram e<br />

revelam informações de forma a convidar o leitor a se inserir na narrativa<br />

jornalística. Eles são bastante usados para concretizar o conteúdo<br />

verbal expresso, buscando tornar visíveis temas abstratos ou de difícil<br />

compreensão apenas pela locução verbal.<br />

Fig. 3 - Rocha simula aceleração do coração após a inalação de remédio para asma<br />

Foi o que aconteceu quando o pneumologista Rafael Stelmach<br />

(24/09/2014) explicou o que ocorre com o coração depois que uma<br />

pessoa inala remédio para asma. O apresentador Fernando Rocha (Fig. 3)<br />

participou da performance e acelerava sua respiração à medida que o som<br />

do coração aumentava e a simulação de holografia mostrava o coração<br />

em movimento. Foi uma maneira de tornar visível o que conhecemos,<br />

mas não enxergamos.<br />

Assim como as simulações de holografias, os desenhos gráficos<br />

exibidos no monitor de televisão para explicar, por exemplo, um<br />

cateterismo, evidenciam o caráter didático do Bem Estar – esse é<br />

complementado por procedimentos representados na bancada do<br />

estúdio, como a demonstração de bombinhas para asmas ( Figs. 4 e 5)<br />

ou balões representando bexigas de tamanho normal e anormal (Figs. 6<br />

e 7). Lado a lado, um jornalista-apresentador e um profissional da saúde<br />

159


dividem a bancada para detalhar explicações sobre o tema da edição<br />

– os dois ficam de pé e o especialista em saúde tanto pode explicar<br />

funcionamentos de sistemas do corpo; remédios disponíveis ou tratar do<br />

“como usar” (Figs. 4 e 5). O enfoque terá, sempre, a aplicabilidade no<br />

cotidiano do telespectador como meta (OUELLETE e HAY, 2008; LEWIS,<br />

2012).<br />

Fig. 4 e Fig. 5 Apresentadora Mariana ensina como usar bombinhas para asma.<br />

Dividir a bancada, como descrito acima, pode não ser a expressão mais<br />

adequada. Nessa etapa do programa, o papel do jornalista-apresentador<br />

continua sendo o de mediar e, em geral, não cabe a descontração que<br />

faz parte do programa e está a cargo deles. Começando, na maioria das<br />

vezes, com enquadramento em plano geral, convocando o telespectador<br />

para o estúdio, um espaço simbólico de encontro, a moldura visual<br />

nesta etapa do programa caminha para o plano americano, em que<br />

a autoridade do profissional de saúde é clara, até chegar ao zoom do<br />

objeto sobre o qual se fala e está sobre a bancada – pode ser algo banal,<br />

como o peso de uma bolsa feminina ou da mochila escolar (22/09/2014),<br />

mas que ajudará o telespectador a gerenciar a sua vida e, quem sabe, a<br />

da família. 101 São exemplos da cultivação, a qual se referem Oullette e<br />

Hay (2008: 14).<br />

Se concordarmos com o caráter educacional do programa Bem Estar,<br />

podemos dizer que as demonstrações explicativas realizadas na bancada,<br />

as simulações de holografias e as elucidações apresentadas no monitor<br />

da televisão são o ápice dessa característica e constituem “a “aula”<br />

do Bem Estar. Convém destacarmos, porém, que o caráter educativo<br />

e de entretenimento permeia, em níveis diferentes, todo o programa,<br />

101<br />

Se estivéssemos tratando de jornalismo, poderíamos usar o conceito de jornalismo utilitário ou ainda o de<br />

“notícias que você pode usar”. Cf. EIDE, M. e KNIGHT, 1999.<br />

160


constituindo o que alguns autores chama de edutainment (SOLIER, 2005:<br />

470).<br />

Como toda aula, a tarefa de atrair o telespectador para o interior<br />

do programa é desafiante. Verificamos que a TV Globo utiliza-se dos<br />

recursos tecnológicos mais avançados disponíveis (mesa de holografia,<br />

por exemplo), como é característico do “padrão Globo de qualidade”,<br />

e alterna-os com outros recursos mais simples (maquetes de caixas de<br />

remédios, sem rótulo, por exemplo) ou outros experimentos (a bexiga e<br />

a urina, Figs. 6 e 7) como estratégias visuais para buscar a identificação da<br />

audiência com o assunto e mantê-la no interior do programa.<br />

Fig. 6 e Fig. 7: Experimento para demonstrar o funcionamento da bexiga<br />

Algumas considerações<br />

A televisão, enquanto tecnologia cultural (OUELLETTE E HAY, 2008),<br />

cria cidadãos que governam a si próprios, que se aperfeiçoam e que<br />

cuidam de si mesmos. Ela se junta a instituições sociais dispersas que, a<br />

distancia, ajudam os cidadãos a serem autoempreendedores e a assumirem<br />

todas as responsabilidades pela própria saúde (LEWIS, 2012; OUELLETTE<br />

E HAY, 2008). Como apontou Nikolas Rose (2001), profissionais de áreas<br />

diversas, exemplificados pelos especialistas do Bem Estar, operam como<br />

tecnologias difusas de governo indireto tentando influenciar a conduta<br />

de indivíduos e hábitos em diversas arenas especializadas incluindo a da<br />

saúde.<br />

A reputação dos médicos do Bem Estar, construída fora da televisão,<br />

empresta credibilidade ao Programa, mesmo que o currículo do profissional<br />

nem sempre esteja claro aos telespectadores. A autoridade do especialista<br />

é assegurada pelo discurso técnico, com alusão a pesquisas indicando<br />

atualidade e esperanças ao telespectador. Nesse aspecto, ainda guarda algumas<br />

161


semelhanças com a pretensa neutralidade e objetividade da linguagem<br />

científica (BUENO; LIVINGSTONE E LUNT, 1994) e, como tal, não dá espaço<br />

para a medicina alternativa e nem para o saber leigo. Esse, representado pela<br />

audiência posicionada como aprendiz, tem uma participação controlada, seja<br />

pelo editor que escolhe os e-mails enviados quando o Programa está sendo<br />

transmitido, seja pela edição das perguntas no formato ‘povo-fala’ feitas em<br />

clube, rua e praia exibidas durante a atração.<br />

As simulações de holografias e gráficos do monitor da televisão e<br />

demonstrações da bancada contribuem não somente para a instrução<br />

do telespectador, mas tornam-se técnicas diárias de autogerenciamento e<br />

cuidados de si. Exemplificam também o caráter didático do programa e, para<br />

o telespectador, a possibilidade de aprender. A roupa (jaleco branco e, entre<br />

os homens, quase sempre a gravata) que os especialistas vestem assegura-lhes<br />

sobriedade; os dispositivos visuais de conformação de diferentes posições<br />

dão-lhes seriedade, o tom do discurso é professoral e implica autoridade.<br />

O chamamento da audiência para o interior do programa, no entanto, não<br />

é o ponto forte dos especialistas – eles precisam do apoio e mediação dos<br />

jornalistas-apresentadores. As perguntas – feitas pelos próprios jornalistas<br />

ou vindas da internet e exibidas na tela – são os recursos utilizados pelos<br />

apresentadores para passar a palavra aos especialistas. Elas têm, no entanto,<br />

muito mais o tom de conversação que de interrogatório. Esta conversação é<br />

uma estratégia para a construção da relação com a audiência e ela se expressa<br />

tanto no aprofundamento dos tema quanto na informalidade (SILVA, 2010).<br />

Esses especialistas são treinados para desenvolver cuidadosamente os<br />

argumentos, citar as evidências que apoiam suas análises. No Bem Estar,<br />

as análises dos médicos aparecem muitas vezes fragmentadas, como<br />

observaram Livingstone e Lunt (1994) em um estudo sobre a construção<br />

de conhecimentos específicos e de senso comum nos programas de<br />

auditório. Isso está longe, no entanto, de ofuscar a imagem desses<br />

médicos – eles demonstram experiência e conhecimento, mesmo que<br />

alguns tenham maior desenvoltura e tranquilidade diante das câmeras do<br />

que outros. Como escreveu Tania Lewis, “o que os programas de estilo de<br />

vida no ocidente ‘vendem’ não são apenas produtos. Mas também modos<br />

de viver e de ser” (LEWIS, 2012: 541, aspas do autor). 102<br />

102 Tradução nossa para: “what lifestyle programming ‘sells’ to the audience in the West...are not just products but<br />

ways of living and being”.<br />

162


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164


A experiência audiovisual de uma transmidiação de<br />

La invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares<br />

Vicente Gosciola 103<br />

Introdução<br />

Atualmente a narrativa transmídia é considerada um processo,<br />

verificado em algumas áreas da comunicação, seja no entretenimento,<br />

no jornalismo, na publicidade, ou no âmbito corporativo. As definições<br />

de narrativa transmídia, de Henry Jenkins (2006) a Vicente Gosciola<br />

(2012), podem assumir características muito distintas da realidade de sua<br />

aplicação, mas, basicamente, ela é uma estratégia de comunicação. A<br />

narrativa transmídia é uma história, dividida em partes. Cada parte é<br />

veiculada por um meio de comunicação que melhor possa expressá-la.<br />

Os diferentes meios de comunicação não repetem as partes da história. Há<br />

projetos de narrativa transmídia que partem de uma história inteiramente<br />

nova ou adaptam histórias já conhecidas.<br />

Este capítulo vem propor uma reflexão teórica acerca da conceituação<br />

e das características do processo de transmidiação assim como de seu<br />

planejamento e modos de execução. Trata dos princípios e da estruturação<br />

da narrativa audiovisual em transmidiações enquanto aplicada à<br />

transmidiação do desdobramento narrativo de um livro de autor consagrado<br />

da literatura fantástica latino-americana: La Invención de Morel, de Adolfo<br />

Bioy Casares (2012). Todo o enfoque das observações se dá sobre a<br />

criação de narrativas no âmbito específico da sua transmidialidade em<br />

que o deslocamento de seu espectador entre as mais diversas mídias<br />

bem como a sua participação — como debatedor ou mesmo autor<br />

de narrativas adicionais complementares — é o que efetivamente lhe<br />

permitirá conhecer o todo da história. Visamos aqui a produção de uma<br />

reflexão teórica acerca da conceituação e das características do processo<br />

de transmidiação, assim como de seu planejamento e modos de execução<br />

103<br />

Professor Titular do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, integrante do grupo de pesquisa Inovações<br />

e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira. E-mail: vicente.gosciola@gmail.com<br />

165


e de promover a prática, em termos de roteirização audiovisual, de<br />

narrativa transmídia, a partir de uma obra literária.<br />

Verificamos como urgente uma produção textual que reporte e reflita<br />

o exercício de transmidiação e a compreensão de: como caracterizar a<br />

personagem; como revelar ou ocultar as motivações da personagem;<br />

como demonstrar o relacionamento entre as personagens e entre as<br />

plataformas; como tornar as narrativas conectivas, ou seja, cada narrativa<br />

convida sua audiência a procurar uma nova narrativa e/ou um novo<br />

meio de comunicação; como a audiência pode ajudar a conduzir a ação;<br />

como uma plataforma ou narrativa pode melhor elucidar o que acabou<br />

de acontecer e anunciar o que está para acontecer.<br />

A cultura da narrativa transmídia<br />

A narrativa transmídia é uma estratégia de comunicação enraizada na<br />

história da cultura, marcadamente presente na cultura contemporânea<br />

mediada pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs) novas<br />

possibilidades de comunicação surgem e se disseminam continuamente.<br />

Como definem Manuel Castells et alii no livro Comunicación móvil y<br />

sociedad, una perspectiva global, toda a história da tecnologia, até mesmo<br />

da internet, mostra que sua utilização serve a propósitos distintos daqueles<br />

que a originaram e que, quanto mais interativa ela é, mais provável que<br />

converta usuários em produtores de conteúdo e tecnologia enquanto<br />

a utilizam (CASTELLS et alii, 2007: 387-388). A narrativa transmídia é<br />

continuamente desenvolvida assim como os modos de contar histórias<br />

que utilizam múltiplas plataformas comunicacionais (SIMON, 2011).<br />

O jogo de forças é, aparentemente, equilibrado: sempre que há uma<br />

obsolescência em termos de tecnologia de meio de comunicação, as<br />

narrativas começam a apresentar novidades e vice-versa. No livro Hamlet<br />

no Holodeck, Janet Murray imagina um novo tipo de contador de histórias,<br />

que é metade hacker, como um criativo contemporâneo, e metade bardo,<br />

invocando o seu sentido original (MURRAY, 2003:17). Antes mesmo da<br />

tecnologia digital, que transformou as plataformas, os mais diversos<br />

autores de literatura buscaram novas maneiras de contar histórias.<br />

Aldous Huxley já imaginava, em seu livro Admirável mundo novo,<br />

de 1930, uma sala de cinema com estímulos táteis (HUXLEY, 2014). Ray<br />

Bradbury concebeu no livro Fahrenheit 451, de 1953, a TV Mural ou o<br />

166


circuito parede-a-parede (BRADBURY, 2003). O episódio “The practical<br />

joker”, o terceiro da segunda temporada da série de TV Star Trek: The<br />

animated series, a primeira após a série original Star trek (Jornada nas<br />

estrelas) criada por Gene Roddenberry, exibido em 21 de setembro de<br />

1974, relata que no ano 2269 o holodeck seria um grande salão com<br />

sistemas de projeção de som, imagem e campo de força para aliviar<br />

o estresse e o isolamento ou para simulação científica, tática e de<br />

treinamento. Esses são apenas alguns exemplos do que se pode imaginar<br />

com respeito à integração de mídias e narrativas, que somente se fizeram<br />

possíveis a partir da tecnologia digital e seus desdobramentos como os<br />

dispositivos móveis conectados à internet sem fio. Em 1991, Wim Wenders<br />

lançou o longa-metragem Bis ans Ende der Welt (Até o fim do mundo),<br />

anunciando que em 1999 haveria um dispositivo para gravar os sonhos e<br />

a imaginação. As imagens passariam a tomar todo o tempo das pessoas,<br />

que não conseguiriam deixar de vê-las durante todo o dia.<br />

O alcance da narrativa transmídia<br />

A indústria cinematográfica vem assumindo que nem tudo é esclarecido<br />

em um filme, por exemplo: certos detalhes da história de um filme só<br />

podem ser conhecidos em outras mídias. Isso exige que mantenhamos<br />

nossos olhos atentos, o que pode nos levar a pesquisar sobre o filme<br />

antes de chegarmos ao cinema. Essa análise seria incompleta se não<br />

levássemos em conta a motivação econômica. Esse sistema complexo de<br />

comunicação e engajamento é hoje denominado narrativa transmídia.<br />

Para Robert Pratten, exatamente por ser complexo, em projetos de<br />

narrativa transmídia o todo é mais satisfatório do que a soma das partes<br />

(PRATTEN, 2009). Nesse sentido, temos um exemplo concreto de media<br />

ecology porque é um sistema de comunicação complexo que integra<br />

as mais diversas plataformas de mídia, tecnologias, técnicas, produção<br />

colaborativa de conhecimento, de comportamento e de redes sociais<br />

(GOSCIOLA, 2012: 8). Em elementos mais concretos, narrativa transmídia<br />

é uma história muito grande subdividida em partes que são distribuídas<br />

em múltiplas plataformas de mídia. Cada plataforma de mídia é definida<br />

pelo critério de ser a que melhor possa expressar aquela parte específica<br />

da história, fazendo o melhor para que seu conteúdo seja uma distintiva<br />

e valiosa contribuição para o todo da grande história. Henry Jenkins, em<br />

167


um texto de 2003, cita alguns exemplos como a Odisseia de Homero, a<br />

história de Jesus contada na Idade Média, a saga da Terra Média de J.<br />

R. R. Tolkien (JENKINS, 2006: 107). The Blair Witch Project (de Danie<br />

Myrick e Eduardo Sanchez, 1999), um projeto independente de baixo<br />

orçamento, introduzido por um intenso trabalho de repercussão na web e<br />

na TV a cabo, com documentário falso (mockumentary), e concluído com<br />

a projeção do filme nas salas de cinema. Outro projeto representativo<br />

para essa investigação é a cine-série The Matrix (1999-2003), criada pelos<br />

irmãos Andy Wachowski e Lana Wachowski, iniciado com um longametragem<br />

de um total de três, permeados por animes e games.<br />

Iniciado em 1997, Pokémon tem, até o momento, quatorze temporadas,<br />

mais de 702 episódios, sites oficiais, sites de fãs, mais de dez longasmetragens,<br />

mais de cinquenta games, cards, etc. Por sua vez, Yu-Gi-Oh!<br />

de 2000 até o momento, tem três temporadas, 558 episódios, mangás,<br />

três longas, jogos de tabuleiro, dez livros, vinte e um games, cards, etc. E<br />

vale lembrar que em ambos os casos as histórias são complementares de<br />

mídia para mídia. Um projeto pode não nascer como transmídia, mas as<br />

oportunidades de ampliação da história vão surgindo depois de ele ter-se<br />

iniciado. Assim foi com a série de TV Lost (2004–2010), de J.J. Abrams,<br />

Jeffrey Lieber e Damon Lindelof: inicialmente não era transmídia, mas foi<br />

adotando outras plataformas e narrativas complementares com a intenção<br />

de manter o interesse pela série junto ao público durante o período entre<br />

as temporadas. Por outro lado, a série de TV Heroes (2006–2010), de Tim<br />

Kring, foi desde o início um projeto transmídia.<br />

Há a ideia de um mapeamento do mundo narrativo sugerido<br />

por Jill Golick. Com mais de vinte anos de experiência na indústria da<br />

televisão, para a qual já criou e produziu quatro séries digitais interativas,<br />

a professora de Roteiro para Televisão e Narrativa Transmídia, na York<br />

University, compreendeu que a narrativa transmídia, ou story universe<br />

(GOLICK, 2010), é composta de um história principal, ou a grande<br />

aventura, imediatamente cercada por histórias complementares, tais<br />

como: histórias de personagens secundários e/ou os seus próprios pontos<br />

de vista da história principal, contribuições de fãs, como vídeos, fotos,<br />

trilhas sonoras, conteúdos criados por fãs e/ou fan fictions, cenas de<br />

bastidores e/ou making of, mitologias, histórias reais, músicas, histórias<br />

de storyverse (conexões criadas entre as histórias complementares) e/<br />

168


ou o passado das histórias de storyverse e/ou o futuro das histórias de<br />

storyverse. Todas essas histórias são distribuídas entre as mais diversas<br />

plataformas, como por exemplo: cinema, série de TV, literatura, flash mob,<br />

Twitter, smartphone, pod cast, dvd, tablet, site, YouTube, cd, websode, HQ,<br />

documentário, rádio, teatro, brinquedo, merchandise marketing, graphic<br />

novel, social game, evento ao vivo, Facebook, blog, Flickr, videogame, etc.<br />

O público da cultura transmídia<br />

Vale observar agora qual seria o público desses novos produtos e/<br />

ou processos colaborativos de produção de conteúdo. Décio Pignatari já<br />

definia, em 1969, ainda que de maneira enfática, o produssumo como a<br />

mudança do mundo do consumo pelo mundo da troca ou da informação.<br />

Naquele ano, Pignatari defendia que os modelos de consumo eram os<br />

mesmos da produção de quarenta anos atrás. Citava como exemplos<br />

o apoio coletivo na produção cultural de um Oswald de Andrade ou<br />

o tropicalismo do grupo de cantores e compositores de vanguarda da<br />

época. Via no conceito produssumidor a saída para o estudante frente ao<br />

seu dilema de ser um criador ou um operário da informação, buscando<br />

novos modelos de batalha informacional (PIGNATARI, 2004: 31-32).<br />

Décio Pignatari antecipou em mais de uma década a criação do conceito<br />

prosumer de Alvin Toffler (1980). Ambos os autores preconizaram o<br />

mesmo modelo econômico do futuro. Em 2008 surgiu uma última revisão<br />

desse conceito, o produser, mais configurado para o mundo digital, nas<br />

reflexões de Axel Bruns (2008).<br />

Esse mesmo público, em constantes reconfigurações nestes nossos<br />

tempos, enquanto está consumindo os produtos conformados na<br />

integração de mídias e narrativas, passa a ser chamado de vivenciador.<br />

O vivenciador é um jogador ou ator-rede — em conformidade com<br />

conceito actor-network estudado por Bruno Latour em seu livro<br />

Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory<br />

(LATOUR, 2005) — que desfruta de um conteúdo transmídia na<br />

sua plenitude. O vivenciador não está desenvolvendo uma relação<br />

contemplativa com os conteúdos e as plataformas da narrativa<br />

transmídia. Ele faz parte da história enquanto participa, tentando<br />

desenvolver certos enigmas ou identificar certos vínculos entre<br />

narrativas aparentemente desconexas.<br />

169


A ampliação da narrativa transmídia<br />

Falar de narrativa transmídia também é aplicável até mesmo quando<br />

extrapola as plataformas e se faz presente no mundo real, isto é,<br />

desafia o vivenciador a buscar pistas e novas narrativas em ambientes<br />

reais, previamente elegidos pela produção. Sendo assim, o vivenciador<br />

participa de um drama seriado interativo, seja na web, em espaços<br />

físicos ou mesmo em ambos. Esse tipo de narrativa que mistura espaços<br />

virtuais e espaços reais hoje já é chamada de live transmedia, mas é<br />

mais conhecida como Alternate Reality Game. O ARG seria a transmídia<br />

levada às suas últimas consequências. O conceito ARG repercute uma<br />

concepção do teatro de Bertolt Brecht de quebra da quarta parede entre<br />

o ator e a plateia, criando uma experiência mais imersiva ao mesclar<br />

o espetáculo ao mundo real (BRECHT, 2005: 169-169). É um jogo que<br />

se joga alternando as realidades, isto é, utiliza a narrativa transmídia<br />

nos mais diversos meios de comunicação, mas também desafiam a sua<br />

audiência a participar de atividades em espaços públicos. Christy Dena<br />

desenvolveu um mapeamento muito completo desse tipo de transmídia<br />

(DENA, 2010). <strong>Entre</strong> alguns ARGs mais destacados temos: The Beast, de<br />

2001, da Microsoft, para promover o filme Inteligência Artificial (Steven<br />

Spielberg, 2001); I Love Bees, 2004 para promover o game Halo 2, que<br />

para desvendar um único enigma (puzzle) produziu mais de 1700<br />

horas de telefonemas; The Art of the Heist, 2005, com a participação do<br />

presidente da montadora Audi para promover o lançamento do Audi A3;<br />

Lost Experience, 2006, para manter os espectadores e fãs ligados à série<br />

enquanto a segunda temporada não era lançada; Year Zero, de 2007, da<br />

banda Nine Inch Nails, desenvolvido pelo seu único integrante, Trent<br />

Reznor, para promover o lançamento do novo álbum; Perplex City, de<br />

abril de 2005 a fevereiro de 2007, praticamente um ARG autossustentável,<br />

um dos únicos sem vínculos com empresas e produtos, permaneceu no<br />

ar por dois anos.<br />

Um grande exemplo de ARG brasileiro foi o Zona Incerta, realizado<br />

pela parceria entre a revista Superinteressante, publicação da Editora<br />

Abril, e a marca Guaraná Antarctica, da empresa de bebidas Ambev. A<br />

ideia original é de Denis Burgierman, Rafael Kenski e Renato Cagno.<br />

O editor-chefe é Rafael Kenski e o roteirista, André Sirangelo. Foi um<br />

total de seis meses de pré-produção, nove sites, trinta páginas da revista,<br />

170


uma web série em vídeo, muitos encontros presenciais (chamados de<br />

lives), para desvendar uma grande conspiração com uma grande história<br />

durante quinze semanas.<br />

Transmidiando La Invención de Morel<br />

Para o processo de transmidiação de La invención de Morel, de Adolfo<br />

Bioy Casares, é necessário elencar os elementos que dão condições à<br />

história ser contada em narrativa transmídia. Os principais fatores<br />

condicionais são: contar a história dividindo-a em partes, distribuir as<br />

partes pelas plataformas de mídia que melhor possam expressar aquela<br />

parte da história, basear a história em “em fragmentos de informação” de<br />

mitos pré-existentes, misturar com histórias do folclore e da mitologia,<br />

indicar informações que pareçam ser reais, oferecer o máximo possível de<br />

todo o passado da história contada, fortalecer o realismo com a câmera na<br />

mão, a atuação de improviso, etc., criar e animar um fórum de discussão<br />

e promover a criação de comunidade de fãs, estabelecer qual parte da<br />

história servirá para chamar a atenção da audiência, criar interconexões<br />

entre as partes da história e suas respectivas mídias, identificar as relações<br />

elaboradas entre personagens, verificar se a trama pode ser seriada e se<br />

expandir para além de uma única mídia, encontrar pistas: através de uma<br />

variedade de mídias; em fatos históricos reais; em ficções, compreensão<br />

adicional ativada por múltiplos textos para tornar a história viva para a<br />

audiência. Daí, seguir para a modalidade narrativa ARG e dominar suas<br />

especificidades. John Gosney define algumas características do ARG. O<br />

puppet master (titereiro) é a pessoa por trás da criação e execução de um<br />

ARG; é quem “puxa as cordas”, ou fios condutores da narrativa, de modo<br />

a apresentar as várias pistas ou chaves (indícios, vestígios) de um mistério<br />

e os elementos que abarquem o fluxo narrativo do ARG (GOSNEY,<br />

2005: 31). Os outros elementos podem ser: mensagens por e-mail, sites,<br />

contatos por telefonia, correio, artigos ou classificados em jornais, canais<br />

de IRC, chats, mensagens instantâneas e outros como artefatos do mundo<br />

real ligados ao ARG, eventos do mundo real realizados por atores que<br />

interagem com os jogadores do ARG. O texto em transmidiação contém<br />

um protagonista — anônimo, mas neste projeto denominado Fugitivo —<br />

que, ao mesmo tempo, é o narrador da história e que neste projeto é o<br />

titereiro da transmídia a liberar ou represar a passagem de uma parte da<br />

171


história e plataforma para outra. Outros conceitos são importantes para<br />

definir a estrutura narrativa do ARG, como o termo puppet-play ou a<br />

manipulação de uma personagem para levar os jogadores a resolver um<br />

puzzle.<br />

Para identificar eventos narrativos anteriores à história contada pelo<br />

livro, deve-se atentar para os seus elementos primordiais conforme<br />

definido por Dave Szulborski: uso da ilusão e interatividade para criar<br />

um sentido de engajamento ou agenciamento entre a audiência e<br />

qualquer mídia que o criador esteja trabalhando (SZULBORSKI, 2005:<br />

212-213).<br />

A “máquina narrativa”, aqui pensada para o desdobrar da história,<br />

pretende alcançar o engajamento do público já pelo rabbit hole, outro<br />

elemento importante a se destacar. Ele é a primeira pista, como um<br />

texto ou um vídeo em listas de discussão e redes sociais. Por último,<br />

como a narrativa original do livro será expandida para o mundo real,<br />

isto é, teremos uma live transmedia, serão bem-vindos os recursos de<br />

localização por GPS-Global Positioning System, sistema de posicionamento<br />

global, um sistema de navegação por satélite. O geocaching é um<br />

jogo de aventura para usuários dos GPS e tem os mesmos tipos de<br />

abordagem do ARG e aqui resulta como o modo pelo qual o público<br />

se encontra com as personagens da história de Bioy Casares. Assim a<br />

narrativa será expandida pelos desenvolvimentos gerados pelos novos<br />

conteúdos dedicados a outras plataformas. Sendo o livro o diário de<br />

um preso político que descreve desde a sua fuga até a sua vida na ilha<br />

aparentemente desabitada onde se esconde, o dia a dia na ilha oferece<br />

constantes surpresas, como o aparecimento repentino de um grupo de<br />

amigos que passa uma temporada no local à uma estranha duplicação do<br />

sol. O fugitivo pensa sentir efeitos da fadiga, provocada pela fuga, e da<br />

mínima alimentação, mas essas primeiras hipóteses se revelam incorretas<br />

na medida em que ele toma conhecimento dos detalhes da ilha e sua<br />

história.<br />

Os dias passam e o protagonista se faz um observador contumaz do<br />

grupo de amigos e desenvolve uma paixão por uma de suas integrantes,<br />

Faustine. Ao finalmente procurá-la para se declarar é absolutamente<br />

ignorado, o que se repete invariavelmente em todas as oportunidades<br />

até que ele descobre que ela não passa de um tipo inusitado de projeção<br />

172


voltado para todos os cinco sentidos. Assim é tudo que diga respeito à<br />

vida naquela ilha: todos os amigos, o sol, etc. Essas projeções diárias são<br />

resultado da máquina inventada por Morel, que também é integrante do<br />

grupo. O fugitivo, ou refugiado, que seria um escritor venezuelano, tem<br />

os seguintes relacionamentos concretos: Dalmacio Ombrellieri, que era<br />

um comerciante italiano de tapetes em Calcutá e ajudou o fugitivo antes<br />

de ir a Rabaul; o mafioso siciliano, mora em Rabaul, Papua-Nova Guiné,<br />

fornece o barco roubado para Fugitivo ir à ilha; Elisa, venezuelana, é a<br />

amada de Fugitivo antes dele ser preso; Orduño é um escritor venezuelano,<br />

ídolo de Fugitivo e de outros jovens escritores.<br />

Os vínculos de Morel, um grande cientista, renomado gênio, “barbudo<br />

pálido”, e seus amigos presentes na ilha, são os seguintes: Faustine, uma<br />

mulher distante, “vasta cigana de enormes olhos”, dizem parecida com<br />

a atriz Louise Brooks; Haynes, que dorme durante o discurso de Morel;<br />

Dora, “de cabelos louros, ondulados, muito risonha, com a cabeça grande e<br />

levemente curvada para a frente, como um cavalo brioso”, amiga íntima de<br />

Alec e Faustine; Alec, “escrupulosamente penteado, com tipo oriental e olhos<br />

verdes, tentou falar dos seus negócios de lãs” ... “jovem oriental e verdenegro”;<br />

Stoever, que entende que todos que estão prestes a morrer; Irene,<br />

“moça alta, de peito afundado, braços extremamente longos e expressão<br />

de nojo” só “tricotava”, nas palavras do autor; Jane Gray, senhora de idade,<br />

estava sempre junto de Dora, bêbada durante a reunião; os amigos de<br />

Morel que não estão presentes na ilha — porque, provavelmente, por culpa<br />

de Morel, morreram antes — eram: Claude, Madeleine, Leclerc e Charlie.<br />

Essas personagens permanecem no histórico e na bíblia da narrativa<br />

transmídia, mas, para os novos conteúdos e plataformas, a história<br />

atualizada e desdobrada seria resumida assim: em um futuro próximo,<br />

em uma grande metrópole, no centro político de seu país, no escritório<br />

do setor de investigações especiais da polícia federal, uma investigadora<br />

jovem e uma delegada de meia idade, respectivamente, lideram uma<br />

equipe destacada para lidar com as repercussões da nova crise financeira<br />

mundial, considerada uma repetição da crise de 2008, com os mesmos<br />

responsáveis indivíduos ou grupos históricos. A equipe é complementada<br />

pelo chefe de tecnologia de informação e comunicação do setor, sempre<br />

envolvido com os seus dispositivos móveis, sempre em tom irônico e<br />

sarcástico, mas imprimindo certa lucidez.<br />

173


Do outro lado da cidade, um antropólogo e ex-professor universitário,<br />

rapidamente será integrado à equipe porque possui os conhecimentos<br />

necessários de redes sociais digitais que, em boa parte, dão substância<br />

para as mais diversas manifestações, sejam elas pacíficas ou vândalas. A<br />

outra integrante externa à polícia vem de uma universidade, é superdotada<br />

e muito experiente em mídias móveis e tecnologia digital em geral. Em<br />

2010, os pais da jovem investigadora (então com dezoito anos de idade)<br />

desaparecem sem deixar vestígios. O único vestígio deles são vídeos<br />

que, inexplicavelmente, aparecem nas telas conectadas à internet. Outras<br />

plataformas e conteúdos se somam se complementam, principalmente<br />

através de cabines abertas ao público, disponíveis em pontos urbanos<br />

de grande movimento de pessoa. A cabine “escaneia” as pessoas que em<br />

alguns momentos da série aparecem com figurantes que efetivamente<br />

interferem na narrativa.<br />

Verifiquemos agora como essa história pode receber os elementos<br />

configuradores da narrativa transmídia. As personagens originais da<br />

história permanecem nos dados para exercer certa influência na obra.<br />

Dela, a história principal estará em uma série de TV. Por si só, a história<br />

já tem uma premissa que corresponde a um primeiro elemento que é a<br />

história complexa. Estamos diante de uma narrativa, a do fugitivo no tempo<br />

presente, sobreposta à outra narrativa, a do grupo de amigos no tempo<br />

passado. O que muito facilita a aplicação do primeiro elemento elencado<br />

acima: a divisão da história em partes. Essas duas histórias podem ser<br />

apreciadas em um mesmo meio de comunicação, por exemplo uma série<br />

de TV, como o seu diálogo entre os tempos dos núcleos narrativos.<br />

Cada uma dessas histórias tem as suas referências no passado, dada a<br />

habilidade em narrativa complexa do autor Bioy Casares. Correspondendo<br />

ao segundo elemento, as referências ao passado de cada narrativa<br />

poderiam ser conhecidas em sites, blogs, etc. O recurso de utilizar<br />

mitologias, mitos, folclore pré-existentes nos oferece um manancial de<br />

estímulos narrativos, como: o Ciclope, da Odisseia de Homero; o efeito<br />

da pintura de Roderick Usher que subtrai a vida de Lady Madeline, em A<br />

queda da casa de Usher, de Edgard Allan Poe; ou o tipo de raio laser que<br />

digitaliza Kevin Flynn e o transporta para o mundo virtual no romance<br />

familiar hipermoderno Tron, dirigido e escrito por Steven Lisberger. Sobre<br />

a condição de parecer real o livro foi escrito com essa intenção, em<br />

174


que pese a confusão de sentidos propositalmente definida para levar<br />

o leitor às mesmas sensações do protagonista. O passado de todas as<br />

personagens já é introduzido pelo autor, o que facilita sobremaneira a<br />

sua ampliação. As interconexões entre as narrativas, suas serializações,<br />

inclusão de documentos reais, enigmas e pistas certamente virão com o<br />

esforço em criar fóruns e comunidades de fãs.<br />

Considerações finais<br />

Assim, este estudo tratou da conceituação de narrativa transmídia, dos<br />

seus exemplos práticos, dos seus elementos específicos e da sua aplicação<br />

em uma obra literária. A maioria dos projetos de arte e comerciais, bem<br />

como o foco de teóricos e analistas, sejam no campo do entretenimento,<br />

do jornalismo ou corporativo, voltam o seu foco para uma comunicação<br />

cada vez mais complexa. Tal complexidade se dá tanto no âmbito das<br />

histórias quanto das múltiplas plataformas de mídias. A atual cultura<br />

contemporânea urbana via rede mundial de comunicação on-line tem a seu<br />

favor, além de ligar milhares de pessoas simultaneamente, a característica<br />

de agregar meios de comunicação, integrando-os e ampliando-lhes o<br />

potencial comunicacional.<br />

A narrativa transmídia, mais que um conceito, vem desempenhar seu<br />

papel como o processo que dá vazão a essas peculiaridades tão significativas<br />

do mundo contemporâneo. Destacam-se as suas características de um<br />

sistema de narrativas integradas e complementares na comunicação. Essa<br />

possibilidade de integração de conteúdos e de meios de comunicação,<br />

que está no cerne da narrativa transmídia, é um ideal buscado e proposto<br />

por diversos teóricos e artistas. Dessa maneira, observamos o livro La<br />

invención de Morel, de Bioy Casares. Todo o enfoque das atividades se dá<br />

sobre a criação de narrativas no âmbito específico da sua transmidialidade<br />

em que o deslocamento de seu espectador entre as mais diversas mídias<br />

bem como a sua participação — como debatedor ou mesmo autor<br />

de narrativas adicionais complementares — é o que efetivamente lhe<br />

permitirá conhecer o todo da história.<br />

Desse modo, também tentamos contribuir com a reflexão teórica<br />

acerca da conceituação e das características do processo de transmidiação<br />

a partir de uma importante obra literária. É possível que a transmidiação<br />

e a literatura fantástica tenham uma relação muito mais próxima do que<br />

175


se poderia imaginar antes da criação dos recursos de telefonia móvel,<br />

internet sem fio e todos os dispositivos móveis que fazem uso desses<br />

serviços. São elementos estruturantes do desenvolvimento da história, as<br />

técnicas e as tecnologias que possibilitam os múltiplos pontos de vista, a<br />

permeabilidade entre as narrativas (que são ao mesmo tempo autônomas<br />

e interferentes entre si), a aplicação de diferentes gêneros e a promoção<br />

de sensações e emoções. Assim, a transmidiação de La invención de Morel<br />

tende a prosseguir pulsante, pervasiva em sua hiper-realidade, porque os<br />

vivenciadores são coautores durante e depois de toda a vivência.<br />

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9 7 8 8 5 9 0 6 6 2 3 7 2

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