Freud
posteriormente nos esforçarmos em compreender tal efeito a partir de seu mecanismo psicológico. Tampouco me parece pertinente a observação de que o poeta é livre para encurtar à vontade a sucessão natural dos acontecimentos que nos apresenta, quando pode realçar o efeito dramático por meio do sacrifício da verossimilhança comum. Pois tal sacrifício é justificado apenas quando simplesmente incomoda a verossimilhança, 3 não quando suprime a ligação causal, e não haveria ruptura do efeito dramático se o transcorrer do tempo fosse indeterminado, em vez de expressamente limitado a uns poucos dias. É uma pena abandonar um problema como o de Macbeth como se fosse insolúvel, de modo que acrescentarei uma observação que talvez aponte uma nova saída. Num recente estudo sobre Shakespeare, Ludwig Jekels * acreditou perceber algo da técnica do poeta que poderia se aplicar também a Macbeth. Ele diz que é frequente Shakespeare decompor um caráter em dois personagens, e cada um dos quais não é inteiramente compreensível até que os juntamos de novo num só. Assim poderia ser o caso com Macbeth e a esposa, e não levaria a nada considerá-la uma pessoa autônoma e investigar os motivos de sua transformação sem atentar para Macbeth, que a completa. Não prosseguirei nessa trilha, mas desejo mencionar algo que apoia notavelmente essa concepção: os germes de medo que aparecem em Macbeth na noite do crime não se desenvolverão nele, mas em sua lady. 4 É ele que, antes do ato, teve a alucinação do punhal, mas ela que depois sucumbe a uma enfermidade psíquica; após o crime ele escutou estes gritos na casa: “Despertai do vosso sono! Macbeth trucida o sono!”, e “Macbeth não dormirá nunca mais!” [ato ii, cena 2], enquanto é a rainha, como vemos, que se ergue do leito e, em estado de sonambulismo, trai sua culpa; ele ficou sem ação, as mãos ensanguentadas, lamentando que “todo o oceano de Netuno não lavaria sua mão”, e ela o consolou: “Um pouco d’água limpa-nos deste ato”, mas depois é ela que durante um quarto de hora lava as mãos e não consegue tirar a mancha de sangue: “Todos os perfumes da Arábia não bastarão para adocicar esta pequenina 204/225
205/225 mão” (ato v, cena 1). Desse modo, realiza-se nela o que ele havia receado na angústia de sua consciência; ela vem a ser o arrependimento após o crime, e ele, o consolo; juntos eles esgotam as possibilidades de reação ao ato, como duas partes desunidas de uma só individualidade psíquica e talvez cópias de um só modelo. Se não pudemos, no caso de lady Macbeth, responder à questão de por que ela entra em colapso após o sucesso, caindo doente, talvez tenhamos maiores possibilidades com a obra de um outro famoso dramaturgo, que examina problemas de responsabilidade psicológica com inexorável rigor. Rebecca Gamvik, filha de uma parteira, foi educada por seu pai adotivo, o dr. West, tornando-se uma livre-pensadora que despreza as cadeias impostas aos desejos vitais por uma moralidade fundamentada na fé religiosa. Depois que morre o doutor, ela é acolhida em Rosmersholm, propriedade de uma antiga família, cujos membros desconhecem o riso, tendo sacrificado a alegria a um rígido cumprimento do dever. Em Rosmersholm vivem o pastor Johannes Rosmer e sua esposa Beate, que é doente e não tem filhos. Tomada de “selvagem, incontrolável anseio” pelo amor do homem de alta linhagem, Rebecca decide afastar a mulher que está no seu caminho, recorrendo para isso à sua vontade “ousada e livre”, não inibida por escrúpulos. Faz que lhe caia nas mãos um livro médico, em que a procriação é tida como a finalidade do casamento, de modo que a coitada passa a crer, confusa, que o seu casamento não se justifica; deixa-a pensar que Rosmer, cujas leituras e ideias ela partilha, está a ponto de se afastar da velha crença e tomar o partido das Luzes, e, depois de assim abalar a confiança da mulher na solidez moral do marido, dá-lhe a entender que ela própria, Rebecca, brevemente irá embora, a fim de ocultar as consequências de uma ilícita relação com Rosmer. O plano criminoso funciona. A pobre mulher, tida como deprimida e não responsável por seus atos, atira-se da ponte do moinho e se afoga, com o sentimento de que é inútil e a fim de não atrapalhar a felicidade do seu amado.
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mão” (ato v, cena 1). Desse modo, realiza-se nela o que ele havia receado na<br />
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duas partes desunidas de uma só individualidade psíquica e talvez cópias de um<br />
só modelo.<br />
Se não pudemos, no caso de lady Macbeth, responder à questão de por que<br />
ela entra em colapso após o sucesso, caindo doente, talvez tenhamos maiores<br />
possibilidades com a obra de um outro famoso dramaturgo, que examina problemas<br />
de responsabilidade psicológica com inexorável rigor.<br />
Rebecca Gamvik, filha de uma parteira, foi educada por seu pai adotivo, o<br />
dr. West, tornando-se uma livre-pensadora que despreza as cadeias impostas<br />
aos desejos vitais por uma moralidade fundamentada na fé religiosa. Depois<br />
que morre o doutor, ela é acolhida em Rosmersholm, propriedade de uma antiga<br />
família, cujos membros desconhecem o riso, tendo sacrificado a alegria a<br />
um rígido cumprimento do dever. Em Rosmersholm vivem o pastor Johannes<br />
Rosmer e sua esposa Beate, que é doente e não tem filhos. Tomada de<br />
“selvagem, incontrolável anseio” pelo amor do homem de alta linhagem, Rebecca<br />
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mãos um livro médico, em que a procriação é tida como a finalidade do<br />
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não se justifica; deixa-a pensar que Rosmer, cujas leituras e ideias ela partilha,<br />
está a ponto de se afastar da velha crença e tomar o partido das Luzes, e, depois<br />
de assim abalar a confiança da mulher na solidez moral do marido, dá-lhe<br />
a entender que ela própria, Rebecca, brevemente irá embora, a fim de ocultar<br />
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A pobre mulher, tida como deprimida e não responsável por seus atos,<br />
atira-se da ponte do moinho e se afoga, com o sentimento de que é inútil e a<br />
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