Freud

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196/225 O trabalho psicanalítico nos legou a tese de que as pessoas adoecem neuroticamente devido à frustração. Referimo-nos à frustração da satisfação dos desejos libidinais, e um longo rodeio se faz preciso para compreender essa tese. Pois o surgimento da neurose requer um conflito entre os desejos libidinais de uma pessoa e a parte do seu ser que denominamos seu Eu, que é expressão de seus instintos de autoconservação e que inclui os ideais que tem de seu próprio ser. Um tal conflito patológico surge apenas quando a libido quer se lançar por vias e metas há muito superadas e condenadas por seu Eu, que então as proibiu para sempre, e isso a libido faz somente quando lhe é tirada a possibilidade de uma satisfação ideal, adequada ao Eu. Assim a privação, a frustração de uma real satisfação, torna-se a primeira condição para o surgimento da neurose, embora não seja absolutamente a única. Tanto maior será a surpresa, mesmo a confusão, quando o médico descobre que às vezes as pessoas adoecem justamente quando veio a se realizar um desejo profundamente arraigado e há muito tempo nutrido. É como se elas não aguentassem a sua felicidade, pois não há como questionar a relação causal entre o sucesso e a doença. No tocante a isso, tive oportunidade de examinar o caso de uma mulher, que agora descreverei, como sendo típico dessas trágicas vicissitudes. De boa família e bem educada, quando jovem não pôde refrear sua vontade de viver, deixando a casa paterna e aventurando-se pelo mundo, até conhecer um artista que soube apreciar seu encanto feminino e também vislumbrar a fina natureza daquela moça rebaixada. Acolheu-a em sua casa e nela teve uma fiel companheira, para cuja felicidade completa parecia faltar apenas a reabilitação na sociedade. Após anos de vida em comum, ele conseguiu que a sua família fizesse amizade com ela, e pretendia torná-la sua esposa diante da lei. Foi então que ela começou a malograr. Negligenciou a casa de que se tornaria a senhora legal, acreditou-se perseguida pelos parentes que desejavam aceitá-la na família, obstruiu as relações sociais do companheiro mediante um absurdo

197/225 ciúme, impediu o seu trabalho artístico e depois sucumbiu a uma incurável doença psíquica. Uma outra observação me revelou um homem bastante respeitável, que, professor universitário, por muitos anos alimentara o compreensível desejo de suceder na cátedra o seu mestre, que o havia introduzido na ciência. Quando, após o afastamento desse senhor, os colegas lhe participaram que somente ele poderia sucedê-lo, começou a hesitar, diminuiu seus méritos, declarou-se indigno de assumir a posição que lhe destinavam e caiu numa melancolia que nos anos seguintes o deixou incapaz de qualquer atividade. Embora diferentes em vários aspectos, esses dois casos coincidem em que a enfermidade aparece quando da realização do desejo e põe fim à fruição desta. Não é insolúvel a contradição entre essas observações e a tese de que as pessoas adoecem devido à frustração. Ela vem a ser abolida pela distinção entre uma frustração externa e uma interna. Se o objeto no qual a libido pode se satisfazer falta na realidade, eis uma frustração externa. Por si ela não tem efeito, não é patogênica, enquanto não se junta a ela uma frustração interna. Esta precisa originar-se do Eu e contrariar o acesso da libido a outros objetos, de que ela agora quer se apoderar. Só então surge o conflito e a possibilidade de um adoecimento neurótico, isto é, de uma satisfação substituta pela via indireta do inconsciente reprimido. Portanto, a frustração interna deve ser considerada em todos os casos, mas não produz efeito até que a real frustração externa tenha preparado o terreno para ela. Nos casos excepcionais em que as pessoas adoecem com o êxito, a frustração interna atuou por si só, e realmente só apareceu depois que a frustração externa deu lugar à realização do desejo. À primeira vista há algo surpreendente nisso, mas uma reflexão mais detida nos lembra que não é incomum o Eu tolerar um desejo como sendo inócuo, quando ele existe somente na fantasia e parece distante de se realizar, e opor-se fortemente a ele, quando está próximo de se concretizar e ameaça tornar-se realidade. Ante situações conhecidas de formação da neurose, a diferença está em que geralmente são intensificações interiores do investimento libidinal que

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O trabalho psicanalítico nos legou a tese de que as pessoas adoecem neuroticamente<br />

devido à frustração. Referimo-nos à frustração da satisfação dos desejos<br />

libidinais, e um longo rodeio se faz preciso para compreender essa tese. Pois o<br />

surgimento da neurose requer um conflito entre os desejos libidinais de uma<br />

pessoa e a parte do seu ser que denominamos seu Eu, que é expressão de seus<br />

instintos de autoconservação e que inclui os ideais que tem de seu próprio ser.<br />

Um tal conflito patológico surge apenas quando a libido quer se lançar por vias<br />

e metas há muito superadas e condenadas por seu Eu, que então as proibiu<br />

para sempre, e isso a libido faz somente quando lhe é tirada a possibilidade de<br />

uma satisfação ideal, adequada ao Eu. Assim a privação, a frustração de uma<br />

real satisfação, torna-se a primeira condição para o surgimento da neurose,<br />

embora não seja absolutamente a única.<br />

Tanto maior será a surpresa, mesmo a confusão, quando o médico descobre<br />

que às vezes as pessoas adoecem justamente quando veio a se realizar um<br />

desejo profundamente arraigado e há muito tempo nutrido. É como se elas não<br />

aguentassem a sua felicidade, pois não há como questionar a relação causal<br />

entre o sucesso e a doença. No tocante a isso, tive oportunidade de examinar o<br />

caso de uma mulher, que agora descreverei, como sendo típico dessas trágicas<br />

vicissitudes.<br />

De boa família e bem educada, quando jovem não pôde refrear sua vontade<br />

de viver, deixando a casa paterna e aventurando-se pelo mundo, até conhecer<br />

um artista que soube apreciar seu encanto feminino e também vislumbrar a<br />

fina natureza daquela moça rebaixada. Acolheu-a em sua casa e nela teve uma<br />

fiel companheira, para cuja felicidade completa parecia faltar apenas a reabilitação<br />

na sociedade. Após anos de vida em comum, ele conseguiu que a sua<br />

família fizesse amizade com ela, e pretendia torná-la sua esposa diante da lei.<br />

Foi então que ela começou a malograr. Negligenciou a casa de que se tornaria<br />

a senhora legal, acreditou-se perseguida pelos parentes que desejavam aceitá-la<br />

na família, obstruiu as relações sociais do companheiro mediante um absurdo

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