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Freud

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amor para pavonear-me diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu,<br />

privado dessa bela proporção, desprovido de todo encanto pela pérfida<br />

natureza; disforme, inacabado, enviado por ela antes do tempo para este<br />

mundo dos vivos; terminado pela metade e isso tão imperfeitamente e fora<br />

de moda que os cães ladram para mim quando paro perto deles;<br />

[...]<br />

E assim, já que não posso mostrar-me como amante, para entreter estes<br />

belos dias de galanteria, resolvi portar-me como vilão e odiar os frívolos<br />

prazeres deste tempo. *<br />

À primeira vista, essa declaração de intenções talvez não se ligue ao nosso<br />

tema. Ricardo parece dizer apenas o seguinte: “Eu me entedio nesta época<br />

ociosa e pretendo me divertir. Mas como, sendo disforme, não posso me entreter<br />

como amante, farei papel de malvado, cuidarei de intrigas, assassinatos e<br />

o que mais me aprouver”. Uma motivação tão frívola sufocaria qualquer traço<br />

de interesse do espectador, se não ocultasse algo bem mais sério. A peça também<br />

seria psicologicamente impossível, já que o poeta precisa saber criar em<br />

nós um secreto pano de fundo de simpatia pelo seu herói, se devemos poder<br />

admirar sua ousadia e habilidade sem objeção interior, e tal simpatia pode se<br />

basear apenas na compreensão, no sentimento de uma possível afinidade interior<br />

com ele.<br />

Creio, por isso, que o monólogo de Ricardo não diz tudo; apenas insinua e<br />

nos permite desenvolver o que foi insinuado. Quando fazemos isso, porém,<br />

acaba a aparência de frivolidade, e a amargura e a minúcia com que Ricardo<br />

pintou sua deformidade cobram seu pleno efeito, e para nós se torna claro o<br />

senso de comunhão que induz nossa simpatia também por um malvado como<br />

ele. Então o significado seria: “A natureza cometeu uma grave injustiça<br />

comigo, ao me negar as belas proporções que conquistam o amor humano. A<br />

vida me deve por isso uma reparação, que eu tratarei de conseguir. Eu tenho o<br />

direito de ser uma exceção, de não me importar com os escrúpulos que detêm<br />

os outros. Posso ser injusto, pois houve injustiça comigo”. Agora sentimos<br />

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