Freud

03.03.2017 Views

182/225 Façamos agora um resumo. Nosso inconsciente é tão inacessível à ideia da própria morte, tão ávido por matar estranhos, tão dividido (ambivalente) em relação à pessoa amada como o homem das primeiras eras. Mas como nos afastamos desse estado primevo em nossa atitude cultural-convencional diante da morte! É fácil ver como a guerra interfere nessa dicotomia. Ela nos despe das camadas de cultura posteriormente acrescidas e faz de novo aparecer o homem primitivo em nós. Ela nos força novamente a ser heróis, que não conseguem crer na própria morte; ela nos assinala os estranhos como inimigos cuja morte se deve causar ou desejar; ela nos recomenda não considerar a morte de pessoas amadas. Mas a guerra não pode ser eliminada; enquanto as condições de existência dos povos forem tão diferentes, e tão fortes as aversões entre eles, há de haver guerras. Então se apresenta a pergunta: não deveríamos ceder e nos adaptar a ela? Não deveríamos admitir que com nossa atitude cultural diante da morte vivemos psicologicamente acima de nossos meios, mais uma vez, e voltar atrás e reconhecer a verdade? Não seria melhor dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos pensamentos, e pôr um pouco mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos cuidadosamente? Isso não parece uma realização maior, seria antes um passo atrás em vários aspectos, uma regressão, mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e nos tornar a vida novamente suportável. Suportar a vida continua a ser o primeiro dever dos vivos. A ilusão perde o valor se nos atrapalha nisso. Recordemo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra. No momento atual caberia mudá-lo: Si vis vitam, para mortem. Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte.

183/225 * “Forças psíquicas”: seelische Triebkräfte; nas versões estrangeiras consultadas: fuerzas [...] en lo anímico, forze motrici psichiche, forces de pulsion animiques, motive forces in the mind. O termo Triebkraft sempre significou, tradicionalmente, “força motriz” (de uma máquina, por exemplo). Sabemos que o primeiro substantivo que o compõe, Trieb, tem sentidos e conotações mais complexos e abrangentes; este é um exemplo de como vocabulário técnico e linguagem comum se juntam inextricavelmente na psicanálise. Por isso os tradutores diferem nesse ponto: o francês dá valor à ressonância técnica do termo, os demais preferem reconhecer o sentido tradicional. * “Impulsos instintuais”: Triebregungen; ver nota sobre esse termo na p. 25. No parágrafo seguinte se acha “impulsos afetivos”, versão de Gefühlsregungen. * “Repressão instintual”: Triebunterdrückung; as versões estrangeiras consultadas oferecem: yugulación, sofocación, répression (que o tradutor distingue de refoulement, reservando este para Verdrängung), suppression; cf. nota ao ensaio “A repressão”, acima, p. 83. * Freud viria a matizar ou reconsiderar essa afirmação numa nota acrescentada à Interpretação dos sonhos em 1925, como indica Strachey (cap. v, seção D, final da subseção ß). * Isto é, como algo incrível, improvável. * Alusão ao poema “Der Asra”, de Heinrich Heine, do volume Romanzero (1851). * Instinkt no original. ** “Dívida de sangue”: Blutschuld. Oferecemos uma versão literal, embora os dicionários digam que se trata de um termo poético para “homicídio” ou “responsabilidade por um homicídio”. As versões estrangeiras consultadas são igualmente literais: culpa de sangre, idem, delitto di sangue, coulpe de sang, blood-guilt; mas é importante lembrar que Schuld significa, ao mesmo tempo, “culpa” e “dívida”. Essa identificação é explorada por Friedrich Nietzsche na segunda das três dissertações do seu livro Genealogia da moral, de 1887. Esse termo — Schuld — já apareceu no segundo parágrafo do presente ensaio, onde também foi vertido por “dívida”, numa frase em que há alusão a um verso de Shakespeare: “Ora, deves uma morte a Deus”. (“Why, thou owest God a death”, de Henrique iv, i, ato 5, cena 1.) E uma palavra afim, Verschulden, surge poucas linhas adiante, no parágrafo atual, quando é traduzida por “ofensa”. 1 Cf. “O retorno infantil do totemismo”, último ensaio de Totem e tabu (1913). 2 Ver “Tabu e ambivalência”, segundo ensaio de Totem e tabu. * Citado da tradução de Frederico Lourenço, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2008. * No original: “Der kleinste lebendige Philister/ Zu Stuckert am Neckar, viel glücklicher ist er/ Als ich, der Pelide, der tote Held,/ Der Schattenfürst in der Unterwelt”; de acordo com Strachey, são as linhas finais do poema “Der Scheidende” (“Aquele que parte”), de Heinrich Heine.

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* “Forças psíquicas”: seelische Triebkräfte; nas versões estrangeiras consultadas: fuerzas [...] en<br />

lo anímico, forze motrici psichiche, forces de pulsion animiques, motive forces in the mind. O termo<br />

Triebkraft sempre significou, tradicionalmente, “força motriz” (de uma máquina, por exemplo).<br />

Sabemos que o primeiro substantivo que o compõe, Trieb, tem sentidos e conotações mais<br />

complexos e abrangentes; este é um exemplo de como vocabulário técnico e linguagem comum<br />

se juntam inextricavelmente na psicanálise. Por isso os tradutores diferem nesse ponto: o<br />

francês dá valor à ressonância técnica do termo, os demais preferem reconhecer o sentido<br />

tradicional.<br />

* “Impulsos instintuais”: Triebregungen; ver nota sobre esse termo na p. 25. No parágrafo<br />

seguinte se acha “impulsos afetivos”, versão de Gefühlsregungen.<br />

* “Repressão instintual”: Triebunterdrückung; as versões estrangeiras consultadas oferecem:<br />

yugulación, sofocación, répression (que o tradutor distingue de refoulement, reservando este para<br />

Verdrängung), suppression; cf. nota ao ensaio “A repressão”, acima, p. 83.<br />

* <strong>Freud</strong> viria a matizar ou reconsiderar essa afirmação numa nota acrescentada à Interpretação<br />

dos sonhos em 1925, como indica Strachey (cap. v, seção D, final da subseção ß).<br />

* Isto é, como algo incrível, improvável.<br />

* Alusão ao poema “Der Asra”, de Heinrich Heine, do volume Romanzero (1851).<br />

* Instinkt no original.<br />

** “Dívida de sangue”: Blutschuld. Oferecemos uma versão literal, embora os dicionários digam<br />

que se trata de um termo poético para “homicídio” ou “responsabilidade por um homicídio”.<br />

As versões estrangeiras consultadas são igualmente literais: culpa de sangre, idem, delitto<br />

di sangue, coulpe de sang, blood-guilt; mas é importante lembrar que Schuld significa, ao mesmo<br />

tempo, “culpa” e “dívida”. Essa identificação é explorada por Friedrich Nietzsche na segunda<br />

das três dissertações do seu livro Genealogia da moral, de 1887. Esse termo — Schuld — já<br />

apareceu no segundo parágrafo do presente ensaio, onde também foi vertido por “dívida”,<br />

numa frase em que há alusão a um verso de Shakespeare: “Ora, deves uma morte a Deus”.<br />

(“Why, thou owest God a death”, de Henrique iv, i, ato 5, cena 1.) E uma palavra afim, Verschulden,<br />

surge poucas linhas adiante, no parágrafo atual, quando é traduzida por “ofensa”.<br />

1 Cf. “O retorno infantil do totemismo”, último ensaio de Totem e tabu (1913).<br />

2 Ver “Tabu e ambivalência”, segundo ensaio de Totem e tabu.<br />

* Citado da tradução de Frederico Lourenço, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2008.<br />

* No original: “Der kleinste lebendige Philister/ Zu Stuckert am Neckar, viel glücklicher ist er/<br />

Als ich, der Pelide, der tote Held,/ Der Schattenfürst in der Unterwelt”; de acordo com Strachey,<br />

são as linhas finais do poema “Der Scheidende” (“Aquele que parte”), de Heinrich Heine.

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