Freud
e isso com uma certa coerência, pois cada ofensa ao nosso todo-poderoso e soberano Eu é no fundo um crimen laesae majestatis. De modo que também nós, se formos julgados por nossos desejos inconscientes, somos um bando de assassinos, tal como os homens primitivos. É uma sorte que todos esses desejos não tenham a força que ainda lhes atribuíam os homens da pré-história; no fogo cruzado das maldições recíprocas a humanidade já teria há muito perecido, não excluindo os melhores e mais sábios dos homens e as mais belas e amáveis entre as mulheres. Com afirmações desse tipo a psicanálise não acha crédito junto à maioria dos leigos. São rejeitadas como calúnias que não merecem crédito perante as asseverações da consciência, e habilmente se ignoram os pequenos indícios mediante os quais o inconsciente costuma se revelar à consciência. Por isso é oportuno registrar que muitos pensadores que não podem ter sido influenciados pela psicanálise denunciaram bem claramente a disposição que nossos pensamentos secretos têm para eliminar o que nos estorva o caminho, não fazendo caso da proibição de matar. Entre muitos exemplos, recordarei aqui apenas um que se tornou famoso. Em O pai Goriot, Balzac alude a uma passagem das obras de J. J. Rousseau, na qual esse autor pergunta ao leitor o que este faria se — sem deixar Paris, e naturalmente sem ser descoberto — pudesse matar, por um simples ato de vontade, um velho mandarim em Pequim, cujo passamento lhe traria enorme vantagem. Ele dá a entender que a vida desse dignatário não lhe parece muito garantida. “Tuer son mandarin” [matar seu mandarim] tornou-se uma expressão proverbial para essa disposição oculta, que é também dos homens de hoje. Há igualmente um bom número de piadas e anedotas cínicas que depõem no mesmo sentido, como, por exemplo, a frase atribuída a um homem casado, que diz: “Quando um de nós dois morrer, eu me mudo para Paris”. Tais piadas cínicas não existiriam se não transmitissem uma verdade negada, que não 180/225
nos permitimos reconhecer quando é expressa de modo sério e franco. Sabe-se que brincando podemos dizer até mesmo a verdade. Assim como para o homem primevo, também para o nosso inconsciente há um caso em que as duas atitudes opostas em relação à morte, uma que a admite como aniquilação da vida, outra que a nega como sendo irreal, se chocam e entram em conflito. E esse caso é, como na pré-história, a morte ou o risco de morte de um dos nossos amores, de um genitor ou cônjuge, um irmão, filho ou amigo dileto. Esses amores são para nós uma propriedade interior, componentes de nosso próprio Eu, mas também estranhos em parte, e mesmo inimigos. O mais terno e mais íntimo de nossos laços amorosos tem, com ressalva de bem poucas situações, um quê de hostilidade que pode incitar o desejo inconsciente de morte. Mas o que resulta desse conflito ligado à ambivalência não é, como outrora, a doutrina da alma e a ética, e sim a neurose, que nos permite profundos relances também da vida psíquica normal. Com que frequência os médicos praticantes da psicanálise não lidaram com o sintoma da exagerada preocupação pelo bem-estar dos próximos, ou com autorrecriminações totalmente infundadas após a morte de uma pessoa amada. O estudo desses casos não lhes deixou dúvidas a respeito da difusão e importância dos desejos de morte inconscientes. O leigo sente um horror enorme ante a possibilidade de tais sentimentos, e vê nessa aversão um fundamento legítimo para descrer das afirmações da psicanálise. Erradamente, me parece. Não se pretende fazer nenhuma degradação da nossa vida amorosa, e de fato não se achará isso aqui. Sem dúvida é algo distante de nosso entendimento e nossa sensibilidade juntar de tal maneira o amor e o ódio, mas a natureza, trabalhando com esse par de opostos, logra manter o amor sempre alerta e fresco, para garanti-lo contra o ódio que por trás o espreita. É lícito dizer que os mais belos desdobramentos de nossa vida amorosa se devem à reação contra o impulso hostil que sentimos em nosso peito. 181/225
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e isso com uma certa coerência, pois cada ofensa ao nosso todo-poderoso e<br />
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De modo que também nós, se formos julgados por nossos desejos inconscientes,<br />
somos um bando de assassinos, tal como os homens primitivos. É<br />
uma sorte que todos esses desejos não tenham a força que ainda lhes atribuíam<br />
os homens da pré-história; no fogo cruzado das maldições recíprocas a humanidade<br />
já teria há muito perecido, não excluindo os melhores e mais sábios dos<br />
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Com afirmações desse tipo a psicanálise não acha crédito junto à maioria<br />
dos leigos. São rejeitadas como calúnias que não merecem crédito perante as<br />
asseverações da consciência, e habilmente se ignoram os pequenos indícios<br />
mediante os quais o inconsciente costuma se revelar à consciência. Por isso é<br />
oportuno registrar que muitos pensadores que não podem ter sido influenciados<br />
pela psicanálise denunciaram bem claramente a disposição que nossos<br />
pensamentos secretos têm para eliminar o que nos estorva o caminho, não<br />
fazendo caso da proibição de matar. Entre muitos exemplos, recordarei aqui<br />
apenas um que se tornou famoso.<br />
Em O pai Goriot, Balzac alude a uma passagem das obras de J. J. Rousseau,<br />
na qual esse autor pergunta ao leitor o que este faria se — sem deixar Paris, e<br />
naturalmente sem ser descoberto — pudesse matar, por um simples ato de<br />
vontade, um velho mandarim em Pequim, cujo passamento lhe traria enorme<br />
vantagem. Ele dá a entender que a vida desse dignatário não lhe parece muito<br />
garantida. “Tuer son mandarin” [matar seu mandarim] tornou-se uma expressão<br />
proverbial para essa disposição oculta, que é também dos homens de<br />
hoje.<br />
Há igualmente um bom número de piadas e anedotas cínicas que depõem<br />
no mesmo sentido, como, por exemplo, a frase atribuída a um homem casado,<br />
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cínicas não existiriam se não transmitissem uma verdade negada, que não<br />
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