Freud

03.03.2017 Views

da capacidade, dos quais sofremos, seriam determinados essencialmente, entre outras coisas, pelo fato de não podermos conservar nossa atitude anterior frente à morte e não termos ainda encontrado uma nova. Nisso talvez ajude apontarmos nossa investigação psicológica para duas outras relações com a morte: aquela que podemos atribuir ao homem da pré-história e aquela que ainda se mantém em cada um de nós, mas se esconde, invisível para a nossa consciência, em camadas profundas de nossa vida psíquica. Quanto à atitude do homem pré-histórico diante da morte, naturalmente só podemos conhecê-la mediante inferências e construções, mas acho que esses meios nos deram informações razoavelmente confiáveis. O homem primevo comportou-se de modo bem peculiar frente à morte. De maneira nada coerente, antes contraditória. Por um lado levou a morte a sério, reconheceu-a como abolição da vida e serviu-se dela nesse sentido; mas, por outro lado, também negou a morte, rebaixando-a a nada. O que tornava possível tal contradição era o fato de ele assumir, ante a morte do outro, do desconhecido, do inimigo, uma postura radicalmente diferente da que assumia ante a sua própria. A morte do outro lhe era justa, significava a eliminação do que era odiado, e o homem primevo não tinha escrúpulo em executá-la. Ele era sem dúvida um ser muito passional, mais cruel e mais malvado que outros bichos. Assassinava com gosto, e como se fosse algo óbvio. Não precisamos atribuir-lhe o instinto * que impediria outros animais de matar e devorar seres da mesma espécie. A história primeva da humanidade é plena de assassinatos, portanto. Ainda hoje, aquilo que nossos filhos aprendem na escola sob o nome de História Universal é, na essência, uma longa série de matanças de povos. O obscuro sentimento de culpa a que está sujeita a humanidade desde os tempos préhistóricos, que em muitas religiões condensou-se na ideia de uma culpa primordial, de um pecado original, é provavelmente expressão de uma dívida de sangue ** em que a humanidade primeva incorreu. No livro Totem e tabu (1913) 174/225

procurei, seguindo indicações de Robertson Smith, Atkinson e Darwin, descobrir a natureza dessa antiga culpa, e creio que ainda hoje a doutrina cristã nos permite inferi-la retrospectivamente. Se o filho de Deus teve que sacrificar a vida para redimir a humanidade do pecado original, então, segundo a regra de talião, de pagamento com igual moeda, esse pecado deve ter sido uma morte, um assassinato. Apenas isso poderia requerer o sacrifício de uma vida para a sua expiação. E se o pecado original foi uma ofensa contra Deus-Pai, o crime mais antigo da humanidade deve ter sido um parricídio, o assassínio do pai primevo da horda humana primitiva, cuja imagem ou lembrança foi depois transfigurada em divindade. 1 Para o homem primevo, sua própria morte era certamente tão irreal e inimaginável quanto ainda hoje é para cada um de nós. Mas havia um caso em que as duas atitudes opostas perante a morte se chocavam e entravam em conflito, e esse caso tornou-se muito significativo e rico em consequências de vasto alcance. Sucedia quando o homem primevo via morrer um dos seus, sua mulher, seu filho, seu amigo, que ele sem dúvida amava como nós aos nossos, pois o amor não pode ser muito mais novo que o prazer em matar. Então, na sua dor, ele teve que aprender que também ele podia morrer, e todo o seu ser revoltou-se contra tal admissão; pois cada um desses amores era um pedaço de seu próprio amado Eu. Por outro lado, essa morte também era justa para ele, pois em cada um desses amores havia também um quê de estrangeiro. A lei da ambivalência dos sentimentos, que ainda hoje domina as relações afetivas com as pessoas que mais amamos, certamente vigorava com amplitude ainda maior na pré-história. Assim, esses amados falecidos tinham sido também estranhos e inimigos, que haviam despertado nele uma parcela de sentimentos hostis. 2 Os filósofos afirmaram que o enigma intelectual posto ao homem primitivo pela imagem da morte o obrigou a refletir e veio a ser o ponto de partida de toda especulação. Acho que aí os filósofos pensam muito... filosoficamente, não cuidando dos motivos primariamente operantes. Por isso eu gostaria de limitar e corrigir a afirmação. O homem primevo teria triunfado junto ao 175/225

procurei, seguindo indicações de Robertson Smith, Atkinson e Darwin,<br />

descobrir a natureza dessa antiga culpa, e creio que ainda hoje a doutrina cristã<br />

nos permite inferi-la retrospectivamente. Se o filho de Deus teve que sacrificar<br />

a vida para redimir a humanidade do pecado original, então, segundo a regra<br />

de talião, de pagamento com igual moeda, esse pecado deve ter sido uma<br />

morte, um assassinato. Apenas isso poderia requerer o sacrifício de uma vida<br />

para a sua expiação. E se o pecado original foi uma ofensa contra Deus-Pai, o<br />

crime mais antigo da humanidade deve ter sido um parricídio, o assassínio do<br />

pai primevo da horda humana primitiva, cuja imagem ou lembrança foi depois<br />

transfigurada em divindade. 1<br />

Para o homem primevo, sua própria morte era certamente tão irreal e inimaginável<br />

quanto ainda hoje é para cada um de nós. Mas havia um caso em<br />

que as duas atitudes opostas perante a morte se chocavam e entravam em conflito,<br />

e esse caso tornou-se muito significativo e rico em consequências de<br />

vasto alcance. Sucedia quando o homem primevo via morrer um dos seus, sua<br />

mulher, seu filho, seu amigo, que ele sem dúvida amava como nós aos nossos,<br />

pois o amor não pode ser muito mais novo que o prazer em matar. Então, na<br />

sua dor, ele teve que aprender que também ele podia morrer, e todo o seu ser<br />

revoltou-se contra tal admissão; pois cada um desses amores era um pedaço de<br />

seu próprio amado Eu. Por outro lado, essa morte também era justa para ele,<br />

pois em cada um desses amores havia também um quê de estrangeiro. A lei da<br />

ambivalência dos sentimentos, que ainda hoje domina as relações afetivas com<br />

as pessoas que mais amamos, certamente vigorava com amplitude ainda maior<br />

na pré-história. Assim, esses amados falecidos tinham sido também estranhos e<br />

inimigos, que haviam despertado nele uma parcela de sentimentos hostis. 2<br />

Os filósofos afirmaram que o enigma intelectual posto ao homem primitivo<br />

pela imagem da morte o obrigou a refletir e veio a ser o ponto de partida de<br />

toda especulação. Acho que aí os filósofos pensam muito... filosoficamente,<br />

não cuidando dos motivos primariamente operantes. Por isso eu gostaria de<br />

limitar e corrigir a afirmação. O homem primevo teria triunfado junto ao<br />

175/225

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!