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da capacidade, dos quais sofremos, seriam determinados essencialmente, entre<br />
outras coisas, pelo fato de não podermos conservar nossa atitude anterior<br />
frente à morte e não termos ainda encontrado uma nova. Nisso talvez ajude<br />
apontarmos nossa investigação psicológica para duas outras relações com a<br />
morte: aquela que podemos atribuir ao homem da pré-história e aquela que<br />
ainda se mantém em cada um de nós, mas se esconde, invisível para a nossa<br />
consciência, em camadas profundas de nossa vida psíquica.<br />
Quanto à atitude do homem pré-histórico diante da morte, naturalmente só<br />
podemos conhecê-la mediante inferências e construções, mas acho que esses<br />
meios nos deram informações razoavelmente confiáveis.<br />
O homem primevo comportou-se de modo bem peculiar frente à morte. De<br />
maneira nada coerente, antes contraditória. Por um lado levou a morte a sério,<br />
reconheceu-a como abolição da vida e serviu-se dela nesse sentido; mas, por<br />
outro lado, também negou a morte, rebaixando-a a nada. O que tornava possível<br />
tal contradição era o fato de ele assumir, ante a morte do outro, do<br />
desconhecido, do inimigo, uma postura radicalmente diferente da que assumia<br />
ante a sua própria. A morte do outro lhe era justa, significava a eliminação do<br />
que era odiado, e o homem primevo não tinha escrúpulo em executá-la. Ele<br />
era sem dúvida um ser muito passional, mais cruel e mais malvado que outros<br />
bichos. Assassinava com gosto, e como se fosse algo óbvio. Não precisamos<br />
atribuir-lhe o instinto * que impediria outros animais de matar e devorar seres<br />
da mesma espécie.<br />
A história primeva da humanidade é plena de assassinatos, portanto. Ainda<br />
hoje, aquilo que nossos filhos aprendem na escola sob o nome de História<br />
Universal é, na essência, uma longa série de matanças de povos. O obscuro<br />
sentimento de culpa a que está sujeita a humanidade desde os tempos préhistóricos,<br />
que em muitas religiões condensou-se na ideia de uma culpa primordial,<br />
de um pecado original, é provavelmente expressão de uma dívida de<br />
sangue ** em que a humanidade primeva incorreu. No livro Totem e tabu (1913)<br />
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