Freud

03.03.2017 Views

ganho em matéria de liberdade, propriedade, posição. Sem dúvida, as mortes não deixam de ocorrer por causa desse nosso sentimento terno. Quando acontecem, a cada vez somos atingidos profundamente e como que abalados em nossa expectativa. Via de regra enfatizamos a natureza casual da morte, um acidente, uma doença, infecção ou idade avançada, e desse modo traímos o nosso empenho em vê-la como algo fortuito, em vez de necessário. Um grande número de mortes nos parece terrível ao extremo. Diante do morto assumimos uma atitude particular, quase que uma admiração por alguém que realizou algo muito difícil. Nós nos abstemos de toda crítica a ele, relevamos qualquer erro de sua parte, sentenciamos que “de mortuis nil nisi bene” [não se fale mal dos mortos], e achamos natural que na oração fúnebre e no epitáfio fale-se apenas o que lhe for lisonjeiro. A consideração pelo morto, que afinal já não necessita dela, é por nós colocada acima da verdade, e pela maioria de nós também acima da consideração pelos vivos. Essa postura cultural-convencional diante da morte é complementada pelo total colapso que sofremos quando morre alguém que nos é próximo, um genitor ou cônjuge, um irmão, filho ou amigo precioso. Enterramos com ele todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos. Nós nos comportamos como os asra, que morrem, quando morrem aqueles que amam. * Mas essa nossa atitude para com a morte tem um poderoso efeito em nossa vida. A vida empobrece, perde algo do interesse, quando a mais elevada aposta no jogo da vida, isto é, ela mesma, não pode ser arriscada. Ela fica insossa, insubstancial como um flerte americano, digamos, no qual se sabe desde o início que nada ocorrerá, à diferença de uma relação amorosa no Continente, na qual ambas as partes devem a cada instante ter em mente as sérias consequências possíveis. Os nossos vínculos afetivos, a insuportável intensidade de nosso luto, nos tornam pouco inclinados a buscar perigos para nós mesmos e os nossos. Não ousamos considerar muitas empresas que são perigosas mas necessárias, como as tentativas de voar, as expedições em terras distantes, os 172/225

173/225 experimentos com substâncias explosivas. Paralisa-nos o pensamento de quem haverá de substituir o filho para a mãe, o marido para a mulher, o pai para os filhos, caso aconteça um desastre. A tendência a excluir a morte dos cálculos da vida traz consigo muitas outras renúncias e exclusões. No entanto, o lema da Liga Hanseática dizia: “Navigare necesse est, vivere non necesse!”. (Navegar é preciso, viver não é preciso.) Então é inevitável que busquemos no mundo da ficção, na literatura, no teatro, substituto para as perdas da vida. Lá encontramos ainda pessoas que sabem morrer, e que conseguem até mesmo matar uma outra. E apenas lá se verifica a condição sob a qual poderíamos nos reconciliar com a morte: de que por trás de todas as vicissitudes da vida nos restasse ainda uma vida intacta. Pois é muito triste que na vida suceda como num jogo de xadrez, em que um movimento errado pode nos levar a perder a partida, com a diferença de não podermos iniciar uma nova partida, uma revanche. No reino da ficção encontramos a pluralidade de vidas de que temos necessidade. Morremos na identificação com um herói, mas sobrevivemos a ele e já estamos prontos a morrer uma segunda vez com outro, igualmente incólumes. É evidente que a guerra afastará esse tratamento convencional da morte. Não é mais possível negar a morte; temos de crer nela. As pessoas morrem de fato, e não mais isoladamente, mas em grande número, às vezes dezenas de milhares num só dia. Isso já não é acaso. Certamente ainda parece casual que uma bala atinja este ou aquele outro, mas uma segunda bala pode atingir mais outro, e o acúmulo põe fim à impressão de acaso. A vida se tornou novamente interessante, recuperou seu pleno conteúdo. Aqui se deveria fazer uma distinção entre dois grupos, os que arriscam a vida na batalha e os que permanecem em casa, à espera somente de perderem um dos seus entes queridos por ferimento, doença ou infecção. Claro que seria muito interessante estudar as modificações na psicologia dos combatentes, mas não sei o bastante a respeito disso. Devemos nos ater ao segundo grupo, ao qual pertencemos. Já expressei minha opinião de que o desnorteio e a paralisia

ganho em matéria de liberdade, propriedade, posição. Sem dúvida, as mortes<br />

não deixam de ocorrer por causa desse nosso sentimento terno. Quando<br />

acontecem, a cada vez somos atingidos profundamente e como que abalados<br />

em nossa expectativa. Via de regra enfatizamos a natureza casual da morte, um<br />

acidente, uma doença, infecção ou idade avançada, e desse modo traímos o<br />

nosso empenho em vê-la como algo fortuito, em vez de necessário. Um grande<br />

número de mortes nos parece terrível ao extremo. Diante do morto assumimos<br />

uma atitude particular, quase que uma admiração por alguém que realizou algo<br />

muito difícil. Nós nos abstemos de toda crítica a ele, relevamos qualquer erro<br />

de sua parte, sentenciamos que “de mortuis nil nisi bene” [não se fale mal dos<br />

mortos], e achamos natural que na oração fúnebre e no epitáfio fale-se apenas<br />

o que lhe for lisonjeiro. A consideração pelo morto, que afinal já não necessita<br />

dela, é por nós colocada acima da verdade, e pela maioria de nós também<br />

acima da consideração pelos vivos.<br />

Essa postura cultural-convencional diante da morte é complementada pelo<br />

total colapso que sofremos quando morre alguém que nos é próximo, um genitor<br />

ou cônjuge, um irmão, filho ou amigo precioso. Enterramos com ele todas<br />

as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos<br />

a substituir aquele que perdemos. Nós nos comportamos como os asra, que<br />

morrem, quando morrem aqueles que amam. *<br />

Mas essa nossa atitude para com a morte tem um poderoso efeito em nossa<br />

vida. A vida empobrece, perde algo do interesse, quando a mais elevada aposta<br />

no jogo da vida, isto é, ela mesma, não pode ser arriscada. Ela fica insossa, insubstancial<br />

como um flerte americano, digamos, no qual se sabe desde o início<br />

que nada ocorrerá, à diferença de uma relação amorosa no Continente, na qual<br />

ambas as partes devem a cada instante ter em mente as sérias consequências<br />

possíveis. Os nossos vínculos afetivos, a insuportável intensidade de nosso<br />

luto, nos tornam pouco inclinados a buscar perigos para nós mesmos e os nossos.<br />

Não ousamos considerar muitas empresas que são perigosas mas necessárias,<br />

como as tentativas de voar, as expedições em terras distantes, os<br />

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