Freud
Depois que o sonho nos serviu como modelo normal dos distúrbios psíquicos narcísicos, façamos a tentativa de elucidar a natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto. * Mas desta vez temos que admitir algo de antemão, para evitar uma superestimação de nossos resultados. A melancolia, cuja definição varia mesmo na psiquiatria descritiva, apresenta-se em variadas formas clínicas, cujo agrupamento numa só unidade não parece estabelecido, e das quais algumas lembram antes afecções somáticas ** do que psicogênicas. Sem contar as impressões disponíveis a qualquer observador, nosso material se limita a um pequeno número de casos, cuja natureza psicogênica não permitia dúvida. Assim, desde já renunciamos a toda pretensão de validade universal para nossas conclusões, e nos consolamos na reflexão de que, dados os nossos atuais meios de pesquisa, dificilmente poderíamos encontrar algo que não fosse típico, se não de toda uma classe de afecções, ao menos de um grupo menor delas. A associação de luto com melancolia mostra-se justificada pelo quadro geral desses dois estados. 1 Neles também coincidem as causas oriundas das interferências da vida, ao menos onde é possível enxergá-las. Via de regra, luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc. Sob as mesmas influências observamos, em algumas pessoas, melancolia em vez de luto, e por isso suspeitamos que nelas exista uma predisposição patológica. Também é digno de nota que jamais nos ocorre ver o luto como um estado patológico e indicar tratamento médico para ele, embora ocasione um sério afastamento da conduta normal da vida. Confiamos em que será superado após certo tempo, e achamos que perturbá-lo é inapropriado, até mesmo prejudicial. A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento * doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, ** que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição. Esse quadro se torna mais compreensível para nós se
129/225 consideramos que o luto exibe os mesmos traços, com exceção de um: nele a autoestima não é afetada. De resto é o mesmo quadro. O luto profundo, a reação à perda de um ente amado, comporta o mesmo doloroso abatimento, a perda de interesse pelo mundo externo — na medida em que não lembra o falecido —, a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor — o que significaria substituir o pranteado —, o afastamento de toda atividade que não se ligue à memória do falecido. Logo vemos que essa inibição e restrição do Eu exprime uma exclusiva dedicação ao luto, em que nada mais resta para outros intuitos e interesses. Na verdade, esse comportamento só não nos parece patológico porque sabemos explicá-lo bem. Também admitiremos a comparação que qualifica de “doloroso” o estado de ânimo do luto. A justificativa para isso provavelmente ficará clara quando pudermos caracterizar a dor do ponto de vista econômico. Em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Não me parece descabido expor esse trabalho da forma seguinte. O exame da realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, e então exige que toda libido seja retirada de suas conexões com esse objeto. Isso desperta uma compreensível oposição — observa-se geralmente que o ser humano não gosta de abandonar uma posição libidinal, mesmo quando um substituto já se anuncia. Essa oposição pode ser tão intensa que se produz um afastamento da realidade e um apego ao objeto mediante uma psicose de desejo alucinatória (ver o ensaio anterior). O normal é que vença o respeito à realidade. Mas a solicitação desta não pode ser atendida imediatamente. É cumprida aos poucos, com grande aplicação de tempo e energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto perdido se prolonga na psique. Cada uma das lembranças e expectativas em que a libido se achava ligada ao objeto é enfocada e superinvestida, e em cada uma sucede o desligamento da libido. Não é fácil fundamentar economicamente por que é tão dolorosa essa operação de compromisso em que o mandamento da realidade pouco a pouco se efetiva. É curioso que esse doloroso desprazer nos pareça
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consideramos que o luto exibe os mesmos traços, com exceção de um: nele a<br />
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—, a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor — o que<br />
significaria substituir o pranteado —, o afastamento de toda atividade que não<br />
se ligue à memória do falecido. Logo vemos que essa inibição e restrição do<br />
Eu exprime uma exclusiva dedicação ao luto, em que nada mais resta para outros<br />
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patológico porque sabemos explicá-lo bem.<br />
Também admitiremos a comparação que qualifica de “doloroso” o estado<br />
de ânimo do luto. A justificativa para isso provavelmente ficará clara quando<br />
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expor esse trabalho da forma seguinte. O exame da realidade mostrou que o<br />
objeto amado não mais existe, e então exige que toda libido seja retirada de<br />
suas conexões com esse objeto. Isso desperta uma compreensível oposição —<br />
observa-se geralmente que o ser humano não gosta de abandonar uma posição<br />
libidinal, mesmo quando um substituto já se anuncia. Essa oposição pode ser<br />
tão intensa que se produz um afastamento da realidade e um apego ao objeto<br />
mediante uma psicose de desejo alucinatória (ver o ensaio anterior). O normal<br />
é que vença o respeito à realidade. Mas a solicitação desta não pode ser atendida<br />
imediatamente. É cumprida aos poucos, com grande aplicação de tempo e<br />
energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto perdido se prolonga<br />
na psique. Cada uma das lembranças e expectativas em que a libido se<br />
achava ligada ao objeto é enfocada e superinvestida, e em cada uma sucede o<br />
desligamento da libido. Não é fácil fundamentar economicamente por que é<br />
tão dolorosa essa operação de compromisso em que o mandamento da realidade<br />
pouco a pouco se efetiva. É curioso que esse doloroso desprazer nos pareça