Freud

03.03.2017 Views

Em mais de uma ocasião veremos como é vantajoso para a nossa pesquisa comparar certos estados e fenômenos que podem ser apreendidos como modelos normais de afecções patológicas. Entre eles estão estados afetivos como o luto e o enamoramento, mas também o estado do sono e o fenômeno do sonhar. 1 Não costumamos pensar muito sobre o fato de que toda noite o ser humano tira os panos que cobriam sua pele, e talvez ainda as peças complementares de seus órgãos, na medida em que logrou compensar-lhes as deficiências com próteses como óculos, perucas, dentes etc. Podemos acrescentar que ao adormecer ele realiza um desnudamento análogo na psique, renuncia à maior parte de suas aquisições psíquicas e efetua assim uma extraordinária aproximação, dos dois lados, à situação que foi o ponto de partida de seu desenvolvimento vital. Somaticamente, dormir é uma reativação da estadia no ventre materno, preenchendo-se as condições de repouso, calor e ausência de estímulos; e muitas pessoas retomam, dormindo, a posição fetal. O estado psíquico de quem dorme se caracteriza pela retração quase total do mundo que o cerca e cessação de todo interesse por ele. Investigando os estados psiconeuróticos, somos levados a destacar em cada um deles as chamadas regressões temporais, o montante de retrocesso no desenvolvimento que lhes é peculiar. Distinguimos duas dessas regressões, aquela no desenvolvimento do Eu e aquela no da libido. Esta última chega, no estado do sono, até à instauração do narcisismo primitivo; a primeira chega ao estágio da satisfação alucinatória do desejo. Aquilo que sabemos das características psíquicas do estado do sono aprendemos com o estudo do sonho, naturalmente. É verdade que o sonho nos mostra o ser humano enquanto ele não dorme, mas não pode deixar de nos revelar ao mesmo tempo características do próprio sono. A partir da observação conhecemos algumas peculiaridades do sonho, que inicialmente não pudemos entender e que agora podemos enumerar sem dificuldade. Sabemos que o sonho é absolutamente egoísta, e que no protagonista de suas cenas devemos

identificar sempre o sonhador mesmo. Isso decorre, compreensivelmente, do narcisismo do estado do sono. Pois narcisismo e egoísmo coincidem; a palavra “narcisismo” apenas sublinha que o egoísmo é também um fenômeno libidinoso, ou, para dizê-lo de outra forma, o narcisismo pode ser designado como o complemento libidinoso do egoísmo. Igualmente compreensível se torna a faculdade “diagnóstica” do sonho, universalmente reconhecida e vista como enigmática, em que padecimentos físicos incipientes são notados antes e de modo mais nítido que na vigília, e todas as sensações corporais do instante são aumentadas enormemente. Esse aumento é de natureza hipocondríaca, tem por pressuposto que todo investimento psíquico foi retirado do mundo externo para o próprio Eu, e possibilita agora o reconhecimento precoce de mudanças corporais que na vida de vigília permaneceriam inadvertidas por algum tempo. Um sonho nos mostra que sucedeu algo que tendia a perturbar o sono, e nos permite vislumbrar o modo como essa perturbação pôde ser rechaçada. No final o dormente sonhou e pode continuar o seu sono; no lugar da exigência interna que pretendia ocupá-lo sobreveio uma experiência externa, cuja reivindicação foi resolvida. Portanto, um sonho é também uma projeção, uma exteriorização de um processo interior. Lembramos já haver encontrado a projeção, em outro lugar, entre os meios de defesa. Também o mecanismo da fobia histérica culminava no fato de, mediante tentativas de fuga, o indivíduo conseguir proteger-se de um perigo externo, que tomara o lugar de uma exigência instintual interna. Mas reservaremos uma discussão demorada da projeção para quando chegarmos à dissecção daquela doença em que tal mecanismo tem papel evidente. Mas de que modo se produz o caso em que a intenção de dormir é perturbada? A perturbação pode vir de uma excitação interna ou de um estímulo externo. Consideremos primeiro o caso menos transparente e mais interessante da perturbação a partir do interior. A experiência nos indica, como instigadores do sonho, vestígios diurnos, investimentos de pensamento que não obedeceram à retração geral de investimentos e conservaram, a despeito dela, 115/225

Em mais de uma ocasião veremos como é vantajoso para a nossa pesquisa<br />

comparar certos estados e fenômenos que podem ser apreendidos como modelos<br />

normais de afecções patológicas. Entre eles estão estados afetivos como o<br />

luto e o enamoramento, mas também o estado do sono e o fenômeno do sonhar.<br />

1 Não costumamos pensar muito sobre o fato de que toda noite o ser humano<br />

tira os panos que cobriam sua pele, e talvez ainda as peças complementares de<br />

seus órgãos, na medida em que logrou compensar-lhes as deficiências com<br />

próteses como óculos, perucas, dentes etc. Podemos acrescentar que ao adormecer<br />

ele realiza um desnudamento análogo na psique, renuncia à maior<br />

parte de suas aquisições psíquicas e efetua assim uma extraordinária aproximação,<br />

dos dois lados, à situação que foi o ponto de partida de seu desenvolvimento<br />

vital. Somaticamente, dormir é uma reativação da estadia no ventre<br />

materno, preenchendo-se as condições de repouso, calor e ausência de estímulos;<br />

e muitas pessoas retomam, dormindo, a posição fetal. O estado psíquico de<br />

quem dorme se caracteriza pela retração quase total do mundo que o cerca e<br />

cessação de todo interesse por ele.<br />

Investigando os estados psiconeuróticos, somos levados a destacar em cada<br />

um deles as chamadas regressões temporais, o montante de retrocesso no desenvolvimento<br />

que lhes é peculiar. Distinguimos duas dessas regressões, aquela<br />

no desenvolvimento do Eu e aquela no da libido. Esta última chega, no estado<br />

do sono, até à instauração do narcisismo primitivo; a primeira chega ao estágio<br />

da satisfação alucinatória do desejo.<br />

Aquilo que sabemos das características psíquicas do estado do sono aprendemos<br />

com o estudo do sonho, naturalmente. É verdade que o sonho nos<br />

mostra o ser humano enquanto ele não dorme, mas não pode deixar de nos<br />

revelar ao mesmo tempo características do próprio sono. A partir da observação<br />

conhecemos algumas peculiaridades do sonho, que inicialmente não pudemos<br />

entender e que agora podemos enumerar sem dificuldade. Sabemos que<br />

o sonho é absolutamente egoísta, e que no protagonista de suas cenas devemos

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