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OPINIÃO<br />
<strong>Fevereiro</strong> <strong>2017</strong><br />
19<br />
À GUERRA<br />
ANTÓNIO M. RIBEIRO<br />
Escritor, vocalista e fundador do mais<br />
antigo grupo de Rock português - UHF<br />
CRESCI A OUVIR QUE<br />
HAVIA HOMENS QUE<br />
BATIAM NAS MULHERES<br />
QUANDO O SEU CLUBE<br />
PERDIA, TRISTE SINA<br />
PORTUGUESA.<br />
Se o futebol<br />
serve para nos<br />
dividir, então não<br />
serve para nada.<br />
Desde ontem que o tecto cinzento baixo,<br />
húmido, e o nevoeiro remetem a paisagem<br />
para os dias sem Sol da Guerra dos Tronos,<br />
uma das poucas séries de TV que me entusiasma<br />
– já quase nada me agrada em televisão,<br />
algum futebol, um confronto político<br />
sério, algumas entrevistas, o Canal História,<br />
o National Geographic e pouco mais.<br />
O futebol.<br />
A imprensa acordou hoje com parangonas<br />
sobre a polémica – a guerra? – que envolve a<br />
classe dos homens que já vestiram de preto,<br />
o negro da autoridade que não se coloca em<br />
causa – juízes, padres, políticos e chefes de<br />
família assim se vestiam e vestem para serem<br />
levados a sério. Os seguranças da noite<br />
também.<br />
Os nossos homens do apito vivem dias difíceis<br />
– e façam-me o favor de não indicar<br />
histórias do passado que o passado assim<br />
medido é tão triste que esconde os falhanços<br />
dos jogadores em campo, os falhanços<br />
das contratações pífias e os falhanços dos<br />
dirigentes que não serviriam para dirigir<br />
uma tasca de bairro. Se os homens do apito,<br />
e suas famílias, vivem sob ameaças de<br />
morte e por isso vão ter de ser protegidos<br />
por dezenas de polícias, batemos no fundo.<br />
Questiono-me se o efeito pretendido por<br />
dirigentes, claques e adeptos exaltados vai<br />
ter sucesso – os homens do apito, sob um<br />
clima de guerra, vão acobardar-se no momento<br />
de uma decisão justa, vão falhar mais<br />
porque têm medo, vão fingir que têm olho<br />
de falcão quando deviam ter o olho multifacetado<br />
da mosca, ou das vinte câmaras de<br />
TV que mostram e repetem até ao vómito o<br />
lance que não é concludente para ninguém<br />
– acontece.<br />
Este país, sem Alepo, sem Bagdad, sem<br />
ameaça nuclear, sem terroristas-bomba, encontrou<br />
um motivo de guerra, o seu motivo<br />
de guerra, essa corja de homens que já<br />
foram de preto, com apito na boca e lata de<br />
spray para graffitis sem génio artístico na<br />
relva.<br />
Num momento em que dois filhos de um<br />
embaixador iraquiano fugiram do país, sob<br />
imunidade diplomática; no momento em<br />
que um adolescente é agredido e filmado<br />
na minha cidade – Playstation de carne e<br />
osso dá muito mais gozo e faz heróis para<br />
ingresso no gangue; num tempo em que<br />
os juros da nossa dívida pública a 10 anos<br />
passaram a barreira dos 4%; num momento<br />
em que os aumentos de pensões são absorvidos<br />
e os nossos velhos se calam porque a<br />
velhice é silêncio; num momento em que o<br />
barco navega alegremente à vista, um perigo<br />
latente se a carta de marear não assinalar<br />
todos os baixios; num momento assim encontrámos<br />
o inimigo dentro do rectângulo<br />
português, esse bando de homens que já<br />
foram de preto, culpados dos penalties falhados,<br />
dos livres directos que dariam pontos<br />
no râguebi, das substituições erradas, de<br />
em cada paragem de jogo, e logo na primeira<br />
parte, a malta vir dessedentar-se – como se<br />
sabe o frio dá muita sede –, enfim, culpados<br />
do estado da relva e das cadeiras vazias, de<br />
haver futebol todos os dias sem certeza de<br />
haver vitórias para os mais crentes (a fé no<br />
futebol é redonda), merecem esses homens<br />
engolir o apito e ser colocados a ferros numa<br />
galera à deriva – lançar a jangada de pedra,<br />
como Saramago anteviu, é muito mais difícil.<br />
Um dia, para acalmar aqueles que viram um<br />
sacrilégio em ter escrito uma canção que<br />
se tornou um hino para o clube que herdei<br />
do meu pai (no seu último ano de vida foi<br />
a prenda final que lhe dei), proclamei com a<br />
frontalidade que viverá comigo até aos últimos<br />
dias: Se o futebol serve para nos dividir,<br />
então não serve para nada.<br />
E desta máxima não abdico, mesmo se toca<br />
os da minha cor. A vida é muito mais que futebol,<br />
e se este nos estupidifica, então vale<br />
mesmo muito pouco.<br />
Cresci a ouvir que havia homens que batiam<br />
nas mulheres quando o seu clube perdia,<br />
triste sina portuguesa. O futebol é espectáculo,<br />
arte e competência, não é uma conta<br />
de somar em folha Excel. E revela à saciedade<br />
a mesquinhez de uns quantos que pelo<br />
voto se assumem dirigentes e instigam as<br />
hostes.<br />
Quando oiço alguém dizer que o seu clube<br />
vale mais que a família ou a vida, desisto,<br />
como há tempos ouvi um presidente dizer<br />
que dava a vida pelo seu clube. Eu não dou<br />
pelo meu. Porque não é isso o futebol, é cegueira<br />
e esta leva à guerra.<br />
Um disco: “The Fillmore East – Last 3 Nites”,<br />
uma caixa com quatro CD que reúne as actuações<br />
de Albert King, J. Geils Band, Edgar<br />
Winter, Beach Boys (um desastre), Allman<br />
Brothers Band, Country Joe McDonal e, sobretudo,<br />
Mountain, uma das minhas bandas<br />
de eleição. O clube nova-iorquino, irmão<br />
gémeo do Fillmore West de San Francisco,<br />
encerrou as portas em 1970. Durante três<br />
noites, os artistas citados prestaram homenagem<br />
ao mentor, Bill Graham, um visionário<br />
da música. A gravação foi retirada de uma<br />
emissão rádio e é um documento histórico.