<strong>LiteraLivre</strong> nº 1 TEXTO E TEXTURA: OU TESSITURA INFERNAL “SCHLEIDEN” NUNES PIMENTA CAMPO BELO, MG Era uma sexta-feira. Fazia três meses e eu podia ouvi-lo outra vez. Um som metálico, esse grunhido seco, a me lembrar uma gangorra enferrujada senão algum letreiro quebrado ao vento da madrugada. Não me atrevi, nunca me atrevi, a conferir os ponteiros do relógio; as horas, acaso fossem coincidentes, terminariam por me furtar o restante do sono. Esperava o barulho cessar, a insônia acabar, até que um dia decidi conferir. Inclusive ri da minha loucura; o caçador de pesadelos, o que vai atrás do barulho não sabido. Retirei o pijama, optei pelas botas, pela jaqueta e por um boné comprido. Não há uma pessoa, uma só pessoa, que afirme verdadeiramente jamais ter cogitado, por um segundo que seja em toda a sua vida, o advento do sobrenatural. Por mais realista ou cético, além do ateísmo que me conforta, e que me valha meu nascimento na décima casa zodiacal... qual é!: não há pelo quê se envergonhar; a incompreensão gera esse medo, apreensão, ou dúvida, que seja. Estágio em que reina o dissabor da vida, em que o temor de tudo e de todos acaba por gerar uma falta de pelo quê viver. Uma fraqueza psíquica ou espiritual tamanha que um susto ínfimo poderia nos fazer virar pó ou derreter. Também há uma sensação, um sonho, acho que todos têm, que visita meu sono vez e outra; demora voltar, mas volta, e quando volta simboliza a dúvida de perpetuá-la para compreendê-la ou de ligar a televisão para matá-la. Se for possível, que essa pessoa seja sortuda o suficiente para ter um outro alguém com quem conversar e se aliviar. Porque é inexplicável, é indescritível, é isto! É a sensação de que... dentre tudo, é a única sensação que não consegui e não consigo ainda descrever. Uma perda de energia tão abismal que poderia talvez ter sido sugada propositalmente. Controla-se a perda ou... eis o surto! O curioso é que, às vezes, o surto aparenta ser tão seduzente... tal qual aquele som de gangorra a arrepiar os dentes! O sobrenatural que parece flertar com a mente, com a gente. Estava lá. Minha rua em reforma, aos postes mal-iluminados, aos bueiros meio abertos, às calçadas barrentas pois chuviscara. Mas, daquele dia, não passaria. Pela fresta da janela, da persiana, vi o centro da cidade do alto do quarto andar. Escuridão e noite, medo e imprevisão, além daquele som. À confiança da luz de um celular é que desci pelo elevador. O porteiro dormia, ou outra coisa; apertei eu mesmo o botão do portão externo e saí. A brisa cortava. Pude ver minha própria expressão refletida nos vidros de um caminhão; esforçava-me para manter o mesmo semblante dos protagonistas de filmes de suspense ou de terror que, embora não saibam, não morrerão. Na esquina do quarteirão que dava para a praça avistei o parque público infantil. Havia alguma coisa, ou alguém, que se camuflava por entre as árvores e pelas barricadas de construção. Hesitei. Podia ser qualquer coisa, simplesmente. O som, razão da minha saída insana, já não existia; em algum momento parou, ou a minha apreensão o submeteu, mas definitivamente não sei em que instante deixei de ouvi-lo. Poderia estar ainda lá, zunindo apesar de não o 93
<strong>LiteraLivre</strong> nº 1 perceber, o que me fez refletir se aquele meu pesadelo não estivesse, afinal, acontecendo a todo tempo e eu que não estava percebendo; a vibração constante e torturantemente igual à da canção que o universo desde sempre toca; a textura macia e pesadíssima do ar e da tessitura dimensional que une o tempo e espaço... sem contar a gangorra de alguém. Quando um estampido atrás de mim gelou minhas costelas, corri sem olhar para trás até me ver a socar as grades de entrada do meu prédio, culpando-me por não ter acordado antes o porteiro que ainda estava a dormir. Ofegante, como se algo houvesse se quebrado em meu cérebro, a adrenalina a queimar minha nuca, à garganta seca, sentei em minha cama incapaz de me mover, impossibilitado de me deitar, até que senti uma mão a se deslizar pelo meu braço esquerdo – a maciez! –, a apertar seus dedos nos meus ombros – a tessitura! –, a aproximar seus lábios do meu rosto, dar-me um beijo, e, abraçando-me, sussurrar: “Me lembre de falar de novo com o vizinho de cima, amor. O barulho dessa privada está infernal!”. 94