Revista LiteraLivre
Revista Literária que une textos de autores do Brasil e do mundo com textos de todos os estilos escritos em Língua Portuguesa. Acesse nosso site e participe também: http://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/comoparticipar
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<strong>LiteraLivre</strong> nº 1<br />
Isto pode explicar por que eu não parei, mesmo hesitando um momento, quando, no<br />
meio de uma curva, na escuridão diante de mim, uma silhueta branca apareceu de<br />
repente. Uma grande sombra pálida, com as asas abertas: tinha de ser uma ave de rapina<br />
noturna na caça, talvez uma coruja de celeiro. Parou por um momento no ar, na luz<br />
amarela dos faróis, e desapareceu, em quanto meus olhos tentavam reconhecer a<br />
estrada.<br />
Um instante - ou um século - mais tarde, retorno a mim de um breve desmaio, a testa<br />
coberta de suor frio. Apito de morteiros. Eu estou sempre na estrada, na noite de<br />
tempestade, mas estou conduzindo um veículo blindado. De dois miradouros, colocados<br />
em penhascos com vista para o caminho, os raios de luz passam na montanha em busca<br />
dos rebeldes. Rajadas longas de metralhadora cortam a noite. Como sombras que<br />
desaparecem na escuridão, os fellagha não se veem. Meu carro passa no fogo cruzado<br />
de balas traçadoras e vejo diante de mim, claramente, uma máscara sorridente: uma<br />
espécie de harpia, empoleirada sobre o capô do meu caminhão. Como se fosse de<br />
fósforo, a larva brilha de luz própria e paira e mexe, aqui e ali.<br />
Sinto-me em perigo imediato, o fantasma bailarino me assusta mais que as rajadas e a<br />
tempestade. Tenho que me forçar a ficar firme, os olhos bem abertos na noite, tenho que<br />
tentar não distrair. Sei instintivamente que, se seguir com os olhos os movimentos da<br />
aparição, escaparia para fora da estrada, descendo a ravina íngreme. O vento traz<br />
rajadas violentas de chuva. O confronto parece ter acabado, mas alguns tiroteios isolados<br />
ainda ecoam na escuridão. Os olhos correm entre as sombras de tuias e carvalhos,<br />
procurando o brilho de uma arma ou o movimento das capas dos rebeldes. Em vez disso,<br />
vejo só redemoinhos e ramos, balançando nas rajadas do vento; mas no jogo de luz e<br />
sombras, às vezes, até mesmo transparece o sorriso atroz da visão. A máscara me<br />
convida para acompanhá-la. Gira e vem descansar em uma clareira, a cerca de cinquenta<br />
metros da estrada.<br />
Então, a face do sorriso satânico explode em mil fragmentos: estilhaços de luz,<br />
madeira, metal e terra húmida. Um morteiro atingiu uma barraca, um pequeno depósito de<br />
munições. Longos minutos de fogos de artifício. Eu paro, saio do veículo e me aproximo<br />
cautelosamente à clareira. Deitado em seu próprio sangue, um jovem soldado camuflado,<br />
com o rosto desfigurado pela explosão, engasga e morre em meus braços. Eu nunca vou<br />
saber se era um francês, um mercenário da Legião ou um rebelde. Nenhum sinal o<br />
identifica, e face da morte os jovens são todos iguais. Ao longo dos últimos suspiros, ele<br />
tira do bolso o retrato de uma menina e aperta convulsivamente na mão, como se<br />
estivesse tentando se agarrar a essa última esperança, a última memória. Deixou-o lá, na<br />
chuva, na escuridão e no silêncio que se tornaram absoluta. Na estrada, com os faróis<br />
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