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Revista LiteraLivre

Revista Literária que une textos de autores do Brasil e do mundo com textos de todos os estilos escritos em Língua Portuguesa. Acesse nosso site e participe também: http://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/comoparticipar

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<strong>LiteraLivre</strong> nº 1<br />

em seu quarto e fosse motivo de mais brigas (embora não houvesse necessidade de<br />

motivos para que elas se tornassem cada vez maiores e mais frequentes, naqueles<br />

últimos anos em que ele mais fumou na vida, antes que cada um dos três fosse viver<br />

sozinho). Henrique o ouviu, com a voz mais alta, todo alerta devido à interrupção do<br />

trabalho, dizer, ainda carinhoso, porém de um carinho, uma polidez à beira da<br />

condescendência: Mas é um fluxo, Henrique, e o som incomoda, muito tanto, é<br />

perturbador para a concentração de que eu preciso; ainda que seja o Caetano, aliás<br />

(anteouvia ele em sua mente o argumento seguinte do outro, sobre a suavidade das<br />

músicas que escolhia sempre que ele estava concentrado); é o único momento em que eu<br />

peço para não ser perturbado: quando estou escrevendo.<br />

Havia em sua voz uma nota levíssima, rarefeita, de algo maior que dor e<br />

aborrecimento, um prenúncio de desespero quase, que parecia vir mais de confessar<br />

assim em voz alta a escrita e a entrega que ela exige do que da discussão em torno do<br />

volume do som. Mas Henrique não ouviu.<br />

Reabriu a torneira, terminou de se enxaguar e passou a se barbear no vapor do<br />

banho, em silêncio. Isto exatamente tudo o que Marcos ouviu: o silêncio do outro, por trás<br />

da voz que cantava Um Canto de Afoxé para o Bloco, por baixo do barulho do chuveiro e<br />

do aquecedor e entremeando feito gás em expansão os ruídos débeis que vinham da rua,<br />

aquela rua tranquila de amendoeiras já velhas, que nem mesmo forças para farfalharem<br />

ao vento costumavam ter.<br />

Deixou o cigarro aceso no cinzeiro e foi até o quarto, sem olhar para dentro<br />

quando passou pelo banheiro, a porta aberta para deixar entrar a música que infelizmente<br />

não sabia, em sua natureza de onda, entrar toda ali e se dissolver no vapor d'água, feito<br />

se dissolve na areia a onda do mar. Aumentou o volume do som, porém menos do que<br />

tinha abaixado antes. O tampo da mesa de cabeceira não vibrava, nem de leve. Voltou ao<br />

escritório, fechou a porta.<br />

Mas Henrique só ouviu a voz do namorado, irritada porém rendendo-se,<br />

carinhosa, sempre carinhosa: Pelo menos se apressa, garoto. Garoto era de fato o termo<br />

mais carinhosamente rendido que o namorado usava para ele. Apressou-se.<br />

Marcos não ouviu o som inexistente daquele apressar-se, sem gavetas batendo<br />

ou cabides correndo pelo metal da barra do armário, a roupa já escolhida aguardando em<br />

cima da cama. Ouvia apenas a música, que agora até mais do que quando primeiro se<br />

incomodou com ela prendia-lhe a atenção, pela fresta embaixo da porta, pela fechadura,<br />

pelos recessos do cérebro que conhecia cada verso seguinte, cada entonação de cada<br />

canção, impedindo-o por completo de trabalhar.<br />

Quando pronto, som desligado, antes de sair do apartamento, Henrique abriu a<br />

porta do escritório e sorriu para Marcos, sentado distraído frente ao computador. Um novo<br />

cigarro ainda aceso, já quase ao fim, no cinzeiro em cima da bancada, porque não<br />

morava mais com os pais e podia vez ou outra deixar a fumaça se espalhar.<br />

Sempre fumava enquanto escrevia. Ou melhor, quando interrompia a escrita. Na<br />

maior parte das vezes o motivo era mesmo interrompê-la, simplesmente, livrar-se<br />

brevemente daquela entrega que tanto exigia e tanto o chamava, irresistivelmente.<br />

O cigarro largado no cinzeiro de vidro, ao lado de Marcos sentado bem ereto, indicava<br />

que suas ideias já se reorganizavam quase totalmente, a urdidura das palavras no limiar<br />

de explodir na próxima frase, a direção a ser seguida já refixada na mente.<br />

Henrique foi até ele com a desinibição e leveza dos inconsequentes, deu a volta à<br />

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