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Revista Dr Plinio 48

Março de 2002

Março de 2002

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PER CRUCEM,<br />

AD LUCEM


Nossa Senhora<br />

nos ensina a<br />

perseverança na fé, no<br />

senso católico e na<br />

virtude do apostolado<br />

destemido — “Fides<br />

intrepida” — mesmo<br />

quando parece tudo<br />

perdido. A Ressurreição<br />

virá logo. Felizes dos<br />

que souberem<br />

perseverar como Ela e<br />

com Ela. Deles serão as<br />

alegrias, em certa<br />

medida as glórias do<br />

dia da Ressurreição.<br />

(Da Via-Sacra escrita para o<br />

“Legionário”, abril de 1941)


Sumário<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> durante<br />

a cerimônia<br />

do Sábado<br />

Santo de 1991<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

14<br />

18<br />

22<br />

EDITORIAL<br />

Pela cruz, até a luz<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Oração a Nosso Senhor agonizante na Cruz<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

A cena do Horto se repete...<br />

DONA LUCILIA<br />

Suavidade e firmeza<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Ressurreição e felicidade eterna<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

O exemplo de Simão Cireneu<br />

O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

Quais os fins de uma universidade?<br />

Preços da assinatura anual<br />

Março de 2002<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

29<br />

32<br />

36<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Impressões sobre a Semana Santa<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Magnífica expressão do holocausto divino<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

“Por vossa bondade, salvai-me!”<br />

3


Pela cruz, até a luz<br />

Editorial<br />

Um Deus que, por amor às suas criaturas,<br />

encarna-Se e sofre os maiores tormentos,<br />

perpetrados contra Ele por essas<br />

mesmas criaturas, tanto na ordem física, como<br />

na ordem moral: abandonos, ingratidões, crueldades...<br />

e que, por fim, morre na cruz, derramando até a última<br />

gota de seu precioso sangue. Que mistério! Só<br />

um amor infinito, e portanto divino, é capaz de tal. É<br />

verdade. Mas Ele nos pede também nossa contribuição,<br />

por menor que seja: “Se alguém quiser vir após<br />

Mim, renegue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz<br />

e siga-Me” (Lc 9,23)<br />

Essas palavras podem parecer um mero convite<br />

e, portanto, como algo optativo. Contudo não se<br />

trata disto, pelo menos para quem procura a felicidade.<br />

Ou seja, para todos os homens, sem exceção...<br />

A idéia da cruz assusta muitos de nossos contemporâneos<br />

e, quiçá, um pouco, até nós mesmos. É a<br />

posição para a qual nos arrasta, ainda que subconscientemente,<br />

a atmosfera hedonista de hoje, que só<br />

valoriza a vida agradável, cheia de saúde, abundante<br />

de dinheiro e afundada nos prazeres. O mundo moderno<br />

foge da cruz, pensando que assim atinge a felicidade.<br />

Oh! engano! A felicidade foge dele. É só no<br />

Divino Mestre e na sua cruz que encontraremos a<br />

verdadeira alegria.<br />

“Desde muito jovem”, contava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> certa vez,<br />

“comecei a compreender o valor do sofrimento, a entender<br />

que a influência da Igreja só durava nas almas<br />

na medida em que sabiam sofrer. Elas estão para o<br />

sofrimento mais ou menos como o metal que deve ser<br />

separado da ganga está para o fogo: sofrem, mas com<br />

resignação, com dignidade. Isso lhes confere uma<br />

tranqüilidade, uma harmonia, uma força que não há<br />

prazer que pague. Oh! o bem-estar da dor cristã!”<br />

“Eu, às vezes, me punha diante de crucifixos ou<br />

imagens do Senhor Bom Jesus e, olhando-os, pensava:<br />

É misterioso, Ele está coberto de dores, mas eu percebo<br />

n’Ele um vigor, uma coerência, uma resignação<br />

que me leva a dizer: Nunca alguém foi tão extraordinário<br />

como o Homem-Deus no auge de sua tristeza! É<br />

preciso, portanto, ter a coragem de penetrar no mar<br />

de dores e agüentá-las. Quando isto é feito por amor<br />

de Deus, há uma qualquer doçura que entra em nós,<br />

que nos habita e é única, e que faz parte do bem-estar<br />

de ser filho da Igreja” — concluía <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

São grandes as dificuldades e duros os caminhos,<br />

no ambiente de família, na vida profissional, no relacionamento<br />

com os nossos semelhantes, na sobrevivência<br />

numa sociedade tão abalada por toda sorte<br />

de males e ameaças. Mas vida sem sacrifício não existe.<br />

O que importa é nunca se deixar abater pelo desânimo,<br />

pela angústia, menos ainda pelo desespero. Por<br />

mais cruéis que sejam as decepções, os temores e as<br />

incompreensões, espera-nos a luz.<br />

E não só a luz do Céu, mas também a da terra.<br />

Pois um católico que pratica seriamente a religião<br />

sabe que esta se transforma em dias de alegria neste<br />

mundo... antes das alegrias celestes. Ele compreende<br />

que, com o auxílio da graça divina obtida por<br />

Nossa Senhora, superará os sofrimentos, e as cruzes<br />

no seu caminho o ajudarão a crescer interiormente.<br />

Uma palavra do Papa encerra com letra de ouro<br />

essas reflexões: “A cruz, símbolo da fé, é também<br />

símbolo do sofrimento que conduz à glória, da paixão<br />

que conduz à Ressurreição. ‘Per crucem ad lucem’,<br />

pela cruz, chega-se à luz: este provérbio, profundamente<br />

evangélico, nos diz que, vivida em seu verdadeiro<br />

significado, a cruz do cristão é sempre uma<br />

cruz pascal” (João Paulo II, Hom. Rio de Janeiro, 30/6/1980).<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

ORAÇÃO A NOSSO SENHOR<br />

AGONIZANTE NA CRUZ<br />

Era 10 de março 1988, quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, atendendo<br />

ao pedido de um jovem que terminara de fazer um<br />

retiro, ditou esta esplêndida oração, plena de amor a Cristo<br />

padecente, humildade e filial confiança.<br />

Ó Senhor Bom Jesus!<br />

Do alto da Cruz deitais sobre mim o vosso<br />

olhar de misericórdia, parecendo desejar<br />

que, de meu lado, também eu levante os<br />

meus para Vos considerar!<br />

Sim, para Vos considerar em vossa infinita perfeição,<br />

e no insondável abismo das dores que padeceis... por<br />

mim. Pois bem sei que todas essas dores, Senhor, Vós as<br />

sofreríeis só por mim ou por outro homem qualquer, se<br />

este fosse o único a depender de tais padecimentos para<br />

se salvar.<br />

Vós me convidais a Vos fitar, Senhor! Mas Vós mesmo<br />

sabeis que não ouso fazê-lo. Não ouso pôr no vosso<br />

divino olhar os meus olhos pecadores, pois me é patente<br />

que não sou senão um vermezinho e miserável pecador,<br />

como disse vosso grande e glorioso servidor São Luís<br />

Maria Grignion de Montfort.<br />

Entretanto, sei também, Senhor, que num extremo<br />

de misericórdia destes-me por Mãe vossa própria Mãe.<br />

É ela a advogada que instituístes para pleitear minhas<br />

atenuantes ante o vosso tribunal, e para me obter a torrente<br />

de vossas misericórdias.<br />

Assim, rogo-Vos, Senhor, por Maria Santíssima, Medianeira<br />

de todas as graças, favorável acolhida para as<br />

súplicas que passo a Vos apresentar.<br />

Conheço, Senhor, quanto os horizontes de minha alma<br />

são de “teto baixo”. Isto é, quanto as cogitações para<br />

as quais me volto são meramente práticas, sumidas<br />

no concreto, de pouca elevação, todas restringidas ao<br />

âmbito natural e à vida terrena, cujos aspectos são precisamente<br />

os que mais me atraem. E procuro não olhar<br />

de frente o que existe de maravilhoso, de grandioso, de<br />

admirável, em suma, as criaturas terrenas que melhor<br />

refletem vossa supremacia e vossa glória.<br />

Imploro-Vos, ó Bom Jesus, que limpeis de minha alma<br />

este, como tantos outros defeitos meus, tão indignos<br />

da condição para a qual me chamastes, a rogos de vossa<br />

Santíssima Mãe; tão indignos da condição<br />

de quem deve viver afastado de todas<br />

as coisas terrenas, cogitando destas<br />

apenas na medida que estejam ordenadas<br />

ao Céu, a fim de preparar neste mundo as<br />

condições para que os homens melhor se<br />

salvem e Vos dêem a maior glória —<br />

nunc et semper et per omnia sæcula sæculorum.<br />

Fazei-me amar, reta e santamente,<br />

tudo quanto é grande, maravilhoso, régio<br />

e elevado. Dai-me a graça de ser totalmente<br />

inapetente das ninharias que<br />

até agora me atraem e de ser totalmente<br />

apetente das grandezas que me deixam<br />

enfastiado. Pois o fastio dessas grandezas,<br />

Senhor, acaba redundando em fastio de<br />

Vós. Quem é frio e resistente aos apelos<br />

que fazeis ao amor dos homens, através do<br />

que é santo e maravilhoso na terra, o é também<br />

em relação à vossa obra-prima, que é a<br />

graça. E o é, outrossim, em relação a todos<br />

os infinitos horizontes da fé, que devemos<br />

contemplar.<br />

Não Vos peço apenas, Senhor, que esse<br />

defeito se atenue em mim, nem Vos suplico somente<br />

que dele me cureis. Imploro-Vos mais,<br />

muitíssimo mais: que eleveis minha alma ao amor<br />

de tudo quanto é grande na ordem sobrenatural e<br />

na ordem natural, e que eu a tudo ame com um<br />

amor que esteja no extremo oposto da indiferença<br />

que até agora me tem dominado.<br />

Pela linfa preciosa que correu de vosso lado, pela<br />

Igreja que saiu de vosso flanco, pelo sofrimento de vossa<br />

Mãe aos pés da Cruz, peço-Vos, Senhor: perdoai-me<br />

todas as minhas infidelidades e fazei de mim o contrário<br />

do que sou. Amém.<br />

5


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

“Oração no Horto<br />

das Oliveiras”, afresco de<br />

Fra Angélico<br />

A CENA DO HORTO<br />

SE REPETE...


Sempre causou profunda impressão em <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> o paralelo<br />

entre o odioso tratamento recebido por nosso Redentor, durante<br />

a Paixão, e as ofensas e ingratidões de que é alvo a<br />

Igreja Católica. Reproduzimos aqui algumas reflexões a esse respeito,<br />

escritas em 1947.<br />

Averdadeira piedade deve impregnar toda a alma<br />

humana, e, portanto, também deve despertar e<br />

estimular a emoção. Mas a piedade não é só<br />

emoção, e nem mesmo é principalmente emoção. A piedade<br />

brota da inteligência, seriamente formada por um estudo<br />

catequético cuidadoso, por um conhecimento exato<br />

de nossa Fé, e, portanto, das verdades que devem reger<br />

nossa vida interior. A piedade reside ainda na vontade.<br />

Devemos querer seriamente o bem que conhecemos. Não<br />

nos basta, por exemplo, saber que Deus é perfeito. Precisamos<br />

amar a perfeição de Deus, e, portanto, devemos desejar<br />

para nós algo dessa perfeição: é o anseio para a santidade.<br />

“Desejar” não significa apenas sentir veleidades<br />

vagas e estéreis. Só queremos seriamente algo, quando estamos<br />

dispostos a todos os sacrifícios para conseguir o que<br />

queremos. Assim, só queremos seriamente nossa santificação<br />

e o amor de Deus, quando estamos dispostos a todos<br />

os sacrifícios para alcançar esta meta suprema. Sem esta<br />

disposição, todo o “querer” não é senão ilusão e mentira.<br />

Podemos ter a maior ternura na contemplação das verdades<br />

e mistérios da Religião: se daí não tirarmos resoluções<br />

sérias, eficazes, de nada valerá nossa piedade.<br />

É o que se deve dizer especialmente nos dias da Paixão<br />

de Nosso Senhor. Não nos adianta apenas o acompanhar<br />

com ternura os vários episódios da Paixão: isto seria excelente,<br />

não porém suficiente. Devemos dar a Nosso Senhor,<br />

nestes dias, provas sinceras de nossa devoção e amor.<br />

Estas provas, nós as damos pelo propósito de emendar<br />

nossa vida, e de lutar com todas as forças pela Santa Igreja<br />

Católica. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo. Quando<br />

Nosso Senhor interpelou São Paulo, no caminho da Damasco,<br />

perguntou-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”<br />

Saulo perseguia a Igreja. Nosso Senhor lhe dizia<br />

que era a Ele mesmo que Saulo perseguia. Se perseguir<br />

a Igreja é perseguir a Jesus Cristo, e se hoje também a<br />

Igreja é perseguida, hoje Cristo é perseguido. A Paixão de<br />

Cristo se repete de algum modo também em nossos dias.<br />

Como se persegue a Igreja? Atentando contra os seus<br />

direitos ou trabalhando para dela afastar as almas. Todo<br />

ato pelo qual se afasta da Igreja uma alma, é um ato de<br />

perseguição a Cristo. Toda alma é, na Igreja, um membro<br />

vivo. Arrancar uma alma à Igreja é arrancar um membro<br />

ao Corpo Místico de Cristo. Arrancar uma alma à Igreja é<br />

fazer a Nosso Senhor, em certo sentido, o mesmo que a<br />

nós nos fariam se nos arrancassem a menina dos olhos.<br />

Se queremos, pois, condoer-nos com a Paixão de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, meditemos sobre o que Ele sofreu nas<br />

mãos de seus algozes, mas não nos esqueçamos de tudo<br />

quanto ainda hoje se faz para ferir o Divino Coração.<br />

E isto tanto mais quanto Nosso Senhor, durante sua Paixão,<br />

previu tudo quanto se passaria depois. Previu, pois,<br />

todos os pecados de todos os tempos, e também os pecados<br />

de nossos dias. Ele previu os nossos pecados, e por eles<br />

sofreu antecipadamente. Estivemos presentes no Horto<br />

como algozes, e como algozes seguimos passo a passo a<br />

Paixão até o alto do Gólgota.<br />

Arrependamo-nos, pois, e choremos.<br />

A Igreja, sofredora, perseguida, vilipendiada, aí está a<br />

nossos olhos indiferentes ou cruéis. Ela está diante de nós<br />

como Cristo diante de Verônica. Condoamo-nos com os padecimentos<br />

dela. Com nosso carinho, consolemos a Santa<br />

Igreja de tudo quanto ela sofre. Podemos estar certos<br />

de que, com isto, estaremos dando ao próprio Cristo uma<br />

consolação idêntica à que Lhe deu Verônica.<br />

Indiferença para com Deus<br />

Comecemos pela Fé. Certas verdades referentes a Deus<br />

e a nosso destino eterno, podemos conhecê-las pela simples<br />

razão. Outras, conhecemo-las porque Deus no-las ensinou.<br />

Em sua infinita bondade, Deus se revelou aos homens<br />

no Antigo e Novo Testamento, ensinando-nos não<br />

apenas o que nossa razão não poderia desvendar, mas ainda<br />

muitas verdades que poderíamos conhecer racionalmente,<br />

mas que por culpa própria a humanidade já não conhecia<br />

de fato. A virtude pela qual cremos na Revelação é a<br />

Fé. Ninguém pode praticar um ato de Fé, sem o auxílio<br />

sobrenatural da graça de Deus. Essa graça, Deus a dá a<br />

todas as criaturas e, em abundância torrencial, aos membros<br />

da Igreja Católica. Essa graça é a condição da salvação<br />

deles. Ninguém chegará à eterna bem-aventurança,<br />

se rejeitar a Fé. Pela Fé, o Espírito Santo habita em nossos<br />

corações. Rejeitar a Fé é rejeitar o Espírito Santo, é<br />

expulsar de sua alma a Jesus Cristo.<br />

7


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Vejamos, agora, em torno de nós, quantos católicos rejeitam<br />

a Fé. Foram batizados, mas no curso do tempo perderam<br />

a Fé. Perderam-na por culpa própria, porque ninguém<br />

perde a Fé sem culpa, e culpa mortal. Ei-los que, indiferentes<br />

ou hostis, pensam, sentem e vivem como pagãos.<br />

São nossos parentes, nossos próximos, quiçá nossos amigos!<br />

Sua desgraça é imensa. Indelével, está neles o sinal<br />

do Batismo. Estão marcados para o Céu, e caminham para<br />

o inferno. Em sua alma redimida, a aspersão do Sangue<br />

de Cristo está marcada. Ninguém a apagará. É de certo<br />

modo o próprio Sangue de Cristo que eles profanam quando<br />

nesta alma resgatada acolhem princípios, máximas,<br />

normas contrárias à doutrina da Igreja. O católico apóstata<br />

tem qualquer coisa de análogo ao sacerdote apóstata.<br />

Arrasta consigo os restos de sua grandeza, profana-os,<br />

degrada-os e se degrada com eles. Mas não os perde.<br />

E nós? Importamo-nos com isto? Sofremos com isto?<br />

Rezamos para que estas almas se convertam? Fazemos<br />

penitências? Fazemos apostolado? Onde nosso conselho?<br />

Onde nossa argumentação? Onde nossa caridade?<br />

Onde nossa altiva e enérgica defesa das verdades que eles<br />

negam ou injuriam?<br />

O Sagrado Coração sangra com isto. Sangra pela apostasia<br />

deles, e por nossa indiferença. Indiferença duplamente<br />

censurável, porque é indiferença para com nosso<br />

próximo e sobretudo indiferença para com Deus.<br />

Coincidência ou conspiração?<br />

Quantas almas, no mundo inteiro, vão perdendo a Fé?<br />

Pensemos no incalculável número de jornais ímpios, rádio-emissões<br />

ímpias, de que diariamente se enche o orbe.<br />

Pensemos nos inúmeros obreiros de Satanás que, nas cátedras,<br />

no recesso da família, nos lugares de reunião ou diversão,<br />

propagam idéias ímpias. De todo este esforço,<br />

quem há de admitir que nada resulte? Os efeitos de tudo<br />

isto estão diante de nós. Diariamente, as instituições, os costumes,<br />

a arte se vão descristianizando, indício insofismável<br />

de que o próprio mundo se vai perdendo para Deus.<br />

Não haverá em tudo isto uma grande conjuração? Tantos<br />

esforços, harmônicos entre si, uniformes em seus métodos,<br />

em seus objetivos, em seu desenvolvimento, serão<br />

mera obra de coincidências? Onde e quando, intuitos desarticulados<br />

produziram articuladamente a mais formidável<br />

ofensiva ideológica que a história conhece, a mais<br />

completa, a mais ordenada, a mais extensa, a mais engenhosa,<br />

a mais uniforme em sua essência, em seus fins, em<br />

seu evoluir?<br />

Não pensamos nisto. Nem percebemos isto. Dormimos<br />

na modorra de nossa vida de todos os dias. Por que não<br />

somos mais vigilantes? A Igreja sofre todos os tormentos,<br />

mas está só. Longe, bem longe dela, cochilamos. É a<br />

cena do Horto que se repete. (...)<br />

Incontável falange de almas tíbias<br />

E entre nós? Esta Fé que tantos combatem, perseguem,<br />

atraiçoam, graças a Deus nós a possuímos. Que uso faze-


Por nossos pecados,<br />

estivemos presentes no<br />

Horto como algozes;<br />

por nossa tibieza<br />

diante das provações<br />

da Santa Igreja,<br />

cochilamos no Horto<br />

com os apóstolos<br />

(Na página anterior, “A prisão de<br />

Jesus”, pelo Beato Angélico)<br />

mos dela? Amamo-la? Compreendemos que nossa maior<br />

ventura na vida consiste em sermos membros da Santa<br />

Igreja, que nossa maior glória é o título de cristão?<br />

Em caso afirmativo — e quão raros são os que poderiam<br />

em sã consciência responder afirmativamente — estamos<br />

dispostos a todos os sacrifícios para conservar a Fé?<br />

Não digamos num assomo de romantismo, que sim. Sejamos<br />

positivos. Vejamos friamente os fatos. Não está junto<br />

de nós o algoz que nos vai colocar na alternativa da cruz<br />

ou da apostasia. Mas todos os dias, a conservação da Fé<br />

exige de nós sacrifícios. Fazemo-los? Será bem exato que,<br />

para conservar a Fé, evitamos tudo que a pode pôr em risco?<br />

Evitamos as leituras que a podem ofender? Evitamos<br />

as companhias nas quais ela está exposta a risco? Procuramos<br />

os ambientes nos quais a Fé floresce e cria raízes?<br />

Ou, em troca de prazeres mundanos e passageiros, vivemos<br />

em ambientes em que a Fé se estiola e ameaça cair<br />

em ruínas?<br />

Todo homem, pelo próprio fato do instinto de sociabilidade,<br />

tende a aceitar as opiniões dos outros. Em geral,<br />

hoje em dia, as opiniões dominantes são anticristãs. Pensa-se<br />

contrariamente à Igreja em matéria de filosofia, de<br />

sociologia, de história, de ciências positivas, de arte, de tudo<br />

enfim. Os nossos amigos, seguem a corrente. Temos nós<br />

a coragem de divergir? Resguardamos nosso espírito de<br />

qualquer infiltração de idéias erradas? Pensamos com a<br />

Igreja em tudo e por tudo? Ou contentamo-nos negligentemente<br />

em ir vivendo, aceitando tudo quanto o espírito<br />

do século nos inculca, e simplesmente porque ele no-lo<br />

inculca?<br />

É possível que não tenhamos enxotado Nosso Senhor<br />

de nossa alma. Mas como tratamos este Divino Hóspede?<br />

É Ele o objeto de todas as atenções, o centro de nossa<br />

vida intelectual, moral e afetiva? É Ele o Rei? Ou, simplesmente,<br />

há para Ele um pequeno espaço onde se O<br />

tolera, como hóspede secundário, desinteressante, algum<br />

tanto importuno?<br />

Quando o Divino Mestre gemeu, chorou, suou sangue<br />

durante a Paixão, não O atormentavam apenas as dores<br />

físicas, nem sequer os sofrimentos ocasionados pelo ódio<br />

dos que no momento O perseguiam. Atormentava-O ainda<br />

tudo quanto contra Ele e a Igreja faríamos nos séculos<br />

vindouros. Ele chorou pelo ódio de todos os maus, de todos<br />

os Arios, Nestórios, Luteros mas chorou também porque<br />

via diante de si o cortejo interminável das almas tíbias,<br />

das almas indiferentes que, sem O perseguir, não O<br />

amavam como deviam.<br />

É a falange incontável dos que passaram a vida sem<br />

ódio e sem amor, os quais, segundo Dante, ficavam de fora<br />

do inferno porque nem no inferno havia para eles lugar<br />

adequado.<br />

Estamos nós neste cortejo?<br />

Eis a grande pergunta a que, com a graça de Deus, devemos<br />

dar resposta nos dias de recolhimento, de piedade<br />

e de expiação em que vamos entrar agora.<br />

(Transcrito do Legionário, nº 764, de 30/3/1947.<br />

Título e subtítulos nossos.)<br />

9


DONA LUCILIA<br />

Dª Lucilia<br />

no início da<br />

década de 60<br />

Suavidade<br />

e firmeza


N<br />

esta seção tem sido fácil notar a grande solicitude de Dª Lucilia e seu<br />

desejo de fazer o bem. Por estas duas qualidades, sua vida foi repleta<br />

de episódios como os que veremos hoje, nos quais sua bondade incide<br />

até sobre uma ninhada de gatos.<br />

Em sua casa da rua Itacolomy, a sala de jantar dava<br />

para uma entrada de automóvel que conduzia<br />

aos fundos da residência. Separando-a do terreno<br />

vizinho havia um muro, não muito alto, junto ao qual<br />

tinham sido plantadas umas heras, para dar um aspecto<br />

mais agradável à área. Um dia, durante o almoço, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

notou na parte de cima do muro um movimento estranho<br />

debaixo da folhagem. Surpreso, disse a Dª Lucilia:<br />

— Mamãe, veja que coisa esquisita aquele movimento<br />

lá.<br />

Ela não disse nem sim, nem não, e esquivou-se à resposta.<br />

Mas seu filho queria saber o que era e voltou a insistir.<br />

Dª Lucilia apenas disse:<br />

— É, eu já tinha notado alguma coisa.<br />

— Mas eu estou notando só agora — respondeu ele,<br />

mais categórico.<br />

Dirigindo-se à empregada que servia à mesa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

disse:<br />

— Ana, vá olhar o que há naquele muro.<br />

Dª Lucilia ficou silenciosa. A criada riu e disse com<br />

seu sotaque português:<br />

— “Seu doutôire”, o senhor não percebeu o que é? Dª<br />

Lucilia está a esconder-lhe uma coisa.<br />

— O que Dª Lucilia está escondendo de mim?<br />

— É uma gata que tem uns filhotinhos ali.<br />

A idéia de um muro cheio de gatinhos andando de um<br />

lado para o outro não foi das mais sorridentes para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Daí a pouco os gatos estariam crescidos e o quintal<br />

ficaria superpovoado desses simpáticos animais. Quando<br />

menos se esperasse, começariam a esgueirar-se para dentro<br />

de casa. Se fosse um ou dois ainda ia, mas uma ninhada<br />

inteira...<br />

Imediatamente disse ele à criada, com decisão:<br />

— Pegue uma vassoura, ou uma mangueira de regar o<br />

jardim, e ponha a gata com todos os gatinhos fora do terreno<br />

da casa.<br />

Dª Lucilia, com pena da gata, voltou-se para o filho e<br />

ligeiramente aflita lhe disse:<br />

— Ah! coitada! Não faça isso. Você não vê que ela<br />

pode perder um dos filhotes e nunca mais o encontrar?<br />

Era o maternal coração de Dª Lucilia sentindo-se como<br />

que arranhado perante tal perspectiva. Porém seu filho<br />

tentou argumentar:<br />

— Mamãe, ela não tem raciocínio. Ela perde um filhote<br />

como um de nós perde um fio de cabelo.<br />

Mas Dª Lucilia queria, mais do que fazer um<br />

silogismo, tocar-lhe no sentimento:<br />

— Coitada! Não faça isso.


DONA LUCILIA<br />

“Coitada” era dito com tanta bondade e tanta pena,<br />

que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não resistiu e disse à criada:<br />

— Ana, cuide dessa gata e leve todo dia leite para ela.<br />

Aquela gata, como ser irracional, não podia ter conhecimento<br />

da própria existência. Mas, uma vez que sobre ela<br />

tinha baixado a compaixão de Dª Lucilia... em vez de um<br />

esguicho, haveria leite para a gataria toda.<br />

Suaves repreensões<br />

Sempre pronto a perdoar e acolher o pecador arrependido,<br />

foi o Sagrado Coração de Jesus o modelo perfeito<br />

com o qual Dª Lucilia sempre procurou se identificar.<br />

Assim, em suas atitudes, palavras e gestos iam transparecendo<br />

de modo crescente, com o correr dos anos, a extrema<br />

suavidade e doçura de trato que tanto refulgiram<br />

na figura do Divino Mestre.<br />

Já seu filho, exposto a rudes pelejas apostólicas, além<br />

da infinita Bondade, adorava de maneira particular a<br />

Nosso Senhor enquanto intransigente com o mal que se<br />

mostrava empedernido. Essa dualidade de aspectos do<br />

Divino Modelo fazia desprender do convívio mãe-filho<br />

uma melodia de notas opostas, mas sempre harmônicas.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era tendente a manifestar categoricamente as<br />

próprias opiniões, até nas menores coisas, e Dª Lucilia<br />

procurava refrear um pouco este expansivo modo de ser,<br />

às vezes por demais contundente segundo os padrões<br />

dela.<br />

Certo dia a empregada não acertou na compra da manteiga.<br />

Após ter untado abundantemente uma fatia de pão,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, ao prová-la, logo sentiu um gosto desagradável,<br />

indicativo de que o alimento não estava fresco. Dª Lucilia<br />

percebeu de imediato sua repulsa.<br />

— Meu bem — disse ele — essa manteiga que a empregada<br />

comprou não serve nem para engraxar os trilhos dos<br />

bondes!<br />

Dª Lucilia ficou com a fisionomia um tanto penalizada.<br />

Mesmo em se tratando de um alimento de qualidade<br />

inferior, não era bondoso um comentário tão forte, pelos<br />

seus critérios. Mas, como admoestar um filho já homem<br />

feito, professor universitário? Era uma situação para a<br />

qual só ela podia encontrar uma boa saída.<br />

Estando sentada à mesa, ao lado dele, tocou-lhe suave<br />

e repetidamente com a ponta dos dedos no dorso da mão,<br />

como que a lhe dizer: “Meu filho... Meu filho!...”<br />

E sempre que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dizia o que pensava a respeito<br />

deste ou daquele, Dª Lucilia, quando não tinha mais<br />

como defender o atingido — por ser indefensável — apelava<br />

para este último e mudo recurso: discretos toques<br />

no dorso da mão dele. Era bem provável que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

tivesse vontade de acrescentar outro comentário, para<br />

que ela lhe proporcionasse mais uma suave repreensão...<br />

Autoridade e senso de justiça<br />

A bondade de Dª Lucilia não tinha limites para com o<br />

faltoso arrependido. Entretanto, se discernisse que o melhor<br />

remédio para erradicar o mal era impor sua autoridade,<br />

ainda que esta pudesse ser desagradável, não hesitava<br />

em exercê-la. As características dela nos fazem lembrar<br />

o belo ensinamento de São Boaventura: Se eu te amo<br />

e te dou dignidade ou liberdade, e tu hás de usar mal dela,<br />

se eu ta der, não seria benigno, mas sim maligno.<br />

Às vezes tornava-se indispensável tomar atitudes enérgicas,<br />

sobretudo no tocante ao governo da casa. Por exemplo,<br />

em relação às criadas. Para Dª Lucilia, em primeiro<br />

plano, estava o cumprimento do dever, e ela sabia fazer<br />

valer sua posição com a naturalidade de quem exerce um<br />

senhorio, sem ter necessidade de humilhar ou de pisar<br />

seus subordinados.<br />

Quando se tratava de censurar uma empregada por algum<br />

serviço mal feito, ou grave omissão, fazia-o sempre<br />

com suas maneiras brandas e nunca diante de outros, para<br />

que a admoestação não ferisse a sensibilidade da faltosa.<br />

Um bom conselho, uma palavra de estímulo, davam<br />

por encerrado o assunto.<br />

12


Porém as circunstâncias exigiam, noutras ocasiões,<br />

medidas mais drásticas. Difíceis situações em que a bondade<br />

parece entrar em conflito com o senso de justiça.<br />

Nada disso perturbava sua paz interior. Após refletir,<br />

tomava serenamente a decisão: era imperioso despedir a<br />

empregada. Então fazia as contas e verificava quanto lhe<br />

devia pelos dias de trabalho. Escrevia o total, a lápis, numa<br />

notinha e prendia o dinheiro à tira de papel com um<br />

alfinete ornamental. Depois mandava chamar a empregada<br />

e, de modo amável, lhe dizia:<br />

— Fulana, é melhor você sair...<br />

Explicava-lhe então com toda a calma os motivos<br />

que a levavam a demiti-la. Era um pequeno<br />

julgamento. Porém, nunca faltava uma<br />

palavra de consolo, um gesto de caridade,<br />

que movessem a culpada ao arrependimento<br />

e lhe deixassem uma profunda saudade na<br />

alma.<br />

Concluído o acerto, dizia com igual benevolência:<br />

— Vamos nos despedir agora. Eu desejo<br />

que você seja feliz, e que Deus a acompanhe.<br />

A criada partia para continuar sua existência por outros<br />

caminhos. Nesse dia, certamente, Dª Lucilia haveria de fazer<br />

por ela especiais orações, para que o Sagrado Coração<br />

de Jesus a amparasse nas incertezas da vida...<br />

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”,<br />

de João S. Clá Dias)<br />

E<br />

m sua infinita<br />

bondade para com<br />

o pecador arrependido,<br />

foi o Sagrado Coração<br />

de Jesus o modelo<br />

perfeito no qual se<br />

espelhou Dª Lucilia,<br />

harmonizando ela sua<br />

extrema suavidade com<br />

os modos categóricos<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

(na página anterior,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discursa num<br />

evento católico)


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

RESSURREIÇÃO<br />

E FELICIDADE ETERNA<br />

O ra, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como<br />

dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos?”<br />

(I Cor 15, 12-13). A comemoração da ressurreição de<br />

Nosso Senhor, diz <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, é um prenúncio de nossa própria<br />

ressurreição.<br />

“ A<br />

Antes de ser ensinada e difundida<br />

pela Igreja Católica, a<br />

crença na ressurreição dos<br />

corpos era motivo de grande perplexidade<br />

para as religiões e os filósofos<br />

pagãos do mundo antigo. Sem acreditar<br />

na imortalidade da alma humana,<br />

eles estavam convencidos de que, com<br />

a morte, uma pessoa ou desaparecia<br />

completamente, ou algo dela se reincorporaria<br />

— perdendo a identidade<br />

consigo mesma — na natureza ou num<br />

deus impessoal existente alhures.<br />

Surpreendente doutrina<br />

que dividiu o mundo antigo<br />

Com o advento do Cristianismo e<br />

a pregação dos Apóstolos, a doutrina<br />

da ressurreição dos mortos causou<br />

imensa atração. Com efeito, a idéia de<br />

que o homem é constituído por uma<br />

alma espiritual e um corpo material,<br />

e a noção de que um Deus onipotente<br />

ressuscitará a todos nós por toda a<br />

eternidade, como ressuscitou a Si mesmo,<br />

reunindo novamente em cada pessoa<br />

os dois elementos que a compõem<br />

— era de molde a surpreender<br />

e a maravilhar aqueles povos da antiguidade.<br />

Porém, diante do Evangelho, ou seja,<br />

da boa notícia de que o Verbo de<br />

Deus se tinha feito carne, nos havia<br />

remido, ressuscitara e abrira o caminho<br />

da ressurreição para todos nós,<br />

os espíritos se dividiram. Uns se mostravam<br />

antipáticos ao novo ensinamento,<br />

preferindo suas velhas convicções<br />

de que a existência do homem<br />

“A ressurreição dos mortos”, detalhe da fachada de Notre-Dame de Paris; na página seguinte:<br />

ressurrecto, Jesus aparece às santas mulheres (retábulo da mesma Catedral parisiense)<br />

14


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

termina com sua morte e, portanto,<br />

tratava-se de prolongar e aproveitar<br />

ao máximo a vida terrena.<br />

Outros, mais elevados, mais alígeros,<br />

pensavam: “Depois da série de<br />

tormentos que suportamos neste mundo,<br />

eu julgava que me afundaria no<br />

negrume da sepultura, desfazendome<br />

no nada. E agora vem um homem<br />

chamado Pedro e me diz que ele tem<br />

as chaves do reino dos Céus! E me<br />

ensina que haverá essa ressurreição<br />

gloriosa, que um dia, cheio de luz, eu<br />

me levantarei da sepultura para uma<br />

felicidade da qual as coisas terrenas<br />

nem sequer dão uma idéia!? Que<br />

maravilha!”<br />

Compreende-se que a nova doutrina<br />

causasse essa divisão em duas<br />

famílias de almas.<br />

Aconteceu, então, que os da primeira,<br />

mais numerosos, mais poderosos,<br />

começaram a desafiar e a perseguir<br />

os da segunda: surgiram os mártires<br />

do tempo do Império Romano.<br />

Homens e mulheres convertidos ao<br />

cristianismo, até ontem respeitados<br />

e venerados por seus semelhantes,<br />

agora se encontram ali, na arena do<br />

Coliseu, semi-desnudos, invectivados<br />

e vaiados por uma multidão enraivecida.<br />

Por quê? Porque abraçaram a<br />

crença na vida eterna.<br />

Belezas que envolvem a<br />

ressurreição dos mortos<br />

Não é difícil, pois, imaginar o drama<br />

e a reviravolta que a pregação da<br />

ressurreição provocou na velha humanidade.<br />

Como não é difícil nos darmos<br />

conta de que não podemos tomar como<br />

banalidade o que deixou pasmo<br />

um antigo, perplexo um imperador romano,<br />

o que causava dor de cabeça a<br />

um filósofo pagão, e fazia estremecer<br />

de alegria um ancião ou uma criança<br />

inocente. Antes, devemos sempre<br />

ter presente toda a beleza que essa<br />

verdade encerra, e o quanto ela foi,<br />

ao longo da história da Igreja, ensinada<br />

e fundamentada pelos maiores<br />

e mais ilustres expoentes da Teologia<br />

católica.<br />

Para não nos estendermos, basta<br />

evocarmos o pensamento do grande<br />

São Tomás de Aquino, que prova a<br />

ressurreição com argumentos tirados<br />

da razão natural e da Escritura:<br />

é fato revelado pelo Espírito Santo.<br />

E ele apresenta como um dos elementos<br />

da Revelação esta frase de São<br />

Paulo: “Quando tu semeias, não semeias<br />

o corpo da planta que há de nascer,<br />

mas semeias o mero grão”. A interpretação<br />

fantástica dada pelo Doutor<br />

Angélico: o grão é o cadáver e a<br />

planta que nascerá é o homem ressurrecto,<br />

saído daquele. Esta sentença<br />

se ajusta de modo magnífico às palavras<br />

de Nosso Senhor no Evangelho:<br />

“Se o grão não se decompor, não<br />

frutifica”. Quer dizer, enquanto o homem<br />

não termina a sua batalha neste<br />

mundo e morre, dele não brotará<br />

o fruto da sua própria ressurreição.<br />

Assim, quando se fecha a tampa<br />

do caixão contendo um cadáver, devemos<br />

ter o seguinte pensamento, inspirado<br />

pela Fé: “Se é verdade que a<br />

morte representa um castigo, verdade<br />

é também que aqui está uma semente<br />

para a ressurreição”.<br />

Nisto devemos ver, também, como<br />

é bela a continuidade de uma vida<br />

humana levada na virtude e no<br />

amor a Deus, de uma existência virtuosa<br />

que passa sobre a morte com<br />

os olhos postos nas glórias da ressurreição.<br />

É essa verdade que nos incute<br />

ânimo, que nos explica a vida, que<br />

nos faz seguir sempre em frente, ru-<br />

16


As alegrias<br />

da gloriosa<br />

Ressurreição do<br />

Filho de Deus<br />

prenunciam a<br />

nossa própria<br />

ressurreição e<br />

nos apontam os<br />

umbrais da eterna<br />

bem-aventurança<br />

— abertos para<br />

toda a humanidade<br />

(Cenas da Ressurreição,<br />

Notre-Dame de Paris)<br />

mo ao encontro da eterna e completa<br />

felicidade.<br />

Felicidade esta que o mesmo São<br />

Tomás aduz como mais uma prova da<br />

ressurreição. Posto que o homem procura<br />

como meta final a alegria perfeita,<br />

a qual não pode ser achada senão<br />

na eterna bem-aventurança, tem<br />

de haver uma vida após a morte e uma<br />

ressurreição da carne. Sob pena de que<br />

tudo neste universo seja coisa errada,<br />

fracassada, e sem sentido.<br />

De fato, para que viver, se não existe<br />

este objetivo de alcançar a felicidade<br />

sem limites, infinita, sem sombras,<br />

onde compreendemos eternamente,<br />

na medida de nós mesmos, o eterno,<br />

o insondável e perfeitíssimo que é<br />

Deus? Ver Deus em Deus, ver Deus<br />

na pessoa de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, vê-Lo em Nossa Senhora, nos<br />

Anjos e nos santos!<br />

Esta é a autêntica alegria. O que<br />

não for isto, é burla em matéria de<br />

felicidade.<br />

Portanto, com o auxílio e o amparo<br />

da Santíssima Virgem, chegará para<br />

todos nós o dia em que nossas almas<br />

estarão definitiva e perenemente unidas<br />

aos nossos corpos. As dores e os<br />

júbilos efêmeros desta vida terão passado,<br />

nós estaremos no Céu por todo<br />

o sempre.<br />

Alegria da Páscoa,<br />

prenúncio de nossa<br />

ressurreição<br />

Para concluir, vem a propósito evocar<br />

uma vez mais o ensinamento de<br />

São Tomás de Aquino. Ele se pergunta<br />

se a ressurreição dos homens tem<br />

como causa a Ressurreição de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, e responde pela<br />

afirmativa. Ou seja, até Nosso Senhor,<br />

ninguém havia entrado no Céu. Somente<br />

depois da Paixão, Morte e<br />

Ressurreição do Cordeiro de Deus é<br />

que foram franqueadas para a humanidade<br />

as portas da bem-aventurança<br />

eterna. E o dia da Páscoa é a festa<br />

por excelência da Ressurreição d’Ele,<br />

mas traz no seu cortejo a perspectiva<br />

da ressurreição de todos os homens<br />

no dia do magno Juízo.<br />

Então se compreende que na alegria<br />

pascal, tão característica, temos<br />

um pouco do prenúncio de nossa própria<br />

ressurreição, e este sentimento se<br />

reflete no modo católico de viver o dia<br />

da festa da Ressurreição de Jesus. v<br />

17


DR. PLINIO COMENTA...<br />

O exemplo de<br />

Simão Cireneu<br />

“ E<br />

nquanto O conduziam, detiveram um certo Simão<br />

de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a<br />

cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Falando<br />

de improviso para um auditório de jovens, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

compôs um quadro em torno desse episódio da Paixão.<br />

(Acima, “O Cireneu ajuda Nosso Senhor a carregar da cruz”, Passo da Paixão em Sevilha)<br />

18


A perspectiva de aceitar a dor<br />

Afigura de Simão Cireneu nos aparece de passagem,<br />

na breve porém eloqüente narração do<br />

evangelista. Uma só frase, através da qual podemos<br />

fazer peregrinar nossa imaginação.<br />

Assim, devemos pensar no Cireneu como um homem<br />

modesto, pobre, levando a sua existência rural do melhor<br />

modo que lhe era possível, com aquela felicidade própria<br />

dos menos abastados, livres dos problemas e apreensões<br />

que muitas vezes rondam os donos de maiores posses.<br />

Vinha ele, portanto, caminhando despreocupadamente,<br />

a atenção voltada para as miudezas de sua vida simples<br />

e alegre: a sandália meia desgastada que era preciso consertar;<br />

um passarinho avistado num arbusto da estrada, e<br />

que talvez fosse divertido apanhar e levar para comer ou<br />

conservar numa gaiola, etc., etc. Quiçá viesse cantarolando<br />

e assoviando, sem ter a mínima idéia do que o aguardava<br />

pela frente.<br />

De súbito, ouve os gritos de uma turbamulta: “Mata!<br />

Mata! Crucifica! Crucifica!” Logo depois, fortes gemidos:<br />

“Ai, ai! Tende pena de mim!”<br />

E a tragédia irrompeu na tranqüila vida do Cireneu.<br />

Ele nunca ouvira ninguém gemer daquele modo. Que dor<br />

lancinante! “Quem seria o homem que bradava assim?<br />

Mas, estaria gritando ou cantando? Que voz harmoniosa,<br />

que timbre bonito! Que vontade eu teria de ajudar esse<br />

homem que geme de maneira tão celeste. Quem será ele?”<br />

Sentiu-se meio atraído, pela primeira vez, por algo que<br />

nunca o interessara na vida. Quando ele via alguém sofrer,<br />

tinha desejo de fugir. A dor é o que a sua alegria despreocupada<br />

não queria. Seu impulso era o de se esquivar a todas<br />

as mágoas, escapar dos que sofrem, pois de repente o<br />

padecimento alheio o contagiaria. Entretanto, aquele homem<br />

à sua frente necessita de uma ajuda, implora por um<br />

apoio. O Cireneu tem pena, e vislumbra a tragédia na<br />

qual ele jamais gostaria de entrar. Securitário, quer se afastar<br />

daquele caminho. Ao mesmo tempo, porém, a voz chegava<br />

mais perto, e os berros dos algozes também se tornavam<br />

mais altos. Simão pensava: “Que contraste! Quando<br />

este homem geme, seus lamentos são uma música; e<br />

esses que gritam contra Ele, que o perseguem, que barulho<br />

medonho, que vozes horrorosas, que charanga sem<br />

harmonia, que gente má! Estou com vontade de tomar<br />

um partido”.<br />

Era a graça que, sem ele saber, penetrava na sua alma,<br />

em seu coração rachado de pena, inclinando-o a fazer o<br />

bem. Mas, de outro lado, vinha o egoísmo, a tentação do<br />

demônio: “Cuidado! Pense em si, não se incomode. Fuja!<br />

Isto aqui dará encrenca, e de repente você vai para a dor<br />

junto com ele. Dor, não! Fuja da dor! Idiota, não se comova”.<br />

O encontro com Jesus<br />

Indeciso, ele continua a ir para a frente. Em certo momento<br />

dá-se o encontro: o Cireneu vê um homem de trinta<br />

e três anos, longos cabelos desalinhados, gotejando sangue,<br />

o rosto coberto de contusões que o tornavam azul num<br />

ponto e noutro, o nariz naturalmente arqueado, quebrado<br />

por uma pancada brutal, os olhos pisados, a cabeça co-<br />

19


DR. PLINIO COMENTA...<br />

roada de espinhos, e com uma cruz pesadíssima às costas,<br />

penosamente arrastada por Ele.<br />

Simão se enche de horror: “Mas, há tanta dor assim na<br />

vida? Pode acontecer isso a alguém? Eu nunca pensei que<br />

isso pudesse acontecer a ninguém, e de repente aconteceu<br />

a Ele. Não pode, então, acontecer a mim?”<br />

Um dos legionários romanos, um dos senhores da Terra<br />

Santa, reluzindo no seu capacete magnífico, sua armadura<br />

lustrosa, lanças e armas de César, avista o Cireneu<br />

nessa indecisão e lhe diz brutalmente:<br />

— Pegue a ponta da cruz!<br />

Ele pensa: “Como?! Essa cruz ensopada de sangue? Eu<br />

vou me molhar com ele.” Mas, enquanto racionava assim,<br />

um raio de sol incide sobre o sangue, e este brilha com uma<br />

linda cor rubi. Simão se sente atraído, algo lhe diz: “Esse<br />

sangue é a salvação, agarre-o!” Mas... mas... mas... e a dor,<br />

e o peso dessa cruz?<br />

— Pegue já! — insiste o legionário. — Porque este homem<br />

não está agüentando mais, e ainda tem de subir até<br />

o alto daquela montanha!<br />

“Mas, então tenho de levar essa cruz até aquele monte,<br />

atrás desse pobre coitado, gemendo? Não tenho coragem,<br />

é muito esforço e não gosto de fazer esforço. Oh!<br />

Como é isso?”<br />

— Pegue, se não você apanha!<br />

“Agora a situação se complica, porque se trata do<br />

meu sangue. Dessa não fujo... Devia ter escapado<br />

antes. Vou ter de pegar.”<br />

Diálogo de olhares<br />

Relíquia do Santo Lenho,<br />

venerada na Basílica de Santa<br />

Cruz in Gerusalemme, Roma<br />

Simão apanha a cruz. Aquele<br />

que a carrega o fita, e ele percebe<br />

que esse olhar o penetra completamente.<br />

Sente algo de único<br />

em sua vida, pois ninguém jamais<br />

o olhou assim. Um olhar extraordinário,<br />

demonstrando que o conhecia desde<br />

sempre, e o envolvia de um afeto incomparável.<br />

Ele se viu conhecido e compreendido nas suas<br />

peculiaridades mais pessoais, nas suas dores,<br />

das quais aquele olhar tinha pena. Mais do<br />

que antes, Simão se sentiu atraidíssimo. Já<br />

pegava a cruz, o sangue quente que nela escorria<br />

lhe batia nas mãos, e ele se envolvendo<br />

naquela tragédia que o cativava.<br />

Um diálogo mudo se estabelece entre<br />

o Homem-Deus e o Cirineu. Nosso<br />

Senhor lhe diz: “Meu filho, é por você que Eu sofro.<br />

Você me vê no auge do abandono, da desgraça, no último<br />

ponto do desprezo humano. Mas olhe para Mim.<br />

Que misteriosa grandeza, que enigmática e envolvente<br />

bondade, que dedilha sua alma como um bom médico<br />

toma uma chaga para nela colocar ungüento! Você não<br />

sente que está sofrendo fisicamente com o peso da minha<br />

cruz, mas a sua alma experimenta uma leveza inusitada?<br />

Não percebe um horizonte novo abrindo-se para<br />

você?”<br />

Estão ao pé do Calvário. É preciso continuar a subir e<br />

a cruz para Simão é cada vez mais pesada. Ele pensa: “É<br />

terrível isso, mas mais terrível seria se eu jogasse a cruz<br />

no chão e Ele caísse sob o peso dela, quebrando as palmas<br />

das suas mãos nas pedras desse caminho. Eu não suportaria<br />

isso. Agora eu vou até em cima.”<br />

Subiu e, lá no alto, humilde, respeitoso, com bondade<br />

ajudou Nosso Senhor a deitar a cruz no chão. Jesus lhe<br />

dirigiu um olhar de reconhecimento, o último que deu<br />

para Simão. O Cireneu afastou-se e notou que os romanos<br />

já não estavam pensando nele. Achava-se fora da tragédia.<br />

Enquanto se distanciava, ouviu as ordens gritadas<br />

pelos esbirros: “Abra os braços! Estenda bem as pernas!<br />

Vamos cravar esses pregos nas suas mãos e nos seus pés!”<br />

E a pancadaria começou.<br />

Feliz encontro com Nossa Senhora<br />

De longe, ao mesmo tempo apavorado e fascinado,<br />

ainda limpando na sua túnica as mãos tintas do<br />

sangue de Jesus, o Cireneu acompanhou todo<br />

o desenrolar daquele terrível drama<br />

em que se consumava a Redenção<br />

da humanidade. Observou o diálogo<br />

de Nosso Senhor com os dois<br />

ladrões, soube da promessa do<br />

Paraíso que Ele assegurou a Dimas;<br />

viu o povinho que passava sob a cruz; alguns<br />

que vaiavam o Crucificado, outros que O<br />

apedrejavam, e outros que choravam. Reparou<br />

no céu que ia se escurecendo, a tarde<br />

que se transformou em noite, e então ouviu<br />

o derradeiro brado de Jesus: “Tudo acabou!”<br />

Aos pés da cruz havia um grupo de mulheres,<br />

entre as quais uma que trazia o rosto<br />

encoberto, mas exercia sobre o Cireneu<br />

atração parecida com aquela exercida<br />

pelo Homem-Deus. Ele perguntou:<br />

— Quem é aquela que se esconde?<br />

20


— É a Mãe d’Ele.<br />

A Mãe d’Ele? Mas,<br />

para mim Ela vale mais<br />

que uma rainha, mais<br />

que uma imperatriz,<br />

mais que todo o mundo!<br />

Que honra ser Mãe<br />

desse homem fracassado,<br />

desse homem tão<br />

inábil que, sendo inocente,<br />

não evitou a própria<br />

morte. Que sabedoria<br />

a desse homem<br />

derrotado, e que vitória<br />

essa cena!<br />

O Cireneu continuava a olhar para aquele quadro grandioso<br />

à sua frente, e teve medo. Sobretudo quando sentiu<br />

a terra tremer, o Templo balançar, e viu estranhas figuras<br />

andando de um lado para outro, olhos fechados, envoltas<br />

em faixas de panos brancos (como eram então sepultados<br />

os cadáveres), e dizendo terríveis censuras ao povo.<br />

Simão quis falar com aquela Senhora, mas não ousou.<br />

Achou-a tão pura, que ele não tinha o direito de dirigir-<br />

Lhe a palavra. Logo depois, Ela se afastava com o cortejo<br />

que conduzia o Divino Redentor para a sepultura,<br />

com todo o ritual que precedia a deposição do corpo no<br />

seu túmulo. Ele não teve coragem de acompanhá-La, e<br />

pensou: “Afinal de contas, o que me acontecerá? Vejome<br />

tão cheio de idéias, de preocupações, e estou perdendo<br />

a esperança, porque sou um miserável, um medroso,<br />

um homem carregado de pecados, e nunca estarei à altura<br />

de tudo quanto presenciei...”<br />

O cortejo aproximou-se dele, aquela Senhora deitou<br />

um olhar de bondade e só lhe disse duas palavras: “Meu<br />

filho!”<br />

Ele pensou: “Ganhei o dia, ganhei a vida, estou perdoado!<br />

Vou para casa.”<br />

Ao chegar na sua modesta residência, encontrou a<br />

mulher e os filhos dormindo. Tudo estava tranqüilo. Teve<br />

então o cuidado de trocar de roupa, tomou a túnica ensangüentada<br />

e osculou-a com reverência. Era o seu primeiro<br />

ato de adoração e de fé: “Esse Homem, cujo<br />

sangue tinge a minha vestimenta, é Deus!”<br />

Dobrou a túnica como se fosse o maior tesouro do<br />

mundo e a guardou onde ninguém podia mexer. Em seguida,<br />

dirigiu-se ao pequeno jardim de sua casa, sentouse<br />

num rústico banco de madeira e se pôs a pensar em tudo<br />

quanto vira naquele dia. De repente, percebe que algumas<br />

pessoas daquele cortejo voltavam do sepulcro, entre<br />

elas a Senhora que tanto o impressionara. Simão saiu<br />

de novo atrás delas, acompanhando-as até a casa onde<br />

moravam. Antes de entrar, a Senhora voltou-se para ele<br />

e, do fundo da dor<br />

d’Ela, deu-lhe um machucado,<br />

mas florido<br />

sorriso. Como se lhe<br />

dissesse: “Eu vivo<br />

aqui”. Entrou e desapareceu.<br />

Simão compreendeu<br />

que se tratava de<br />

um convite para ele.<br />

Passou então a freqüentar<br />

o convívio com<br />

Nossa Senhora e os<br />

Apóstolos. Tudo leva a<br />

crer que se santificou.<br />

O silêncio paira sobre o desenrolar desta vida que, para a<br />

história, começa também no silêncio. Um homem adulto,<br />

saído bruscamente da vulgaridade, entra nesse arco de dor<br />

e de glória. Acaba cumprindo o seu dever depois de mil<br />

dificuldades, e some de novo no anonimato. Mas a sua alma,<br />

sem dúvida, foi recebida no Céu. Ele havia tido a honra,<br />

a vocação única de, sozinho, carregar a cruz do Cordeiro<br />

de Deus.<br />

Sofrendo por Nosso Senhor, O ajudamos a<br />

carregar a cruz<br />

E nós, podemos carregar a cruz de Nosso Senhor?<br />

Do madeiro em que Ele foi pregado resta apenas um<br />

pedaço, em Roma, do qual se extraem fragmentos de um<br />

valor moral e religioso inapreciável: são as relíquias do<br />

Santo Lenho. Mas, a grande cruz em que o Salvador morreu,<br />

esta não existe mais. Como podemos, então, carregá-la?<br />

Há inúmeros modos de fazê-lo, pois inúmeros são os<br />

tipos de sofrimento pelos quais passamos. E quando padecemos<br />

por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, estamos<br />

carregando com Ele o Santo Lenho. Sejam as penas físicas<br />

que se abatem sobre nós, sejam as dores e provações<br />

morais, sejam os desprezos e malquerença de que somos<br />

objetos por nossa fidelidade à Igreja Católica, sejam ainda<br />

os duros esforços que, não raras vezes, nos custa a prática<br />

exímia dos Mandamentos: sempre que o sofremos, é<br />

um passo a mais que damos junto com o Divino Redentor,<br />

aliviando-Lhe o peso da cruz.<br />

Cumpre, porém, não nos esquecermos de outra verdade.<br />

Ajudando assim a Jesus na sua Via Crucis, a exemplo<br />

de Simão Cireneu, estaremos, como este, nos tornando<br />

merecedores de uma recompensa demasiadamente<br />

grande, de um prêmio de valor incomensurável, que o<br />

próprio Salvador nos tem reservado no Céu. v<br />

21


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

Quais os<br />

fins de uma<br />

universidade?<br />

Preciosos livros e<br />

manuscritos<br />

conservados na<br />

biblioteca da<br />

Universidade de<br />

Oxford, Inglaterra<br />

22


C<br />

om solenidade e a presença de autoridades (incluindo o governador do Estado e diversos<br />

secretários), iniciava suas atividades em 2 de abril de 1960 a Faculdade de<br />

Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho, uma das primeiras do Norte do Paraná.<br />

Proferindo a aula inaugural, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> expôs sem rodeios sua convicção: o ensino e as<br />

pesquisas universitárias devem ter um pressuposto religioso, vendo Deus como criador do<br />

universo harmônico, ordenado e hierárquico, acessível à inteligência do homem por um conjunto<br />

de conhecimentos que formam o saber.<br />

Otema que me incumbiram de<br />

tratar é “a universidade”.<br />

Ao começar a coligir idéias<br />

e dados para esta aula, verifiquei encontrar-me<br />

naquela situação de Santo<br />

Agostinho, que encontrou na praia<br />

um menino tentando colocar toda<br />

a água do mar num buraco da areia.<br />

Seria preciso transpor todo um mundo<br />

de idéias, horizontes, perspectivas,<br />

para a pequena caixa de uma aula!<br />

Considerei, pois, que minha obrigação<br />

era falar do assunto debaixo de<br />

um ângulo tal que, num aperçu, pudesse<br />

ser visto no que tem de central.<br />

Em lugar de dizer tudo o que sobre<br />

a universidade se possa, resolvi vos<br />

entreter a respeito de sua finalidade.<br />

Esta contém de algum modo tudo o<br />

que se diz da instituição, uma vez que<br />

o fim de uma coisa é como o espelho<br />

dela, filosoficamente falando.<br />

Bibliografia caótica e<br />

fragmentária, opiniões<br />

conflitantes<br />

Seguindo um costume que não está<br />

no pendor de meu espírito, pensei<br />

em consultar livros. Mas antes, lembrei-me<br />

de leituras feitas há tempos<br />

e me dei conta de que a bibliografia<br />

a respeito do assunto é caótica e fragmentária.<br />

Na Europa ou nos Estados Unidos,<br />

se há muitos livros sobre universidade,<br />

são em geral circunscritos ao<br />

“Estudantes ouvem a<br />

lição do professor”,<br />

baixo-relevo da Catedral<br />

de Paris, primeira<br />

sede da Universidade<br />

da capital francesa<br />

23


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

âmbito nacional ou a determinada<br />

área de cultura, e não abrangem o<br />

problema de modo a se poder aplicálo<br />

à realidade brasileira. A nós não<br />

interessa tanto saber o que pensam<br />

sobre as universidades alemãs, francesas,<br />

americanas, espanholas ou inglesas,<br />

os intelectuais desses países, mas<br />

qual a finalidade de uma universidade<br />

em tese, libertada de suas circunstâncias<br />

locais, e mesmo das de tempo.<br />

Para vos dar exemplo do caos reinante<br />

na matéria, escolhi obras de três<br />

intelectuais ingleses: Flexner, que<br />

escreveu The university — American,<br />

English and German, edição da Oxford<br />

University Press; depois Boverly,<br />

com o livro The crisis of the university,<br />

Londres, 1949. O terceiro é de<br />

Brust, The new British universities,<br />

sobre as universidades novas da Inglaterra<br />

e suas relações com as antigas,<br />

Oxford e Cambridge.<br />

Eles não dão um apanhado de conjunto<br />

do assunto, e cada um trata de<br />

um problema que não se encaixa no<br />

que é tratado pelo outro. Assim, por<br />

exemplo, a grande questão: uma universidade<br />

se destina à pesquisa científica<br />

ou só ao ensino? Ou a ambos?<br />

Admitindo-se que a universidade visa<br />

ao ensino, o ensino visa a quê? Apenas<br />

à formação das classes dirigentes?<br />

Ao progresso material do país? O que<br />

o estudante deve ter em vista obter?<br />

Um diploma que habilite a exercer a<br />

profissão? Uma cultura clássica? Uma<br />

cultura especializada? O que acima<br />

das outras coisas a universidade deve<br />

lhe dar? E o que vem a ser a pesquisa?<br />

É feita por interesse prático<br />

ou tem apenas um sentido idealista?<br />

Por outro lado, se a pesquisa visa à cultura,<br />

podemos perguntar qual é o conceito<br />

de cultura. E nos poríamos em<br />

outro “mare magnum” de problemas.<br />

Como se todas essas graves questões<br />

não fossem as únicas, ainda teríamos<br />

outras para considerar, entre<br />

as quais esta muito delicada: vivemos<br />

em um mundo em crise, na qual<br />

a crise da cultura constitui um dos aspectos<br />

mais importantes. A universidade<br />

é feita para tomar conhecimento<br />

dos problemas do mundo? É feita<br />

para resolver os problemas atuais?<br />

Ou, pelo contrário, é um conjunto de<br />

intelectuais que se segregam dos problemas<br />

do tempo, para que a poeira<br />

dos acontecimentos concretos não empane<br />

a lucidez do estudo, preocupando-se<br />

exclusivamente com questões<br />

em tese, fazendo com que, como por<br />

osmose, esse saber, formado nos laboratórios<br />

da universidade, filtre depois,<br />

e as classes dirigentes tirem daí<br />

os ensinamentos que vão orientá-las?<br />

É raro encontrarmos uma obra que<br />

englobe todos esses problemas num<br />

Diversas e importantes questões devem ser<br />

respondidas sobre os verdadeiros destinos e<br />

objetivos de uma universidade, como a de<br />

Oxford, um dos mais prestigiosos<br />

estabelecimentos de ensino do mundo<br />

24


U<br />

ma universidade<br />

que não<br />

tenha como tarefa<br />

primordial resolver<br />

os problemas do<br />

momento, imita o<br />

monge cismático<br />

que tocava violino<br />

na Basílica de Santa<br />

Sofia (ao lado),<br />

enquanto a cidade era<br />

invadida e saqueada<br />

só aspecto e nos dê uma síntese sobre<br />

o que deve ser, sob um ponto de vista<br />

superior, uma universidade. E mesmo<br />

a esse respeito as opiniões são<br />

surpreendentes. Vemos homens com<br />

um saber eminente, como o Cardeal<br />

Newman, afirmar que a universidade<br />

só tem em vista o ensino, e não a pesquisa,<br />

e que “se o ensino não fosse o<br />

fim da universidade, não se compreende<br />

por que ela deveria ter alunos”.<br />

Vamos encontrar Bresclay, que diz que<br />

a universidade deve ter por fim só a<br />

pesquisa, e não o ensino.<br />

“Tocar violino” nas horas<br />

graves...<br />

Certos espíritos “lúcidos” (nada<br />

mais perigoso do que ler muito! tomase<br />

uma espécie de excesso de velocidade<br />

intelectual, em que o peso da<br />

gravidade do bom senso se perde, e<br />

as idéias começam a ser extravagantes)<br />

imaginaram que a universidade<br />

deveria ser constituída (jovens colegas,<br />

vós vos espantareis com a idéia!)<br />

com homens que se retiram do mundo<br />

para uma vida quase conventual,<br />

que não tomam contato com nada e<br />

nem tenham alunos. E que fiquem<br />

apenas confabulando entre si para a<br />

formação da ciência abstrata. E vos<br />

vejo plantados num desses três morros<br />

pequenos de Jacarezinho, numa<br />

colônia isolada, alheios a tudo, severamente<br />

proibidos pelo policiamento<br />

do governador Lupion a entrardes<br />

em contato com a cidade de Jacarezinho,<br />

para manter a pureza de vossas<br />

preocupações intelectuais. E vós elaborando<br />

uma ciência abstrata intemporal<br />

da qual, de vez em quando, saem<br />

alguns bolidos para nos iluminar nas<br />

planícies de Jacarezinho...<br />

Positivamente, não sou desta opinião.<br />

Sua singularidade — e nisto está<br />

uma das ciladas do ensino universitário<br />

— mostra como se derrapa na<br />

vida intelectual, e como é débil o muro<br />

de separação entre a alta inteligência<br />

e a extravagância, a qual, por sua<br />

vez, tem um débil muro de separação<br />

com o desequilíbrio.<br />

Vemos, portanto, quanta incerteza<br />

voga nesses campos.<br />

Eis a definição dada por um intelectual<br />

da Universidade de Harvard,<br />

Bresley, que declara: “Universidade<br />

é, por definição, o local onde nada se<br />

estuda de útil; se o estudo tem algo de<br />

útil, deixa de ser universidade”. Estou<br />

certo de que dificilmente vos resignaríeis<br />

a uma vida que vos condenasse<br />

a estudar nada de útil. A qual<br />

— seria difícil de negar — seria uma<br />

vida inútil.<br />

Moderli se coloca em outro ponto<br />

de vista: com a lucidez de homem de<br />

bom senso, ele mostra que, depois das<br />

duas guerras mundiais, o mundo entrou<br />

num estado de crise, e estamos no<br />

vórtice de um abismo, marcado por<br />

uma insegurança material. O descobrimento<br />

da energia atômica colocou<br />

todos nós num estado de insegurança<br />

— mas não é a energia atômica<br />

que cria essa insegurança. O perigo<br />

está na vontade de brigar dos homens.<br />

E daí a crise se desloca do campo<br />

puramente físico para o moral e o<br />

cultural. E diz que seria difícil pretender<br />

que um problema enunciado<br />

com caráter cultural, e não com cará-<br />

25


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

ter físico, não seja um problema universitário.<br />

Tudo o que existe tem o seu<br />

instinto de conservação. As instituições<br />

também. E a universidade e tudo<br />

o que existe sobre a prateleira da<br />

civilização ocidental e cristã pode ir<br />

pelos ares... Não será bem verdade<br />

que a tarefa primordial da universidade<br />

é resolver os problemas do momento,<br />

sobretudo esse grande problema,<br />

senão ela mesma não sobrará?<br />

É um ponto de vista diametralmente<br />

oposto ao anterior. Vemos aí um<br />

choque entre professores de universidade.<br />

Lembro-me a esse respeito de<br />

um fato ocorrido quando da entrada<br />

dos turcos em Constantinopla. Tem algo<br />

de legendário, mas se não é “vero,<br />

è bene trovato”. Conta-se que eles entraram<br />

por todas as ruas de Constantinopla<br />

massacrando e depredando.<br />

Na Basílica de Santa Sofia, encontraram<br />

no coro, em meio à tragédia da<br />

cidade, um monge cismático que tranqüilamente<br />

tocava violino. Uma espadagada<br />

acabou com ele e acabou com<br />

o violino. Foram as últimas notas de<br />

harmonia da cultura clássica ouvidas<br />

ali.<br />

A universidade que toca violino faz<br />

coisas inúteis dentro de toda a crise<br />

contemporânea.<br />

A influência dos<br />

intelectuais na história<br />

Na história da Europa, os altos estudos<br />

da universidade não só estiveram<br />

na raiz de todas as invenções que<br />

deram origem ao desenvolvimento<br />

econômico, mas também na origem<br />

das transformações políticas, boas<br />

ou más, funestas ou auspiciosas, que<br />

deram ao mundo contemporâneo o<br />

aspecto que ele tem.<br />

Num momento de grande importância<br />

histórica, no período em que a<br />

Confederação Germânica oscilava entre<br />

a influência austríaca e a prussiana,<br />

uma equipe de intelectuais fez cair<br />

a balança para o lado da Prússia. As<br />

investigações de Siebel, Fischer, Reuter,<br />

Preiske, Momsen, influíram para<br />

modelar a opinião pública no sentido<br />

militarístico-burocrático-centralizador,<br />

de que haveria de nascer o império<br />

bismarckiano e, ao menos em<br />

boa parte, a tragédia das duas guerras<br />

mundiais. Hitler não é senão a<br />

quintessência e a realização, em seus<br />

últimos aspectos categóricos, dos sonhos<br />

desses intelectuais.<br />

Contra eles se levantou uma voz<br />

— hoje malvista pela crítica histórica<br />

má — cuja glória preciso reivindicar,<br />

a de Janssen, que falava pela tradição<br />

orgânica e harmônica da Alemanha.<br />

Se nesse conflito, que foi sobretudo<br />

de intelectuais, a balança tivesse<br />

pendido para o lado da tradição<br />

católica, certamente não teríamos a<br />

guerra mundial.<br />

A universidade deve se<br />

voltar para uma verdade<br />

superior<br />

Tentaremos agora estabelecer uma<br />

síntese do assunto, não só porque o<br />

espírito humano pede que os elementos<br />

díspares sejam reduzidos numa<br />

unidade harmônica, mas também porque<br />

é parte da índole do espírito brasileiro.<br />

Quando se encontra diante de<br />

contradições, de oposições muito violentas,<br />

em vez de logo tomar um partido<br />

ardente, o brasileiro procura estabelecer<br />

o conjunto do problema,<br />

procura uma espécie de conciliação<br />

entre os pontos de vista opostos, só<br />

entrando na liça depois de verificar<br />

que algo de irremediável se encontra<br />

nessa oposição. Povo feito para o contato<br />

com as culturas mais diversas,<br />

tendo herdado algo da doçura do luso,<br />

o brasileiro tem a largueza de vis-<br />

Proclamação<br />

do império<br />

prussiano, em<br />

Versalhes: a<br />

influência de<br />

maus intelectuais<br />

arrastou a<br />

Alemanha e o<br />

mundo para a<br />

tragédia das<br />

duas grandes<br />

guerras<br />

26


“Deus cria as plantas” (Catedral de Chartres, França). A universidade deve se<br />

constituir em torno de um pressuposto religioso que é Deus<br />

enquanto Criador do universo harmônico, ordenado e hierárquico<br />

tas pela qual, sem cair na lógica da<br />

escola intelectual liberal, sabe tirar o<br />

proveito de cada doutrina, aquilo<br />

que pode ser aproveitado e incorporado<br />

legitimamente dentro de uma<br />

síntese pessoal.<br />

Há parcelas de razão em cada um<br />

dos pontos de vista que expusemos.<br />

Mas desde logo vos digo que o conhecimento<br />

objetivo da verdade no nível<br />

superior, sem preocupação de circunstâncias<br />

de tempo e de lugar, é a tarefa<br />

mestra e o eixo central da atividade<br />

universitária.<br />

O que está subjacente a esta concepção<br />

é a idéia de que, em todos os<br />

ramos do saber superior, por mais<br />

diferenciados que sejam entre si, há<br />

uma coerência profunda, há a possibilidade<br />

de estabelecer uma correlação<br />

e uma harmonia completa, porque,<br />

dentro da concepção cristã, o<br />

mundo não é aquele pesadelo de louco<br />

que seria o de Jean-Paul Sartre. O<br />

universo não é uma espécie de inferno<br />

materialista, como seria o dos comunistas<br />

de nossos dias, mas é um<br />

cosmo no sentido helênico mais exato<br />

da palavra: um conjunto de elementos<br />

sabiamente ordenados uns para<br />

os outros. E, em face dessa concepção,<br />

a ciência não é senão o conhecimento<br />

da harmonia que orienta e coordena<br />

todos esses elementos, e harmonia<br />

hierárquica entre vários elementos<br />

desse conhecimento, que se<br />

subordinam uns aos outros até o ápice,<br />

o ponto supremo que contém os<br />

princípios gerais dessa ordem. Que,<br />

portanto, contém o elemento rector<br />

não só de todo o saber, mas também<br />

de toda a atividade universitária.<br />

A atividade universitária deve se<br />

congregar, portanto, em torno de uma<br />

filosofia, mas a filosofia não basta.<br />

Em torno de uma teologia, mas a teologia<br />

não basta. Em torno de um pressuposto<br />

religioso, e este pressuposto<br />

religioso é Deus, como um fator infinitamente<br />

poderoso que cria o universo<br />

harmônico, ordenado e hierárquico,<br />

acessível à inteligência do homem<br />

por um conjunto de conhecimentos<br />

ordenados, hierárquicos também,<br />

que formam o saber.<br />

Este é o ponto mais profundo de<br />

todo estudo universitário. Não é saber<br />

isto ou aquilo, não é conhecer línguas<br />

anglo-germânicas ou ensinar matemática,<br />

ou saber a história de Henrique<br />

IV da França. Mas é subir daí<br />

para mais alto, é aprender a considerar<br />

todos esses conhecimentos por um<br />

ápice, por um domínio de conhecimentos<br />

mais elevados segundo os<br />

quais esses outros se coordenam.<br />

Especialização e<br />

generalização<br />

Esses dados não obstam a que, do<br />

alto dessa montanha de saber, o professor<br />

universitário se volte para os<br />

problemas de seu tempo. Não há saber<br />

que se alimente apenas de leitura.<br />

É preciso ter contato com a vida,<br />

com as realidades concretas; e não só<br />

com as atividades de um tempo, mas<br />

com as lutas, as angústias, os problemas<br />

desse tempo.<br />

Ao tomar conhecimento dos problemas<br />

do tempo, as universidades<br />

cumprem antes de tudo uma altíssima<br />

missão. Sendo células de um organismo,<br />

não podem deixar de dar seu<br />

contributo para que esse organismo<br />

progrida e se conserve. Mas é mais<br />

do que isso. A universidade abre a<br />

ventilação da realidade para as suas<br />

elucubrações que, sem isso, se tornariam<br />

por demais abstratas, e atende<br />

os problemas do tempo, resolve e dá<br />

orientação. Isso vem a ser a tarefa<br />

27


O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />

fundamental de uma universidade,<br />

da qual não poderia fugir sem trair<br />

sua missão.<br />

É certo que o estudo da universidade<br />

assim concebido não pode resignar-se<br />

a uma espécie de ruptura entre<br />

especialização e generalização. A<br />

idéia de alguém que se especializa<br />

tanto que perde os princípios gerais<br />

é como a idéia de um escafandrista<br />

que se aprofundasse tanto no mar que<br />

perdesse o contato com tudo o que o<br />

liga até o ar, quer dizer, acabaria morrendo.<br />

Assim, um especialista que se<br />

aprofunda tanto que se esquece dos<br />

princípios gerais, “morreria”, porque<br />

o princípio geral é que dá vida à especialização.<br />

E visto sob esse aspecto,<br />

parece-me que o ensino universitário,<br />

por mais que se especialize, deve<br />

especializar-se com a preocupação<br />

de ter sempre como ponto de referência<br />

aquela luz primeira, aquela<br />

procura da verdade absoluta, da verdade<br />

pura, da verdade total, da verdade<br />

harmônica e completa que é o<br />

fim harmonioso da universidade.<br />

Um escritor medieval disse que as<br />

três forças de seu tempo eram a Igreja<br />

Católica, o Sacro Império Romano-Germânico<br />

e as universidades. Já<br />

um professor inglês contemporâneo<br />

Com a supremacia dos valores materiais e econômicos,<br />

vão minguando os atrativos e interesses para as produções intelectuais<br />

(Cambridge College, Inglaterra)<br />

escreve com um tom perpassado de<br />

sorriso: “Nós, professores universitários<br />

de hoje, não ousaríamos colocar<br />

tão alta a importância de uma universidade”.<br />

Entretanto, ele acaba dizendo<br />

que a universidade deve ser considerada<br />

como power-house que concorre<br />

para a orientação da humanidade.<br />

Na ânsia da produção<br />

econômica, decadência da<br />

noção dos valores<br />

intelectuais e espirituais<br />

Um dos grandes problemas de nosso<br />

país e do presente é que, na ânsia<br />

da produção econômica, legítima em<br />

si e reclamada pelas circunstâncias, a<br />

noção dos valores intelectuais e espirituais<br />

vá pouco a pouco decaindo.<br />

A condição de intelectual é tal entre<br />

nós que os homens de maior capacidade,<br />

de maior produtividade, de carreira<br />

mais prometedora, se voltam para<br />

a produção material e não encontram<br />

nem atrativo nem interesse para<br />

a produção intelectual.<br />

Este fato é alarmante, sobretudo se<br />

o colocarmos em conexão com outro:<br />

nossa época é tão profundamente encharcada<br />

de pensamento materialista<br />

que encontramos tendências materialistas<br />

até nos que fazem fé de espiritualismo.<br />

Nossa época vota uma atenção<br />

exagerada aos problemas do corpo,<br />

da saúde, aos prazeres do esporte,<br />

ao culto da beleza física. E por isso<br />

nosso crescimento se vai dando de<br />

modo errado, fora da verdadeira diretriz,<br />

porque, em vez de a alma preceder<br />

o corpo, é o corpo que precede<br />

a alma. Corpo agigantado, no qual a<br />

alma fica retrógrada. Gigante imenso<br />

de alma infantil, feito para ser escravo<br />

dos que têm inteligência, e caráter superior.<br />

O Brasil não pode continuar a trilhar<br />

esse caminho. É o próprio futuro<br />

e independência de nosso país que<br />

estão interessados numa retificação<br />

de valores.<br />

v<br />

28


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

IMPRESSÕES<br />

SOBRE A<br />

SEMANA<br />

SANTA


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, a principal época do ano era a Semana Santa.<br />

Não apenas pela recordação, em si, da tragédia do Homem-<br />

Deus, morto e sepultado, mas também pelo ambiente salutar<br />

e santificante que dela emanava.<br />

Na Sexta-feira Santa, a cerimônia<br />

que mais me tocava<br />

era esta: a cruz exposta numa<br />

espécie de mesa, com Nosso Senhor<br />

morto, e o povo fiel que passava<br />

para oscular-lhe os pés. Desfilavam<br />

aquelas pessoas às centenas. Nas catedrais,<br />

esse cortejo para a veneração<br />

da cruz era encabeçado pelo bispo, e<br />

foi durante uma dessas celebrações litúrgicas<br />

que contemplei, pela primeira<br />

vez, a simbólica beleza do báculo.<br />

Estávamos na Igreja de Santa Efigênia<br />

(pois a Catedral da Sé ainda se<br />

achava inacabada), quando o velho<br />

Arcebispo D. Duarte entrou para a<br />

cerimônia, revestido dos trajes próprios<br />

aos ritos da Paixão: batina amplíssima,<br />

de um roxo quase violeta,<br />

prolongando-se numa grande cauda,<br />

levada por um ou dois caudatários,<br />

em geral seminaristas. Ia sem mitra,<br />

com uma cobertura na cabeça lembrando<br />

em algo o barrete dos doges<br />

venezianos. Não sei a razão dessa peça<br />

no paramento episcopal, mas o<br />

adornava de modo muito adequado.<br />

Com todos os fiéis quietos, tendo<br />

já deixado um espaço aberto no corredor<br />

central para o prelado passar,<br />

este vinha caminhando sem sapatos,<br />

deixando ver as meias violáceas. Estava<br />

descalço em sinal de penitência,<br />

e ia como bispo diocesano,<br />

o primeiro, pedir<br />

perdão pelos seus próprios<br />

pecados e pelos<br />

do povo.<br />

Essa cena causava<br />

uma impressão<br />

de realidade<br />

— e o era —<br />

de que, diante<br />

do trono de<br />

Deus, naquela hora, comparecia com<br />

o bispo a diocese, e cada um dos que<br />

estávamos ali, na pessoa do Pastor,<br />

pedia perdão por seus pecados, responsáveis<br />

pela morte de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo. A liturgia começava<br />

a entoar um cântico que exprimia<br />

e corroborava esse sentimento, enquanto<br />

Dom Duarte, com ar grave e<br />

recolhido, em grande estilo se aproximava<br />

do Senhor morto para Lhe<br />

oscular os pés. Em seguida, saía pela<br />

sacristia, e tinha início a longa procissão<br />

de fiéis.<br />

Ao presenciar essa cena, eu me<br />

rejubilava: “Ah! Esta é a Igreja Católica!”<br />

A cidade se tornava<br />

austera e séria<br />

Outros lindos aspectos das celebrações<br />

da Paixão me encantavam<br />

igualmente. Por exemplo, a transladação<br />

do Santíssimo, que havia sido<br />

consagrado, para o chamado monumento<br />

ou sepulcro. Então, o celebrante<br />

— que podia ou não ser o próprio<br />

30<br />

Em antigas cerimônias<br />

da Paixão, a figura<br />

do velho Arcebispo D.<br />

Duarte, revestido<br />

dos paramentos de Sexta-<br />

Feira Santa e portando<br />

o báculo, cheio de<br />

simbolismo, suscitava<br />

a admiração de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>


ispo — envolvia o cibório com uma<br />

capa da cor de luto e o conduzia ao<br />

seu destino, precedido pelos toques<br />

das matracas: plec-plec, plec-plec,<br />

plec-plec, plec-plec... Quer dizer, não<br />

havia mais música nem alegria. Era<br />

tudo tristeza e tudo pranto, por causa<br />

de nossos pecados, porque o Filho<br />

de Deus morrera. O cortejo se dirigia<br />

a um altar lateral, mais afastado,<br />

para que o maior espaço a ser percorrido<br />

pelo povo conferisse certa pompa<br />

e extensão à cerimônia.<br />

Descia-se uma urna, na qual depositavam<br />

o Santíssimo, trancavam-na<br />

à chave e esta era entregue ao pároco.<br />

Até o Sábado Santo não havia mais<br />

comunhão naquela igreja, porque o<br />

Senhor estava morto. Era um luto<br />

pesado, uma tristeza profunda.<br />

O povo se dispersava silencioso e<br />

recolhido. Caminhavam todos para<br />

suas casas, naquela época antiga, ainda<br />

usando trajes escuros. Os homens<br />

se vestiam de preto, e as senhoras portavam<br />

sinais de luto, faixas ou véus<br />

negros, etc. As próprias crianças se<br />

apresentavam com algo de preto. E<br />

assim, pelas ruas tranqüilas da cidade,<br />

as pessoas voltavam para suas<br />

residências. Iam fazer a sua refeição<br />

de jejum e abstinência, mantendo-se<br />

na piedosa e compungida quietude daquele<br />

dia de dores.<br />

A cidade tornava-se tão austera,<br />

tão séria, que se tinha quase a impressão<br />

de que, quando ela voltasse ao<br />

normal, já estaríamos vivendo no Reino<br />

de Maria. Ou seja, naquela época<br />

histórica prevista por São Luís Grignion<br />

de Montfort e outros santos, durante<br />

a qual a Santíssima Virgem será<br />

a Rainha dos Corações e da sociedade.<br />

As alegrias da Ressurreição<br />

A torre do santuário do Sagrado Coração de Jesus, de onde<br />

uma vez <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> contemplou as alegres comemorações de Páscoa,<br />

na tranqüila São Paulo de outrora<br />

Terminada a Sexta-Feira Santa, os<br />

espíritos se voltavam para as esperanças<br />

e as alegrias da Páscoa.<br />

Certa vez, quis ver a cidade de<br />

São Paulo no seu conjunto — eu tinha<br />

uns 20 anos — festejando a<br />

Ressurreição. E a Igreja, naquele<br />

tempo, o fazia no Sábado de Aleluia,<br />

ao meio-dia. Acompanhado de<br />

um amigo, subi então até o último<br />

andar da torre do santuário Coração<br />

de Jesus, onde ficamos à espera<br />

do festivo momento.<br />

Quando chegou meio-dia em ponto,<br />

ouvimos o timbre do bonito carrilhão<br />

da igreja que começava a tocar.<br />

Depois do silêncio sacral e sepulcral<br />

da Semana Santa, ecoavam os repiques<br />

dos sinos. E como não havia<br />

quase arranha-céus naquela época, o<br />

som se propagava, trazendo aos nossos<br />

ouvidos os tangeres dos sinos das<br />

mais variadas igrejas, a diferentes distâncias,<br />

bimbalhando festivamente<br />

junto com o sino fortíssimo do Coração<br />

de Jesus. Era um júbilo, um triunfo<br />

pascal com grandeza bíblica.<br />

Logo a alegria da Páscoa começava<br />

a se espalhar sobre a cidade. Soltavam-se<br />

rojões, e a molecada ia pelas<br />

ruas levando o judas para ser enforcado<br />

em árvores, em postes, espancado<br />

até cair e, finalmente, queimado.<br />

Já nas casas de família, as mães<br />

acendiam velas bentas diante das<br />

imagens de Nosso Senhor e de Nossa<br />

Senhora, para celebrá-los, e reuniam<br />

as crianças para rezar.<br />

Enfim, tinha-se a impressão de que<br />

até a natureza se rejubilava quando,<br />

ao meio-dia do Sábado Santo, soavam<br />

os sinos da Ressurreição. O Apóstolo<br />

diz esta palavra, que tudo resume:<br />

Absorta est mors in victoria. A morte<br />

foi tragada pela vitória! v<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ


Magnífica expressão<br />

do holocausto divino<br />

Entre os tesouros da arte barroca<br />

conservados em Minas<br />

Gerais reluz uma peça<br />

de extrema beleza, exposta à veneração<br />

dos fiéis na Igreja de São Francisco<br />

de Assis, na histórica cidade de São<br />

João del Rei. A origem dessa preciosidade<br />

é assim narrada pelas crônicas:<br />

Estava já a igreja no século XVII<br />

inteiramente terminada, inclusive em<br />

sua decoração interna, quando se percebeu<br />

faltar o elemento que deveria coroar<br />

o cimo do altar-mor: o Crucifixo,<br />

em que o Divino Crucificado dirigia a<br />

palavra a São Francisco.<br />

Pasmo da comissão encarregada da<br />

decoração! O que fazer? Os artistas contratados<br />

negavam-se a continuar por<br />

mais tempo os afazeres naquela igreja,<br />

alegando contratos a cumprir em outros<br />

lugares. E assim, ficou-se numa grande<br />

indecisão. Foi quando por aquelas<br />

plagas apareceu um nobre ancião, de<br />

feições muito dignas, oferecendo-se para<br />

esculpir o Crucificado, e desse modo<br />

encerrar a obra artística daquele templo.<br />

Não sendo conhecido de ninguém,<br />

e não podendo apresentar referências<br />

à altura da tarefa, mandaram-no embora.<br />

Passado um certo período, voltou o<br />

ancião, reiterando a sua oferta. Novamente,<br />

por falta de referências, foi rejeitado<br />

sem escrúpulos. Após mais um<br />

tempo, e não se tendo achado ainda<br />

nenhum outro artista que quisesse levar<br />

a obra a cabo, voltou pela terceira<br />

vez o bom velho, apresentando seus serviços.<br />

Não tendo outra escolha, os encarregados<br />

decidiram aceitá-lo, perguntando-lhe<br />

quais eram suas condições.<br />

Respondeu o ancião que não pedia nada<br />

antes de findo o serviço. Terminado,<br />

retribuiriam, caso julgassem a obra<br />

bem feita. Solicitava apenas que rece-<br />

Igreja de São<br />

Francisco, São<br />

João del Rei<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

besse uma refeição e uma medida de<br />

água por dia, à hora do almoço. Por<br />

outro lado, exigia fazer todo o trabalho<br />

sozinho, trancado em uma sala, sem comunicação<br />

com o exterior, a qual só<br />

seria rompida estando tudo acabado.<br />

Assim foi-lhe concedido.<br />

Transcorridos vários dias, verificaram<br />

os responsáveis que os alimentos<br />

deixados para o bom velho junto à porta<br />

da sala não estavam mais sendo retirados<br />

por ele. Reuniram-se então as<br />

autoridades e tomaram a decisão de arrombar<br />

a porta, a fim de saberem o<br />

que ali estava se passando. Entraram<br />

e... surpresa! O respeitável ancião havia<br />

desaparecido, e um Crucifixo magnífico,<br />

de traços como jamais se vira,<br />

estava ali inteiramente esculpido! Esse<br />

Crucifixo é o que se encontra hoje no<br />

topo do altar-mor da Igreja de São<br />

Francisco de Assis, em São João del<br />

Rei.<br />

Muitos crucifixos exprimem com<br />

doçura, dignidade e profundidade de<br />

alma extraordinárias a dor d’Aquele<br />

que está para expirar, e até o sangue<br />

divino escorre nobremente pelo corpo<br />

chagado. Dir-se-ia um desenho de<br />

beleza, os filetes vermelhos irrigando<br />

magnificamente a figura do Salvador.<br />

Mas nesse de São João del Rei —<br />

um dos mais belos e comovedores<br />

Crucifixos que tenho visto em minha<br />

vida —, está expresso de modo único,<br />

preciso e extremo o sofrimento<br />

espantoso de Nosso Senhor no alto<br />

da cruz. Não O magoa apenas a imensa<br />

tristeza causada pela perseguição<br />

injusta e pela ingratidão de que Ele é<br />

objeto.<br />

Os olhos escancarados e salientes,<br />

a tensão de toda a carnatura da face<br />

e a posição do pescoço incutem a impressão<br />

de algo muito mais aflitivo<br />

do que a dor: é o mal-estar. Um malestar<br />

terrível, pior do que qualquer<br />

padecimento, inundando completamente<br />

a Alma adorável e o sagrado<br />

Corpo de Nosso Senhor no madeiro.<br />

Dir-se-ia que, nesta posição e com<br />

essa expressão fisionômica, o Divino<br />

Redentor não estaria distante de exalar<br />

o brado sublime que precedeu de<br />

momentos a sua morte: “Meu Deus,<br />

meu Deus, por que me abandonastes?”<br />

Tudo n’Ele está prestes a estalar,<br />

a desaparecer. O “consummatum est”<br />

se aproxima.<br />

Sofrimento indizível cuja consideração<br />

deve nos preparar para nos unirmos<br />

a Jesus, pelos rogos de Maria<br />

Santíssima, em nossas dores, em nossas<br />

perplexidades e aflições de espírito,<br />

nas horas em que parecemos sucumbir<br />

ao peso da angústia e pensamos<br />

estar, nós também, abandonados<br />

pela Providência.<br />

Sim, também para nos infundir ânimo<br />

e coragem esse Crucifixo é verdadeiramente<br />

sublime! Como não nos<br />

enchermos de confiança e de força<br />

de alma, ao considerarmos tudo quanto<br />

Ele padeceu por nós? Ei-Lo no<br />

auge do estertor, do não caber mais<br />

em Si. É o mal-estar nos seus aspectos<br />

mais terríveis. E assim como o<br />

poeta francês cantou “le charme plus<br />

beau que la beauté” — o encanto<br />

34


mais belo que a beleza —, deste Crucificado<br />

eu diria que sofre “o mal-estar<br />

mais dolorido que a própria dor!”<br />

É o holocausto do Homem-Deus<br />

retratado de um modo magnífico. E<br />

essa perfeição de talhes justifica a suspeita<br />

de que o artífice, aquele “bom<br />

velho” desaparecido misteriosamente,<br />

não era senão um anjo, enviado<br />

por Deus para esculpir ali essa obraprima<br />

da arte católica. Esse é um Crucifixo<br />

cinzelado por mãos angélicas.<br />

Dir-se-ia, mesmo, que o artista celestial<br />

esteve presente no Calvário, viu<br />

a Nosso Senhor nesse estado, lembrou-se<br />

da adorável fisionomia que<br />

então contemplou e a reproduziu. De<br />

tal maneira essa face divina corresponde,<br />

não ao que poderíamos imaginar,<br />

mas ao que não logramos conceber.<br />

Somente depois de admirá-lo,<br />

percebemos que deve ter sido realmente<br />

assim...<br />

De passagem, cabe outro comentário.<br />

Nada há de mais contagioso do<br />

que o mal-estar. Por exemplo, se nos<br />

achamos perto de alguém que esteja<br />

padecendo de asfixia, facilmente nos<br />

deixamos tomar pela aflição dele, e<br />

logo parecemos acometidos por igual<br />

tormento. Ora, o divino mal-estar de<br />

Jesus, como seria contagioso para<br />

quem tivesse um mínimo de compaixão!<br />

Quiçá, não terá sido a consideração<br />

desse mal-estar em sua<br />

fase ascensional que tocou e converteu<br />

o bom ladrão? Mais. Incomparavelmente<br />

mais. Ao pé da<br />

Cruz encontrava-se<br />

Maria Santíssima:<br />

como A terá contagiado esse<br />

mal-estar? Que disposições de alma,<br />

que permuta de sentimentos determinou<br />

entre Ele e Ela, tão íntima, tão<br />

profunda, tão completa, tão total como<br />

nem podemos imaginar!<br />

Era preciso que um artista se inspirasse<br />

nesse Crucifixo para esculpir<br />

uma Mater Dolorosa. Então compreenderíamos<br />

melhor Nossa Senhora<br />

das Dores, a sua aflição, o<br />

gemido do mal-estar levado,<br />

n’Ela também,<br />

ao seu extremo. v<br />

Junto à cruz, aos pés de<br />

seu Divino Filho, estava<br />

Maria: que permuta de<br />

sentimentos, profunda,<br />

completa, total! É a Mater<br />

Dolorosa, cuja aflição<br />

chegou também a um<br />

extremo inimiagnável<br />

(Nossa Senhora<br />

das Dores, Bahia)<br />

35


“Por vossa bondade, salvai-me!”<br />

Nossa<br />

Senhora do<br />

Rosário,<br />

Espanha<br />

Óclemente, piedosa, doce e sempre Virgem Maria, rogai por nós, porque somos tudo o<br />

que somos, mas Vós sois tudo o que sois. Concebida sem pecado, nunca tivestes a menor<br />

falta, nunca deixastes de progredir em graça e virtude, na medida inteira que se esperava<br />

de Vós. Sois a Virgem de uma virgindade insondavelmente preciosa. Sois a Mãe de Deus, a<br />

Filha do Pai Eterno, a Esposa do Divino Espírito Santo.<br />

Tendes tudo para ser atendida, e sois cheia de misericórdia para com os pecadores. Um destes<br />

sou eu, que me ajoelho a vossos pés, a Vos suplicar: perdoai-me! Não olheis para os meus pecados<br />

mas para a vossa bondade. Olhai para o sangue que vosso Divino Filho derramou a fim de<br />

que eu fosse salvo. Pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes pela minha redenção.<br />

Assim, ó Mãe misericordiosa, não por meu mérito, mas por vossa bondade, salvai-me!

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