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REI DOS CÉUS,<br />
DA SOCIEDADE<br />
E DOS CORAÇÕES
Um dos belos afrescos de Giotto na Capella<br />
degli Scrovegni, em Pádua, retrata a cena do<br />
Batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Neófito,<br />
o Catecúmeno a ser banhado nas águas pela figura<br />
grandiosa de São João Batista, é apresentado em toda<br />
a sua majestade divina. Resplandecem n’Ele uma seriedade<br />
e uma tranqüilidade extraordinárias, que Lhe<br />
realçam ainda mais a condição de Rei e Senhor do Universo.<br />
Embora apareça com o tronco desnudo, sem nenhum<br />
atributo dessa realeza, Ele desperta profundo respeito<br />
e veneração, expressos na atitude inclinada do Batista.<br />
Enquanto isso, no céu chamejam raios e a glória<br />
de Deus transparece. É o momento em que uma voz<br />
ecoa da eternidade, exaltando o Messias: “Tu és o meu<br />
Filho amado; em ti eu pus as minhas complacências...”
Sumário<br />
Na capa, o<br />
“Beau Dieu<br />
d’Amiens”,<br />
França.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Jornalista Responsável:<br />
Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Marcos Ribeiro Dantas<br />
Edwaldo Marques<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02<strong>46</strong>1-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />
Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />
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4<br />
5<br />
6<br />
10<br />
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25<br />
EDITORIAL<br />
“Venha a nós o vosso Reino...”<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
5 de janeiro de 1945<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Bondade régia da Virgem do Miracolo<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Felicidade inocente e amor à lógica<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Obediência a Cristo Rei<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
A Igreja e a história<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
A falta de virtudes católicas<br />
Preços da assinatura anual<br />
Janeiro de 2002<br />
Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />
Colaborador . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />
Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />
Grande Propulsor . . . . . . R$ 370,00<br />
Exemplar avulso . . . . . . . R$ 8,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />
27<br />
31<br />
36<br />
DONA LUCILIA<br />
Envolta em filiais solicitudes<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Obra-prima da piedade católica<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Vínculo inestimável<br />
3
Editorial<br />
“Venha a nós o vosso Reino...”<br />
“Não sabemos os acontecimentos que nos reserva o<br />
milênio que está começando, mas temos a certeza de que<br />
este permanecerá firmemente nas mãos de Cristo, o ‘Rei<br />
dos reis e Senhor dos senhores’ (Ap 19,16)”, escreveu o<br />
Papa João Paulo II na Carta Apostólica Novo Millennio<br />
Ineunte.<br />
Esta bela e encorajante proclamação de Fé do Pontífice<br />
Romano nos reconduz ao sublime conceito católico<br />
da realeza de Nosso Senhor. Realeza que Lhe<br />
advém por direito, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima<br />
Trindade, sobre todas as coisas visíveis e invisíveis,<br />
das quais é criador. E de modo especial sobre a<br />
humanidade, porque, ademais, resgatou-a a preço de<br />
sangue. E não foi o próprio Jesus quem nos ensinou a<br />
rezar: “Pai nosso que estais no céu ... venha a nós o<br />
vosso Reino”? O Reino do Pai é o do Filho.<br />
Porém, nosso Redentor quer que seu senhorio sobre<br />
as almas seja calcado no consentimento do súdito.<br />
Não nos impõe seu domínio, mas bondosamente espera<br />
que cada um Lhe abra o coração.<br />
O homem de hoje, muito prático e com um tempo<br />
escasso para aprofundar suas reflexões, gostaria de<br />
uma clara indicação do que fazer para caminhar nessa<br />
direção. E neste ponto vem em nosso auxílio <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
incansável propugnador da idéia do reinado social de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele não hesita: o único e<br />
indispensável meio de concretizá-lo está na fidelidade<br />
aos ensinamentos da Igreja Católica. Assim, por exemplo,<br />
numa conferência no Colégio Santo Alberto, em<br />
São Paulo, há quase 60 anos afirmava:<br />
“Essa realeza consiste na conformidade de toda a<br />
estrutura social e de seus órgãos com as disposições dos<br />
Santos Evangelhos, vale dizer, com as determinações e<br />
ensinamentos da Santa Igreja, pois que não é possível<br />
separar-se uma da outra. Ora, este desideratum só se pode<br />
obter mediante uma renovação do homem segundo<br />
os ensinamentos de Jesus Cristo, a conformação de<br />
nossa inteligência, nossa vontade, nossos sentimentos<br />
com os da Igreja, vale dizer, os do Santo Padre, o Papa”.<br />
E, resumindo seu pensamento nessa ocasião, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> dizia que a chave do reinado de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo não é outra senão o “sentire cum Ecclesia,<br />
que é esta submissão amorosa a todas as palavras e<br />
orientações da Santa Sé” (Legionário, 5/11/1944).<br />
O leitor encontrará mais comentários de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
sobre este tema na seção “Eco fidelíssimo da Igreja”,<br />
na presente edição.<br />
*<br />
O primeiro calendário do milênio chegou ao fim.<br />
Suas folhas passarão para a história indicando um ano<br />
profundamente marcado por contrastes, o que é típico<br />
de épocas de transição. De um lado, graças escachoantes<br />
foram concedidas a grandes parcelas da opinião<br />
pública, fazendo antever a vitória do Imaculado<br />
Coração de Maria predita por São Luís Grignion de<br />
Montfort e outros santos. De outro, o espetacular atentado<br />
que fez desaparecer os edifícios do World Trade<br />
Center e o avanço do terrorismo bacteriológico somamse<br />
às mil tragédias pessoais que o desfazimento da família,<br />
os tropeços da economia, etc., alastram pela face<br />
da terra, provocando uma sensação de instabilidade,<br />
temor e angústia.<br />
De tudo isto, 2001 acabou deixando-nos uma certeza:<br />
a era da mediocridade, que dominou o século XX,<br />
está definitivamente encerrada. Não poderia haver<br />
hora melhor para pormos os joelhos em terra e implorarmos<br />
com redobrado fervor:<br />
“Venha a nós o vosso Reino!”<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
5 de janeiro de 1945<br />
Era um tempo em que se debatia a oportunidade<br />
da fundação, em São Paulo, de<br />
uma universidade católica. Sobre isto, um<br />
importante órgão de imprensa da época, o Diário<br />
de São Paulo, publicou declarações de diversas personalidades.<br />
Havendo dado grande destaque à entrevista<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o jornal justificava-se enumerando<br />
as credenciais do líder católico: muito conhecido<br />
em todo o país, fundador da Ação Universitária<br />
Católica, deputado à Constituinte de 1933 pela<br />
Liga Eleitoral Católica, professor universitário,<br />
presidente da Ação Católica paulista, diretor do Legionário,<br />
e detentor de uma “autoridade que lhe dá<br />
o valor de uma inteligência esclarecida no assunto”.<br />
Duas eram as principais objeções levantadas pelos<br />
opositores: São Paulo não comportava duas universidades;<br />
e uma instituição oficialmente católica restringiria<br />
o campo de suas investigações científicas, de maneira<br />
a não lecionar senão o ponto de vista católico,<br />
recusando entrar na análise das opiniões contrárias.<br />
Após haver mostrado ser comum, fora do Brasil,<br />
haver cidades menores que a capital paulista que<br />
contavam com mais de uma universidade, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
garantia que “serão lecionadas, a par da doutrina<br />
católica, e com toda a objetividade, as doutrinas de<br />
todos os pensadores ou cientistas anti-católicos”.<br />
Pois, continuava, “o ponto de vista da Igreja não é<br />
e nunca foi de que se deva fugir aos argumentos do<br />
adversário. Mas, pelo contrário, é de que, se eles<br />
forem expostos ao debate mais largo e inflexivelmente<br />
científico, cairão por si mesmos.”<br />
Depois mostrou a importância da universidade<br />
católica do ponto de vista religioso e patriótico: “Religioso,<br />
porque a direção do espírito humano se faz<br />
e se fará sempre através da alta cultura, e como a<br />
Igreja visa guiar para Jesus Cristo o espírito humano,<br />
ela não pode deixar de influenciar a alta cultura,<br />
impregnando-a do espírito cristão. (...) Do ponto<br />
de vista patriótico, a civilização brasileira é cristã.<br />
De tal maneira a alma brasileira assimilou o catolicismo,<br />
que se perdesse a fé ela perderia a identidade<br />
consigo mesma. Conservar católico o Brasil,<br />
ainda mesmo no ponto de vista exclusivamente<br />
patriótico, é obra essencial.”<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, à esquerda, expõe ao redator do “Diário de São Paulo” suas idéias sobre<br />
a fundação da Universidade Católica<br />
5
DR. PLINIO COMENTA...<br />
A Madonna<br />
del Miracolo,<br />
venerada na<br />
igreja de Santo<br />
Andrea delle<br />
Fratte, em Roma<br />
Bondade régia da<br />
Virgem do Miracolo
S<br />
egundo afirma <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, um estupendo milagre ocorrido<br />
no século XIX prefigura os prodígios de conversão<br />
que a Santíssima Virgem deverá operar em nossos<br />
dias, tornando-se Ela a Rainha de todos os corações.<br />
Entre as centenas de igrejas que a piedade católica<br />
edificou na Cidade Eterna está a de Santo Andrea<br />
delle Fratte (Santo André dos Frades), onde<br />
se venera uma linda imagem de Nossa Senhora, sob a invocação<br />
de Madonna del Miracolo, ou Nossa Senhora do Milagre.<br />
Como facilmente se intui, esse título se refere a um<br />
grande milagre realizado pela Mãe de Deus, no mesmo lugar<br />
onde hoje é cultuada por seus inúmeros devotos.<br />
bela túnica comprida, presa à cintura por uma faixa preciosa;<br />
pousava os pés virginais sobre a toalha de linho do altar,<br />
e lhe sorria maternalmente, com os braços estendidos e<br />
as mãos abertas. Como se vê, a mesma silhueta da imagem<br />
esculpida na medalha que ele então trazia.<br />
A conversão do judeu Ratisbonne<br />
Era 20 de janeiro de 1842. Que se passou naquela ocasião?<br />
Para a maioria dos que então se encontravam em Roma,<br />
era apenas mais um dia frio e corriqueiro de inverno. Não<br />
o seria, porém, para um turista de passagem pela capital da<br />
Cristandade.<br />
Afonso Tobias Ratisbonne, francês aparentado com a influente<br />
família dos Rotschild, era judeu de raça e religião.<br />
Mais dado ao ceticismo, alimentava uma não pequena animosidade<br />
contra a fé católica. Naquele dia, porém, cedendo<br />
aos rogos do Barão de Bussières (que desejava a conversão<br />
dele), e um tanto por bravata, concordou em colocar ao<br />
pescoço a Medalha Milagrosa, muito difundida no período<br />
imediato às aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina<br />
Labouré, em 1830, na capela das Filhas da Caridade, na<br />
rue du Bac, em Paris.<br />
Além disso, a convite do mesmo amigo, dirigiram-se à<br />
igreja de Santo Andrea delle Fratte, onde o Barão devia encomendar<br />
uma missa de sétimo dia pela alma de um conhecido.<br />
Chegados ali, o amigo foi até a sacristia, enquanto<br />
Ratisbonne, por um interesse artístico, mas com ar meio de<br />
mofa, começou a percorrer o recinto sagrado, detendo-se<br />
aqui e ali, diante dos altares laterais. Quando o Barão retorna,<br />
depara com esta cena surpreendente: o judeu ajoelhado,<br />
completamente em êxtase, transfigurado, rezando com<br />
inusitado fervor em frente de uma das capelas secundárias.<br />
O Barão de Bussières apressou-se em lhe perguntar o que<br />
acontecera, e Ratisbonne comovidíssimo abraçou-o dizendo:<br />
— Eu vi a Mãe de Jesus Cristo! Ela me apareceu.... aqui!<br />
E descreveu a aparição de Nossa Senhora, cuja celestial<br />
figura correspondia em tudo à que vira Santa Catarina<br />
Labouré, alguns anos antes, em Paris. Segundo ele, a Santíssima<br />
Virgem cingia uma coroa de Rainha e vestia uma<br />
Emocionado e convertido, o judeu Ratisbonne<br />
(acima, já ordenado sacerdote) narrou a aparição<br />
de Nossa Senhora, que se lhe mostrou tal como<br />
Ela figura na Medalha Milagrosa<br />
7
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Ante essa extraordinária visão, Ratisbonne compreendeu<br />
que se encontrava na presença da Mãe de Deus: caiu de<br />
joelhos e se converteu no mesmo instante.<br />
Poucos anos depois tornar-se-ia o Padre Afonso Maria<br />
Ratisbonne, secundando seu irmão na fundação da Congregação<br />
do Sion, voltada de modo particular para o apostolado<br />
católico com os israelitas.<br />
Estratégia da Providência contra a<br />
impiedade<br />
A notícia dessa conversão logo se difundiu, revestindose<br />
de profundo significado no contexto psicológico e doutrinário<br />
da época. No século XIX, a impiedade insistia no sofisma<br />
de que o homem racional, procurando julgar as coisas<br />
de acordo com a razão, não encontra fundamentos suficientes<br />
para afirmar a veracidade da Igreja Católica. Não tem<br />
meios de provar que Deus existe, que Jesus Cristo é Deus,<br />
que a Igreja tenha sido fundada por Ele. Portanto, todo o<br />
edifício das doutrinas e da Fé no catolicismo não passa de<br />
um arcabouço inaceitável e ilegitimável pela razão humana.<br />
É um mito, como qualquer outro da antiguidade romana ou<br />
grega, como os da religião hindu ou das crenças africanas.<br />
Não poucas almas estavam perdendo a Fé, cedendo culposamente<br />
ao dilúvio de objeções — a maior parte das quais<br />
constituída por chicanas e sofismas, além de alguns argumentos<br />
capciosos contra a Igreja Católica. A fim de combater<br />
essa investida diabólica, a Providência fez milagres em<br />
diversos lugares, e o ocorrido na Igreja de Santo Andrea delle<br />
Fratte foi um dos mais insignes a comover a Cristandade.<br />
Qual fato poderia causar maior estupor do que um filho<br />
do judaísmo, aparentado com uma das famílias mais ricas<br />
do mundo, sem a menor necessidade de agradar a Igreja Católica,<br />
declarar-se de repente convertido por ter visto Nossa<br />
Senhora? E que, como prova de sua sinceridade, abandona<br />
a vida mundana e abraça para sempre uma existência<br />
de renúncia e sacrifício. Ainda por cima, ajuda a fundar<br />
uma Congregação religiosa destinada a trabalhar pela conversão<br />
de seu povo. Maior manifestação de autenticidade,<br />
ele não poderia dar.<br />
Para a humanidade daquele tempo, sacudida pela multidão<br />
de argumentos dos inimigos da Religião Católica, esse evidente<br />
milagre caía como uma refrescante gota d’água num deserto.<br />
Nossa Senhora desferia um golpe sumamente estratégico<br />
e bem calculado, pisando na cabeça da serpente infernal.<br />
Pelo testemunho de um ex-adversário, Ela demonstrava<br />
de modo maravilhoso quanto a Igreja Católica é verdadeira.<br />
Pouco depois, como num requinte desse “plano de ataque”,<br />
Ela daria início aos milagres de Lourdes, que viriam<br />
a constituir a mais acentuada série de celestiais prodígios<br />
na história da Igreja.<br />
Diante da imagem, uma contínua<br />
“aparição”<br />
Logo depois da aparição a Ratisbonne, foi pintada a imagem<br />
da Madonna del Miracolo, de acordo com as indicações<br />
do vidente. Como sói acontecer, o símbolo ficou devendo à<br />
Simbolizada, pois, por mais bela que seja a figura retratada<br />
por mãos humanas, a formosura de Nossa Senhora excede<br />
Vista da cidade<br />
de Roma no<br />
século XIX,<br />
poucos anos<br />
depois daquele<br />
20 de janeiro em<br />
que a Virgem<br />
operou o milagre<br />
da conversão de<br />
Afonso Tobias<br />
Ratisbonne<br />
8
a qualquer esplendor. Ela não é pintável, assim como não<br />
é descritível.<br />
Trata-se de uma imagem romântica, bem no estilo do<br />
século XIX, bastante comunicativa, e que deve ser vista<br />
com certo recuo. Ou seja, contemplada com olhos que sejam<br />
capazes de ver muito mais e além do que os próprios<br />
olhos possam apreender. Há nela um sorriso, uma expressão<br />
de fisionomia, uma afabilidade no gesto, que transcendem<br />
a cor do vestido e outros pormenores dos adornos.<br />
Considerando-a, certas almas chegam mesmo a sentir algo<br />
do autêntico sorriso de Nossa Senhora.<br />
Ela cria em torno de si uma atmosfera sumamente benfazeja.<br />
As pessoas que rezam diante do quadro, na Igreja<br />
de Santo Andrea delle Fratte, mantêm-se em geral recolhidas,<br />
deixando perceber em suas faces o quanto se sentem<br />
penetradas pelas graças efundidas pela Santíssima Virgem.<br />
Envolve-as uma impressão de paz e calma, de céus abertos,<br />
e de que Nossa Senhora, exorável, dispõe-Se a atender<br />
a todos os pedidos. Uma sensação de que o tempo não se<br />
encontra apartado da eterna bem-aventurança, e de que a<br />
benignidade de Nossa Senhora transpõe distâncias incomensuráveis<br />
para se nos tornar acessível e acolhedora. Experimenta-se<br />
uma verdadeira consolação, uma verdadeira confiança,<br />
uma verdadeira resignação, uma certeza de que, em<br />
última análise, tudo dará certo.<br />
Lembro-me, emocionado, de que venerei essa imagem<br />
em dias de muitas e penosas preocupações. Nesse período,<br />
o sorriso dela era a grande esperança que me iluminava e<br />
guiava, beneficiando-me da unção característica que ela comunica<br />
em torno de si.<br />
Em diversos momentos, era tomado pela impressão singular<br />
de que a pintura continuava a aparição, adquirindo<br />
uma luminosidade cambiante, uma luz que me sorria mais ou<br />
menos conforme o dia e conforme o modo de Nossa Senhora<br />
olhar-me. Isso trazia uma espécie de garantia de graça<br />
concedida, de bondade dada, de favor outorgado, a sensação<br />
de que o sorriso de Nossa Senhora cicatrizava todas<br />
as dores e sofrimentos do dia, e me armava de alento para<br />
a jornada seguinte.<br />
Nesse tempo que passei em Roma, cheio de momentos<br />
aprazíveis, mas também de graves apreensões, essa imagem<br />
me animou numerosas vezes com uma contínua efusão de<br />
graças. Consolou-me, fazendo-me sentir que Ela estava mais<br />
próxima de mim, a espargir seu incansável amor materno.<br />
Pedir e esperar grandes milagres que<br />
renovem o mundo<br />
Uma consideração final.<br />
A Virgem do Miracolo é, portanto, a Virgem que praticou<br />
um grande milagre. Ela converteu, de um momento para<br />
outro, um homem mundano, com toda espécie de preconceitos<br />
contra a Religião Católica. Passando por cima<br />
dessas tremendas barreiras, Nossa Senhora fez o milagre<br />
de o converter, maior até que o de lhe aparecer. Por assim<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na época de sua permanência em Roma,<br />
quando se beneficiou das inestimáveis graças efundidas<br />
pela Madonna del Miracolo<br />
dizer, Ela entrou na alma dele e o transformou completamente.<br />
É o milagre moral, mais estupendo que qualquer<br />
milagre material.<br />
Cumpre observar que, em virtude de uma lei superior<br />
da Providência, milagres assim tornam-se mais freqüentes<br />
nas épocas em que são mais necessários. Desse modo, sempre<br />
que a situação no mundo vai se apresentando mais precária,<br />
que a impiedade vai crescendo — como vemos em<br />
nossos dias —, o número de milagres deverá aumentar.<br />
Poderão demorar mais ou menos tempo para começar,<br />
mas virão na hora certa e farão sua obra.<br />
E nós, católicos, devemos contar com eles para abrirmos<br />
caminho no meio de tantas provações, confusões e decadências.<br />
Deus tem desígnios e mistérios que não nos cabe alcançar.<br />
Apenas devemos confiar e esperar que Ele, a rogos de<br />
Maria Santíssima, intervenha de modo miraculoso para tocar<br />
o coração da humanidade contemporânea.<br />
Por ocasião da festa de Nossa Senhora do Miracolo, nada<br />
mais oportuno do que pedirmos com fervor e empenho<br />
que Ela, como fez com Ratisbonne, entre triunfalmente<br />
em nossas almas e nas de todos os homens, vencendo nossos<br />
vícios, nossos pecados, nossas misérias e quaisquer outros<br />
obstáculos que pudéssemos Lhe opor. De maneira que<br />
Ela se torne verdadeiramente Rainha de nossos corações,<br />
e opere um maravilhoso milagre moral que transmude e<br />
renove a face do mundo.<br />
v<br />
9
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
<strong>Plinio</strong>, aos<br />
oito anos<br />
10
Felicidade inocente<br />
e amor à lógica<br />
Após uma infância plena de felicidade, regada de graças sensíveis,<br />
o papel do amor à lógica no momento da opção decisiva,<br />
ao se iniciarem as lutas da adolescência. Eis um resumo do itinerário<br />
espiritual de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, conforme ele mesmo diz.<br />
Nossa Senhora me obteve,<br />
no tempo de minha inocência,<br />
uma felicidade muito<br />
grande, no sentido de acreditar que as<br />
coisas fossem boas. De um lado, eu<br />
percebia muito bem o que<br />
elas tinham de reto e de<br />
santo; em segundo lugar,<br />
isso me dava uma grande<br />
felicidade terrena.<br />
De maneira que eu fui<br />
um menino profundamente<br />
feliz. Quase angelicamente<br />
feliz.<br />
E pela ordenação com<br />
que a graça punha isso<br />
na minha alma, a fonte<br />
principal de minha felicidade<br />
não era usufruir de<br />
alguma coisa determinada,<br />
mas sim notar no que<br />
aquilo, no fundo, era santo.<br />
O que se passava comigo<br />
poderia até escandalizar<br />
uma pessoa para<br />
quem um menino muito<br />
chamado deveria ter desejo<br />
de fazer sacrifícios,<br />
de flagelar-se, etc.<br />
Não era o que ocorria.<br />
Era algo que, sob certo<br />
ponto de vista, preparava-me<br />
para a vocação<br />
que Nossa Senhora me<br />
deu.<br />
Um bem-estar físico,<br />
corolário do amor à virtude<br />
Mãe do Bom Conselho, cultuada na capela do Colégio<br />
São Luís. O pequeno <strong>Plinio</strong> costumava rezar diante dela.<br />
“Nossa Senhora era bem a causa da minha alegria!”<br />
Por exemplo, em casa, sábado à noite<br />
trocava-se a roupa de cama. Quando<br />
era hora de dormir, e eu via que a<br />
roupa de cama estava fresca, dava-me<br />
grande satisfação deitar-me ali, e sentir<br />
o frescor, a boa categoria da roupa<br />
de cama, o conforto, o gáudio inocente<br />
que isso dava. Mas o<br />
que mais me causava contentamento<br />
era ver que<br />
isso tinha relação com a<br />
santidade, por ser bom,<br />
reto e ordenado.<br />
A roupa de cama limpa,<br />
como uma lavadeira<br />
negra, chamada Madalena,<br />
sabia preparar (e ela<br />
era tida como admirável<br />
nesse ponto), deixava sentir<br />
algo de especial. Apesar<br />
de ser doente, a Madalena<br />
timbrava em cumprir<br />
seu ofício de modo<br />
exímio. E eu gostava de<br />
olhar quando ela, meio<br />
reumática, descia para a<br />
lavanderia, que ficava na<br />
parte baixa da casa, pegava<br />
pilhas de roupa de<br />
cama e colocava sobre<br />
uma mesa, para as empregadas<br />
dos vários moradores<br />
irem pegar. Aquela<br />
roupa vinha como que<br />
nimbada de alguma coisa<br />
que, no fundo, era a<br />
pureza. E a Madalena<br />
era, aliás, muito piedosa.<br />
11
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Depois de a roupa de cama ser trocada,<br />
eu sentia um gosto físico em deitar-me<br />
ali, que era corolário do prazer<br />
espiritual da pureza que transparecia<br />
naquilo. Eu passava a mão embaixo do<br />
travesseiro, sentia aqueles lençóis frescos,<br />
limpos, com um pouquinho de goma;<br />
e a fronha também. Isto me dava<br />
um bem-estar físico dentro do qual eu<br />
sentia o gosto da virtude.<br />
Assim ocorria com cem outros gáudios!<br />
Eu era uma criança muito alegre,<br />
e de um gênio muito igual.<br />
Essa situação constituía um horizonte<br />
de deleite terreno que tinha como<br />
centro a felicidade de ser puro, de ter<br />
fé, de ser um bom menino que sentia<br />
a graça palpitar. Sem ainda saber no<br />
que consistia a graça, eu a sentia e me<br />
regozijava.<br />
Essa ordenação rumo a Deus era a<br />
fonte da minha alegria. A Ladainha de<br />
Nossa Senhora chama Nossa Senhora<br />
Causa nostrae Laetitiae. Era bem a<br />
causa da minha alegria.<br />
Eu percebia com toda a lógica qual<br />
era a coerência da posição para que eu<br />
era convidado por Deus; uma posição<br />
coerente com Ele mesmo; e a da posição<br />
para a qual me chamava o demônio,<br />
por seu lado coerente com ele. As<br />
coerências das duas vias me eram inapelavelmente<br />
claras.<br />
A luta me causava um entusiasmo,<br />
sem vibração, mas enorme, pela lógica.<br />
Eu pensava: “Ela é a luz da vida, é tudo,<br />
é a lógica! Eu preciso ser lógico. A lógica<br />
me leva a essa escolha. À vista disso,<br />
verei o que fazer. A lógica me obriga<br />
a um calvário. Eu preciso aceitá-lo...”<br />
Punham-se para mim, então, duas<br />
idéias: a busca da felicidade, sim; mas<br />
ainda que não houvesse felicidade, a<br />
lógica impunha sacrificar tudo para seguir<br />
aquilo que eu devia seguir.<br />
Pecado contra a lógica<br />
Parecia-me que a maior vilania que<br />
se poderia fazer não estava tanto em<br />
seguir os apelos do corpo, mas em ser<br />
tíbio no tocante à lógica.<br />
Há gente que pensa: “A lógica pode<br />
me mostrar tal coisa, mas eu não<br />
me incomodo com a lógica. O que eu<br />
tenho a ver com ela? Eu a vi, porém<br />
não a amei. Mais ainda. Achei que podendo<br />
fraudá-la, ludibriava a vida. Não<br />
dei meu coração a ela, não quis ser inteiramente<br />
lógico. Quis, pelo contrário,<br />
viver de fraudes”.<br />
Convite para trocar a<br />
felicidade pelo gozo<br />
Em determinado momento estoura<br />
uma bombarda. Começam as solicitações<br />
que desfecham nisso: “Rompa com<br />
a causa de sua alegria, e deixe de ser<br />
diferente. Do contrário, você passará<br />
por um dilúvio de padecimentos (eu<br />
percebi isso logo perfeitamente). Se você<br />
se mantiver fiel, veja bem o que o<br />
espera!”<br />
Quer dizer: “Não se iluda! Esta vida<br />
suave que você leva só poderá ser gostosa<br />
se você trucidar a causa de suas<br />
alegrias atuais. Do contrário, elas vão<br />
se transformar em dor, e você vai ter<br />
luta!”. Esta opção se apresentou para<br />
mim com toda a clareza.<br />
Vinha-me a idéia muito clara de que<br />
a felicidade que eu obteria, se fosse infiel<br />
à inocência, seria uma felicidade<br />
sporcatta. Seria um gozo, mas não uma<br />
felicidade.<br />
E eu fiz esta escolha: ainda que me<br />
tornasse infeliz, eu queria a união com<br />
Deus, com Nossa Senhora, com a Igreja;<br />
em alguma medida, com mamãe.<br />
E aí começou a batalha!<br />
Exímia formadora, a Fräulein Mathilde, com seu espírito alemão,<br />
foi um dos instrumentos da Providência<br />
para incutir em <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> um grande amor à lógica<br />
12
A lógica não impressiona essas almas,<br />
para elas não significa nada: “A<br />
lógica? Ora, a lógica... Vamos tocando<br />
a vida!” Muita gente infelizmente<br />
é assim.<br />
Essa espécie de tédio diante da lógica<br />
pode ser pior que a própria impureza.<br />
Amor à lógica e estudo de<br />
latim<br />
Eu amava imensamente a lógica.<br />
Nesse ponto Nossa Senhora me preservou,<br />
utilizando principalmente três<br />
instrumentos: acima de tudo, a Religião<br />
Católica; depois, a Fräulein Mathilde,<br />
minha governanta alemã, e o jesuíta<br />
Mestre Costa, meu professor no Colégio<br />
São Luís.<br />
Na Fräulein Mathilde, eu admirava<br />
enormemente aquela lógica do espírito<br />
germânico, que chega até o fim. Se<br />
há um dever a cumprir, é preciso fazer,<br />
não tem remédio. Ainda que for desagradável,<br />
não se pode recuar. Eu às vezes<br />
me impacientava, porque era obrigado<br />
a fazer algo penoso. Coisas<br />
de menino...<br />
A Fräulein me obrigava, por<br />
exemplo, a decorar as declinações<br />
em latim: rosa, rosa, rosae...<br />
Qual é a primeira declinação,<br />
qual é a segunda,<br />
a terceira, a quarta, a quinta?<br />
Os casos: nominativo, genitivo,<br />
dativo, ablativo, acusativo, vocativo...<br />
Depois no plural, no singular.<br />
Substantivo masculino, feminino,<br />
neutro, etc.<br />
Eu tinha má memória para coisas<br />
que é preciso decorar. E na nossa<br />
sala de estudos em casa — minha, de<br />
minha prima e de minha irmã —<br />
havia uns aparelhos de ginástica, entre<br />
os quais uma escada, presa por um<br />
gancho no teto quando havia falta de<br />
espaço. Quando não, ficava no chão.<br />
Eu arranjava um jeito de trazer a escada<br />
para baixo e trepava até o último<br />
degrau, por causa de impaciência e de<br />
aflição.<br />
A Fräulein continuava a fazer perguntas,<br />
e no alto da escada eu respondia.<br />
“Vieram os Exercícios<br />
Espirituais de<br />
Santo Inácio de Loyola.<br />
Ah! A lógica! Não tem coisa igual!”<br />
Ela, de baixo, mantinha a calma:<br />
— Pliniô! Rosa, rosa... Diga de novo!<br />
Eu me virava para o outro lado da<br />
escada, e de costas continuava a falar.<br />
Mas via aquela calma dela, e aquela<br />
obstinação. Tinha de ser!<br />
Eu passava a aula inteira mexendome<br />
naquela escada. Mas acabava por<br />
13
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Eu pensava: “Esse mestre sabe<br />
isto porque está aprendendo aqui.<br />
De quem? De Santo Inácio! Foi<br />
quem fundou isto, e organizou<br />
assim”.<br />
Pela mesma época conheci<br />
os Exercícios Espirituais<br />
de Santo<br />
Inácio: “Ahhhh!<br />
Lógica! Não tem<br />
igual! Mas, então,<br />
a vida tem de ser<br />
lógica. E só tem<br />
beleza, digna de ser<br />
vivida, se for coerenconcluir<br />
o seguinte: “Ela, afinal de contas,<br />
é uma educadora excelente!” E era.<br />
Eu dificultei o trabalho dela, mas nós<br />
nos entendemos. Não me revoltei contra<br />
ela, e criava dificuldade até certo<br />
limite. Ela entendeu e tolerou. Mas<br />
nunca consentiu que minhas atitudes<br />
a contagiassem. Ficava sentada à mesa<br />
com minha irmã e minha prima, e<br />
nem olhava para mim na escada.<br />
— Pliniô!<br />
— O que é?!<br />
— Rosa, rosa, rosae... — dizia ela<br />
com o livro aberto. Eu esbravejava interiormente,<br />
mas não me manifestava.<br />
Mas aprendia a lição.<br />
Ao terminar, eu percebia que tinha<br />
aprendido as declinações. Mais ainda:<br />
percebia que tinha tomado um certo<br />
gosto pela lógica da composição da frase<br />
latina. E a lógica da ordem inversa:<br />
“Como é bonita a ordem inversa!”<br />
Porque é muito bonita.<br />
E saía de lá pensando: “Afinal, não<br />
deixa de ser verdade que essa declinação<br />
é para o espírito o que essa escada<br />
é para o corpo. A gente sobe, desce, entra<br />
por aqueles vãos, etc., mas sai de<br />
dentro mais forte. Assim aqui também,<br />
aquela conjugação... Como é, então:<br />
qual é o sujeito, qual é o verbo, qual é<br />
o objeto direto, qual é o objeto indireto,<br />
o que é que faz aqui o substantivo,<br />
o que é que faz o adjetivo, o que é que<br />
faz a preposição, etc.<br />
Aquela mecânica toda das palavras<br />
no latim, um pouco parecida com a<br />
mecânica celeste, acabava me regalando.<br />
O entusiasmo pela lógica é<br />
o esteio da alma<br />
Mais ou menos nesse tempo, quando<br />
o aprendizado com a Fräulein ia terminando,<br />
eu estava começando meus<br />
estudos no Colégio São Luís.<br />
Eu tinha um professor amazonense,<br />
que ainda não era padre, mas estava<br />
naquele estágio que os jesuítas chamam<br />
de mestre. Era o já mencionado<br />
Mestre Costa, muito loquaz, mas de<br />
uma extraordinária lógica no raciocínio,<br />
que eu percebia ter sido aprendida<br />
na Companhia de Jesus.<br />
te. E se eu tiver que sofrer, porque essa<br />
lógica impõe um medonho sofrimento,<br />
eu quero ou não quero esse sofrimento?<br />
Já que Nosso Senhor morreu por<br />
mim na Cruz, etc., eu quero! E vou caminhar<br />
por essa via até onde tiver de ir!”<br />
Há um entusiasmo pela lógica que<br />
vale mais do que qualquer entusiasmo<br />
sentido. E esse é de fato o esteio da<br />
alma. Porque o entusiasmo pela sensação<br />
é como a maré: sobe, desce de<br />
O Pe. Costa e<br />
alguns dos<br />
prêmios que<br />
<strong>Plinio</strong> recebeu<br />
por seu bom<br />
aproveitamento<br />
nos cursos<br />
lecionados pelo<br />
Mestre jesuíta<br />
acordo com a lua. Mas, pela lógica, não.<br />
Sendo-se inteiramente lógico, inexoravelmente<br />
as coisas caminham.<br />
O entusiasmo vem da persuasão de<br />
que tudo o que não vá na via da lógica<br />
acaba sendo mentira, fraude, frustração,<br />
catástrofe, derrota, sujeira.<br />
Por maiores que sejam as adversidades<br />
que venham por cima de nós, se<br />
formos lógicos, o resultado acaba sendo<br />
magnífico.<br />
v<br />
14
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
“Cristo no seu<br />
trono”, mosaico<br />
da Basílica de<br />
Santa Maria Maior,<br />
em Roma<br />
OBEDIÊNCIA A<br />
CRISTO REI
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
H<br />
á séculos os católicos mantêm o belíssimo culto a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo enquanto Rei de todas as criaturas. Mas, além das<br />
orações e da veneração aos símbolos, é preciso fazer algo mais<br />
para honrar essa divina realeza. O quê? <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> o diz neste artigo.<br />
Adoutrina da realeza de Jesus<br />
Cristo está intimamente<br />
ligada à antiga e belíssima<br />
prática da entronização do Sagrado<br />
Coração de Jesus nos lares. Se alguém<br />
entroniza a imagem do Sagrado<br />
Coração de Jesus no lugar mais rico e<br />
mais nobre do lar, é exatamente porque<br />
reconhece que Ele é rei.<br />
Entretanto — triste constatação! —<br />
essa piedosíssima prática acha-se em<br />
nossos dias quase completamente abandonada.<br />
Nessas condições, talvez não seja supérfluo<br />
recordar aqui a doutrina tradicional<br />
da Igreja sobre a realeza de<br />
Cristo.<br />
Na sua infinita misericórdia, Deus<br />
dignou-se comparar o amor infinito com<br />
que nos ama, ao amor que nos têm nossos<br />
pais. Evidentemente, não quer isto<br />
dizer que Ele tenha reduzido na comparação<br />
as insondáveis dimensões de<br />
seu amor, para as amesquinhar até as<br />
proporções exíguas dos afetos de que<br />
os homens são capazes. Se Ele se serviu<br />
dessa comparação do amor paterno,<br />
foi apenas para nos dar a entender,<br />
de longe, o quanto Ele nos ama.<br />
Se dermos à palavra “pai” o sentido<br />
que ela tem na ordem natural, Deus<br />
não é apenas nosso Pai, mas, muito<br />
mais do que isto, por ser nosso Criador.<br />
Porém, como a função de pai, na<br />
natureza, não é senão a de coadjuvar<br />
Deus na obra da criação, se alguém<br />
merece na realidade o nome de Pai, é<br />
Deus. E nosso pai segundo a natureza<br />
outra coisa não é senão o depositário<br />
de uma parcela da paternidade que<br />
Deus tem sobre nós.<br />
O mesmo se dá com a realeza de<br />
Jesus Cristo. Para nos fazer compreender<br />
a autoridade absoluta que, como<br />
Deus, Ele tem sobre nós, Jesus<br />
Cristo dignou-se comparar-se com um<br />
rei. Entretanto, como é por Ele que<br />
O único modo de<br />
obedecermos a Cristo Rei é<br />
conhecer sua vontade,<br />
através do estudo dos<br />
Mandamentos e do<br />
Catecismo, e segui-la<br />
(“Cristo ensinando aos Apóstolos”,<br />
igreja de Santo Ambrósio, Pavia)<br />
16
Ao lado da oração<br />
e da prática dos<br />
Sacramentos, é<br />
pela filial e assídua<br />
devoção à Santíssima<br />
Virgem que conquistaremos<br />
para<br />
Nosso Senhor o reino<br />
d’Ele dentro<br />
de cada um de nós<br />
(“Imaculada Conceição”, oratório<br />
na Praça Banchi, em Gênova)<br />
reinam os reis, e a autoridade dos reis<br />
só é autêntica por provir d’Ele, na realidade<br />
o único Rei, Rei por excelência,<br />
é Ele. E os reis ou chefes de Estado<br />
não são senão seus humildes acólitos,<br />
dos quais Ele se digna servir-se na<br />
obra da direção do mundo. Cristo é Rei<br />
por ser Deus. Chamando-O de Rei, queremos<br />
simplesmente afirmar a onipotência<br />
divina, e nossa obrigação de obedecer-Lhe.<br />
Obediência! Eis aí um dos conceitos<br />
contidos essencialmente no conceito<br />
da realeza de Nosso Senhor. Cristo<br />
é Rei, e a um rei deve-se obediência.<br />
Festejar a realeza de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo é festejar seu poder sobre<br />
nós. E, implicitamente, nossa obediência<br />
em relação a Ele.<br />
Como é que se obedece a um rei?<br />
A resposta é simples: conhecendolhe<br />
as vontades e cumprindo-as com<br />
amorosa e pormenorizada exatidão.<br />
Assim, pois, o único modo de obedecermos<br />
a Cristo Rei é conhecer sua vontade,<br />
e segui-la.<br />
Dessa noção tão clara, tão simples,<br />
tão luminosa, segue-se um programa<br />
de vida, também ele claro, luminoso e<br />
simples.<br />
Para conhecer a vontade de Cristo<br />
Rei, devemos conhecer o Catecismo.<br />
Porque é ali, através do estudo dos<br />
Mandamentos, estudo este que só será<br />
completo com o estudo de toda a doutrina<br />
católica, que conhecemos a vontade<br />
de Deus. E para seguir essa vontade,<br />
devemos pedir a graça de Deus<br />
pela oração, pela prática dos Sacramentos<br />
e por nossas boas obras. Finalmente,<br />
pela vida interior, isto é, pela<br />
devoção a Nossa Senhora — tesouro<br />
doutrinário e espiritual constituído pela<br />
Igreja ao longo dos séculos —, seguiremos<br />
a vontade de Deus.<br />
Disse Nosso Senhor que o Reino de<br />
Deus está dentro de nós mesmos. Ora,<br />
este pequeno reino — pequeno como<br />
extensão mas infinito como valor,<br />
porque custou o Sangue de Cristo —<br />
cada um de nós deve conquistar para<br />
Nosso Senhor, destruindo tudo aquilo<br />
que, dentro de nós, se oponha ao cumprimento<br />
de sua Lei.<br />
Finalmente, as leis de Cristo se aplicam,<br />
não apenas a um indivíduo em<br />
particular, mas aos povos e nações.<br />
Que os povos conheçam e pratiquem<br />
na sua organização doméstica, social e<br />
política, os ensinamentos tradicionais<br />
da Igreja, que são a expressão da própria<br />
vontade de Deus, e Jesus Cristo<br />
será Rei.<br />
(Transcrito da “Última Hora”,<br />
de 8/1/1982. Título nosso.)<br />
17
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
A Igreja<br />
e a História
E<br />
screvemos este livro a fim de esboçar, nas linhas gerais, a<br />
admirável fisionomia da Cristandade, espelho da fisionomia<br />
de Cristo, como a criatura é espelho do Criador, e a obra é espelho<br />
do artista.<br />
Assim começava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> o exórdio do livro “Cristandade — A<br />
chave de prata”, que ficou inacabado. Continuamos a transcrevê-lo<br />
nestas páginas.
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Para se compreender em toda<br />
a sua profundidade os documentos<br />
de Leão XIII, é necessário,<br />
antes de tudo, ter em consideração<br />
qual é, na mente de seu autor, a<br />
natureza e o fim desses documentos.<br />
Um escritor — que seja matemático,<br />
poeta ou historiador, por exemplo<br />
— não se julga, em via de regra, pessoalmente<br />
responsável pelos destinos<br />
da ciência, da poesia, da pátria, e por<br />
isso não escreve necessariamente para<br />
intervir numa determinada ordem de<br />
acontecimentos culturais, sociais ou políticos,<br />
para os incrementar ou combater.<br />
Limita-se a expor — sem outro<br />
objetivo — o que pensa ou sente.<br />
Um escritor, ademais, não é necessariamente<br />
um mestre. Seu livro — e<br />
é o que sucede com a maioria dos<br />
livros — pode não ensinar fatos ou<br />
doutrinas, mas apenas propô-los ao<br />
conhecimento de terceiros.<br />
E, quando expõe ou analisa o pensamento<br />
de terceiros, o escritor sabe que<br />
é falível, que pode ter dado a esta palavra<br />
ou àquele matiz do autor um sentido<br />
que este talvez não tivesse em mente.<br />
De modo geral, o escritor procura<br />
não ser mero intérprete ou expositor<br />
do pensamento de terceiros, preferindo<br />
acrescentar-lhe sempre algo de próprio.<br />
Nos documentos oficiais,<br />
o Papa ensina como<br />
mestre da verdade<br />
Pode-se dizer que, em via de regra,<br />
nada disso ocorre com um Papa, quando<br />
se manifesta em documentos oficiais.<br />
Seus pronunciamentos têm sempre<br />
um caráter essencialmente magisterial:<br />
o Papa não expõe opiniões meramente<br />
pessoais, nem as publica para<br />
serem trabalhadas e valorizadas pela<br />
livre análise e pela livre discussão,<br />
mas ensina como representante autorizado<br />
de Jesus Cristo.<br />
Os documentos papais também não<br />
são publicados sem intenção de intervir<br />
na ordem concreta dos fatos. O ensino<br />
pontifício não é a exposição meramente<br />
científica de certo número de<br />
verdades. Os Papas, além de Mestres,<br />
são Pastores. Eles devem não só apontar<br />
o caminho, mas também atrair para<br />
ele as almas, guiá-las ao longo do trajeto,<br />
animando-as, protegendo-as contra<br />
os lobos e desviando-as dos abrolhos<br />
e dos precipícios. Por esse motivo,<br />
os Papas — ainda quando enunciam<br />
verdades ou leis válidas para todos os<br />
tempos e todos os lugares — insistem<br />
mais num ponto ou noutro, desenvolvem<br />
mais uma matéria, enriquecem de<br />
preferência outra, com novos ensinamentos<br />
e novas leis, tudo ao influxo do<br />
que lhes vai pedindo a solicitude pastoral<br />
à vista das diversas vicissitudes<br />
por que vai passando o gênero humano<br />
ao longo da história. Considerados<br />
sob este ponto de vista, os documentos<br />
oficiais de um Papa são, em certa medida,<br />
o espelho da época. E, considerando<br />
que esses documentos oficiais formam<br />
uma imensa série que abrange<br />
os vinte séculos da era cristã, haveria<br />
campo para um belíssimo estudo da<br />
história da Cristandade e até da humanidade,<br />
se se considerarem de modo<br />
sistemático e ininterrupto os reflexos<br />
que os fatos de cada centúria, de cada<br />
lustro, quiçá de cada dia foram deixando<br />
nos documentos de ensino e de governo<br />
dos Pontífices Romanos.<br />
Um Papa, ademais, não se tem por<br />
mestre de ensinamentos por ele próprio<br />
elaborados. Os ensinamentos estão<br />
contidos, todos, no depósito da Revelação.<br />
Ele explica, interpreta, ensina<br />
o que neste depósito está contido.<br />
Mestre infalível, tem ele a garantia de<br />
jamais errar nesta função. O não errar<br />
consiste em não adulterar, não subtrair,<br />
não acrescer em nada a Revelação,<br />
limitando-se a ensiná-la, a lembrá-la, a<br />
apontar seu significado verdadeiro caso<br />
surjam dúvidas entre os fiéis.<br />
Estas últimas noções exigiriam uma<br />
explanação mais pormenorizada da doutrina<br />
católica sobre Deus, Jesus Cristo,<br />
a Revelação e o magistério infalível.<br />
Estas noções são familiares a todos<br />
os católicos, mas é provável que leitores<br />
menos informados da doutrina católica<br />
estimem encontrá-las aqui, pois<br />
constituem pressuposto indispensável<br />
para a compreensão dos documentos<br />
de Leão XIII.<br />
Razão e Revelação<br />
O homem pode conhecer a Deus<br />
por duas vias: a razão e a Revelação.<br />
Pela razão, isto é, pelo mero esforço<br />
de sua inteligência, considerando o<br />
universo, o homem pode concluir em<br />
todo o rigor de lógica a existência de<br />
um Deus pessoal e eterno, infinitamente<br />
sábio, bom e poderoso; a espiritualidade<br />
da alma, o livre arbítrio, as regras<br />
fundamentais da moral, a vida<br />
eterna, as recompensas e os castigos<br />
de Deus.<br />
Contudo, a inteligência humana não<br />
encontra, na consideração do universo,<br />
elemento algum para chegar ao conhecimento<br />
de outras verdades, como a<br />
existência de três Pessoas em Deus,<br />
dos Anjos, dos demônios, etc. Essas verdades,<br />
o homem não as conhece pela<br />
razão, mas pela Revelação.<br />
A palavra “revelação” é empregada<br />
aqui num sentido que, radicalmente,<br />
é o da linguagem corrente. Revelar é<br />
o ato pelo qual uma pessoa dá a conhecer<br />
a outra algo que para esta era oculto,<br />
ignorado; algo que essa pessoa não<br />
descobriria pelo uso de sua razão, e<br />
que chega a conhecer pelo simples fato<br />
de que alguém lho manifestou.<br />
Deus revelou aos homens um conjunto<br />
de verdades inacessíveis à sua razão.<br />
Para isso, Ele lhes falou diretamen-<br />
te, ou por meio de<br />
seus anjos, de seus profetas,<br />
de seu Filho Unigênito,<br />
de seus apóstolos, de<br />
seus evangelistas. Dessas revelações,<br />
o que deveria ficar para a posteridade<br />
até a consumação dos séculos<br />
ficou registrado nos diversos livros<br />
da Bíblia, constituindo a parte anterior<br />
ao nascimento de Jesus Cristo, o Anti-<br />
20
go Testamento, e a parte posterior, o<br />
Novo Testamento. Este último não é o<br />
contrário daquele, mas antes a sua<br />
perfeição, a sua plenitude.<br />
Revelação oficial e<br />
revelação privada<br />
A Bíblia constitui a Revelação oficial,<br />
que se distingue essencialmente<br />
das revelações particulares. Várias pessoas,<br />
em todos os séculos de existência<br />
da Igreja, têm narrado as revelações<br />
que receberam do Céu. Essas<br />
revelações — falamos das verdadeiras,<br />
pois diversas são falsas — são<br />
essencialmente particulares, pois se<br />
destinam apenas a edificar uma ou<br />
muitas almas. Sobre elas pode cada<br />
um fazer o juízo que lhe parecer mais<br />
acertado. Não têm as características<br />
da Revelação oficial, que é autenticada<br />
por milagres incontestáveis, e é feita<br />
para conhecimento de todos os<br />
homens, que são obrigados a<br />
aceitá-la, sob pena de eterna<br />
condenação.<br />
Revelação como fato<br />
histórico e Fé<br />
A Revelação é um fato histórico<br />
suscetível de demonstração segundo<br />
as melhores regras da crítica científica.<br />
Em outros termos, é um fato perfeitamente<br />
histórico. Prova-se a auten-<br />
Como Mestres e Pastores, os<br />
Papas em seus documentos não<br />
só apontam o caminho a seguir,<br />
mas procuram animar e atrair as<br />
almas, protegendo-as contra os<br />
lobos, desviando-as dos precipícios<br />
(“São Pedro com as chaves do Reino”,<br />
biblioteca Sixto IV, Vaticano)
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
ticidade dos Livros Sagrados, a veracidade<br />
dos fatos que narram, o caráter<br />
sobrenatural das curas e outros fatos<br />
miraculosos que contam, mediante o<br />
emprego dos princípios genuínos da<br />
crítica científica.<br />
Provado que Deus falou aos homens,<br />
é razoável que estes creiam na palavra<br />
de Deus. Não se deve confundir a convicção<br />
de que Deus falou com a crença<br />
na veracidade do que Ele nos disse.<br />
Provando-se com argumentos históricos<br />
o fato de que Deus nos falou, devemos<br />
aceitar o conteúdo do que Ele<br />
nos disse, porque, sendo Deus infinitamente<br />
sábio e bom, não poderia enganar-se,<br />
nem enganar-nos. Esta crença<br />
no conteúdo da Revelação é propriamente<br />
a Fé. Chama-a São Paulo um<br />
“rationabile obsequium”, porque realmente<br />
nada mais razoável do que crer<br />
o homem no que Deus lhe diz.<br />
Apresentação objetiva e<br />
honesta dos fatos<br />
históricos<br />
Alongamo-nos um pouco nessas considerações<br />
para pôr em evidência o nexo<br />
íntimo que prende a doutrina católica<br />
à história, a importância que a Igreja<br />
dá à história e a tudo quanto com<br />
ela se relaciona; e, pois, o extraordinário<br />
calor com que Leão XIII reivindica<br />
para a Igreja, como ponto de hon-<br />
Por meio de seus anjos, profetas,<br />
apóstolos e evangelistas, Deus<br />
manifestou aos homens um conjunto<br />
de verdades que constituem a<br />
Revelação oficial, registrada nos<br />
diversos livros da Bíblia<br />
(Acima, “Os evangelistas”, catedral de<br />
Estrasburgo, França; ao lado, Bíblia medieval,<br />
usada por São Luís IX<br />
22
a, o zelo pelos estudos históricos<br />
e por uma apresentação objetiva<br />
e honesta dos fatos históricos;<br />
e que todo o ensinamento<br />
da Igreja se baseia sobre a<br />
historicidade da Revelação.<br />
“Se a Ressurreição é falsa,<br />
nossa Fé é vã”, dizia São Paulo.<br />
E tinha razão. Se a Ressurreição<br />
não é um fato histórico,<br />
suscetível de se apoiar em provas<br />
genuínas, rui por terra o<br />
edifício da Fé. E o que se diz da<br />
Ressurreição pode-se afirmar de<br />
todos os demais fatos históricos<br />
em que se baseia a Revelação.<br />
Bem entendido, a história<br />
tem ainda com a Revelação outro<br />
ponto de contato que importa<br />
acentuar. Os livros do<br />
Antigo e Novo Testamento estão<br />
cheios de afirmações históricas:<br />
guerras, revoluções, migrações<br />
de povos, etc. Ora, se realmente esses<br />
livros foram escritos sob a inspiração<br />
de Deus, não podem conter narrações<br />
inverídicas. E, pois, se a história demonstrasse<br />
alguma inverdade nos Livros<br />
Sagrados, teria implicitamente provado<br />
que não são revelados. Outra razão<br />
para a Igreja se sentir particularmente<br />
empenhada nos estudos históricos.<br />
Esses motivos não são os únicos.<br />
Retomemos o fio de nossa exposição,<br />
cuidando das relações entre a história<br />
e a Revelação. Poderemos, então, de passagem,<br />
considerar novos aspectos das<br />
relações entre a Igreja e a história.<br />
A Igreja, intérprete da<br />
Revelação<br />
Estudando-se a Revelação, á fácil<br />
perceber que o seu sentido é muitas<br />
vezes difícil de entender. Basta considerar<br />
as muitas seitas em que se têm<br />
dividido protestantes e cismáticos, as<br />
muitas controvérsias entre os próprios<br />
teólogos católicos, para se ter uma<br />
idéia da dificuldade que há em interpretar<br />
a Bíblia.<br />
De onde se segue que, ou a Revelação<br />
se dirige a uns poucos privilegiados,<br />
e não a todos os homens, ou há<br />
Leão XIII<br />
um mestre, infalível por assistência<br />
divina, que jamais erra na interpretação<br />
da Bíblia.<br />
De modo geral, esta mestra é a Igreja,<br />
infalível na sua tradição, nos seus<br />
concílios ecumênicos, e no Romano<br />
Pontífice.<br />
Entre órgãos infalíveis não pode haver<br />
contradição. Quando um órgão infalível<br />
publica um documento, não é<br />
só para ensinar a Revelação, mas para<br />
completar harmoniosamente todos os<br />
ensinamentos que, ao longo dos séculos,<br />
foram sendo promulgados pelos<br />
outros órgãos da infalibilidade da Igreja.<br />
Nessas condições, as verdadeiras fontes<br />
para a interpretação de um documento<br />
pontifício segundo a mente do<br />
autor são todos os documentos anteriores,<br />
promulgados por ele e seus antecessores,<br />
os atos dos concílios ecumênicos,<br />
a crença constante e universal<br />
da Igreja.<br />
Como seguiremos com freqüência<br />
esse método, pareceu-nos importante<br />
acentuar preliminarmente sua legitimidade.<br />
Em suma, Chefe da Igreja, Mestre<br />
Supremo da doutrina católica, o Papa<br />
professa tudo o que a Igreja ensinou<br />
antes dele, e que faz parte do patrimônio<br />
de suas próprias crenças, e serve<br />
de alicerce para seus próprios<br />
ensinamentos.<br />
A Igreja, mestra em<br />
história<br />
Tratamos pouco acima das<br />
relações entre a Fé e a história.<br />
Devemos, já agora, assinalar<br />
outro ponto de contato entre<br />
uma e outra.<br />
Pertence ao domínio da história<br />
analisar as sucessivas decisões<br />
do Magistério infalível<br />
da Igreja, a fim de apontar a<br />
íntima coerência entre elas. É<br />
digno de nota que, em épocas<br />
e regiões muito diversas, sob o<br />
influxo de circunstâncias históricas<br />
e ambientais tão diferentes,<br />
os concílios e os papas jamais<br />
se hajam contraditado. Se<br />
uma contradição real se apontasse, o<br />
Magistério estaria desmentido.<br />
A verdadeira Igreja de Deus deve<br />
exercer sobre os homens um influxo<br />
moralizador e dignificante. Cabe à história<br />
verificar se de fato tal influxo foi<br />
por ela exercido, e se seus santos, seus<br />
doutores, seus ministros, as almas que<br />
se consagram a seu serviço, o povo<br />
fiel em geral, têm dado ao mundo, no<br />
decurso dos séculos, a prova de uma<br />
virtude relevante.<br />
O influxo da verdadeira Igreja deve<br />
ainda proporcionar aos povos e aos<br />
Estados frutos temporais insignes: ordem,<br />
paz, cultura, bem-estar. Cabe à<br />
história dar testemunho de que a Igreja<br />
cumpriu de fato esta tarefa.<br />
Em seu conjunto, trata-se aí de pontos<br />
muito delicados, a serem estudados<br />
em uma imensa mole de acontecimentos,<br />
envolvendo a história do povo<br />
eleito e da Sinagoga antes da Redenção,<br />
e depois a história da Igreja e<br />
da Cristandade, não só em si mesmas,<br />
como também em confronto com os<br />
povos pagãos, hereges e cismáticos.<br />
Isso no terreno apologético. Mas<br />
num terreno um pouco diverso, o interesse<br />
desse estudo também é manifesto.<br />
A Igreja tem uma árdua missão<br />
a cumprir nos dias que correm, e, segura<br />
da promessa de Jesus Cristo de<br />
23
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
que ela durará até a consumação dos<br />
séculos, considera a perspectiva de continuar<br />
essa missão por um número indefinido<br />
de séculos. O cumprimento<br />
dessa missão — que consiste essencialmente<br />
em atrair e elevar as almas,<br />
formando-as para a virtude com vistas<br />
à vida eterna — supõe que ela seja capaz<br />
de despertar a simpatia, a confiança,<br />
o entusiasmo dos indivíduos e dos<br />
povos; que possa contar com a cooperação<br />
das instituições culturais, sociais<br />
e econômicas cujo concurso possa facilitar-lhe<br />
a atividade.<br />
Ora, quando uma instituição tem vinte<br />
séculos de história, ela só despertará<br />
esses sentimentos se puder demonstrar<br />
que seu passado proporciona certas<br />
razões para tal. Não se trata aqui,<br />
No cumprimento<br />
de sua árdua<br />
missão de elevar e<br />
salvar as almas,<br />
deve a Igreja ser<br />
capaz de despertar<br />
a confiança,<br />
o entusiasmo<br />
dos indivíduos<br />
e dos povos<br />
como pouco acima, de uma consideração<br />
apologética, isto é, tendente a converter<br />
as almas pela prova de que a<br />
Igreja é divina. Diante de Estados ou<br />
instituições leigas, a Igreja — cujo coração<br />
sangra com o laicismo — tem se<br />
empenhado em tornar patentes suas<br />
benemerências para conservar o direito<br />
de dizer, no momento oportuno, com<br />
a autoridade de seu grande passado,<br />
de seu imenso e luminoso papel na história,<br />
uma palavra de conselho, de esclarecimento,<br />
de orientação, cujos efeitos<br />
redundarão, em última análise, em<br />
benefício da Cristandade e do mundo.<br />
Veremos quanto essa preocupação<br />
é sensível em muitos dos mais notáveis<br />
textos de Leão XIII sobre a História.<br />
v
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
A<br />
FALTA DE<br />
“As virtudes que<br />
velam sobre o<br />
Paraíso”, escultura<br />
da igreja de<br />
Sainte-Foy, de<br />
Conques, França)<br />
VIRTUDES CATÓLICAS<br />
U<br />
ma advertência feita há 70 anos, quando ainda era possível<br />
frear a marcha da civilização para o abismo. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, jovem<br />
congregado mariano, estava certo de que, abandonados os<br />
princípios católicos, só poderíamos chegar aonde estamos hoje. E ainda pior...<br />
Se expusermos à ação do ar um vidro de perfume, o<br />
líquido se evaporará dentro em pouco. E algum<br />
tempo depois disso, ainda continuará a sala impregnada<br />
pela suavidade de seu aroma. Ao cabo de mais<br />
algum tempo, o próprio odor terá desaparecido, e do delicioso<br />
perfume só ficará a lembrança.<br />
Logo que a vitória dos cristãos abriu para a humanidade<br />
o frasco de essências morais preciosíssimas que é a<br />
Igreja Católica, o bom odor das virtudes evangélicas se<br />
começou a alastrar-se dia a dia pelo mundo, vencendo o<br />
cheiro acre da barbárie franca ou germânica, e as exalações<br />
insalubres da civilização romana, já então em franca<br />
decomposição. E o bálsamo da sabedoria evangélica, fundindo<br />
raças, erguendo nações, foi a seiva fecundíssima<br />
que alimentou e fez crescer uma nova e magnífica civilização.<br />
25
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Irrompeu depois a Reforma protestante,<br />
[seguida, dois séculos depois,<br />
pelo] rancor ateísta e anticristão de<br />
Voltaire<br />
Durante muitos anos, no entanto,<br />
o bom odor evangélico continuou a<br />
embalsamar parcialmente o mundo paganizado,<br />
“como o vaso que conserva<br />
por algum tempo o perfume das flores<br />
que dele tiraram”.<br />
Aos poucos, porém, o perfume se foi<br />
diluindo completamente, cedendo lugar<br />
à fermentação crescente de paixões<br />
malsãs, suscitadas pelas heresias que<br />
o mundo não soube nem quis dominar.<br />
Só agora, porém, quando a civilização<br />
ameaça ruína, é que sentimos, num<br />
terrível despertar, a falta das virtudes<br />
católicas que aromatizavam amenamente<br />
a vida de nossos maiores. Agora,<br />
que o americanismo cinematográfico<br />
invadiu, como onda de lodo, a família,<br />
o clube, as escolas e a sociedade,<br />
começamos a perceber que desapareceu<br />
completamente aquela doce<br />
honestidade de nossos avós; que nossos<br />
chefes de família não são mais os<br />
patriarcas veneráveis de outrora, mas<br />
apenas os mais velhos dos companheiros<br />
de “rapaziadas” de seus filhos; que as mães das últimas<br />
gerações já não são, em geral, os anjos de dedicação e<br />
amor que a Providência colocava como protetoras de nossos<br />
berços, mas sim educadoras implacáveis e indiferentes<br />
de seus filhos, aos quais querem sacrificar a menor parcela<br />
possível de suas comodidades e gozos pessoais; que os filhos<br />
só vêem nos pais meros administradores da fortuna, e nas<br />
mães simples governantas de casa que se arrogam atribuições<br />
julgadas verdadeiramente desmedidas, que é preciso,<br />
a todo o custo, restringir; que a Pátria nada mais é do que um<br />
aglomerado de cidades que o acaso agrupou sob uma mesma<br />
autoridade política, e que as vantagens financeiras ou outras<br />
poderão, a qualquer momento, desagregar sem inconveniente<br />
algum de ordem moral; que a humanidade, enfim,<br />
é constituída exclusivamente por concorrentes nocivos do<br />
uso e gozo da natureza, que é necessário, a todo o custo,<br />
afastar como vizinhos incômodos e demasiadamente numerosos.<br />
Dir-nos-ão que exageramos. Mas tome cada qual o trabalho<br />
de arranhar um pouco o verniz das convenções, e verifique<br />
se, na grande maioria das pessoas, não predominam<br />
exatamente os conceitos que enumeramos, dos quais um só<br />
é suficiente, quando generalizado, para prostrar por terra<br />
uma nação.<br />
E que muitos também arranhem corajosamente o verniz,<br />
incomparavelmente mais sensível, com que se cobrem<br />
aos olhos da própria consciência, e que vejam, que tenham<br />
Terão desaparecido por completo, como<br />
tantos outros valores, a doce honestidade<br />
de nossos avós, ou as<br />
angélicas protetoras de nossos berços...?<br />
a coragem de ver, sincera e virilmente, se não se poderiam<br />
muito bem espelhar no retrato que acabo de fazer.<br />
Ora, com o predomínio de tais princípios, que sociedade<br />
pode viver? Que país pode ser honesto na administração<br />
pública, quando não existe patriotismo corajoso na guerra,<br />
quando não existe idealismo exemplar na família, quando<br />
filhos e pais nada mais são do que indivíduos que se<br />
disputam as partes mais aproveitáveis do patrimônio comum?<br />
E agora mudem-se os quadros. Suponha-se um país em<br />
que, desde o chefe da nação até o mais modesto contínuo,<br />
desde o pai até os filhos, desde o patrão até os operários,<br />
predomine a prática rigorosa dos princípios católicos. E<br />
imediatamente surgirão, a nossos olhos, estadistas abnegados<br />
e diligentes, funcionários probos e esforçados, pais moralizados<br />
e respeitáveis, generais valentes e disciplinados,<br />
filhos obedientes e amorosos, mães dedicadas e respeitadas.<br />
Ou voltamos atrás e, recorrendo à seiva do Catolicismo,<br />
que já uma vez salvou uma civilização que também estava<br />
podre, pomos Deus nas escolas, nas constituições, nos<br />
lares, nos clubes e, principalmente, nos caracteres, ou a dissolução<br />
atual continua sua marcha, e nos arrasta ao apodrecimento<br />
de toda a organização política e social do país.<br />
(Excertos de artigo publicado no “Legionário”,<br />
nº 79, de 10/5/31. Título nosso.)<br />
26
DONA LUCILIA<br />
Dª Lucilia em<br />
visita à sede<br />
do “Legionário”,<br />
por volta de 1940<br />
E nvolta em<br />
filiais<br />
solicitudes
DONA LUCILIA<br />
F<br />
otografias e pinturas, relatos de terceiros, cartas. Eis as fontes essenciais<br />
para conhecermos alguém indiretamente. Cada uma delas nos coloca<br />
numa perspectiva particular. A correspondência entre Dª Lucilia e <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> como que nos faz surpreender o relacionamento miúdo, corrente, familiar,<br />
entre duas almas virtuosas.<br />
Durante os anos em que proporcionou esmerada<br />
educação a seus filhos, Dª Lucilia procurou<br />
formá-los no hábito de fazer o bem a seus semelhantes,<br />
especialmente aos mais próximos. E mesmo após<br />
atingirem a idade madura, não cessou de lembrar-lhes tais<br />
obrigações, sempre que a ocasião se apresentava. Animada<br />
por essa caridade, tinha muita preocupação em confortar<br />
os conhecidos, a quem a morte levara um parente ou amigo.<br />
Exemplo disso é o bilhete que, um dia, deixou a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Realiza-se hoje às 9 horas em Santa Ifigênia a Missa de sétimo<br />
dia do <strong>Dr</strong>. X. É preciso que vás, pois estimo muito ao seu<br />
cunhado Y, e sendo também co-parente de <strong>Dr</strong>. Z, não podes<br />
deixar de ir, por isso peço-te que vás.<br />
muito inopinadamente, no dia de sua partida ou no dia imediato,<br />
se não me engano. Não houve, pois, tempo para ir visitálo.<br />
Os argumentos aduzidos pelo Sr. e por Mamãe, a este respeito,<br />
são todos perfeitamente razoáveis, a tal ponto que me considerava<br />
na obrigação de ir ao Esplanada, para cumprimentar o<br />
Corrêa de Oliveira, e até tinha pensado em voltar, caso não o<br />
encontrasse. Mas o Sr. vê que não foi possível.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> segue a missiva tratando de algumas causas<br />
de advocacia que <strong>Dr</strong>. João Paulo deixara pendentes em São<br />
Paulo. Esse motivo acabou por exigir o regresso deste último<br />
mais cedo do que esperava. Para Dª Lucilia não ficar sozinha,<br />
seu filho sugere que Maria Alice, neta dela, então com<br />
8 anos, lhe vá fazer companhia.<br />
Da parte do filho, carinhos<br />
redobrados<br />
Outro exemplo do empenho dela no cumprimento<br />
dos deveres familiares transparece num<br />
carteio de junho de 1937, durante nova temporada<br />
em Águas da Prata, para onde ela fora acompanhada<br />
de seu esposo. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em missiva<br />
a seu pai, justifica-se longamente por não ter podido<br />
encontrar-se com um Corrêa de Oliveira,<br />
apesar da insistência de <strong>Dr</strong>. João Paulo e de Dª<br />
Lucilia de que o fizesse:<br />
São Paulo, 28 - VI - 1937<br />
Papai,<br />
Recebi sua carta. Infelizmente,<br />
o Corrêa de Oliveira partiu<br />
para Santos e de lá para o Rio,<br />
Mesmo com o filho em<br />
idade madura,<br />
Da. Lucilia não deixava<br />
de lhe tornar presentes<br />
suas obrigações de<br />
caridade para<br />
com o próximo<br />
(<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e o<br />
fac-símile do<br />
bilhete de sua<br />
mãe, acima transcrito)<br />
28
Ao terminar a carta, ele faz referência, com uma pontinha<br />
de jocosidade, a uma característica de suas famílias, tanto<br />
do lado materno, quanto do paterno: a arte da boa conversa.<br />
Por serem paulistas uns e pernambucanos outros, desenvolviam<br />
essa qualidade de modo bem diverso:<br />
Como vai o tempo aí? E o Sr.? Está aproveitando o repouso?<br />
Está alguém aí, que lhe possa interessar para conversar,<br />
etc.? Aliás, para o Sr., conversa, principalmente com estranhos,<br />
está longe de ser gênero de primeira necessidade, como para<br />
Mamãe, para mim, e para todos os que temos um pouco de<br />
sangue de Ribeiro dos Santos.<br />
Com um saudoso abraço, pede-lhe a bênção o filho amigo,<br />
<strong>Plinio</strong><br />
À medida que os anos passavam e Dª Lucilia ia ficando mais<br />
idosa, seu filho multiplicava a solicitude para<br />
com ela. Isto fazia a fim de tornar menos<br />
penosa a solidão daquela que<br />
não teve a fraqueza de se adaptar<br />
às inovações da “modernidade”<br />
para alcançar<br />
cidadania no mundo.<br />
Com o objetivo de<br />
distraí-la, não raras<br />
vezes convidava à<br />
sua mesa alguns<br />
dos amigos mais<br />
chegados do<br />
“Grupo do Legionário”¹.<br />
Ao escrever a<br />
sua mãe, naquele<br />
mesmo dia vinte<br />
e oito de junho,<br />
da sede do Legionário<br />
em cuja redação<br />
ficava trabalhando<br />
até horas<br />
tardias, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
conta-lhe que recebera<br />
duas cartas de um<br />
companheiro de luta o<br />
qual tivera a dita de amiúde<br />
jantar com Dª Lucilia, ficando<br />
indelevelmente marcado<br />
pelo convívio com ela. Além disso,<br />
procura uma vez mais tranqüilizá-la com relação<br />
ao cumprimento dos compromissos familiares, destacando<br />
alguns com letras maiúsculas. Dª Lucilia muito recomendava<br />
a seu filho que prestasse especial assistência a<br />
Dª Rosée, embora ela já fosse casada, pedido ao qual ele<br />
atendeu até o último dia de vida de sua irmã.<br />
São Paulo, 28-VI-1937<br />
Mãezinha querida do meu coração,<br />
José Gustavo de Souza Queiroz,<br />
grande amigo de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> que ficou<br />
profundamente marcado pelo<br />
convívio com Da. Lucilia; ao lado,<br />
Da. Yayá e uma de suas filhas<br />
Recebi com muito agrado seu telegrama<br />
e sua carta. Confesso que me esqueci<br />
de dar à Ana os recados referentes às<br />
janelas, etc.,etc. Se me lembrar, darei. Não<br />
posso prometer de dar ainda que não me<br />
lembre! Entrincheiro-me atrás desse sofisma,<br />
e passo a outro assunto.<br />
Recebi duas cartas do José Gustavo², em<br />
dois dias consecutivos. Uma, a primeira que recebi,<br />
era datada de Perugia, se não me engano. A<br />
segunda veio de bordo do Neptunia, navio em que<br />
ele seguiu. Veja que desordem. Ambas as cartas eram<br />
muito afetuosas. Uma delas continha particulares referências<br />
à Sra. e aos “sossegados jantares de domingo”, dos quais ele<br />
me pede para lhe dizer que não se esquece, nem a caminho da<br />
Europa.<br />
Almocei ontem com tia Yayá, depois FUI Á CASA DO ZI-<br />
TO³, PARA CUMPRIMENTÁ-LO PELO SEU ANIVERSÁ-<br />
RIO, percorrendo por isto, a pé, todo o espaço que vai entre a<br />
Rua Augusta e a Brigadeiro Luís Antônio, na Avenida Brasil,<br />
porque não conhecia bem o caminho. Tenho jantado FRE-<br />
QÜENTEMENTE com Rosée, e ela vai hoje em casa. (...)<br />
29
DONA LUCILIA<br />
Vista do Parque<br />
do Trianon e seu<br />
restaurante,<br />
freqüentado por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e Da. Rosée<br />
Ontem, fomos jantar na Caverna. Depois, fomos dar umas<br />
voltas de automóvel, numa excelente Packard. Ás onze e meia<br />
estacionamos no Trianon, onde tomamos alguma coisa. Depois,<br />
fomos para casa. (...)<br />
É possível que eu vá passar alguns dias em Santo Amaro,<br />
ou em Santos. Mas ainda depende.<br />
Mande-me dizer detalhadamente como vai sua saúde, o que<br />
a Sra. anda fazendo, o que não anda fazendo, etc.<br />
Maria Alice deve estar aí no dia dois, caso Papai siga no<br />
dia 1º, de sorte que a Senhora só ficará uma noite só. Antes disto,<br />
ela não poderia seguir porque as roupas não estão prontas,<br />
ou qualquer coisa assim.<br />
Tenho a impressão de que Maria Alice está muito só. E<br />
não é só ela...<br />
Com muitos e afetuosíssimos beijos, pede-lhe a bênção o<br />
seu filho querido,<br />
<strong>Plinio</strong><br />
“Tenha muito cuidado com sua saúde”<br />
Ao saber alguns dias depois que Dª Lucilia fora<br />
acometida por um achaque, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, embora tomado de<br />
ocupações, escreve nova missiva a sua mãe:<br />
Mãezinha de meu coração<br />
Rapidamente, à meia noite e quarenta, escrevo-lhe uma palavrinha,<br />
para lhe dizer quanto sinto que a Sra. tenha adoecido<br />
aí, e quanto desejo seu pronto restabelecimento. Neste sentido,<br />
agora mesmo, acabo de rezar a Na. Sa., pedindo que tudo<br />
por aí lhe corra do modo mais suave possível.<br />
Por aqui, nada de novo. No dia de anos de Tia Zili, ela me<br />
convidou, e a Rosée para almoçarmos em sua companhia na<br />
Caverna. (...)<br />
Jantei em casa de Rosée, e, depois de um dia passado inteirinho<br />
na Rua, recolho-me exausto, fazendo esforço para<br />
lhe poder escrever.<br />
Espero que o róseo portador desta carta lhe vá aliviar um<br />
pouco as saudades. “Um pouco”, porque tenho a ilusão pretensiosa<br />
de ser insubstituível. E, apesar de pretensiosa, creio<br />
que essa ilusão não está muito distante da realidade. (...)<br />
Ontem, a Vasp convidou-me, como Diretor do Legionário,<br />
a fazer uma viagem de avião ao Rio hoje, ida e volta, gratuita.<br />
Era uma viagem dedicada a todos os jornalistas. Recusei,<br />
e indiquei um representante. E, por isto, mereço uma especialíssima<br />
aprovação de minha Mãezinha. Agora à noite, estive<br />
com o tal rapaz. Imagine que ele partiu às 8, chegou às 9<br />
e meia, voltou parece-me que às 2 e meia, e chegou às 4. Portanto,<br />
foi almoçar no Rio e voltou. No tempo em que Vovô<br />
Gabriel fazia essa viagem em costa de burro, imagine o pasmo<br />
dele se imaginasse que seu bisneto poderia ir e vir do Rio<br />
em um mesmo dia!<br />
Bem, minha Mãezinha querida, melhore muito, aproveite<br />
muito, reze muito por mim, e tenha muito cuidado com sua<br />
saúde.<br />
Pede-lhe a bênção com muito afeto o filho respeitoso, que<br />
lhe envia mil beijos.<br />
<strong>Plinio</strong><br />
(Nota, a assinatura vai à maquina, porque é mais fácil.<br />
Dado ser a portadora quem é, penso que a Sra. não duvidará<br />
da autenticidade...)<br />
(Transcrito, com adaptações, da obra<br />
“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />
1) Por este epíteto foi-se tornando conhecido o grupo inicial de<br />
amigos que atuava sob a orientação de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
2) José Gustavo de Souza Queiroz, membro do “grupo do Legionário”,<br />
que viria a falecer ainda jovem.<br />
3) <strong>Dr</strong>. José de Oliveira Pirajá, esposo de Dª Ilka.<br />
30
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
OBRA-PRIMA<br />
DA<br />
PIEDADE CATÓLICA<br />
“Capella<br />
degli<br />
Scrovegni”,<br />
em Pádua
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
N<br />
o vasto e rico universo da arte<br />
católica, dois modos exisdência<br />
não existe mais; a família ex-<br />
mente destruído. A imponente resitem<br />
de representar a boa tinguiu-se. Mas a capelinha sobreviveu<br />
pintura religiosa, aquela em que os mestres<br />
dos pincéis se superam ao imprimir<br />
nas telas as luzes e as cores de seu<br />
talento. Uns procuram representar seus<br />
temas o mais possível de acordo com<br />
os aspectos comuns da vida, abstraindo<br />
daquilo que se nota muitas vezes no<br />
cotidiano católico, que é a transparência<br />
da graça nas pessoas ou nos ambientes.<br />
Cumpre dizer: tais pintores são<br />
primorosos no retratar o que é comum.<br />
Outros, porém, procuram envolver<br />
suas pinturas com essa espécie de<br />
imponderável místico que permite<br />
às injúrias do tempo e ao aban-<br />
dono dos homens, porque marcada<br />
pelo gênio artístico e pela grande<br />
piedade de Giotto. Ela se ergue, hoje,<br />
numa pequena área arborizada muito<br />
bem cuidada, como em geral o são os<br />
jardins e parques europeus. Logo na<br />
entrada se pode admirar um piso<br />
revestido de esplêndido mármore, com<br />
desenhos agradáveis e lindo jogo de<br />
cores.<br />
No seu interior, de um lado e de outro,<br />
enfileiram-se estalas onde cônegos<br />
ou outros religiosos entoam seus<br />
perceber na cena<br />
a presença da<br />
graça. Exemplo Casamento de<br />
paradigmático<br />
Nossa Senhora<br />
com São José<br />
dessa categoria<br />
de artistas foi o<br />
Beato Angélico,<br />
o “magnata” da<br />
pintura da graça,<br />
cujos belíssimos<br />
afrescos constituem<br />
um dos<br />
maiores tesouros<br />
da iconografia<br />
da Santa Igreja.<br />
Não menos admirável,<br />
porém,<br />
é o talento de<br />
outro pintor italiano,<br />
que viveu<br />
entre o fim da<br />
Idade Média e o<br />
início da Renascença,<br />
o célebre<br />
Giotto. Como o<br />
extraordinário frade-artista de Florença,<br />
também ele deixou-nos quadros<br />
e afrescos impregnados — a meu<br />
ver, intensamente impregnados — de<br />
sobrenatural. Fra Angélico escolheu<br />
como “telas” as paredes do Convento<br />
de São Marcos, na urbe florentina;<br />
Giotto, as da chamada Capella degli<br />
Scrovegni, em Pádua.<br />
Trata-se de uma famosa capela, edificada<br />
anexa ao palácio da influente<br />
família dos Scrovegni, hoje completa-<br />
ofícios, reservadas numa espécie de gradin<br />
de mármore também muito bonito<br />
e bem trabalhado. Ao fundo, o pequeno<br />
altar de linhas singelas, sob uma abóbada<br />
de arcarias ogivais, emoldurado<br />
por estalas de madeira envelhecida,<br />
gasta, e por colunas ricas em lavores<br />
e coloridos do mesmo tipo de pedra<br />
que adorna toda a capela.<br />
Nas paredes, harmônicas com o<br />
teto abaulado, vê-se a maior beleza, a<br />
principal atração desse exíguo e inestimável<br />
recinto católico: as cenas da<br />
vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora,<br />
pintadas por Giotto. Caracterizadas,<br />
de um lado, por uma inocência<br />
ainda toda medieval; e, de outro,<br />
pela transparência daquela atmosfera<br />
sobrenatural magnífica.<br />
*<br />
Sou particularmente sensível à harmonia<br />
das cores. Em vista da predominância<br />
dos recursos cromáticos utilizados<br />
por Giotto, sinto especial<br />
agrado por alguns desses afrescos.<br />
Por exemplo, a cena do Casamento de<br />
Nossa Senhora com São José, em que<br />
aparece uma espécie de radicalidade<br />
nos tons claros e a mesma radicalidade<br />
nos tons<br />
carregados, resultando<br />
num<br />
contraste muito<br />
interessante. Há<br />
matizes de verde,<br />
azul e lilás delicados,<br />
postos em<br />
realce pela combinação<br />
de vermelhos,<br />
carmins<br />
e laranjas bem<br />
profundos. A força<br />
destes tons<br />
escuros confere<br />
uma nota de seriedade<br />
ao claro,<br />
e constrói um<br />
equilíbrio de cores<br />
superiormente<br />
belo.<br />
O quadro tem<br />
como fundo um<br />
pequeno edifício<br />
que, segundo a<br />
imaginação de<br />
Giotto, seria uma parte do Templo de<br />
Jerusalém. O sacerdote está revestido<br />
de uma capa vermelha, e de uma túnica<br />
que vai até o chão. É um velho de<br />
cabelos já brancos, abundantemente<br />
barbado, numa atitude digna, cheio de<br />
piedade e de recolhimento. São José<br />
traz na mão esquerda o bastão florido,<br />
que indicava ser ele o esposo escolhido<br />
pela Providência para se casar<br />
com Maria Santíssima. Na mão<br />
direita, segura a aliança que simboliza
Apresentação<br />
do Menino Jesus<br />
no Templo<br />
essa maravilhosa união. De acordo<br />
com uma velha tradição, Giotto representa<br />
São José muito mais velho<br />
que Nossa Senhora. Ela, ainda mocinha,<br />
tem o recato e a compostura<br />
de uma pessoa toda virginal. Como<br />
traje, leva uma túnica de cor muito<br />
clara, que fala de pureza, de delicadeza<br />
de sentimentos levada ao mais<br />
alto grau. O seu porte é ereto, imaculado.<br />
Outro afresco muito bonito é o<br />
que retrata a Apresentação do Menino<br />
Jesus no Templo. De um lado, Nossa<br />
Senhora e São José; de outro, o<br />
Profeta Simeão e a Profetisa Ana.<br />
Embora a parte central seja concebida<br />
em termos medievais, a idéia é<br />
mais uma vez a de que a cena se passa<br />
numa dependência do Templo de<br />
Jerusalém. Nessa pintura, o fato de<br />
maior interesse é a atitude dos santos<br />
esposos. Nossa Senhora apresentou<br />
o Menino ao Profeta, e aparece<br />
com as mãos no gesto de quem<br />
acabou de O entregar, ou de quem O<br />
receberá de volta. São José, modestamente<br />
recolhido a segundo plano,<br />
acompanha a cena. É notável a atmosfera<br />
de santidade e de pureza que<br />
domina o quadro inteiro, de maneira<br />
que o próprio templozinho possui algo<br />
de esguio e de virginal. Tudo é posto<br />
por Giotto sobre um fundo meio<br />
azulado, com folhagens e vegetações<br />
hoje apagadas, confundindo-se com<br />
um céu também de azul profundo. O<br />
colorido mais escuro confere particular<br />
relevo à parte central do tema: o<br />
Divino Infante — sob uma espécie de<br />
foco de luz —, o Profeta Simeão e<br />
Nossa Senhora (sob luminosidade<br />
menor), São José e a Profetisa Ana.<br />
Na Fuga para o Egito, Nossa Senhora<br />
vai montada num simples burrico,<br />
e toda a Sagrada Família denota os<br />
sinais exteriores da pobreza. Mas a dignidade<br />
d’Ela é de uma princesa! Um<br />
porte retilíneo, as costas sem arcadura<br />
nem inflexão, a fronte alta, e a resolução<br />
com que enfrenta a viagem, os<br />
riscos, denotam a majestade da Mãe<br />
do Rei do Universo. São José caminha<br />
na frente, atentíssimo para o que<br />
Fuga para o Egito
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
possa acontecer com a Mãe e o Menino.<br />
Ela confia em Deus e no esposo.<br />
Portanto, vai recolhida em oração,<br />
abraçando o Filho em seu colo. Giotto<br />
exprime de modo extraordinário a celestial<br />
intimidade dos dois. Certamente<br />
Ela reza a Jesus, pedindo por aqueles<br />
que estão contemplando o quadro...<br />
*<br />
Noutro ciclo de afrescos surge o<br />
Domingo de Ramos, em cuja composição<br />
muito transparece aquela inocência<br />
de que atrás falamos.<br />
Nosso Senhor entra montado num<br />
burrinho, e abençoa o povo à sua frente.<br />
Mas sua fisionomia é de tristeza, o rosto<br />
varonil, uma abundância extraordinária<br />
de barba, e uma atitude de Prelado<br />
de altíssimo poder, ou de Chefe<br />
da religião verdadeira. Muito mais do<br />
que isso, de Messias. No meio da multidão<br />
que o acompanhava, percebe-se<br />
uma ou outra pessoa com a auréola da<br />
santidade. O próprio Jesus está coroado<br />
por um aro muito definido. É, em<br />
grau infinito, o primeiro e o maior de<br />
todos os Santos, fonte e causa de todas<br />
as santificações.<br />
Crucifixão e<br />
Morte de Jesus<br />
Domingo de Ramos<br />
Mais adiante, depois de lindíssimas<br />
pinturas como a Ressurreição de Lázaro,<br />
vem a Crucifixão e Morte de Nosso<br />
Senhor, o quinto mistério doloroso do<br />
Rosário. Jesus, pregado ao madeiro,<br />
está lívido, tendo exalado seu último<br />
suspiro. Santa Maria Madalena, identificada<br />
pelos longos cabelos soltos,<br />
oscula-Lhe os pés. A um canto vê-se<br />
Nossa Senhora, amparada por São<br />
João Evangelista e por uma das santas<br />
mulheres. No lado oposto aparece<br />
uma parte da multidão que deseja assistir<br />
ao acontecimento. O céu está<br />
povoado de Anjos cantando a glória<br />
do Divino Redentor. E enquanto os<br />
outros presentes sentem apenas dor e<br />
vergonha, Maria Santíssima, embora<br />
abalada, permanece de pé, com força<br />
e determinação. Imaculada, cheia de<br />
graça e de amor a Deus, era capaz de<br />
refrear em alguma medida sua própria<br />
dor, de maneira a servir de consolo<br />
e sustentação para os que, neste<br />
momento sumamente trágico, claudicassem<br />
na fé e na certeza da Ressurreição.<br />
São alguns episódios da Paixão segundo<br />
Giotto, uma das obras-primas<br />
da piedade católica.
O beijo<br />
de Judas<br />
Para mim, esse face-a-face entre<br />
Nosso Senhor e Judas é das coisas<br />
mais espantosas que um pincel<br />
humano tenha pintado.<br />
Nosso Senhor está sério e olhando Judas<br />
até o fundo da alma. E este procura mentir.<br />
É a verdade eterna e subsistente, encarnada,<br />
que olha para um homem falso. E<br />
Judas, que procura tornar a mentira dele<br />
aceitável, abraça Nosso Senhor e O olha<br />
com ares de quem pretende ser um grande<br />
amigo. Nosso Senhor o fita e lhe diz: “Judas,<br />
é com um ósculo que trais o Filho do<br />
Homem?” Nosso Senhor recebe com paciência<br />
esse beijo imundo, acompanhado provavelmente<br />
de um mau odor asqueroso, cheiro<br />
do inferno. Judas nada responde à pungente<br />
pergunta do Mestre. Ele trai o Filho<br />
de Deus. Depois disso, se porá a delirar e a<br />
correr de um lado para outro, até cometer<br />
o suicídio.<br />
Nesta cena, Giotto quis representar em<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo o sumo de todos<br />
os predicados intelectuais e morais. E em<br />
Judas, o sumo de todas as abjeções. Daí os<br />
recursos de que ele se serviu. Primeiro, a<br />
diferença entre as duas cabeças. A de Nosso<br />
Senhor é provida com certa largueza de<br />
cabelo, digna, composta, sem espalhafato.<br />
A de Judas, pelo contrário, está coberta com<br />
uma grenha suja, abundante, que ele procurou<br />
pentear bem antes de cometer seu crime<br />
infame, a fim de que nada atrapalhasse<br />
o “bom negócio” que ia fazer. Era preciso<br />
que tudo se passasse com ares de cordialidade.<br />
Então, ele se enfeitou. Mas é patente<br />
a desordem capilar dele em contraste com<br />
a proporção e a ordenação adequada dos<br />
cabelos de Nosso Senhor.<br />
A barba do Divino Mestre é de boas dimensões,<br />
dispondo-se belamente em cima<br />
da pele, com muita mesura e harmonia. O<br />
mesmo deve-se dizer do bigode. Já a barba<br />
de Judas é feita de uns fios raros, formando<br />
arquipélagos peludos em certos lugares<br />
do rosto, confundindo-se com a própria carnatura,<br />
e mais nada. Além disso, a parte<br />
que vai do alto da maçã do rosto até o queixo<br />
é enormemente desenvolvida em comparação<br />
com a de Nosso Senhor, em quem tudo<br />
é proporcionado.<br />
Judas dá a impressão de uma gulodice<br />
sórdida e horrorosa. Nosso Senhor, a de uma<br />
austeridade delicada e verdadeiramente<br />
divina.
Vínculo<br />
inestimável<br />
Nossa Senhora está para<br />
seu Divino Filho assim como,<br />
no ostensório, o cristal<br />
posto diante da Sagrada Hóstia<br />
está para o Santíssimo. Vemos<br />
Nosso Senhor através desse cristal,<br />
sem atentar para o fato de<br />
que esse material se interpõe entre<br />
nosso olhar e Jesus Eucarístico.<br />
De igual modo, não podemos separar<br />
a devoção a Nossa Senhora<br />
de Nosso Senhor.<br />
Um dos comentários centrais<br />
que nos ocorre a propósito<br />
desse vínculo indissociável é<br />
que o prêmio excede a toda<br />
linguagem. Ao amor de seus<br />
devotos, Nossa Senhora retribui<br />
com aquilo que tem<br />
de melhor: o próprio Cristo<br />
Jesus, a Sabedoria Eterna e<br />
Encarnada, a nossa recompensa<br />
demasiadamente<br />
grande.<br />
Santa Maria de la Sede, Espanha