You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Na Eucaristia,<br />
o segredo das conquistas<br />
futuras
Suscitado para predispor<br />
as almas a receberem o<br />
Divino Salvador, São João<br />
Batista “abatia as colinas<br />
e preenchia os vales”, ou<br />
seja, calcava aos pés o<br />
orgulho e eliminava a<br />
impureza. oi, além<br />
disso, um magnífico<br />
exemplo de<br />
destemor, ao<br />
exprobrar a<br />
impiedade e o<br />
pecado do rei<br />
Herodes.<br />
Esse homem que<br />
de tal modo<br />
abatia a<br />
sensualidade,<br />
lutava contra o<br />
orgulho, cortava o<br />
caminho aos ímpios e<br />
servia de modelo de<br />
penitência, era digno de<br />
ser o precursor de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo!
Sumário<br />
Na capa,<br />
a “Santa Ceia”,<br />
grupo escultural<br />
no altar-mor da<br />
Igreja de Santiago<br />
(Rothenburg, Alemanha)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Jornalista Responsável:<br />
Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues erreira<br />
Marcos Ribeiro Dantas<br />
Edwaldo Marques<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Diogo de Brito, 41 salas 1 e 2<br />
02460-110 S. Paulo - SP Tel: (11) 6971-10<strong>27</strong><br />
otolitos: Diarte – Tel: (11) 571-9793<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />
Esta revista não é órgão oficial nem oficioso da<br />
SBDTP.<br />
Preços da assinatura anual<br />
JUNHO de 2000<br />
Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />
Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />
Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />
Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />
Exemplar avulso . . . . . . . R$ 6,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./ax: (11) 6971-10<strong>27</strong><br />
4<br />
5<br />
6<br />
9<br />
14<br />
20<br />
26<br />
28<br />
32<br />
36<br />
EDITORIAL<br />
O Pão da regeneração<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
7 de junho de 1968:<br />
Uma visita da Rainha do Céu<br />
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Nossa Senhora do Sagrado Coração<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Vida de Advogado – II<br />
O primeiro grande cliente<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Qual o papel da burguesia<br />
na sociedade?<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
A Eucaristia e o apostolado<br />
no mundo moderno<br />
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
Antes de tudo,<br />
uma questão religiosa<br />
DONA LUCILIA<br />
Com os filhos em Águas da Prata<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Desassombro, coragem e galhardia<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Confiança cheia de vigor e afeto<br />
3
O Pão da regeneração<br />
Editorial<br />
N<br />
as biografias de Jacinta e rancisco, os<br />
dois pastorinhos de átima recentemente<br />
elevados à glória dos altares, lêem-se passagens<br />
tocantes acerca de seu amor à Sagrada Eucaristia.<br />
Sua intensa devoção a “Jesus escondido” —<br />
como, de modo encantador, referiam-se ao Santíssimo<br />
Sacramento — transpareceu de maneira especial<br />
durante a enfermidade que os manteve presos ao<br />
leito e os havia de levar, tão jovens ainda, à sepultura.<br />
“Olhe! Vá à igreja, e dê muitas saudades minhas a<br />
Jesus escondido”, pedia rancisco à sua prima Lúcia.<br />
E, em meio a uma heróica resignação, só lamentava<br />
não mais poder rezar e consolar o Santíssimo Sacramento,<br />
na igreja paroquial. Perto de sua partida deste<br />
mundo, receber a Sagrada Comunhão o inundou de<br />
felicidade: “Hoje sou mais feliz do que você”, dizia à<br />
irmã, “porque tenho dentro do meu peito a Jesus escondido”.<br />
Quanto a Jacinta, costumava recomendar à prima:<br />
“Olhe! Diga a Jesus escondido que eu gosto muito<br />
d’Ele, que O amo muito, e que Lhe mando muitas<br />
saudades”. E noutra ocasião, quando Lúcia voltava<br />
da igreja, disse-lhe: “Chege aqui bem junto de mim,<br />
porque você tem em seu coração a Jesus escondido. É<br />
tão bom estar com Ele!”<br />
Essas duas crianças, cuja breve existência foi marcada<br />
pelo sacrifício e pela santidade, deixaram-nos<br />
assim um grande e sapiencial ensinamento, cuja lembrança<br />
é especialmente oportuna em vista da festa de<br />
Corpus Christi, comemorada pela Igreja neste mês de<br />
junho.<br />
Com razão é a Sagrada Eucaristia chamada de Pão<br />
dos fortes, verdadeiro alimento espiritual que não<br />
pode faltar à alma. Sem ele, dificilmente o fiel se<br />
manterá nas vias da virtude. É um pão sobrenatural<br />
que dá à inteligência a limpidez necessária para discernir<br />
as verdades da fé, preserva do erro e faz brotar<br />
o senso católico. Nenhum recurso é mais poderoso do<br />
que a Sagrada Eucaristia, para despertar e solidificar<br />
a virtude da castidade.<br />
* * *<br />
Essas considerações fazem voltar nosso olhar para<br />
a alarmante situação dos jovens de hoje. Afundados<br />
em sexo, drogas e violência, muitos deles estão pagando<br />
a conta da corrupção moral de uma sociedade que<br />
não soube lhes dar o pão do bom exemplo.<br />
elizmente, por todo lado, já se notam sinais de reflorescimento<br />
da é Católica, uma condição fundamental<br />
para a regeneração do mundo (como afirmava <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>). E são muitos os que se dedicam a amparar, animar<br />
e orientar os jovens. Porém, mais do que lhes ofertar<br />
programas de recuperação, auxílio psicológico, atividades<br />
de prevenção, etc. — tudo isto muito necessário<br />
—, é preciso levá-los a descobrir no revigoramento<br />
da prática religiosa, em cujo cume está a Sagrada<br />
Comunhão, o antídoto eficaz para todo tipo de mal, o<br />
fortificante para as horas de fraqueza espiritual.<br />
“Ó moços eucarísticos, eu vos saúdo” — discursava<br />
assim <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em 1940, aos jovens reunidos no<br />
Congresso Eucarístico de São José do Rio Preto.<br />
“Vós sois realmente a alegria da Igreja, que vê em vós<br />
filhos da eleição, frutos abençoados das mais sagradas<br />
e invioláveis promessas de Deus. Eu vos saúdo como<br />
filhos da Igreja, mas, fazendo-o, lembro-me também<br />
de nosso Brasil. Se reconstruir um país é reconstruir o<br />
caráter de seus filhos, não hesito em dizer-vos que é<br />
na vida eucarística, séria, profunda, intensamente vivida,<br />
que se encontra o segredo dos triunfos atuais e<br />
das conquistas futuras desta falange providencial da<br />
Ação Católica, à qual, sob a direção da Hierarquia,<br />
compete trabalhar pela recristianização do Brasil.<br />
Sede brasileiros da Eucaristia. Que este fogo arda em<br />
vós, e de vós se propague pelo Brasil inteiro. Não têm<br />
outro voto todas as almas que sabem amar a Deus e<br />
desejar ardentemente a grandeza da Pátria!”<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
7 de junho de 1968:<br />
Uma visita da Rainha do Céu<br />
N essa<br />
ocasião, a imagem de Nossa Senhora<br />
Aparecida, Rainha e Padroeira<br />
do Brasil, percorria diversos estados e<br />
cidades do país. Ao passar por São Paulo, um<br />
dos organizadores dessa peregrinação, amigo e<br />
admirador de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, obteve que a milagrosa<br />
imagem abençoasse com sua maternal presença<br />
o lar desse insigne líder católico. Anos depois,<br />
ainda emocionado, recordava ele:<br />
Considero a visita de Nossa Senhora Aparecida<br />
uma graça que nunca esperaria receber.<br />
Uma honra superlativa na qual jamais pensei, e<br />
que entretanto Ela me concedia assim de modo<br />
tão afetuoso. Devo confessar que essa deferência<br />
da Padroeira do Brasil, da Mãe de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, da Mãe da Santa Igreja<br />
Católica para comigo, tocou-me até o fundo da<br />
alma!<br />
Tomada na sua materialidade, essa imagem<br />
é uma boneca de barro, recolhida por pescadores<br />
nas águas do Rio Paraíba, restaurada e<br />
depositada numa capelinha,<br />
onde passou<br />
a receber a veneração<br />
do povo. Mas,<br />
nem de longe podemos<br />
ver n’Ela apenas<br />
uma boneca. Ela recebeu<br />
as bênçãos da<br />
Igreja e, como todas<br />
as imagens cultuadas<br />
nos ambientes católicos,<br />
deixou de ser um<br />
mero objeto para se<br />
tornar sagrada.<br />
Além disso, que<br />
boneca maravilhosa!<br />
Nossa Senhora a escolheu<br />
como instru-<br />
mento para a concessão de inúmeras graças. Prova-o<br />
a imensa caudal de peregrinos que, em todas<br />
as épocas desde o encontro da imagem, têm se dirigido<br />
ao Santuário de Aparecida.<br />
Notemos ainda que, nessa imagem, Nossa Senhora<br />
houve por bem confirmar a regra de que<br />
Ela, sendo Mãe de todos os povos, constitui para<br />
cada um deles uma imagem que se torna sua padroeira.<br />
Assim, tem um trono<br />
em cada nação, sendo<br />
venerada de modo supereminente<br />
nos diversos lugares.<br />
Veja-se, então, a maravilha:<br />
Nossa Senhora Aparecida,<br />
que tem seu trono<br />
no Brasil, abandona-o e<br />
vem até nós. Temos,<br />
pois, toda razão em<br />
nos emocionar com<br />
tal fato!<br />
Salões da residência<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, abençoados<br />
pela maternal presença<br />
de Nossa Senhora<br />
Aparecida,<br />
Rainha e Padroeira do<br />
Brasil (destaque)<br />
5
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Nossa Senhora<br />
do Sagrado Coração<br />
Imagem venerada<br />
em Valência, Espanha
A<br />
o cantar as glórias de Nossa Senhora no seu relacionamento com o Sagrado Coração<br />
de Jesus, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos deixa ver o alto grau de contemplação ao qual, quando ainda<br />
muito jovem, chegou sua alma profundamente mariana.<br />
Se há uma época para cuja miséria só pode existir esperança<br />
de remédio no Sagrado Coração de Jesus,<br />
esta é a nossa.<br />
Inútil seria atenuar a enormidade dos crimes que por<br />
toda a parte pratica a humanidade em nossos dias. Disse<br />
Pio XI, em uma de suas Encíclicas, que a degradação moral<br />
do mundo contemporâneo é tal, que o coloca na iminência<br />
de se ver precipitado, de um momento para outro,<br />
em condições espirituais mais miseráveis do que aquelas<br />
em que se encontrava quando veio ao mundo o Salvador.<br />
(...)<br />
O sol da misericórdia<br />
divina<br />
Uma humanidade perseverante<br />
na sua impiedade tudo tem a esperar<br />
dos rigores de Deus. Mas<br />
Deus, que é infinitamente misericordioso,<br />
não quer a morte desta<br />
humanidade pecadora, mas sim<br />
“que ela se converta e viva”. E, por<br />
isto, sua graça procura insistentemente<br />
todos os homens, para que<br />
abandonem seus péssimos caminhos e<br />
voltem para o aprisco do Bom Pastor.<br />
Se não há catástrofes que não deva<br />
temer uma humanidade impenitente,<br />
não há misericórdias que não possa esperar<br />
uma humanidade arrependida. E<br />
para tanto não é necessário que o arrependimento<br />
tenha consumado sua<br />
obra restauradora. Basta que o pecador,<br />
ainda que no fundo do abismo, se<br />
volte para Deus com um simples início<br />
de arrependimento eficaz, sério e profundo,<br />
que ele encontrará imediatamente<br />
o socorro de Deus, que nunca se esqueceu<br />
dele. Di-lo o Espírito Santo na Sagrada<br />
Escritura: ainda que teu pai e tua mãe te<br />
abandonassem, eu não me esqueceria de ti.<br />
Até nos casos extremos em que o paroxismo<br />
do mal chega a esgotar a própria indulgência<br />
materna, Deus não se cansa. Porque<br />
a misericórdia de Deus beneficia o<br />
pecador até mesmo quando a Justiça divina<br />
o fere de mil desgraças no caminho<br />
da iniqüidade.<br />
Estas duas imagens essenciais da justiça e da misericórdia<br />
divina devem ser constantemente postas diante dos<br />
olhos do homen contemporâneo. Da justiça, para que ele<br />
não suponha temerariamente salvar-se sem méritos. Da<br />
misericórdia, para que não desespere de sua salvação desde<br />
que deseje emendar-se. E, se as hecatombes de nossos<br />
dias já falam tão claramente da justiça de Deus, que melhor<br />
visão para completar este quadro, do que o sol da misericórdia,<br />
que é o Sagrado Coração de Jesus?<br />
O Bom Pastor<br />
(imagem do século VI)<br />
Infinito amor para com<br />
os homens<br />
Deus é caridade. E por isto mesmo<br />
a simples enunciação do Nome<br />
Santíssimo de Jesus lembra a idéia do<br />
amor. O amor insondável e infinito que<br />
levou a Segunda Pessoa da Santíssima<br />
Trindade a se encarnar! O amor expresso<br />
através dessa humilhação incompreensível<br />
de um Deus que se manifesta aos homens<br />
como um menino pobre, que acaba de<br />
nascer em uma gruta.<br />
O amor que transparece através daqueles<br />
trinta anos de vida recolhida, na<br />
humildade da mais estrita pobreza, e nas<br />
fadigas incessantes daqueles três anos de<br />
evangelização, em que o ilho do Homem<br />
percorreu estradas e atalhos, transpôs<br />
montes, rios e lagos, visitou cidades e<br />
aldeias, cortou desertos e povoados, falou<br />
a ricos e a pobres, espargindo amor e recolhendo<br />
na maior parte do tempo principalmente<br />
ingratidão.<br />
O amor demonstrado naquela Ceia suprema,<br />
precedida pela generosidade do lava-pés<br />
e coroada pela instituição da Eucaristia! O<br />
amor daquele último beijo dado a Judas,<br />
daquele olhar supremo posto em São Pedro,<br />
daquelas afrontas sofridas na paciência e<br />
na mansidão, daqueles sofrimentos suportados<br />
até a total consumação das<br />
últimas forças, daquele perdão mediante<br />
o qual o Bom Ladrão roubou o<br />
Céu, daquele dom extremo de uma<br />
Mãe celestial à humanidade miserável.<br />
Cada um destes episódios foi meticulosamente<br />
estudado pelos sábios, pie-<br />
7
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
dosamente meditado pelos Santos, maravilhosamente reproduzido<br />
pelos artistas, e sobretudo inigualavelmente celebrado<br />
pela liturgia da Igreja. Para falar sobre o Sagrado<br />
Coração de Jesus, só há um meio: é recapitular devidamente<br />
cada um deles.<br />
Realmente, venerando o Sagrado Coração, outra coisa<br />
não quer a Santa Igreja, senão prestar um louvor especial<br />
ao amor infinito que Nosso Senhor Jesus Cristo dispensou<br />
aos homens. Como o coração simboliza o amor, cultuando<br />
o Coração, a Igreja celebra o Amor.<br />
Nossa Senhora, Advogada<br />
dos pecadores<br />
Por mais variadas e belas que sejam as invocações com<br />
que a Santa Igreja se refere a Nossa Senhora, em nenhuma<br />
delas deixaremos de encontrar uma relação entre Ela e<br />
o amor de Deus. Essas invocações, ou celebram um dom<br />
de Deus, ao qual Nossa Senhora soube ser perfeitamente<br />
fiel, ou um poder especial que Ela tem junto ao Seu Divino<br />
ilho. Ora, o que provam os dons do Deus, senão um<br />
amor especial do Criador? E o que prova o poder de Nossa<br />
Senhora junto a Deus, senão este mesmo amor?<br />
Assim, pois, é com toda a propriedade que Nossa Senhora<br />
pode ao mesmo tempo ser chamada “espelho de<br />
justiça” e “onipotência suplicante”. Espelho de Justiça, porque<br />
Deus a amou tanto, que n’Ela concentrou todas as perfeições<br />
que uma criatura pode ter, e por isto mesmo em<br />
nenhuma Ele se espelha tão perfeitamente como n’Ela.<br />
Onipotência suplicante, porque não há graça que se obtenha<br />
sem Nossa Senhora, e não há graça que Ela não obtenha<br />
para nós.<br />
Assim, pois, invocar Nossa Senhora sob o título do Sagrado<br />
Coração é fazer uma síntese belíssima de todas as<br />
outras invocações, é lembrar o reflexo mais puro e mais<br />
belo da Maternidade Divina, é fazer vibrar a um só tempo,<br />
harmonicamente, todas as cordas do amor, que tocamos<br />
uma a uma enunciando as várias invocações da ladainha<br />
lauretana, ou da Salve Rainha.<br />
Mas há uma invocação que quero lembrar especialmente.<br />
É a da advogada dos pecadores. Nosso Senhor é<br />
Juiz. E por maior que seja a sua misericórdia, não pode<br />
também deixar de exercer a sua função de juiz. Nossa Senhora,<br />
porém, é só advogada. E ninguém ignora que não é<br />
função do advogado outra coisa senão defender o réu. Assim,<br />
pois, dizer que Nossa Senhora do Sagrado Coração é<br />
nossa advogada implica em dizer que temos no Céu uma<br />
advogada onipotente, em cujas mãos se encontra a chave<br />
de um oceano infinito de misericórdia.<br />
O que de melhor para se mostrar a esta humanidade<br />
pecadora, a qual, se não se fala de justiça de Deus, se embota<br />
cada vez mais no pecado, e se dela se fala desespera<br />
de se salvar? Mostremos a justiça: é um dever cuja omissão<br />
tem produzido os mais lamentáveis frutos. Ao lado da<br />
justiça que fere os impenitentes, nunca nos esqueçamos,<br />
entretanto, da misericórdia que ajuda o pecador seriamente<br />
arrependido a abandonar o pecado e, assim, a se salvar.<br />
(Transcrito do “Legionário”, nº 410,<br />
de 21/7/1940. Subtítulos nossos.)<br />
Maria Santíssima é<br />
a nossa advogada<br />
onipotente, capaz<br />
de abrir para os<br />
homens o infinito<br />
oceano das<br />
misericórdias<br />
divinas (pórtico da<br />
Catedral de Dijon,<br />
rança)<br />
8
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
V<br />
imos no último artigo<br />
que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, embora<br />
tendo-se formado<br />
em Direito, pretendia dedicar-se<br />
por completo aos trabalhos no<br />
Movimento Católico. Julgava,<br />
pois, dever limitar sua vida<br />
profissional a atividades que favorecessem<br />
seu apostolado, como<br />
o magistério. Contudo, premido<br />
pela situação financeira de sua<br />
família, teve de mudar seus<br />
planos e abrir um escritório de<br />
advocacia.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ao lado do<br />
Arcebispo de São Paulo,<br />
D. Duarte Leopoldo e<br />
Silva, que lhe<br />
proporcionou importante<br />
negócio em advocacia<br />
Não é fácil ser advogado novo.<br />
ormar a primeira clientela é<br />
tarefa árdua. E meu escritório<br />
estava ainda nos seus primórdios, quando<br />
tomou corpo a questão da Liga Eleitoral<br />
Católica (LEC), na qual me enfronhei por<br />
inteiro. Depois da revolução paulista de<br />
1932, tendo o Presidente Getúlio Vargas<br />
convocado eleições para 1933, o Arcebispo<br />
de São Paulo, Dom Duarte, me incumbiu<br />
de pôr a LEC em movimento.<br />
Exultei. Ocupei três salões do prédio da<br />
Cúria, e convidei duas pessoas para me<br />
auxiliar: o sócio de meu ainda ultra-incipiente<br />
escritório de advocacia, que devia dirigir<br />
o serviço de recrutamento eleitoral; e<br />
um estudante da aculdade de Direito,<br />
membro da Ação Universitária Católica<br />
(mais tarde, ele seria deputado pelo Estado<br />
de Goiás). Tínhamos também uma sala<br />
no fundo, para tirar fotografias dos eleitores.<br />
Os trabalhos na LEC nos tomava to-<br />
VIDA DE ADVOGADO - II<br />
O primeiro grande cliente<br />
9
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
do o tempo: entrávamos de manhã e<br />
saíamos à noite.<br />
Além dessas atividades, comecei<br />
uma série de conferências pelo interior<br />
de São Paulo, o que me obrigava<br />
a diversas e cansativas viagens de trem<br />
noturno, em todas as direções. Pouco<br />
depois veio a minha eleição, e o período<br />
que passei no Rio de Janeiro<br />
como deputado federal constituinte.<br />
Após a vitória nas urnas, fechei o<br />
escritório de advocacia, que ficou sem<br />
condições de funcionar. Passei a viver<br />
de meu ordenado de deputado, sendo<br />
que o orçamento familiar era completado<br />
por uma renda que minha mãe<br />
obtinha de certos imóveis. Nessa época,<br />
meu pai advogava no interior de<br />
São Paulo, procurando se refazer de<br />
alguns desastrosos negócios no ramo<br />
industrial. Não obstante, desfrutávamos<br />
de uma situação financeira<br />
razoável, embora um tanto precária,<br />
pois qualquer pequena encrenca —<br />
uma inflação, por exemplo — já me<br />
obrigaria a buscar outra forma de sustento.<br />
Mais ainda. Não era certo que eu<br />
continuasse na carreira política, incerteza<br />
esta que projetava uma sombra<br />
no meu futuro pecuniário. Já tive ocasião<br />
de narrar como Nossa Senhora<br />
veio em meu auxílio, obtendo-me<br />
três bons empregos:<br />
na aculdade de Direito [da<br />
Universidade de São Paulo],<br />
na aculdade Sedes Sapientiae<br />
e na aculdade São<br />
Bento. Assim, quando cessou<br />
meu mandato parlamentar,<br />
eu tinha com o que<br />
manter a mim e a minha<br />
mãe num nível de vida condizente<br />
com nossa situação.<br />
Todavia, emprego é algo<br />
que se pode perder a qualquer<br />
momento. Era uma<br />
necessidade para mim, então,<br />
retomar os trabalhos de<br />
advocacia. oi o que fiz [em<br />
1935], tomando uma sala no<br />
mesmo edifício da rua Líbero<br />
Badaró onde funcionara<br />
o primeiro escritório.<br />
Perspectiva inesperada de<br />
um excelente cliente<br />
Instalei-me ali, e já me debatia com<br />
as dificuldades para arranjar clientes,<br />
quando, certo dia, o meu antigo sócio<br />
me perguntou:<br />
— Por que você não pede a Dom<br />
Duarte uns prédios da Cúria Arquidiocesana<br />
para administrar?<br />
Nunca tive boa cabeça para negócio<br />
ou para fazer dinheiro. Ao ouvir<br />
esta proposta, fiquei surpreso:<br />
— Mas a Cúria tem prédios para<br />
alugar?<br />
— Você não sabia? A Cúria é proprietária<br />
de quarteirões inteiros na cidade<br />
de São Paulo!<br />
Não poderia haver algo melhor para<br />
mim do que ficar com a administração<br />
de imóveis da Cúria. Além de<br />
me livrar de preocupações financeiras,<br />
ainda me deixava tempo livre para<br />
o Movimento Católico. Resolvi levar<br />
a idéia adiante.<br />
Pouco depois dessa conversa, tive<br />
de me encontrar com Dom Duarte,<br />
para falarmos de assuntos relativos à<br />
causa católica. Era uma época em que<br />
o Legionário, ao bater-se em defesa<br />
da Igreja, contrariava muitos interesses,<br />
angariando inimizades.<br />
Dom Duarte cumprimentou-me,<br />
utilizando como de costume um já desusado<br />
pronome de tratamento:<br />
— E vossemecê, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>? Como<br />
vai?<br />
— Sr. Arcebispo, vou bem. Mas os<br />
adversários da Igreja a qualquer momento<br />
me criam uma situação insustentável...<br />
Ele achou graça:<br />
— Mas, por quê?<br />
— V. Excia. vê como o Legionário<br />
está lutando. Por isso tenho recebido<br />
ameaças. Há pessoas que passam em<br />
frente de minha casa e gritam, ameaçam<br />
de morte, etc. Se mamãe ouvir<br />
uma coisa dessas, pode até sofrer um<br />
trauma nervoso não pequeno...<br />
Dom Duarte me ouviu com muita<br />
calma. Tratamos de outros assuntos e<br />
me despedi.<br />
Carta ao Arcebispo<br />
Ao chegar em casa, datilografei uma<br />
carta para ele, mais ou menos nos seguintes<br />
termos:<br />
“Sr. Arcebispo, contei-lhe tal coisa<br />
assim. Vossa Excelência achou graça<br />
nessa situação, mas compreenderá que<br />
eu a considere menos engraçada.” Ele<br />
era um homem forte, desses com os<br />
Aspecto<br />
da cerimônia<br />
de fundação<br />
da LEC. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
é o segundo, da<br />
esquerda para a direita.<br />
Ao centro, D. Duarte<br />
10
O centro<br />
de São<br />
Paulo na<br />
década de<br />
30, com o<br />
entroncamento<br />
da<br />
av. São<br />
João com<br />
a rua<br />
Líbero<br />
Badaró.<br />
quais se pode usar de toda a franqueza.<br />
“Não possuo patrimônio. Se,<br />
por exemplo, precisar ausentar-me algum<br />
tempo de São Paulo, como vou<br />
viver? Como viverá minha mãe? Não<br />
poderei levá-la comigo, porque, se<br />
não tenho dinheiro para me manter,<br />
quanto mais a ela.<br />
“E a esse propósito, tomo a liberdade<br />
de dizer que a minha situação<br />
não me parece eqüitativa. Se a Cúria<br />
Metropolitana arranja trabalho para<br />
tantos advogados, eu esperava já ter<br />
sido convidado para ser um deles.<br />
Uma vez que não vem o convite, lanço<br />
a questão: peço ser-me concedida<br />
a administração de imóveis da Cúria.”<br />
Dizia ainda que me parecia justa<br />
minha solicitação, pois nem se referia<br />
a dinheiro, mas a trabalho. A carta foi<br />
um pouco longa, desenvolvendo toda<br />
essa argumentação.<br />
Dom Duarte se mostrou corretíssimo<br />
comigo. Imediatamente, através<br />
de seu secretário, avisou-me que estava<br />
disposto a me receber e marcou<br />
um encontro. Na hora aprazada, lá<br />
me achava, sendo logo acolhido por<br />
ele:<br />
— Olha, recebi sua carta com muito<br />
agrado. Vou dar para vossemecê administrar<br />
tais e tais prédios da Cúria.<br />
E o senhor ganhará tanto.<br />
Embora fosse uma boa soma de edifícios,<br />
não era um ordenado brilhante.<br />
Contudo, era bem razoável, pelo<br />
que eu já dava graças a Deus.<br />
Enquanto esperava vir o encarregado<br />
dos negócios da Cúria — Mons.<br />
Nicolau Consentino, um sacerdote<br />
muito simpático, que mandara chamar<br />
para nos pôr em contato — o<br />
Arcebispo foi dizendo:<br />
— E o senhor, então, já pode começar<br />
a trabalhar.<br />
Precavendo-se contra os<br />
vaivéns da vida<br />
Mas me voltei para Dom Duarte:<br />
— Sr. Arcebispo, a vida tem muitas<br />
variações. Peço, por isso, a Vossa Excelência,<br />
que faça um contrato de locação<br />
de serviço comigo, pois nenhum<br />
de nós possui a vida nas mãos.<br />
Ele já passara dos setenta...<br />
— Então, de cinco anos.<br />
Concordei, embora de fato quisesse<br />
mais. Tinha receio, porém, de estragar<br />
o negócio se o pedisse. Ele continuou:<br />
— Está bem. aça o contrato e me<br />
traga. Estou saindo daqui a pouco para<br />
São Vicente. Vossemecê me procure<br />
quando eu voltar, e o assino.<br />
— Sr. Arcebispo, Vossa Excelência<br />
me perdoe, mas eu gostaria muito de<br />
fazer esse contrato já.<br />
Ele admirou-se:<br />
— Mas como vossemecê quer fazer<br />
então?<br />
— É levar o contrato para Vossa<br />
Excelência assinar em São Vicente.<br />
Era um pedido meio ousado, pois<br />
Dom Duarte não tratava de nenhum<br />
assunto administrativo em São Vicente.<br />
Eu estava interferindo no descanso<br />
de um homem idoso. Mas, condescendente,<br />
ele aquiesceu:<br />
— Bom, então leve a São Vicente.<br />
Quando fui redigir o contrato, falei<br />
com meu pai, exprimindo toda a minha<br />
alegria pelo excelente cliente que<br />
estava ganhando. Ao lhe contar a combinação<br />
com Dom Duarte, ele observou:<br />
11
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
— Mas o contrato, nessas condições<br />
que você propôs, é nulo.<br />
— Como assim?!<br />
— Pelo Código Civil, o contrato de<br />
locação de serviços não pode durar<br />
mais de quatro anos.<br />
— Por quê?<br />
— Porque há o temor de que, se ultrapassar<br />
quatro anos, possam fazerse<br />
contratos de vinte, de cinqüenta<br />
anos. Ora, um contrato de cinqüenta<br />
anos equivale a uma forma de escravidão.<br />
Como foi proclamada a liberdade<br />
dos escravos, o Código Civil determinou<br />
que os contratos não podem<br />
exceder quatro anos.<br />
E, rindo prazerosamente da minha<br />
inexperiência, concluiu:<br />
— Você precisa, portanto, fazer<br />
esse contrato por quatro anos.<br />
— Bem, vou redigi-lo como se tivéssemos<br />
combinado quatro anos, e<br />
verei o que diz Dom Duarte.<br />
O acerto em São Vicente<br />
Telefonei para São Vicente, e o Arcebispo<br />
me marcou uma hora à tarde.<br />
Eu estava com um imenso desejo<br />
de ter esse contrato assinado, porque<br />
afinal, depois de tanta aflição, representava<br />
um certa garantia de sossego<br />
financeiro. Desci cedo para Santos,<br />
acompanhado pelo meu sócio, e fomos<br />
primeiro almoçar em Guarujá,<br />
para encher o tempo. Na hora exata,<br />
estávamos chegando à casa de Dom<br />
Duarte.<br />
Vem a propósito mencionar, de<br />
passagem, um dado pitoresco que revela<br />
algo da personalidade desse distinto<br />
Príncipe da Igreja. Quando eleito,<br />
todo bispo adota um brasão de armas,<br />
feito segundo sua indicação. Do<br />
de Dom Duarte, não me recordo do<br />
desenho mas sim do lema nele inscrito:<br />
Ipse firmitas et auctoritas mea.<br />
“Ele mesmo” — ou seja, Jesus Cristo<br />
— “é minha firmeza e minha autoridade”.<br />
E, de fato, Dom Duarte caracterizava-se<br />
por uma garra extraordinária,<br />
afirmando em tudo esse princípio<br />
da autoridade.<br />
O local de repouso do Arcebispo<br />
era uma vilazinha modesta, embora<br />
decente, junto a um ponto bem escolhido<br />
da praia de São Vicente. Lugar<br />
marcado por bela paisagem litorânea,<br />
emoldurado pelas ondas que ali chegavam<br />
e morriam docemente.<br />
Toquei a campainha da casa, e ato<br />
contínuo fui recebido por Dom Duarte.<br />
Disse eu:<br />
— Sr. Arcebispo, aqui está o contrato<br />
para Vossa Excelência assinar.<br />
Era-me desconhecida a singularidade<br />
de que Dom Duarte nunca assinava<br />
contratos. Ele entendia — e isso<br />
me parecia um traço de grandeza dele<br />
— que a palavra do Arcebispo de São<br />
Paulo valia por escritura pública. Ele<br />
só marcava uma cruzinha e a letra<br />
“D”, maiúscula, em cima das estampilhas<br />
das escrituras. Às vezes eram<br />
transações enormes, mas a outra parte<br />
tinha de se contentar com isso, assim<br />
como os tabeliães, embora fosse<br />
ilegal. Ninguém assina só o primeiro<br />
nome. Menos ainda apenas a inicial.<br />
Dom Duarte leu com bastante atenção,<br />
demonstrando certa dificuldade<br />
de entender a letra, apesar de datilografada.<br />
Eu... ansioso. Ele disse:<br />
— Bem, vou lá dentro assinar.<br />
Palácio<br />
São Luís,<br />
residência<br />
oficial do<br />
Arcebispo<br />
de São<br />
Paulo, na<br />
época<br />
de D. Duarte<br />
12
Respirei aliviado.<br />
Naquele tempo, as pessoas de idade<br />
nunca usavam caneta, e sim pena<br />
de aço; daí, para escrever, a necessidade<br />
de estarem sentadas a uma mesa,<br />
com um tinteiro ao alcance. Ele retornou<br />
em seguida, com o contrato deveras<br />
assinado. iquei muito contente e<br />
pensei: “Bom, antes de ele se arrepender,<br />
vou dar o fora!” Afinal, temos<br />
de prever tudo o que pode acontecer...<br />
Prolonguei por alguns instantes a<br />
conversa, pro forma, e pedi licença para<br />
me retirar. Meu sócio ficara na praia,<br />
simulando contemplar o lindo panorama<br />
marítimo, mas de fato com toda<br />
a atenção voltada para o que ocorria<br />
na casa. Dirigi-me com certa pressa<br />
até o lugar onde ele estava e o chamei.<br />
Voltou-se para trás, perguntando-me<br />
curioso:<br />
— Como é? Assinou?<br />
Ele estava mais ansioso do que eu<br />
para ganhar o encargo, pois receberia<br />
um bom ordenado pela parte do serviço<br />
que lhe tocaria.<br />
— Sim, está assinado.<br />
Ele quis ver o contrato, e o olhávamos<br />
contentes, quando ouvimos ao<br />
longe a voz de Dom Duarte:<br />
— <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>! <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>!<br />
Eu me afligi:<br />
— Meu Deus do Céu, caiu a casa!<br />
Corri em direção a ele, e notei que<br />
estava sorrindo, fazendo-me um sinal<br />
para que eu fosse devagar.<br />
— Pois não, Sr. Arcebispo?... —<br />
perguntei em suspense.<br />
— Esqueci de dizer ao senhor que<br />
tal tabelião é melhor para reconhecer<br />
a minha firma do que tal outro...<br />
— Pois não, Sr. Arcebispo. Muito<br />
grato.<br />
Era uma bagatela. Aliviado, voltei<br />
no primeiro trem para São Paulo e,<br />
sem mais esperar, assumi a administração<br />
dos imóveis que me haviam sido<br />
confiados.<br />
(Continua no próximo número)<br />
Vistas de São Vicente, onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
acertou seu contrato advocatício com<br />
a Cúria Metropolitana de São Paulo<br />
13
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Qual o papel da<br />
burguesia na sociedade?<br />
U<br />
ma impostação freqüente, mas errada, da realidade<br />
social, apresenta os burgueses invejando os aristocratas<br />
e espezinhando o povo miúdo. Será que este<br />
quadro de perpétua oposição entre as classes deve nortear uma<br />
análise do desenvolvimento da burguesia?<br />
Não! responde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. O problema está mal focalizado.<br />
Nunca me dediquei especialmente ao estudo<br />
da burguesia. Parecem-me, entretanto,<br />
insuficientes os dados a respeito<br />
dela, comuns em ambientes cultos, constituindo<br />
antes um conjunto de idéias malpostas. Desde logo,<br />
procura-se compará-la à nobreza: o que esta<br />
última tem que torna aquela ridícula? E o que a<br />
burguesia possui que faz da nobreza uma trôpega?<br />
É um ponto de vista que cheira a luta de classes,<br />
desmerecendo o quadro geral da organização<br />
social. Não é por aí que se deve abordar a questão.<br />
Para se formar uma exata visão da burguesia,<br />
importa perguntar qual sua função dentro da sociedade<br />
e do Estado. Desta questão decorre, como<br />
algo secundário, o problema de seu relacionamento<br />
com a nobreza e também com a plebe (circunscrevendo-se<br />
esta aos trabalhadores manuais<br />
e a alguma camada social um pouco acima deles).<br />
A burguesia no passado<br />
Em busca da resposta, cumpre inicialmente<br />
distinguir duas situações para a burguesia.<br />
Uma, aquela em que formava a classe mais importante<br />
das cidades livres, às vezes soberanas.<br />
Ela detinha o governo e ocupava o primeiro lugar<br />
na sociedade. Na aparência, revestia-se de todas<br />
as características — inclusive a da antiguidade —<br />
para ser considerada nobreza e, sem embargo,<br />
Casa de Jacques Coeur, uma das mais célebres residências da<br />
burguesia medieval, nos antigos Países Baixos<br />
14
Em muitas cidades<br />
livres, às vezes<br />
soberanas, a burguesia<br />
ocupava o primeiro lugar<br />
na sociedade (selos e<br />
cartas das cidades livres<br />
de Lübeck, Rostock e<br />
Stralsund)
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
não o era. Por quê? Seu tipo humano era sempre o burguês,<br />
nunca o aristocrático.<br />
Eis o lado interessante do problema: dir-se-ia que a burguesia<br />
se define como uma classe eminente, não porém a<br />
principal. E não é verdade. Nas cidades burguesas era ela a<br />
principal, e não a nobreza.<br />
Considere-se, por exemplo, uma rica e pujante cidade<br />
livre em landres. Terminados os limites municipais (em<br />
geral, não muito extensos), começavam os pequenos feudos.<br />
Os senhores desses domínios possuíam fortunas bem<br />
menores que as dos burgueses com suas casas comerciais.<br />
Situações semelhantes se repetiam com a burguesia em<br />
todo o reino de Lotário, neto de Carlos Magno, que governava<br />
a faixa quase ininterrupta de terreno que ia dos<br />
Países Baixos até o sul da Itália, passando pela fronteira<br />
franco-alemã e pela Suíça. Era um<br />
Estado com várias e pequenas cidades<br />
livres, o que não ocorria com a<br />
mesma freqüência nas demais regiões<br />
da Europa.<br />
Outra situação era a da burguesia<br />
nos Estados homogêneos, isto é,<br />
os não-salpicados de minúsculas<br />
autonomias. Neles, essa classe não<br />
se achava isolada, mas situava-se a<br />
certa altura da pirâmide social, integrando<br />
um conjunto no qual desempenhava<br />
um papel específico. O<br />
governo municipal, via de regra era,<br />
chefiado por um tipo de noblesse de<br />
robe [nobreza da toga], e nele tinham<br />
os burgueses alguma forma de participação.<br />
O que era a burguesia numa cidade<br />
como, por exemplo, Paris?<br />
Poder-se-ia dizer que, por exclusão,<br />
as profissões que nenhuma relação<br />
tinham com a clerezia (esta<br />
era uma classe à parte), com a guerra,<br />
com o governo, com um mando<br />
de Direito público, nem com todas<br />
as funções de trabalhadores manuais<br />
— essas constituíam a burguesia.<br />
Estavam nesse caso os tabeliães,<br />
os professores, os comerciantes,<br />
etc., constituindo uma classe<br />
extremamente diversa quanto ao<br />
recrutamento.<br />
com a chamada “nobreza da terra”, existente no Brasil<br />
colonial e imperial.<br />
Na colônia, a classe burguesa tinha facilidade para exercer<br />
o governo dos municípios. Os membros das Câmaras<br />
Municipais e aquilo que poderíamos chamar de prefeitos<br />
eram filhos da burguesia, a qual, sem ter direito ao governo,<br />
de fato o ocupava.<br />
Essa classe encontrava-se numa situação de menor relevância,<br />
porque os municípios eram em geral muito distantes<br />
uns dos outros, com áreas imensas, em parte despovoadas,<br />
formando uma extensa jurisdição; o comércio<br />
da colônia era pequeno e de pouca importância, porque<br />
pequena era também a população urbana.<br />
Importante era a classe dos lavradores, os quais, não<br />
raramente, mantinham casa na cidade e moravam ora ali,<br />
No Brasil, burguesia e<br />
nobreza da terra<br />
No desenvolver deste estudo,<br />
surgem algumas questões interessantes,<br />
como a que se relaciona<br />
Georg Grisze, típico exemplo do burguês comerciante,<br />
gozava de não pequena influência na Londres do século XVI<br />
16
Da chamada “nobreza da terra”, existente no Brasil colonial e imperial, originou-se uma brilhante aristocracia, de categoria<br />
análoga à das nobrezas européias (Palacete de Dª Veridiana Prado, atual Sede do Clube São Paulo, em São Paulo)<br />
ora na fazenda. Enquanto agricultores, exerciam uma profissão<br />
nobilitante, pois o cultivo da terra no passado, embora<br />
não fosse privilégio da nobreza, habitualmente estava<br />
nas mãos de nobres.<br />
Muitos aristocratas portugueses para cá vieram e se misturaram<br />
com essa “nobreza da terra” que, entretanto, não<br />
era reconhecida como nobreza autêntica em Portugal. Assim,<br />
na prática passamos a ter uma classe dirigente na<br />
qual, em várias das famílias de grandes agricultores, corria<br />
sangue nobre da Europa. Esse vínculo com uma nobreza<br />
média ou pequena as tornava um pouco mais ilustres que<br />
suas congêneres unicamente nacionais.<br />
A elite que ia se constituindo em várias regiões participava<br />
do governo, não por direito próprio mas por sufrágio<br />
popular. As corporações se elegiam habitualmente para o<br />
legislativo municipal, mas os nobres da terra também eram<br />
muitas vezes eleitos, a este ou aquele título, devido à sua<br />
importância no lugar.<br />
Destilação de elites dentro da burguesia<br />
Voltando o foco de nosso estudo novamente para o geral<br />
da Europa, encontramos o seguinte fato, característico<br />
como desabrochar de uma nova idéia de burguesia: o aparecimento<br />
de classes sociais intelectualizadas.<br />
Então, professores de Universidade, juízes, diplomatas,<br />
altos funcionários do Estado, cujas funções haviam se requintado<br />
tanto com o progresso intelectual, requeriam estudos<br />
tão difíceis e comportavam tanta responsabilidade,<br />
que — sem serem nimbadas da glória militar própria à nobreza<br />
— exigiam indiscutivelmente uma leistung [capacidade<br />
de resistência] muito forte, que conferia ao feitio humano<br />
um valor superior ao simples mérito comercial ou<br />
industrial.<br />
Mais. Um professor que resolvesse, por exemplo, uma<br />
querela religiosa no seu país, encontrando um argumento<br />
teológico decisivo, participava a título novo da direção da<br />
res publica, pois o curso do país acabava não sendo influenciado<br />
apenas por militares e agricultores, mas pelo intelectual<br />
que, de diversos modos, ia abrindo rumos para a sociedade.<br />
Esse homem, imolando-se no seu estudo, adquiria uma<br />
outra forma de mando, mais sobre a sociedade que sobre o<br />
Estado, além de certos direitos a uma respeitabilidade e a<br />
uma influência que tocavam na nobreza. Ele seria nobre a<br />
um título especial. Isso era caracteristicamente a noblesse<br />
de robe [nobreza da toga].<br />
Poderia ter-se constituído ainda, a partir da burguesia, a<br />
nobreza universitária, na qual seria possível diferenciar a<br />
nobreza dos professores universitários e a dos mestres que<br />
alcançassem grandes láureas, fama mundial, etc. Enquanto<br />
tais, teriam uma situação participante da nobreza, não<br />
porém inteiramente equiparada à dela.<br />
Houve um início dessa aristocracia na Espanha e em<br />
Portugal. Quando o indivíduo era formado em Coimbra,<br />
por exemplo, tornava-se nobre em caráter pessoal. Quan-<br />
17
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
do morria, seu filho não herdava o título nobiliárquico.<br />
Contudo, quando passavam três ou quatro gerações de<br />
formados naquela célebre Universidade, o remoto descendente<br />
da quarta geração já ficava nobre automaticamente.<br />
Compreende-se: a tradição familiar havia cumulado um<br />
certo feitio, uma certa excelência, que redundava num modo<br />
de ser próprio, capaz de a situar entre as primeiras estirpes<br />
do reino.<br />
Esse sistema teria naturalmente formado a nobreza universitária<br />
— para indicar o espigão em torno do qual ela se<br />
desenvolveria —, em cujo seio se poderia imaginar incluídos<br />
os artistas e outras categorias profissionais voltadas à<br />
produção intelectual.<br />
Se, por exemplo, alguém dotado de extraordinário talento<br />
para a política — imaginemos um professor de Direito<br />
Internacional — tivesse participado de modo excelente<br />
de negociações como o Tratado de Versalhes, poderia ser<br />
incorporado à grande nobreza intelectual. Outrossim,<br />
poderia ter pertencido a ela o médico que inventou o sistema<br />
de cura da lepra.<br />
Teríamos, então, o estabelecimento de uma espécie de<br />
nobreza a partir da burguesia: já não seria esta, mas também<br />
não possuiria o reluzimento de quem vive banhado na<br />
glória e pronto para o martírio, próprio à noblesse d’épée<br />
[nobreza da espada].<br />
O aprimoramento da burguesia<br />
comercial e industrial<br />
Creio não cometer exagero, chegando até este ponto:<br />
um abergé [produtor de belíssimas jóias na Rússia imperial],<br />
ou então um fabricante de magníficos perfumes, também<br />
poderia ser incorporado a essa classe dos excelentes<br />
da cidade, tomando em consideração a contínua destilação<br />
do muito excelente do espírito humano nos vários terrenos.<br />
O fabricante de um super-Mercedes poderia ser nobilitado.<br />
Como o foram, aliás, na Inglaterra, tanto Rolls quanto<br />
Royce. No passado, por que não ser nobilitado o fabricante<br />
de carruagens superexcelentes?<br />
Com isso tocamos em dois campos típicos da atividade<br />
burguesa: comércio e indústria. Para vê-las pelo prisma<br />
utilizado neste estudo, é preciso perguntar: quais as qualidades<br />
profissionais que um comerciante, industrial ou negociante<br />
ideal deve ter?<br />
Primeiramente, uma honestidade a toda prova. Depois,<br />
uma segurança nos negócios como as que caracterizam o<br />
tabelião. Além disso, deve ser sério, sisudo, para dar a seu<br />
estabelecimento uma solidez pétrea, de maneira a ficar —<br />
como se espera das coisas da economia — no suporte do<br />
Estado e da sociedade. Noutros termos, a economia de um<br />
país tem de ser bem organizada, e para isso precisa ser<br />
forte.<br />
A proeza comercial é legítima e bela a partir de um certo<br />
ponto, antes do qual é quase sempre ilegítima. Mas,<br />
quando lhe sobram recursos, o comerciante ou industrial<br />
deve saber ser arrojado, de um arrojo até extraordinário.<br />
Não é da essência do comércio e indústria que o profissional<br />
arrisque a própria vida, mas fica-lhe bem se o fizer.<br />
De modo que, se um negociante viajar, por exemplo, para<br />
o Transvaal ou a Rodésia, a fim de cuidar da extração de<br />
diamantes, e nisto arriscar a vida, adquire algo de nobilitante.<br />
O mesmo se diga de um comerciante ou industrial que,<br />
com as sobras da sua fortuna pétrea, seja capaz de um<br />
mecenato muito elevado, de obras de caridade, de empreendimentos<br />
benfazejos, magníficos, etc. A nota de desprendimento<br />
que aí aparece, sem nada da glória militar, é<br />
Assim como Rolls e Royce, bem<br />
poderia ser nobilitado o<br />
fabricante de carruagens<br />
superexcelentes...<br />
18
dignificante a seu modo: trata-se do menor dos modos de<br />
nobilitação.<br />
E, a partir do momento em que a economia passou a ser<br />
uma ciência, com a complexidade e amplitude que apresenta<br />
hoje, o negociante — comercial ou industrial — deve<br />
se imbuir de muito conhecimento. Precisa saber que especialistas<br />
contratar, que gente empregar naquilo que faz,<br />
etc. Deve, portanto, possuir um desenvolvimento intelectual<br />
e mental não menor que o de uma sumidade universitária.<br />
E, como esta, merecer uma posição mais honorífica<br />
na hierarquia social, análoga à condição de nobre.<br />
Um termo para designar os excelentes?<br />
Levanto, por fim, um problema meramente lingüístico:<br />
não teria sido mais conveniente que houvesse surgido um<br />
termo próprio para designar a classe dos “excelentes”?<br />
Não seria melhor ter-se reservado “nobreza” apenas para<br />
a noblesse d’épée?<br />
Na Hungria, por exemplo, usava-se a palavra “magnata”<br />
para designar a nobreza. eita abstração do caso particular<br />
húngaro, ela não poderia ter sido empregada para<br />
designar essas elites? Ou, digamos, uma palavra como<br />
“optimata”?<br />
É uma pergunta que cabe neste tipo de estudo.<br />
icam assim propostas algumas características e coordenadas<br />
muito úteis, a meu ver, para melhor se avaliar o<br />
papel da burguesia dentro da sociedade e do Estado. v<br />
Também os célebres<br />
joalheiros abergé,<br />
produtores de<br />
belíssimas jóias na<br />
Rússia imperial,<br />
poderiam ser<br />
incorporados à<br />
“classe dos<br />
excelentes”. Ao<br />
lado, Carl abergé e<br />
seu filho Eugène<br />
Com as magníficas<br />
jóias e lindos<br />
“bibelots” saídos das<br />
habilidosas mãos da<br />
família abergé,<br />
costumava o Czar<br />
da Rússia<br />
presentear seus<br />
parentes e amigos<br />
19
DR. PLINIO COMENTA...<br />
A Eucaristia e o<br />
apostolado no mundo<br />
moderno<br />
“Cristo da Santa Ceia”,<br />
escultura de Aleijadinho
N<br />
a Sessão Solene da Semana Eucarística de Campos<br />
(RJ), em 23 de abril de 1955, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mostrava<br />
como viver a devoção a Jesus Sacramentado<br />
no difícil mundo contemporâneo.<br />
AEucaristia e o apostolado<br />
no mundo moderno. Tema<br />
rico em considerações, que<br />
contém quatro palavras, cada uma delas<br />
importante, mas muito desiguais,<br />
como precisão e nitidez.<br />
Pois, se é verdade que os conceitos<br />
de Eucaristia e de apostolado são precisos,<br />
o de mundo já é um pouco menos;<br />
e o mais delicado, o mais melindroso<br />
de todos estes conceitos vem a<br />
ser o de moderno.<br />
O que significa “mundo<br />
moderno”?<br />
O que entendemos, então, por mundo,<br />
e o que devemos entender por<br />
mundo moderno?<br />
No Evangelho fala-se do mundo.<br />
Nosso Senhor recusou-se a rezar por<br />
ele, mas o apóstolos receberam a incumbência<br />
de evangelizar todos os<br />
povos e isto significa evangelizar o<br />
mundo. O que quer dizer propriamente<br />
a palavra “mundo”?<br />
Na linguagem corrente, é o globo<br />
em que vivemos, é toda a humanidade,<br />
é uma determinada sociedade de<br />
vida temporal que, neste sentido, distingue-se<br />
da Igreja. Em outro sentido,<br />
é uma espécie de reino das trevas, do<br />
demônio: não é a sociedade temporal,<br />
mas é propriamente o mal, cujo líder<br />
é Satanás. Nessa concepção, Lúcifer é<br />
o “príncipe deste mundo”.<br />
Moderno... Quantos sentidos no<br />
vocabulário corrente para esta palavra!<br />
“Mundo moderno” é o mundo de<br />
hoje por contraposição ao mundo de<br />
ontem. E então podemos dizer que o<br />
mundo moderno não se compõe apenas<br />
de coisas atuais, pois dele ainda<br />
faz parte todo o passado da humanidade.<br />
Razão pela qual coexistem no mundo<br />
moderno alguns clarões da era supernova<br />
e superatômica que se delineia<br />
no extremo do nosso horizonte,<br />
como futuro, ao lado de longínquos e<br />
palpitantes clarões dos primórdios de<br />
nossa civilização.<br />
E o instante atual, o instante moderno,<br />
é composto de elementos heterogêneos,<br />
que vão desde as permanências<br />
do mais antigo passado, até as<br />
perspectivas do mais indeciso e remoto<br />
futuro. Portanto, o quadro da vida<br />
de um homem, num determinado mo-<br />
O antigo e o moderno,<br />
na Paris do século XX...
DR. PLINIO COMENTA...<br />
mento, é não apenas a conjuntura que<br />
ele tem diante de si, mas o quadro das<br />
perspectivas, dos projetos, dos prognósticos<br />
que ele traz dentro da alma.<br />
E assim, o mundo moderno se nos<br />
apresenta rico em aspectos contraditórios<br />
e opostos. Desse passado do<br />
qual nós procedemos, e em relação ao<br />
qual se procura estabelecer uma contraposição<br />
com a palavra moderno,<br />
desse passado, quanta coisa de glorioso<br />
nos resta!<br />
Modernidade da Igreja<br />
Temos, antes de tudo, algo que é<br />
mais do que passado, mais do que presente,<br />
mais do que futuro porque é divino:<br />
a Santa Igreja Católica Apostólica<br />
Romana!<br />
Instituição velha de quase dois mil<br />
anos, contudo a mais jovem, a mais<br />
promissora das instituições do mundo<br />
moderno. E nesta civilização, que por<br />
vários aspectos parece desabar e caminhar<br />
para o ocaso, nesta civilização<br />
em que tanta coisa está morrendo, só<br />
uma não falece, e promete uma juventude<br />
indefinida: é essa Igreja Católica,<br />
moderna em todos os tempos! Moderna,<br />
quando nasceu do flanco divino<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo; moderna<br />
ainda, quando, nos últimos momentos<br />
da história, na hora em que<br />
todos os elementos do universo se perturbem<br />
e todos os homens, tomados<br />
de pânico, virem surgir no mais alto<br />
dos céus o ilho de Deus, revestido<br />
de grande majestade, que os julgará<br />
decisivamente — ainda nesse momento<br />
será a mais moderna das instituições,<br />
a divina, a Santa Igreja Católica<br />
Apostólica Romana!<br />
Mas, se analisamos um pouco melhor<br />
o sentido da palavra moderno,<br />
veremos que ela é por vezes empregada<br />
numa significação diversa, entendendo-se<br />
por tal vocábulo algo que se<br />
opõe ao existente no passado. É moderno<br />
aquilo que nasceu agora. E neste<br />
sentido, todas as coisas, a todos os<br />
momentos, estão deixando de ser modernas,<br />
para dar lugar ao advento de<br />
outras mais recentes.<br />
Considerada assim, a palavra moderno<br />
é impregnada de um certo conceito<br />
de progresso, ou seja, uma melhoria<br />
no sentido de atingir um determinado<br />
estado ideal da humanidade.<br />
O moderno é uma marcha para a frente,<br />
um avanço.<br />
Ao mesmo tempo, porém, nosso vocabulário<br />
é forçado a um ato de humildade,<br />
e enquanto reconhecemos que<br />
todas as novidades da técnica são modernas,<br />
somos obrigados também a<br />
falar dos flagelos e pânicos atuais, e a<br />
reconhecer que toda essa técnica, glória<br />
da modernidade, traz para nós sustos<br />
terríveis, com a perspectiva da aniquilação<br />
do mundo contemporâneo<br />
pela bomba de hidrogênio, por exemplo...<br />
Conta-se de Einstein este gracejo.<br />
Indagado a respeito de como seria a<br />
terceira guerra mundial, ele respondeu:<br />
“A terceira não sei, mas a quarta<br />
será com arco e flecha”. Quer dizer, a<br />
humanidade teria retrocedido tanto<br />
depois da terceira, que a quarta guerra<br />
se travaria com armas primitivas.<br />
Tais são as perspectivas desta duvidosa<br />
modernidade na idade da técnica.<br />
Igualitarismo e<br />
sensualidade, sentido mais<br />
sutil de “moderno”<br />
Tem, todavia, a palavra moderno<br />
um sentido mais sutil, mais recôndito,<br />
e é este sentido que, por fim, me cabe<br />
analisar.<br />
Ninguém diria que passar do divórcio<br />
para a indissolubilidade do vínculo<br />
conjugal é modernizar, mas muitos<br />
acham que passar desta para aquele é<br />
tornar-se moderno. Não diríamos que<br />
preservar as elites, preocupar-se em<br />
Progresso e calamidades<br />
Numa civilização onde quase tudo parece caminhar para o ocaso, só a Igreja<br />
promete uma juventude indefinida (Interior da Basílica de São Pedro, Roma)<br />
22
manter a ordem social, em conservar<br />
os hábitos, os costumes, as instituições<br />
que fixam a indispensável hierarquia<br />
que deve haver em toda sociedade<br />
organizada, que tal seja uma preocupação<br />
tipicamente moderna. Pelo<br />
contrário, diríamos que isto é próprio<br />
do passado, e que o espírito moderno<br />
se inclina muito mais a uma como que<br />
destruição das barreiras sociais, políticas<br />
e econômicas, rumo a uma completa<br />
igualdade.<br />
E aqui temos então uma certa idéia<br />
de moderno, diferente das anteriores,<br />
embora nelas contida: é aquela pela<br />
qual se entende que tudo quanto é<br />
laicismo e igualitarismo, tudo quanto<br />
é conceder aos instintos do homem a<br />
liberdade de se divertirem e de se satisfazerem<br />
a seu bel-prazer — isso é<br />
verdadeiramente moderno.<br />
Essa concepção é ativa e pode ser<br />
observada na vida contemporânea. A<br />
todo momento um costume muda,<br />
uma instituição toma novo aspecto,<br />
etc., na sua totalidade, ou quase, para<br />
servir a uma transformação que representa<br />
um progresso da idéia de igualdade,<br />
ou do princípio de laicismo, ou<br />
um avanço da sensualidade.<br />
Tome-se, por exemplo, o cotidiano<br />
da vida doméstica. A todo instante as<br />
barreiras [de respeitabilidade] que separam<br />
os pais dos filhos se atenuam, a<br />
autoridade do marido decai, a liberdade<br />
dos filhos cresce — e para quê?<br />
Para que cumpram melhor o seu dever?<br />
Para que sejam mais castos? Para<br />
que sejam mais esforçados? Ou cresce,<br />
pelo contrário, para que tenham<br />
mais liberdade de fazer o que entenderem,<br />
de se atirarem às diversões imodestas,<br />
desonestas, de satisfazerem a<br />
sua sede de prazer, de romperem os<br />
grilhões de uma obediência indispensável<br />
como a que deve vincular na família<br />
os filhos aos pais?<br />
Observe-se as relações entre as classes<br />
sociais. A todo momento mudamse<br />
os trajes, tendendo-se a nivelar e<br />
equiparar as classes. A todo momento<br />
mudam-se as maneiras, significando<br />
uma diminuição do respeito dos mais<br />
moços aos mais velhos, do homem à<br />
mulher, das crianças aos professores,<br />
Procissão do<br />
Santíssimo<br />
Sacramento, no<br />
Congresso<br />
Eucarístico de<br />
Jaboticabal,<br />
em 1941,<br />
acompanhada<br />
por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
(assinalado por<br />
um círculo)<br />
dos alunos aos seus mestres, etc. De<br />
todos os lados, o que acontece é um<br />
minguar de forças da autoridade, da<br />
hierarquia, da ordem, roídas por um<br />
movimento incessante, gradual mas<br />
profundo, tendente ao completo nivelamento.<br />
Tal tendência acaba tendo no laicismo<br />
a sua expressão mais completa.<br />
Porque o homem, depois de não ter<br />
querido na terra superior de nenhuma<br />
espécie, também não deseja saber<br />
de um superior no Céu. Noutros termos,<br />
não quer sujeitar-se a Deus, e<br />
organiza a sua vida como o faria se<br />
não acreditasse n’Ele.<br />
É esse um fenômeno terrível, do<br />
qual se ressente a própria população<br />
católica...<br />
O traço forte do mundo<br />
atual<br />
Assim definidos os vários sentidos<br />
da palavra moderno, podemos perguntar<br />
qual vem a ser o papel desta modernidade<br />
dentro do mundo contemporâneo.<br />
E poderíamos responder que, se no<br />
mundo a mentalidade dita moderna<br />
não conquistou tudo, ela é a grande<br />
força propulsora de quase todos os<br />
acontecimentos, é a grande nota característica<br />
do momento, e é também o<br />
grande perigo. E se haveria exagero<br />
em afirmar que no mundo atual só<br />
existe essa miserável modernidade, haveria<br />
cegueira e loucura em negar que<br />
essa miserável modernidade é o traço<br />
forte e decisivo da época em que vivemos.<br />
Jesus Eucarístico e o<br />
mundo moderno<br />
Mas também é verdade que neste<br />
mundo cada vez mais dominado por<br />
esse espírito, há Alguém com A maiúsculo,<br />
Alguém eterno, Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. Presente em todos os<br />
sacrários da terra, nos tabernáculos<br />
de ouro do Brasil e dos templos da<br />
Cristandade, assim como nos sacrários<br />
indigentes e ocultos dos países<br />
subjugados por regimes anticatólicos.<br />
Esse Alguém cuja presença não se<br />
23
DR. PLINIO COMENTA...<br />
percebe com os sentidos da carne, esse<br />
Alguém presente na Sagrada Eucaristia<br />
é o grande apóstolo do mundo<br />
contemporâneo, como o é de todos os<br />
tempos.<br />
E Ele fala constantemente às almas,<br />
ensinando-lhes — pela linguagem<br />
muda mas infinitamente eficaz<br />
de Deus Nosso Senhor — a respeito<br />
da necessidade do homem se opor a<br />
esses pseudo-progressos que constituem<br />
a sua miséria e a sua degradação.<br />
Da necessidade de ele orientar<br />
o seu caminho em outro sentido, e de<br />
construir a sua vida sobre Deus, sobre<br />
o sacrifício e a renúncia de seu orgulho<br />
e de sua sensualidade. De ele, enfim,<br />
do mais fundo do seu coração,<br />
converter-se ao Criador.<br />
Ora, neste terrível mundo moderno,<br />
acontece o que sempre sucede<br />
quando se desafia a Deus: Ele multiplica<br />
as suas maravilhas, e ao mesmo<br />
tempo em que a iniqüidade vai chegando<br />
ao seu auge, notamos frutos<br />
admiráveis da Sagrada Eucaristia,<br />
frutos da graça, que dão no apostolado<br />
um resultado incomparável. Enquanto<br />
multidões caminham para o<br />
prazer e para o vício, enquanto multidões<br />
silenciam-se diante do mal e se<br />
acovardam, por toda parte vão se tornando<br />
mais numerosas as almas que,<br />
elevadas por um anelo de perfeição<br />
Presente em todos os sacrários da terra, Nosso Senhor Jesus Cristo é o grande<br />
apóstolo do mundo contemporâneo<br />
absoluta, de ortodoxia completa, de<br />
obediência inteira à Igreja Católica,<br />
tudo abandonam e a tudo renunciam,<br />
dispostas a enfrentar e a contestar tudo,<br />
a afirmar apenas a doutrina da<br />
Igreja, a sofrer e a vencer tudo por<br />
amor a Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
presente na Sagrada Eucaristia.<br />
Luminosos exemplos de<br />
fidelidade católica<br />
Recordo-me, neste momento, da<br />
figura angélica de Santa Maria Goretti.<br />
Nesta época em que as praias são<br />
tomadas pelo neopaganismo que estadeia<br />
toda a corrupção da civilização<br />
moderna, essa pequena virgem entrega<br />
a sua vida com toda a resolução<br />
para não perder aquilo que ela ama<br />
mais do que luz dos olhos seus, mais<br />
do que a sua própria existência, aquela<br />
virgindade que se aprende a amar<br />
como o dom mais precioso da vida,<br />
quando se tem uma alma verdadeiramente<br />
eucarística.<br />
Santa Maria Goretti é um fato culminante.<br />
Será único?<br />
Nos países ocidentais como nos<br />
orientais, quanto heroísmo se realiza<br />
no momento presente!<br />
Vem-me à lembrança outro caso<br />
impressionante, ocorrido atrás da Cortina<br />
de erro, e noticiado há algum<br />
tempo pelo “Osservatore Romano”.<br />
Segundo este jornal, os meninos de<br />
uma aldeia invadida pelos comunistas<br />
descobrem que estes assaltariam a<br />
igreja do lugar, a fim de arrombar o<br />
sacrário e profanar as Sagradas Espécies.<br />
É noite de inverno, o luar brilha de<br />
modo admirável sobre a neve. A igreja<br />
encontra-se numa completa solidão.<br />
Tantos fiéis dormem em casa, aterrorizados!<br />
A agonia se aproxima, a igreja<br />
vai ser assaltada. Estará Nosso Senhor<br />
abandonado neste Horto das Oliveiras?<br />
Não! Por uma janela aberta, três<br />
meninos haviam entrado no templo<br />
católico, e ali montavam guarda ao<br />
Santíssimo Sacramento. Quando os<br />
comunistas aparecem, um dos pequenos,<br />
com suas mãos de criança, de-<br />
24
alde tenta detê-los a caminho do altar,<br />
e morre massacrado. Outro defende<br />
a mesa da comunhão, e também<br />
é morto. E o terceiro, subindo ao<br />
altar, cobre o sacrário com o próprio<br />
peito. Os bárbaros matam este tabernáculo<br />
vivo antes de arrombar o sacrário<br />
de ouro tão menos precioso<br />
que aquele. Em seguida, tomam as Sagradas<br />
Espécies e as profanam. Exulta<br />
o inferno. Porém, muito mais exulta<br />
o Céu com o sangue desses três pequenos<br />
mártires, derramado na igreja,<br />
certamente não menos glorioso do<br />
que aquele vertido pelos mártires na<br />
arena do Coliseu.<br />
Vitória da Eucaristia, por<br />
meio de Nossa Senhora<br />
Aí está a ação da Eucaristia no<br />
mundo moderno. No momento em<br />
que a iniqüidade chega ao seu cúmulo,<br />
a graça e a misericórdia atingem<br />
igualmente seu ápice. À fortaleza do<br />
vício e do mal, Deus opõe uma indômita<br />
fortaleza do bem. O triunfo da<br />
Igreja Católica se dará no mundo moderno.<br />
Ela há-de marcar uma das<br />
maiores vitórias de todos os tempos, e<br />
esta será a vitória da Sagrada Eucaristia,<br />
fonte de graça aberta para o mundo<br />
por meio da intercessão de Nossa<br />
Senhora que, rezando sempre a Jesus<br />
Eucarístico, obtém para os homens os<br />
dons celestiais de que eles precisam.<br />
(Extraído e adaptado dos<br />
“Anais da Semana Eucarística de<br />
Campos” — 17 a 24/4/1955. O título<br />
e subtítulos não são do original.)<br />
Uma das maiores<br />
vitórias de todos os<br />
tempos será a da<br />
Sagrada Eucaristia<br />
no mundo moderno,<br />
através da onipotente<br />
intercessão de<br />
Maria Santíssima<br />
(Nossa Senhora das<br />
Vitórias, rança)<br />
25
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
ANTES DE TUDO,<br />
UMA QUESTÃO<br />
RELIGIOSA<br />
U<br />
ma das características mais importantes<br />
da genuína denúncia profética é<br />
ter uma mensagem clara para o presente.<br />
Previsões do futuro, visões, revelações<br />
maravilhosas não constituem o ponto<br />
principal. Conserva toda a atualidade<br />
a ousada mensagem transmitida<br />
com insistência por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para<br />
os brasileiros: nosso País só conseguirá<br />
resolver todos os seus<br />
problemas (inclusive os materiais),<br />
se afervorar-se na é católica<br />
e na observância da Lei de Deus<br />
— com uma atenção especial posta no<br />
6º Mandamento. O artigo seguinte é de 1937.<br />
Na base de todas as complexas e múltiplas crises<br />
brasileiras, há uma crise moral. Lembro-me de<br />
uma viagem que fiz, há um ano atrás, para<br />
Campinas, em companhia de um dos mais conhecidos e<br />
mais poderosos comerciantes de café da praça de Santos,<br />
homem que terá, talvez, algum sentimento religioso, o que<br />
não posso afirmar nem contestar, mas que, certíssimamente,<br />
não é católico praticante e está muito e muito pouco<br />
enfronhado de coisas religiosas. ez-me aquele meu<br />
companheiro de viagem uma extensa e interessantíssima<br />
exposição sobre a situação do café, que ele examinou com<br />
sua perícia de técnico abalizado, sob os seus mais variados<br />
prismas. E chegou à conclusão de que a crise do café só<br />
existe porque a classe dos agricultores, mal-unida, imediatista,<br />
imprevidente, não tem sabido até o presente momento<br />
organizar-se. Dissertou mais algum tempo sobre este último<br />
aspecto do problema, analisando-o detidamente, para<br />
acabar concluindo: “Vê o senhor que nossa crise do café<br />
é toda ela moral”.<br />
Este depoimento autorizado e insuspeito mostra até<br />
que ponto os problemas nacionais, mesmo os de natureza<br />
técnica e financeira, se originam na realidade de uma crise<br />
moral.<br />
Ora, a crise moral brasileira, como qualquer crise moral,<br />
outra coisa não é senão uma crise religiosa. É para resolver<br />
nossas questões religiosas, portanto, que se deve-<br />
26
iam empenhar os esforços mais insistentes, as atividades<br />
mais fecundas, as inteligências mais perspicazes. Infelizmente,<br />
porém, a realidade que vemos é muito outra. [...]<br />
Mas, dir-se-á, há uma questão religiosa no Brasil? Não<br />
aludo aqui a algum conflito entre a Igreja e o Estado. O<br />
problema religioso do Brasil, infelizmente, é muito mais<br />
profundo do que um simples dissídio entre os poderes espiritual<br />
e temporal, pois que ele crava suas raízes no coração<br />
das massas e na inteligência das elites. Aí, e só aí, é<br />
que tem de ser resolvido. Qualquer outra solução será<br />
precária, se não totalmente vã.<br />
As estatísticas indicam que o Brasil é um dos países<br />
mais homogêneos do mundo, sob o ponto de vista religioso.<br />
A quase totalidade de seus habitantes é católica. Se<br />
esses católicos fossem membros não apenas do corpo, mas<br />
ainda da alma da Santa Igreja, o Brasil não recearia o perigo<br />
comunista. Mais ainda. Ele seria, já hoje, um dos<br />
maiores países do mundo, grande pela sua prosperidade<br />
material, mas admirável sobretudo pela riqueza inesgotável<br />
de suas reservas religiosas e morais, capazes de fazer<br />
dele um verdadeiro campeão da Igreja e da civilização na<br />
hora dramática em que vivemos.<br />
O problema religioso do Brasil não consiste tanto em<br />
converter os que não são católicos, quanto em afervorar os<br />
que são católicos pela metade... coisa monstruosa, pois<br />
que um católico, ou é monoliticamente católico, ou não o é<br />
de todo em todo.<br />
Mas qual o meio de conseguir essa integração completa<br />
do Brasil no espírito da Igreja? Quais os fatores dessa geral<br />
tibieza que caracteriza infelizmente nossas massas, sob<br />
o ponto de vista religioso?<br />
A resposta é simples. Muitos têm pouca é, porque não<br />
são puros. Outros não são puros porque têm pouca é. A<br />
é e a pureza são os pontos de ataque prediletos da impiedade<br />
em nossos dias. E, vencida uma, a outra tende a<br />
extinguir-se rapidamente.<br />
Daí, dessa impureza, dessa tibieza da é, decorre a instabilidade<br />
da família, e a imoralidade geral que normalmente<br />
se nota. “Castidade” e “virgindade” são duas palavras<br />
que, em muitos meios, causam hoje em dia mais estranheza<br />
e são reputadas mais chocantes do que qualquer<br />
palavrão obsceno. Tempo houve em que se supunha que<br />
estas duas virtudes eram privativas apenas da mulher, e<br />
que acarretavam para o homem uma “capitis diminutio”<br />
[diminuição de capacidade] vexatória. Infelizmente, não<br />
há negar que, em muitos ambientes, já se vai começando a<br />
achar hoje que também para a mulher essas virtudes não<br />
são indispensáveis, e que a moça e especialmente a senhora<br />
casada (!) que se recusasse, por razões morais, a usar<br />
certos decotes e certa indumentária (ou certa falta de indumentária),<br />
seria positivamente ridícula.<br />
Se é este o estado da sociedade, .... se a impureza se aninhar<br />
nos corações dos que pretendem salvá-la, que salvação<br />
se poderá esperar?<br />
(Excertos de artigo publicado no “Legionário”,<br />
nº 266, 17/10/1937. Título nosso.)<br />
Aspecto da procissão de<br />
Nossa Senhora do Círio, em<br />
Belém do Pará — Nenhum<br />
perigo deve recear o<br />
Brasil, se os seus filhos<br />
que se dizem católicos forem<br />
realmente membros, não apenas<br />
do corpo, mas da alma da Santa<br />
Igreja Católica
DONA LUCILIA<br />
Com os filhos,<br />
em Águas da Prata<br />
Em Águas da Prata, da esquerda para direita, Rosée, Ilka (sobrinha de Dª Lucilia),<br />
Dª Lucilia, <strong>Plinio</strong>, Dª Zili (irmã de Dª Lucilia)<br />
Avirtude encanta, a virtude pacifica, a virtude descansa. Para esquecermos um<br />
tanto o mundo agitado, perigoso e pouco humano de hoje, nada melhor do que<br />
revivermos, através da talentosa pena de João Clá Dias, a atmosfera da vida de<br />
Dª Lucilia e de seu filhinho <strong>Plinio</strong>.<br />
Na educação de uma criança desempenha importante<br />
papel a movimentação, porquanto tem ela<br />
natural necessidade de gastar as próprias energias:<br />
correr, saltar, jogar, etc. Dª Lucilia procurava orientar<br />
bem as propensões dos filhos, a fim de a vulgaridade<br />
não lhes tomar conta do espírito, nem mesmo através desses<br />
aspectos correntes da vida como são as brincadeiras infantis.<br />
Quase sempre era a governante alemã, räulein Mathilde,<br />
que os acompanhava nos passeios, ora ao Parque<br />
Antarctica, ora ao Jardim da Luz, o que ela empreendia<br />
metodicamente, bem de acordo com o modo de ser germânico,<br />
obrigando por vezes o menino a fazer um pouco<br />
de exercício, pois não era ele muito dado a grandes es-<br />
forços físicos. <strong>Plinio</strong> corria o mínimo indispensável para<br />
evitar maiores complicações com a governante e poder, assim,<br />
retornar às distrações de sua preferência, como, por<br />
exemplo, contemplar o belo colorido das borboletas que,<br />
brincando com os raios de sol, despreocupadamente esvoaçavam<br />
por entre o arvoredo do parque.<br />
Em outras ocasiões, indo passar temporadas na estância<br />
termal de Águas da Prata, muito recomendada pelos médicos<br />
para aliviar problemas hepáticos, Dª Lucilia levava<br />
consigo os filhos.<br />
Nem ali descurava a räulein os passeios, conquanto<br />
Dª Lucilia ficasse, por vezes, temerosa com o excesso de<br />
zelo demonstrado pela governante. Porém, após ouvir as<br />
razões dadas por esta, acabava aquiescendo, não sem guar-<br />
28
dar um fundo de preocupação, com receio de as crianças<br />
não suportarem tanto esforço. Mas, tal não ocorria à mente<br />
da dedicada alemã. Conduzia pela mão os pequenos,<br />
um de cada lado, e lá ia contente, escalando com seu passo<br />
decidido os morros circundantes. Estava convicta de que<br />
um bom exercício só beneficiaria a saúde de seus pupilos,<br />
inclusive por ser o ar das alturas privilegiadamente puro.<br />
Se as crianças, às vezes, demonstravam pouco entusiasmo<br />
por essas caminhadas, Dª Lucilia procurava compensar<br />
o necessário sacrifício com seu maternal afeto. Assim,<br />
para eles, a estadia em Águas da Prata não era destituída<br />
de entretenimentos mais apetecíveis, o melhor dos quais<br />
era a companhia de sua mãe, que ali tomava um colorido<br />
próprio, ao longo da leitura das histórias de Bécassine...<br />
Em Águas da Prata,<br />
Bécassine<br />
Com a finalidade de proporcionar uma boa leitura a<br />
Rosée, Dª Lucilia assinara, para alegria de sua filha, uma<br />
revista infantil francesa intitulada Semaine de Suzette. Esta<br />
trazia, em capítulos, as histórias de Bécassine, uma pitoresca<br />
e ingênua camponesa bretã, muito pouco<br />
dotada de inteligência, mas a quem não faltava<br />
grande dose de bom senso.<br />
Nas histórias entrava um sem-número de outros<br />
personagens, representativos dos diversos<br />
tipos humanos da sociedade francesa de então.<br />
Um dos mais interessantes era, sem dúvida,<br />
Madame la Marquise de Grand Air, senhora de<br />
um belo castelo, também na Bretanha, a quem<br />
Bécassine servia fiel e dedicadamente desde<br />
muito jovem. Destacava-se ainda a figura simpática<br />
do tio Corentin, característico “notável”<br />
da pequena localidade de Clocher-les-Bécasses.<br />
A história era narrada por meio de desenhos<br />
coloridos em quadrinhos, acompanhados do texto<br />
apropriado, o que tornava sua leitura muito<br />
atraente para as crianças.<br />
Contudo, mais apreciados pelos pequenos ouvintes<br />
eram os comentários que, com fino senso<br />
psicológico, Dª Lucilia entremeava na leitura,<br />
feita aliás em francês, para se aprimorarem numa<br />
língua que, segundo ela, toda pessoa culta e educada<br />
devia falar como segundo idioma. Ora elogiava<br />
a boa atitude tomada por alguém, tirando<br />
daí uma lição moral, ora descrevia os costumes<br />
da rança e as regras de etiqueta, para seus filhos<br />
aos poucos aprenderem a viver em sociedade.<br />
O amor materno não conhece limites, e Dª Lucilia<br />
nunca achava demasiado o tempo que dedicava<br />
à educação dos pequenos, mesmo em prejuízo<br />
de sua comodidade pessoal.<br />
Nas primeiras temporadas em Águas da Prata,<br />
Dª Lucilia se hospedava com a família no Hotel<br />
Costa, ocupando três quartos contíguos. A vida naquela<br />
então longínqua estância termal do interior de São Paulo<br />
era diferente da que a família levava na Capital, sobretudo<br />
para as crianças. Estas ficavam um tanto livres das obrigações<br />
e lições dadas pela räulein, tendo mais tempo para<br />
estar com Dª Lucilia.<br />
A pequena cidade ficava como que dissolvida nas vastidões<br />
rurais da bucólica região, próxima de Poços de Caldas.<br />
O hotel era um simpático e tradicional estabelecimento,<br />
mas de construção tão antiga e imprópria, que da rua se<br />
podia olhar para dentro dos quartos, de tal modo ficavam<br />
baixas as janelas. Por isso, Dª Lucilia mantinha as venezianas<br />
fechadas, pois, devido às suas freqüentes indisposições<br />
hepáticas, passava longos períodos deitada.<br />
Após a sesta das crianças, lá pelo meio da tarde, elas<br />
iam geralmente até o quarto da mãe, guardado na penumbra,<br />
cortada por discretos filetes de luz que se esgueiravam<br />
por entre as frestas das janelas. Abriam devagarinho a porta,<br />
acendiam o abat-jour, uma delas recostava-se ao lado<br />
de Dª Lucilia, passava o braço por cima do travesseiro, e<br />
com a Semaine de Suzette já na mão, perguntava:<br />
— Meu bem, vamos comentar Bécassine?<br />
<strong>Plinio</strong> e Rosée, junto a uma pedra nos arredores de Águas da Prata<br />
29
DONA LUCILIA<br />
Seus filhos guardaram enormes saudades daquelas longas<br />
horas de ininterrupto convívio, enquanto o sol, que as<br />
venezianas filtravam, ia esmorecendo aos poucos até dar<br />
lugar à escuridão da noite, sem Dª Lucilia em nenhum momento<br />
manifestar cansaço ou dar a entender às crianças<br />
terem chegado num momento inoportuno.<br />
Amenizando a doença<br />
de <strong>Plinio</strong><br />
Certa vez, inverteram-se os papéis. <strong>Plinio</strong> adoeceu em<br />
Águas da Prata, ficando de cama. Todas as tardes, Dª Lucilia,<br />
com o fascículo de Bécassine nas mãos, ia até o quarto<br />
de seu filho e, sentando-se a seu lado, comentava longamente<br />
as pitorescas aventuras da simpática camponesa<br />
bretã. Com seus delicados dedos, passava devagar as páginas<br />
da revista, enquanto sua melodiosa voz dourava aos<br />
olhos do menino as descrições.<br />
Malgrado todos os desvelos de Dª Lucilia, a doença de<br />
seu filho não passava. Começou por uma dor de garganta,<br />
depois apareceu uma erupção na pele e, por fim, o médico<br />
já não acertava o que fazer. oi razão suficiente para ela<br />
redobrar as manifestações de carinho, ficando a maior<br />
parte do tempo junto a <strong>Plinio</strong>, com o intuito de lhe tornar<br />
menos enfadonho o arrastar das horas.<br />
Não há dúvida que tão agradável companhia tornava<br />
célere o percurso dos ponteiros do relógio, transcorrendo<br />
assim dez inesquecíveis dias.<br />
Mas este paraíso foi bruscamente interrompido por<br />
<strong>Dr</strong>. João Paulo, que, apesar dos temores de Dª Lucilia, optou<br />
por drástica medida. Envolveu o filho num cobertor e,<br />
com a família, embarcou no trem para São Paulo. Ao descerem<br />
na estação da Luz, verificaram ter a doença desaparecido<br />
como por encanto.<br />
Embora sem aflição, Dª Lucilia ainda se manteve preocupada<br />
todo o resto do dia da chegada à Capital, pois receava<br />
um agravamento da enfermidade. Suas confiantes<br />
orações certamente foram decisivas para o restabelecimento<br />
do pequeno <strong>Plinio</strong>.<br />
“Meu filho, mais doçura<br />
em suas palavras”<br />
Um belo dia Dª Lucilia passeava com seus filhos por<br />
uma rua de Poços de Caldas. A eles deparou-se então um<br />
grupo de leprosos a cavalo, munidos de longos bastões na<br />
ponta dos quais estavam amarradas canecas de metal, utilizadas<br />
para angariar esmolas dos transeuntes. As crianças<br />
ficaram explicavelmente chocadas com o aspecto dos infelizes.<br />
Naquele tempo corriam muitos boatos segundo os quais<br />
os leprosos queriam transmitir sua moléstia a outras pessoas,<br />
pois imaginavam que, contagiando sete, sarariam.<br />
Dizia-se que se serviam da caneca, na ponta dos bastões,<br />
não só para recolher o dinheiro, mas também para encostá-las<br />
no benfeitor, com esse censurável intuito.<br />
Apesar das explicações, <strong>Plinio</strong> não entendeu bem do<br />
que se tratava, e pensando nos boatos, comentou com horror<br />
o triste estado daquelas vítimas da terrível doença, obrigadas<br />
a mendigar e resignadamente acomodadas à própria<br />
situação. Ante aquele confrangedor espetáculo, o menino<br />
exclamou:<br />
— Mamãe, não se tem o direito de ser assim! Não se<br />
pode ser assim!<br />
Dª Lucilia<br />
passeando<br />
com seu<br />
filhinho, na<br />
estância<br />
termal<br />
30
Para mitigar os incômodos<br />
da doença de <strong>Plinio</strong>, Dª Lucilia<br />
o entretinha com as deliciosas<br />
histórias de Bécassine<br />
Mme. de Grand-Air e Bécassine<br />
Dª Lucilia, sempre materna, mas nesse momento com<br />
uma nota de gravidade, repreendeu-o:<br />
— Meu filho! mais doçura em suas palavras. Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo também remiu os pecados desses pobres<br />
coitados. Ele os aceitará no Céu. E você, não os aceita?<br />
Essas palavras, vindas do fundo do coração de Dª Lucilia,<br />
marcaram a alma do menino, e ele entendeu melhor a<br />
causa do afeto transbordante de sua mãe, ou seja, o amor<br />
de Deus, já que até em relação àqueles pobres leprosos,<br />
cuja vista tanto espanto causava, ela tinha sentimentos de<br />
comiseração.<br />
Aliás, Dª Lucilia se condoía de modo muito especial dos<br />
desvalidos, a quem dispensava, sempre que necessário, toda<br />
espécie de afabilidade e de consolações. Não obstante,<br />
exigia respeito em relação a qualquer pessoa e, como norma<br />
geral de conduta, jamais permitia que se caçoasse de<br />
alguém.<br />
Se acontecesse escapar dos lábios de seus filhos um dito<br />
impróprio contra outrem — e as crianças são facilmente<br />
levadas a isso — ela intervinha, repreendendo-os com doçura,<br />
e os fazia compreender que não se deve zombar de<br />
ninguém. Procurava mostrar o lado bom do infeliz visado,<br />
a fim de evitar que Rosée e <strong>Plinio</strong> desenvolvessem em si<br />
uma tendência contrária à caridade verdadeiramente bem<br />
entendida. E nem mesmo quando seus filhos já se haviam<br />
tornado adultos, dispensou Dª Lucilia essa afetuosa vigilância<br />
materna...<br />
(Transcrito, com adaptações, da obra<br />
“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Desassombro,<br />
coragem e galhardia
Ao contrário do que pretendem<br />
alguns espíritos exageradamente<br />
pacifistas, segundo<br />
os quais qualquer forma de perigo<br />
deve ser afastada da vida, o ser humano<br />
— por sua natureza, a mais elevada<br />
e nobre das criaturas — tem um<br />
certo gosto do risco. Essa afeição é<br />
um dos elementos que trazem felicidade<br />
para a sua existência. E, não raras<br />
vezes, afastar de alguém o risco pode<br />
causar-lhe grande prejuízo.<br />
Este princípio torna-se mais compreensível<br />
e aceitável quando se considera,<br />
por exemplo, as touradas ibéricas.<br />
Especialmente aquelas em que<br />
o toureiro se lança a cavalo na arena.<br />
É impossível não sentir a impressão<br />
de risco que transmite a marcha<br />
do cavaleiro e de sua montaria diante<br />
do perigo. Nota-se o prazer, uma espécie<br />
de alegria, de euforia mesmo,<br />
em se atirarem naquela situação desafiadora.<br />
E parece que o risco produz,<br />
psicologicamente, no cavalo e no<br />
cavaleiro, como um arejamento fresco<br />
e agradável. E que espetáculo! Cavalgar<br />
dentro da aventura e do imprevisto;<br />
improvisar as manobras que devem<br />
ser executadas; avançar, recuar,<br />
atacar, defender... tudo realizado de<br />
acordo com uma certa regra interior,<br />
que faz exatamente o esplendor da<br />
tourada!<br />
Em geral, o cavalo corre de modo<br />
extraordinário, com um passo lindo e<br />
audacioso. Dir-se-ia — não é assim,<br />
pois trata-se de puro instinto — que o<br />
animal possui uma noção raciocinada<br />
do que se está passando, e acha uma<br />
verdadeira beleza jogar-se para frente<br />
e raspar no perigo. Tem-se a impressão<br />
de um bem-estar do cavalo, no<br />
momento em que o touro avança,<br />
quase o toca, e ele se esquiva com<br />
donaire, como se dissesse: “Touro, tu<br />
não és senão touro; eu sou cavalo.<br />
Sou elegância, força e garbo. Você é<br />
massa bruta! E por causa disso, posso<br />
raspar-me em você, posso até permitir<br />
que seu chifre me risque, e eu ter a<br />
alegria de roçar pelo perigo e sair vitorioso!”<br />
Curiosamente, essas reações do cavalo<br />
lembram certas atitudes do espírito<br />
humano colocado diante do perigo,<br />
em várias circunstâncias do quotidiano<br />
nesta terra: não só quando a<br />
vida está ameaçada, mas numa jogada<br />
política, numa polêmica acirrada, num<br />
negócio arriscado, num empreendimento<br />
difícil, etc., há pessoas que se<br />
saem como o cavalo diante do touro.<br />
E se este segundo animal é a força<br />
bruta, sem expressão nem nada de humano<br />
em sua postura, já no primeiro<br />
há qualquer coisa de sobre-animal, parecendo<br />
transcender — não o faz, claro<br />
está — a mera condição de bicho e<br />
participar em algo do reino dos homens,<br />
pelas atitudes que demonstra<br />
na arena. Característica esta que nos<br />
leva a admirar outro interessante aspecto<br />
desse tipo de tourada.<br />
O autêntico cavaleiro sabe transmitir<br />
alguma coisa de sua personalidade<br />
à montaria. E vê-se que, ao en-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
frentar o touro, o cavalo compartilha<br />
do heroísmo do toureiro. Geralmente,<br />
este é esguio, destro, cheio de movimentos<br />
ágeis, e quando ele mesmo<br />
raspa pelo perigo, sente euforia. Quando<br />
executa a manobra para cravar a<br />
banderilha no touro, e quase é atingido<br />
pelos chifres de seu adversário, ele<br />
seria comparável a um homem que<br />
está tomando o melhor trago de rico<br />
licor. É o licor do risco! O delicioso licor<br />
que o pacifista exagerado de nossos<br />
dias não sabe compreender nem<br />
apreciar...<br />
Quando se esquivam do oponente,<br />
a atitude do cavaleiro e do cavalo<br />
não é a de dar as costas e se pôr a<br />
correr. Eles saem de lado, procurando<br />
contornar o touro para lhe fincar<br />
mais uma farpa. É a imagem da “distância<br />
psíquica”, de um inteiro domínio<br />
de si, calculado e ativo. Podese<br />
olhar para o toureiro e para o cavalo:<br />
ambos estão numa posição em<br />
que não têm medo. Não perderam a<br />
noção da realidade e só estão procurando<br />
dar uma volta, com elegância e<br />
distinção, para atacar com mais eficácia!<br />
É este um lado esplendoroso da luta<br />
entre cavaleiro e touro que nos faz<br />
considerar um outro aspecto da vida<br />
humana: o gosto que tem o homem<br />
justo, colocado na presença do mal,<br />
diante de ignomínias insuportáveis que<br />
se propagam e não podem ser contidas<br />
senão pela força, de enfrentá-las e<br />
de vencê-las, obedecendo aos altos desígnios<br />
de uma é sumamente equilibrada.<br />
Então ele, obrigado a atacar,<br />
avança e subjuga.<br />
É realmente belo que o homem,<br />
em presença do mal, o goste de calcar<br />
aos pés. E a sensação do golpe atingindo<br />
o alvo, é uma experiência na<br />
qual o homem se realiza inteiro!<br />
Por fim, um outro aspecto a se contemplar<br />
nas touradas a cavalo. Durante<br />
todo o certame, não se vê nada de<br />
teatral no toureiro. Ele não presta<br />
uma atenção vaidosa em si. Mas está<br />
sempre vigilante, e por isso não tem<br />
receio de que a coragem lhe pregue<br />
alguma peça nos momentos decisivos.<br />
Naturalmente, conhece à saciedade o<br />
seu métier, está muito bem treinado, e,<br />
note-se, todas as sensações que nascem<br />
nele — na aparência, impulsivas<br />
e até irrefletidas — são na verdade<br />
enriquecedoras da razão.<br />
É o garbo, a galhardia, a coragem e<br />
o desassombro, o esplendor da “distância<br />
psíquica”, a vivacidade da inteligência<br />
e da varonilidade que enfrentam<br />
o perigo. São qualidades, também<br />
elas, frutos da civilização cristã. v
Ao sentir o risco e quase ser atingido pelos chifres<br />
do touro, o cavaleiro se compara a um homem<br />
que sorveo melhor trago de rico licor...!
Confiança cheia<br />
de vigor e afeto<br />
D<br />
evemos ter uma<br />
firme e terna<br />
confiança em<br />
Nossa Senhora. Ou seja,<br />
uma confiança cheia de<br />
vigor, mas cheia de afeto,<br />
de quem sabe quanto<br />
Ela nos ama a cada<br />
um.<br />
Quando se quer muito<br />
bem a alguém, não<br />
se duvida de que esse<br />
alguém deseje nos favorecer<br />
em toda a medida<br />
de sua recíproca<br />
benquerença. Precisamos<br />
nutrir tal<br />
sentimento em relação<br />
à Santíssima<br />
Virgem, pois<br />
Ela tem para<br />
conosco um insondável<br />
e maternal afeto.<br />
E sua ternura sem limites<br />
deve ser a própria<br />
fonte da firmeza<br />
de nossa confiança<br />
n’Ela.<br />
Uma confiança que<br />
nada pode abalar.<br />
Confiança nas dificuldades<br />
da vida espiritual,<br />
de que as<br />
muralhas ruirão, os<br />
caminhos se endireitarão,<br />
o inverossímil<br />
se realizará e<br />
de que, por misericórdia<br />
d’Ela, cada<br />
um de nós alcançará<br />
a santidade<br />
que Deus nos<br />
reserva nos seus<br />
eternos desígnios.