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Relicário<br />
contendo<br />
fragmentos<br />
da<br />
manjedoura<br />
do Menino<br />
Jesus<br />
(Igreja<br />
de Santa<br />
Maria Maior,<br />
Roma)<br />
“E depois que se completaram os oito dias para ser circuncidado o Menino,<br />
foi-lhe posto o nome de Jesus, como lhe tinha chamado o anjo”. (Lc.2, 21)<br />
Há uma misteriosa e insondável relação entre o nome de Jesus e o<br />
Verbo feito carne, de tal maneira que não se concebe outro que lhe<br />
fosse mais apropriado. É o mais suave e santo dos nomes que jamais um<br />
homem tenha usado. Nome que, de modo maravilhoso, é a própria manifestação<br />
da glória d’Ele. Nome que é um símbolo sacratíssimo do Filho de<br />
Deus e, enquanto tal, tem o poder de atrair sobre nós todas as graças e favores<br />
celestiais.<br />
<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira
Sumário<br />
Na capa: neste limiar<br />
do ano 2000, o Sagrado<br />
Coração de Jesus nos<br />
convida para uma nova era<br />
de intenso amor a Ele<br />
e à sua Mãe Santíssima<br />
4<br />
EDITORIAL<br />
Os “Chanteclairs” da Era de Maria<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Jornalista Responsável:<br />
Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Marcos Ribeiro Dantas<br />
Edwaldo Marques<br />
Pedro Paulo de Figueiredo<br />
Carlos Alberto S. Corrêa<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Diogo de Brito, 41<br />
02460-110 S. Paulo - SP Tel: (11) 6971-1027<br />
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Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />
Esta revista não é órgão oficial nem oficioso da<br />
SBDTFP.<br />
Preços da assinatura anual<br />
JANEIRO de 2000<br />
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Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />
Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />
Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 6971-1027<br />
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DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
10 de janeiro de 1978: um testamento<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Longe de casa<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Caleidoscópio<br />
do verdadeiro heroísmo<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Tristezas e<br />
descrenças renascentistas<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Agonia das tradições cristãs<br />
DONA LUCILIA<br />
Perfeita harmonia de carinho<br />
e vigilância<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
O nosso maior tesouro<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Feerias de sol, belezas de Deus<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Como filhos carregados no colo...<br />
3
Editorial<br />
Os “Chanteclairs” da Era de Maria<br />
Ao ultrapassarmos os umbrais do ano<br />
2000, vem-nos à recordação a peça de<br />
Edmond Rostand, famoso dramaturgo<br />
francês, “Le Chanteclair”, cujo enredo é a história<br />
de um galo. Altiva e contente, a garbosa ave dominava<br />
o galinheiro, defendendo-o contra os predadores<br />
e se fazendo respeitar pelos que ali viviam.<br />
Contudo, aquilo de que mais se ufanava era da<br />
prerrogativa a qual, como todos os galos, ela detinha:<br />
pressentir que o dia ia nascer e, antes das<br />
primeiras claridades, cantar a plenos pulmões,<br />
anunciando ao mundo inteiro o iminente despontar<br />
da aurora.<br />
Várias épocas históricas costumam ter precursores<br />
os quais, ainda que modestos, possuem esta<br />
grandeza: pressagiam a aurora que se aproxima.<br />
Em relação aos esplendores que esperam a humanidade<br />
no Terceiro Milênio, a voz precursora<br />
por excelência foi a da própria Mãe de Deus, promentendo<br />
em Fátima: “Por fim, meu Imaculado<br />
Coração triunfará”. Palavras esperançosas, que predizem<br />
o fim do domínio da impiedade e apontam<br />
para uma gloriosa era marial.<br />
Outros “Chanteclairs” os houve — servos fiéis<br />
de Nossa Senhora — a anunciar esse período histórico<br />
em que Maria deverá reinar nos corações.<br />
O mais célebre deles é São Luís Maria Grignion<br />
de Montfort, autor do admirável “Tratado da verdadeira<br />
devoção à Santíssima Virgem” — e um dos<br />
santos preferidos do Papa João Paulo II (que o tem<br />
como um de seus mestres espirituais). Para São<br />
Luís Grignion, próximos estavam os dias em que a<br />
Fé católica voltaria a brilhar em toda a sua magnificência,<br />
sendo Maria, mais do que nunca, aclamada<br />
como Rainha e Senhora do mundo.<br />
Também <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nutria a confiança numa<br />
época futura que ele se comprazia em chamar de<br />
“Reino de Maria”. Estava convencido de que Deus<br />
reserva para o mundo pós-século XX graças extraordinárias,<br />
que levarão grande parte das pessoas a<br />
praticar habitualmente a virtude e produzirão os<br />
santos de invulgar estatura, de que fala São Luís<br />
Grignion.A graça divina: eis a suprema força na<br />
qual devem se estear os séculos vindouros. “Quando<br />
os homens resolvem cooperar com a graça de<br />
Deus — escrevia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em “Revolução e Contra-revolução”<br />
—, são as maravilhas da história que<br />
assim se operam: é a conversão do Império Romano,<br />
é a formação da Idade Média, é a reconquista da Espanha<br />
a partir de Covadonga, são todos os acontecimentos<br />
que se dão como fruto das grandes ressurreições<br />
de alma de que os povos são também susceptíveis.<br />
Ressurreições invencíveis, porque não há o que<br />
derrote um povo virtuoso e que verdadeiramente ame<br />
a Deus”.<br />
Estas palavras que constituem um autêntico poema<br />
de admiração à força da virtude, sutentada<br />
pela graça, um cântico mais de esperança no porvir<br />
que de nostalgia das grandezas das eras de Fé, revelam<br />
uma profunda persuasão de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Podemos<br />
observá-la de outro ângulo na seção “<strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> comenta”. Aí o insígne líder mariano deixa<br />
falar seu enlevo pela prática séria e fiel das virtudes<br />
católicas, vista por ele como a mais bela e suprema<br />
forma de heroísmo. E pelas cândidas recordações<br />
da adolescência, nas páginas da “Gesta de um varão<br />
católico”, fica claro como ele não se contentava<br />
com meras loas à virtude, mas desde muito moço<br />
esforçou-se em praticá-la; com os olhos sempre<br />
postos em Maria, canal seguro que leva a Jesus.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
10 de janeiro de 1978: um testamento<br />
Nesta data, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> decide redigir<br />
seu testamento, do qual apresentamos<br />
estes excertos:<br />
“Declaro que vivi e espero morrer na Santa<br />
Fé Católica Apostólica e Romana, à qual adiro<br />
com todas as veras de minha alma. Não encontro<br />
palavras suficientes para agradecer a Nossa<br />
Senhora o favor de haver vivido desde os meus<br />
primeiros dias, e de morrer, como espero, na<br />
Santa Igreja, à qual votei, voto e espero votar<br />
até o último alento, absolutamente todo meu<br />
amor. De tal sorte que todas as pessoas, instituições<br />
e doutrinas que amei durante minha vida,<br />
e atualmente amo, só as amei ou amo porque<br />
eram ou são segundo a Santa Igreja, e na medida<br />
em que eram ou são segundo a Santa Igreja.<br />
Igualmente, jamais combati instituições, pessoas<br />
ou doutrinas senão porque e na medida em<br />
que eram opostas à Santa Igreja Católica.<br />
“Agradeço da mesma forma a<br />
Nossa Senhora — sem que me seja<br />
possível encontrar palavras suficientes<br />
para fazê-lo — a graça<br />
de haver lido e difundido o ‘Tratado<br />
da Verdadeira Devoção à Santíssima<br />
Virgem’, de São Luís Maria<br />
Grignion de Montfort, e de me<br />
haver consagrado a Ela como escravo<br />
perpétuo. Nossa Senhora<br />
foi sempre a Luz de minha vida, e<br />
de sua clemência espero que seja<br />
Ela minha Luz e meu Auxílio até<br />
o último momento da existência.<br />
Agradeço ainda a Nossa Senhora<br />
— e quão comovidamente<br />
— haver-me feito nascer de Dª<br />
Lucilia. Eu a venerei e amei em<br />
todo o do limite do que me era<br />
possível, e, depois de sua morte,<br />
não houve dia em que não a recordasse<br />
com saudades indizíveis.<br />
Também à alma dela peço que me<br />
assista até o último momento com<br />
sua bondade inefável. Espero encontrá-la<br />
no céu, na coorte luminosa<br />
das almas que amaram mais<br />
especialmente Nossa Senhora.”<br />
Após dar graças à Santíssima<br />
Virgem por ter podido fundar<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />
sua residência<br />
uma grande obra, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lembra-se de seus<br />
seguidores: “Peço que nossa Senhora abençoe a<br />
todos e a cada um. Depois da morte, espero<br />
junto a Ela rezar por todos, ajudando-os assim<br />
de modo mais eficaz do que na vida terrena.<br />
Aos que me deram motivos de queixa, perdôo<br />
de toda a alma. Faço votos de que minha morte<br />
seja para todos ocasião da graça que chamamos<br />
do ‘Grand-Retour’. Não tenho diretrizes a dar<br />
para essa eventualidade, pois melhor do que eu<br />
o fará Nossa Senhora. Em qualquer caso, a todos<br />
e a cada um peço entranhadamente e de<br />
joelhos que sejam sumamente devotos de Nossa<br />
Senhora durante toda a vida.”<br />
Anos depois, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> resolveu anular tal<br />
testamento, a fim de invalidar as cláusulas (especificadas<br />
em carta anexa) a respeito da destinação<br />
dos bens materiais que deixava.<br />
5
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
LONGE DE CASA<br />
Aspecto de Ribeirão Preto, na época em que o<br />
jovem <strong>Plinio</strong> (detalhe) ali prestava exames<br />
Estudante do curso secundário<br />
no Colégio São Luís,<br />
dos jesuítas, onde ingressara<br />
em 1919, o jovem <strong>Plinio</strong> cedo se<br />
destacara como um dos melhores de<br />
sua série. Tanto assim que era constantemente<br />
premiado nas cerimônias<br />
de “Primeiras Dignidades Escolares”,<br />
quando eram condecorados<br />
com medalhas os alunos mais<br />
bem colocados. Além de receber a<br />
distinção máxima em comportamento<br />
e aplicação — os dois pontos mais<br />
exigidos por sua mãe, Dª Lucilia —<br />
costumava ganhar medalhas de ouro,<br />
prata e bronze também em Religião,<br />
Francês, Inglês, Português, Latim,<br />
História e, com menor freqüência,<br />
em Geografia.<br />
Entretanto, para os exames finais,<br />
<strong>Plinio</strong>, como todos os seus colegas,<br />
era obrigado a se inscrever num colégio<br />
oficial, porque naquele tempo<br />
as provas em escolas particulares<br />
não tinham valor. Para passar de<br />
ano era preciso fazê-las com professores<br />
do Estado num estabelecimento<br />
estadual. Absurda exigência que,<br />
felizmente, foi depois abolida.<br />
Tendo, portanto, de se submeter<br />
àquela imposição, <strong>Plinio</strong> resolveu,<br />
em dezembro de 1924, aceitar um<br />
convite de seus primos e viajar com<br />
eles até Ribeirão Preto, para ali<br />
prestar as provas finais. Estas teriam<br />
início no Ginásio Otoniel Mota em 9<br />
de janeiro de 1925. Partindo com<br />
certa antecedência, ele poderia não<br />
apenas descansar no ambiente pacato<br />
do interior, como também se preparar<br />
com mais tranqüilidade para<br />
os exames.<br />
É melhor sacrificar a<br />
existência terrena a perder a<br />
vida eterna<br />
O jovem <strong>Plinio</strong> foi, então, pedir o<br />
consentimento de sua mãe para viajar.<br />
Não era uma proposta que a<br />
deixasse sossegada. Sabia ser Ribeirão<br />
Preto uma cidade muito rica,<br />
com todas as armadilhas que uma vida<br />
fácil pode trazer. Ademais, tinha<br />
Dª Lucilia clara noção dos perigos<br />
que o convívio entre estudantes po-<br />
6
de acarretar, especialmente estando<br />
longe da vigilância dos pais.<br />
Já quando <strong>Plinio</strong> entrara para o<br />
Colégio São Luís, ela manifestara<br />
temor quanto ao rumo que o menino<br />
tomaria. Por isso, repetiu-lhe algumas<br />
vezes, em tom ao mesmo<br />
tempo afetuoso e sério:<br />
— Meu filho, os tempos são<br />
muito ruins e você ainda é muito<br />
moço. Ninguém pode ter idéia do<br />
que é capaz uma pessoa quando se<br />
extravia. É bom você saber que eu<br />
preferiria vê-lo morto a vê-lo extraviado.<br />
Em outras palavras, é melhor sacrificar<br />
a existência terrena a perder<br />
a vida eterna.<br />
Verdade é que, auxiliado pela doutrina<br />
ortodoxa pregada pelos bons e<br />
piedosos padres jesuítas, <strong>Plinio</strong> resistira<br />
até então aos embates no colégio.<br />
Mas a adolescência — ele completara<br />
16 anos — é um período da<br />
vida tão incerto... Tudo bem pesado,<br />
Dª Lucilia acabou autorizando a viagem<br />
a Ribeirão Preto, impondo, todavia,<br />
como condição que seu filho<br />
se hospedasse na casa de contra-parentes<br />
seus.<br />
“Como é bela a inocência!”<br />
O episódio a seguir, mais tarde<br />
narrado pelo próprio <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
mostra o quanto os temores de Dª<br />
Lucilia não eram de todo infundados:<br />
“Ao chegar a Ribeirão Preto, procuro<br />
a família com a qual mamãe<br />
combinara minha ida. Receberamme<br />
muito amáveis, porém, por questões<br />
domésticas, só poderiam me<br />
dar acolhida no dia seguinte. O dono<br />
da casa indicou-me o melhor hotel<br />
da cidade, para eu passar a noite.<br />
“Dirigi-me ao estabelecimento e<br />
nele também não havia vaga. Contudo,<br />
não tinha outra alternativa<br />
senão permanecer ali. Lembrei-me<br />
então de que muitos rapazes de São<br />
Paulo iam fazer provas em Ribeirão<br />
Preto. Pedi ao recepcionista que me<br />
deixasse ver a lista de hóspedes: caso<br />
encontrasse algum conhecido,<br />
poderiam colocar mais uma cama<br />
no quarto dele. Olho a lista e dou<br />
com o nome de um rapaz que era<br />
amigo de primos meus, e por isso<br />
tinha comigo certa ligação. Achei<br />
que essa proximidade facilitava o<br />
fato de ele aceitar minha companhia.<br />
Eu disse:<br />
“— Olhe, este aqui é meu conhecido.<br />
Peço que coloquem uma cama<br />
para mim no quarto dele. Eu assumo<br />
a responsabilidade, pago minha<br />
diária como se tivesse aposento<br />
próprio, e quando ele chegar não<br />
lhes vai criar a menor dificuldade.<br />
“Aceitaram minha proposta, puseram<br />
ali a cama, e eu me deitei. A<br />
certa altura da noite, porém, acordo<br />
pressentindo passos no corredor.<br />
Percebo aproximar-se a voz potente<br />
do meu conhecido, conversando com<br />
uma pessoa do sexo feminino. Hipótese<br />
com que eu, na minha inexperiência,<br />
não tinha contado.<br />
“Chegaram junto à porta e, pelas<br />
palavras que trocavam, entendi que<br />
ele já fora informado<br />
de minha presença<br />
em seu quarto. E, talvez<br />
para satisfazer a<br />
curiosidade de sua<br />
acompanhante, o rapaz<br />
vinha lhe contando<br />
coisas a meu<br />
respeito, descrevendo<br />
minha personalidade,<br />
etc. Pelo que se<br />
passou depois, acredito<br />
que chegou mesmo<br />
a lhe dizer que eu<br />
praticava a castidade.<br />
“Abriram a porta,<br />
entraram, e ela disse<br />
em voz baixa: ‘Eu<br />
quero vê-lo’.<br />
“Aproximaram-se e<br />
pararam diante de<br />
minha cama. Eu permanecia<br />
de olhos fechados.<br />
Notei que me<br />
observavam, e pensei:<br />
‘Ai! meu Deus, o que vai acontecer<br />
agora?’ Recomendei-me à Santíssima<br />
Virgem e fingi dormir com<br />
toda a calma, respirando fundo,<br />
para dar a impressão de uma pessoa<br />
que dorme a sono solto.<br />
“De súbito, ouço-a dizer num sotaque<br />
português muito pronunciado:<br />
“— Ai! que linda é a inocência!<br />
Que bela, que bela a inocência!<br />
“Ela falava como alguém que<br />
sentia remorso pela inocência perdida.<br />
E, com pasmo para mim, propôs<br />
a ele de irem embora e de me<br />
deixarem sozinho no quarto. Ele<br />
concordou sem hesitação. Saíram, e<br />
eu ouvi os passos dos dois pelo corredor,<br />
e ela que mais uma vez exclamava:<br />
‘Como é bela a inocência!’<br />
Querendo dizer: ‘Como é bela a<br />
inocência que eu perdi! Que perda<br />
medonha eu tive, e que tesouro ele<br />
conserva!’<br />
“Dei graças a Nossa Senhora e<br />
voltei a dormir. Levantei-me na primeira<br />
hora da manhã. Na cama ao<br />
lado, vi o meu conhecido ainda<br />
Ginásio estadual Otoniel Mota, em Ribeirão Preto<br />
7
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
imerso num sono profundo. Aprontei-me<br />
e saí para a casa da família<br />
que me esperava. Não retornei ao<br />
hotel, e, naturalmente, não contei a<br />
ninguém o que acontecera naquela<br />
noite.”<br />
A “batata”<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> narra em seguida um<br />
pitoresco episódio, também sucedido<br />
em Ribeirão Preto:<br />
“Embora em toda a minha vida<br />
tivesse facilidade para estudos, entretanto<br />
não conseguia tomar gosto<br />
para me debruçar seriamente sobre<br />
determinadas matérias. Aprender,<br />
por exemplo, qualidades de ervas,<br />
de plantas, é para mim de uma dificuldade<br />
insuperável.<br />
“Em Ribeirão Preto, a mais alta<br />
autoridade escolar tinha um estreito<br />
vínculo de família comigo, o que me<br />
dava esperança de um apoio nas<br />
provas. Confiante nesse auxílio, fui<br />
fazer o exame oral de Biologia. Colocaram<br />
sobre uma mesa vários tipos<br />
de folhas que deveríamos identificar.<br />
Uma delas parecia a perna<br />
de uma cegonha, e me perguntaram<br />
do que se tratava. Não tinha a menor<br />
idéia, mas, se confessasse a minha<br />
ignorância, não me restariam<br />
chances de ganhar ponto. Pelo contrário,<br />
se dissesse algum nome, talvez<br />
acertasse. Logo, era melhor dizer<br />
qualquer coisa. E respondi:<br />
“ — É batata.<br />
“O dono da casa onde eu me hospedava<br />
havia me acompanhado até<br />
o colégio. Estava sentado a um canto<br />
da sala, fumando e ouvindo as<br />
nossas respostas. Quando eu disse<br />
‘batata’, vi a brasa do seu charuto se<br />
acender e ele fazer uma cara de espanto.<br />
“O professor ainda se voltou para<br />
mim: ‘Batata é o que você acaba de<br />
dizer!’<br />
“Apesar de uma ou outra resposta<br />
assim, graças a Deus acabei passando<br />
no exame.”<br />
Decisão em face de um<br />
perigo mortal<br />
Prossegue <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />
“A família em cuja casa eu me<br />
hospedei era numerosa. Viviam confortavelmente,<br />
tinham fazenda, e o<br />
pai ocupava um cargo público puramente<br />
de aparato, que lhe fora dado<br />
em virtude da influência política<br />
que os seus exerciam na região.<br />
“Fiquei hospedado também na sede<br />
da fazenda, ampla, simples, mas<br />
deixando entender fartura. Lembro-me<br />
de que, certo dia, num dos<br />
intervalos entre as provas, resolvi<br />
pegar o trem noturno que vinha para<br />
São Paulo. Eu me encontrava na<br />
cidade, e precisava voltar à fazenda<br />
para buscar minha bagagem. Contudo,<br />
as circunstâncias se puseram de<br />
tal maneira que, ou esse circuito se<br />
faria com toda a velocidade, ou não<br />
alcançaria o noturno.<br />
“Então tomei um táxi e fui para a<br />
fazenda. Aconteceu que, enquanto<br />
eu arrumava as malas, caiu uma<br />
chuva torrencial, enchendo muito o<br />
rio que corria junto à propriedade.<br />
Confiando em Nossa Senhora, mandei<br />
o táxi seguir para a cidade, e íamos<br />
bem até chegarmos à ponte<br />
que antes atravessáramos sem problemas.<br />
Agora, porém, as águas estavam<br />
a ponto de cobri-la. Não havia<br />
escolha: se eu quisesse alcançar<br />
o noturno, teria de atravessá-la de<br />
qualquer modo. O motorista deteve<br />
o automóvel e me disse:<br />
“— Aqui não vai mais.<br />
“— Vai sim, senhor! — retruquei.<br />
“Eu não entendia por que a água,<br />
passando sobre a ponte, a colocava<br />
em risco, mas o fato é que o meu<br />
motorista pensava assim. Insisti para<br />
que tocasse adiante. Ele se alarmou:<br />
“— O senhor não está vendo a<br />
água que sobe?<br />
“— Pouco importa, seja corajoso!<br />
— respondi com decisão.<br />
“No mesmo instante, ele tocou.<br />
Foi atravessarmos a<br />
ponte, e ela se espatifou...”<br />
Volta a Ribeirão<br />
Preto<br />
Outra vista de Ribeirão Preto, em 1926<br />
No fim de1925, <strong>Plinio</strong><br />
resolveu renovar seu pedido<br />
de permissão, a sua<br />
mãe, para voltar a Ribeirão<br />
Preto com seu primo<br />
Procópio (conhecido familiarmente<br />
como Pinho),<br />
para os exames de conclusão<br />
do curso secundário.<br />
Por aqueles dias Dª Lucilia<br />
viajara ao Rio de Ja-<br />
8
neiro, acompanhando sua mãe, Dª<br />
Gabriela, a quem dedicara sempre<br />
um incansável e meigo apoio. Dali<br />
escrevia a seu filho, incentivando-o<br />
nos estudos, ao mesmo tempo que<br />
abordava pequenos fatos da vida<br />
diária.<br />
Dessa correspondência restaram<br />
felizmente algumas cartas, que nos<br />
permitem penetrar na doce atmosfera<br />
familiar de então:<br />
Rio de Janeiro, <strong>22</strong>-9-1925<br />
Filho querido<br />
Fiz boa viagem e achei tua avó um<br />
pouco melhor, graças a Deus, mas<br />
acho tanta falta em meu “filhão”, que<br />
nem poderás fazer uma idéia! Como<br />
vamos de estudos... estuda-se muito,<br />
do mesmo modo que o fazias quando<br />
estava aí?... Veremos pelo boletim;<br />
não é exato? Que prazer me dás<br />
quando leio tuas boas notas, meu filho!...<br />
e Deus te abençoará por este<br />
grande esforço.<br />
Tens tomado sempre teus remédios?<br />
E Rosette querida, como vai?<br />
Olha bem por ela e vai vê-la todos os<br />
dias. (...)<br />
Abençoa-te e envia-te milhares de<br />
beijos e abraços, tua mamãe que tanto<br />
te quer,<br />
Lucilia<br />
Mesmo se muito atarefado nos<br />
estudos, <strong>Plinio</strong> nunca deixava de responder<br />
às cartas de sua mãe, sempre<br />
com demonstrações de afeto e<br />
veneração. Esta, a seguir, foi uma<br />
das conservadas carinhosamente por<br />
Dª Lucilia:<br />
Meu Amorzinho<br />
Como vai a Senhora? Não pergunto<br />
por vovó porque sei que ela está rija<br />
e forte como uma digna bandeirante.<br />
Por que não respondeu à carta que<br />
lhe escrevi?<br />
Vovó recebeu a dela? Imagine que<br />
eu queria pôr as duas cartas em um<br />
só envelope, porém esqueci-me e pus<br />
só uma.<br />
Estou muito alegre por esperar que<br />
a Senhora venha logo com Vovó, pois<br />
seria inútil descrever o aspecto da<br />
casa sem as Senhoras.<br />
Por aqui nenhuma novidade. Rosée,<br />
papai e eu vamos muito bem.<br />
Muitos abraços a Tio Gabriel e aceitem,<br />
Vovó e a Senhora, muitos beijos<br />
do filho e neto que lhes pede a bênção<br />
e muito as quer<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Para o sucesso nas provas,<br />
confiança no Sagrado<br />
Coração de Jesus<br />
De regresso a São Paulo, Dona<br />
Lucilia se apressa em escrever a seu<br />
querido filho, que já se encontrava<br />
em Ribeirão Preto. Eis uma das cartas<br />
daquela ocasião:<br />
S. Paulo, 4-11-1925<br />
Filho querido!<br />
De coração agradeço-te o “beijo<br />
telegráfico” que me enviaste e quanto<br />
aos exames, tenho a dizer-te que deves<br />
ter fé no Sagrado Coração de Jesus<br />
que certamente não nos abandonará,<br />
tanto mais, que por meio de<br />
duas novenas que estou fazendo, obteremos<br />
perante Ele a intercessão de<br />
Nossa Senhora da Conceição e de<br />
Santo Antônio. Diga ao Pinho que<br />
estas novenas também são feitas por<br />
sua intenção, e que espero em Deus,<br />
que serão ambos felicíssimos. (...)<br />
Peço-te que tomes bem cuidado<br />
com tua saúde. Continuas a estudar<br />
muito?<br />
Com um afetuoso abraço ao caro<br />
Pinho, abençoa-te e beija-te muito e<br />
muito, a tua mamãe extremosa,<br />
Lucilia<br />
O jovem <strong>Plinio</strong> teve sucesso em<br />
todas as provas, encerrando brilhantemente<br />
o curso secundário. Em 25<br />
de março de 1926, fez ele o vestibular<br />
da Faculdade de Direito do<br />
Largo de São Francisco, em São<br />
Paulo, no qual foi aprovado com nota<br />
8, matriculando-se poucos dias<br />
depois. Era como se ficasse para<br />
trás a adolescência, iniciando-se para<br />
ele um novo período de pugnas<br />
espirituais.<br />
v<br />
9
DR. PLINIO COMENTA...<br />
C<br />
erta ocasião,<br />
ao iniciar uma<br />
conferência para<br />
jovens, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi<br />
indagado a respeito<br />
da natureza do<br />
verdadeiro<br />
heroísmo, e<br />
respondeu<br />
com as<br />
seguintes<br />
palavras:<br />
10
Operguntador se referiu ao heroísmo dos cruzados,<br />
ao dos religiosos, ao dos mártires e a uma<br />
série de outras formas de heroísmo. O que há<br />
de comum em todas elas? Por exemplo, entre o heroísmo<br />
dos mártires e o dos cruzados? Quase se poderia dizer<br />
que são opostos, pois o heroísmo do cruzado consiste<br />
em lutar e fazer força; o dos mártires, em se encolher,<br />
esperar a morte e não recuar diante dela, mas não<br />
avançar para ela. Uns avançam e outros não avançam.<br />
Nenhum recua!<br />
E o que há de comum entre esses heroísmos e o do<br />
religioso?<br />
Muitos de nós já teremos visto fotografias representando<br />
cenas do quotidiano num convento ou numa abadia.<br />
Ora é um superior dando ordens ao seu subordinado,<br />
que as recebe de modo reverente, disposto a cumprilas.<br />
Ora são dois monges, um ajoelhado e outro de pé,<br />
dando uma diretriz, consolando a alma daquele, ou fazendo-lhe<br />
uma repreensão. Em qualquer dos casos, o<br />
súdito oscula o hábito do superior, em sinal de aceitação<br />
da ordem, da diretriz, da repreensão: é<br />
o completo sacrifício da alma para<br />
Deus. Sua vida inteira é marcada pela<br />
obediência. Quando se ordena a alguém<br />
fazer algo, em geral é por que a incumbência<br />
não será do agrado de quem<br />
deve desempenhá-la. Do contrário, não<br />
era preciso mandar, pois ninguém opõe<br />
dificuldades a realizar coisas que lhe são<br />
agradáveis. Então, viver de obediência,<br />
como os religiosos, é viver de fazer o<br />
que não se gosta.<br />
Qual é o elemento comum a essas<br />
diferentes formas de heroísmo, de maneira<br />
tal que, se o analisarmos, perceberemos<br />
no que este consiste o próprio<br />
heroísmo?<br />
si mesmo, fazendo, fazendo e fazendo! Eis um dos elementos<br />
do heroísmo.<br />
Considerem, por exemplo, os rapazes da sua idade.<br />
Nem todos vêem com agrado a necessidade de estudar.<br />
Mas, sabendo que é imperioso fazê-lo, um jovem adquire<br />
o hábito de estudar, e de tal maneira que, para ele,<br />
torna-se uma segunda natureza. No fundo, ele continua<br />
a não gostar. Porém, como é seu dever, ele faz, faz e faz,<br />
produzindo-se uma espécie de frescor na sua alma, uma<br />
aragem de consciência tranqüila, de glória do dever<br />
cumprido, uma sensação de sua própria honestidade,<br />
que lhe causam profundo bem-estar. Muito mais: de algum<br />
modo, sente ele uma luz que parte de Deus e o cobre<br />
e lhe dá a recompensa, já nesta terra, por suas boas<br />
ações.<br />
Quanto mais difícil for uma obrigação assim, tanto<br />
mais o heroísmo consiste em tomar o hábito de a fazer,<br />
transformando-se numa segunda natureza. Aí terá havido<br />
renúncia completa, dedicação inteira. Terá havido um<br />
heroísmo que se firmou.<br />
O hábito de cumprir os<br />
deveres árduos<br />
Todo mundo encontra na vida coisas<br />
difíceis de fazer, que devem ser repetidas<br />
com freqüência e grande esforço.<br />
Como são árduas, causam relutância e,<br />
às vezes, um verdadeiro horror. Entretanto,<br />
fazem-se. E muitas vezes, não<br />
apenas pelo mero cumprimento do dever,<br />
mas porque se resolve a fundo<br />
tomar o hábito de efetuá-las sempre, de<br />
modo que se acaba tendo alegria e satisfação<br />
pelo gosto de se vencer e dobrar a<br />
O heroísmo do cruzado consiste<br />
em lutar e fazer força<br />
11
DR. PLINIO COMENTA...<br />
O verdadeiro heroísmo<br />
Mas o heroísmo, ou é realizado de um<br />
só lance, ou não existe! Se uma pessoa<br />
avança aos poucos rumo ao que é difícil,<br />
não chegará ao seu objetivo. Rumo à Cruz<br />
de Cristo, ou se corre ou se voa! Quando<br />
se anda devagar em direção a ela, estamos<br />
a ponto de a abandonar e de trair o nosso<br />
Divino Mestre.<br />
Nas menores coisas é preciso agir desse<br />
modo. Por exemplo, um de nós pode ter<br />
um gênio muito irritadiço, que transforma<br />
sua presença num elemento de desordem<br />
no ambiente em que vive. Para solucionar<br />
esse problema, não basta apenas decidir<br />
não ter mais gênio irritadiço. É preciso<br />
tomar a resolução de ser um gênio angélico.<br />
Porque só vencemos o nosso defeito<br />
capital praticando uma virtude eminente.<br />
São Francisco de Sales, Arcebispo-Príncipe<br />
de Genebra, era famoso por sua doçura.<br />
Quando morreu, resolveram autopsiá-lo.<br />
Ao abrirem o corpo, encontraram<br />
seu fígado endurecido como se fosse de<br />
pedra. A razão dessa anomalia? O Doutor<br />
Suavíssimo possuía um gênio péssimo, e<br />
vivia dominando-se...<br />
Assim vencemos a nós mesmos. Gênio<br />
difícil? Procuremos adquirir um temperamento<br />
angélico. Medo de enfrentar as dificuldades?<br />
Sejamos heróis e leões a serviço<br />
de Nossa Senhora. Preguiçosos na hora<br />
de estudar? Pois vamos ser os primeiros<br />
a fazê-lo, a conversar sobre livros, a se interessar pelas<br />
matérias, etc. E se alguém for vaidoso, nunca pense em<br />
suas qualidades, não se compare com outros, nem dê<br />
atenção aos aplausos que receba. Fuja disso como da<br />
peste.<br />
Procuremos, pois, dominar nossos defeitos mais difíceis<br />
de vencer. Caso tenhamos pouca vontade de reconhecê-los,<br />
examinemos nossos atos com atenção, sem<br />
atenuantes, porque só corrigiremos nossas lacunas se<br />
formos implacáveis e se as pegarmos uma por uma,<br />
analisando-as com lupa, e depois rezarmos: mea culpa,<br />
mea culpa, mea maxima culpa.<br />
Isto é heroísmo.<br />
Outro modelo de humildade heróica<br />
Heróico é também o religioso, no completo sacrifício<br />
de sua alma para Deus<br />
No século passado viveu Santo Antônio Maria Claret,<br />
fundador dos claretianos, Arcebispo, Patriarca das<br />
Índias Orientais. Espanhol, de baixa estatura, mas grande<br />
orador popular, senhor de uma voz possante e de um<br />
ardente fogo de alma. O povo se impressionava muito<br />
com seus sermões. Terminada uma série de dias de pregação<br />
numa cidade, dirigia-se para outra próxima, muitas<br />
vezes a pé. Levado pelo entusiasmo que sua personalidade<br />
causava, o povo ia atrás dele até a meio caminho<br />
da localidade vizinha. A população desta, por sua<br />
vez, já vinha ao encontro dele, atraída pela sua fama,<br />
cantando e entoando louvores àquele homem de Deus.<br />
As pessoas nutriam por ele uma justificada admiração,<br />
e uma tão profunda devoção que — sem ele perceber<br />
— costumavam cortar pedaços da sua batina, arrancavam-lhe<br />
um botão, etc., e muitas vezes não o deixavam<br />
rezar, pois queriam sempre falar com ele. Essas<br />
manifestações populares tomaram tal envergadura que<br />
os auxiliares de Santo Antônio construíram um pequeno<br />
cercado de madeira, no interior do qual ele poderia<br />
caminhar sossegado, sem que a multidão à sua<br />
volta o tocasse.<br />
12
Deus Nosso Senhor, considerando a humildade de<br />
seu servo diante de toda aquela admiração, praticava<br />
maravilhas em favor dele. Por exemplo, numa das cidades<br />
em que pregou, a certa altura ele interrompeu suas<br />
palavras e apostrofou o público ali presente: “Vós estais<br />
ouvindo o meu sermão com negligência, e sereis castigados,<br />
porque a cúpula desta igreja desabará sobre<br />
vós!”<br />
Pouco depois ouviu-se um grande estrépito, e a cúpula<br />
caiu... Não é difícil compreender o assombro e a admiração<br />
causada por semelhante acontecimento. Em<br />
nenhum momento, porém, Santo Antônio cedia ao<br />
deleite com esse entusiasmo popular de que era alvo.<br />
Em determinado momento, a rainha Isabel II da Espanha,<br />
mulher de vida moralmente censurável, o conheceu<br />
e quis tê-lo como confessor. Obteve para ele, da<br />
Santa Sé, o pomposo título de Patriarca das Índias Orientais,<br />
o que lhe dava direito a diversas honrarias. Assim,<br />
mudou-se o cenário: começou a freqüentar a corte,<br />
vestindo trajes episcopais muito nobres, jóias, sobrepelizes<br />
de renda, anel pastoral magnífico, etc., num ambiente<br />
de grande luxo.<br />
Como diretor espiritual, ofereceu à rainha certos<br />
conselhos que ela não seguiu. Então Santo Antônio pediu<br />
a exoneração de suas funções junto à soberana, dizendo<br />
que não queria ser confessor de quem não tomava<br />
a sério o Sacramento da Penitência. E afastou-se da<br />
corte, passando a levar uma vida inteiramente recolhida,<br />
num dos conventos de sua fundação. Em breve a<br />
rainha o chamaria de novo, acabando por aceitar um<br />
pouco do grande bem que ele lhe fazia.<br />
Mas, consideremos o desapego de Santo Antônio!<br />
De pregador popular é elevado à condição de confessor<br />
da rainha e Arcebispo Patriarca das Índias. Atinge o<br />
ápice de sua carreira. A partir do momento em que não<br />
podia cumprir seu dever, aquilo não significava nada<br />
para ele: “Até logo, vou-me embora”. É heróico! Por<br />
quê? Porque a natureza humana gostaria de fazer o<br />
contrário: bajular a rainha, obter dela dinheiro, mais<br />
cargos e posições.<br />
Não. Ele cumpriu o dever heroicamente, até o fim.<br />
O heroísmo de um jovem católico<br />
em nossos dias<br />
Apliquemos agora esses princípios e exemplos ao caso<br />
de um jovem católico praticante. Este vai ao colégio,<br />
freqüenta sua roda de amigos, é convidado para festas,<br />
etc. Ele pode ser herói em todos esses ambientes?<br />
Sim, em qualquer lugar lhe é possível praticar o<br />
heroísmo. De que forma?<br />
Antes de tudo, mostrando por inteiro o que ele pensa.<br />
De maneira que, participando de uma conversa na<br />
qual se levantem opiniões contrárias à doutrina católica,<br />
ele tenha a coragem de dizer: “Eu não penso assim,<br />
porque a Igreja Católica ensina de tal modo, e como eu<br />
sou católico e sigo o magistério da Igreja, penso como<br />
Ela. Olhe aqui: é isto!”<br />
Muitos hão de estranhar e contestar essa atitude.<br />
Porém, cada um de nós deve ter esta convicção: “ Entreguei<br />
a minha vida para estar amarrado ao mesmo<br />
tronco onde foi flagelado Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Vão me achar tolo e dizer que sou um cretino? Vou ter<br />
em vista Nosso Senhor coroado de espinhos. Atiraram<br />
um manto de irrisão sobre Ele e, à guisa de complemento<br />
do “traje real”, deram-lhe como cetro uma taquara.<br />
Assim, todo flagelado e escarnecido, Ele aguardou o<br />
momento de O levarem para a Cruz. Mas, Ele fez o que<br />
tinha de fazer! E a mim só me resta imitá-Lo.”<br />
O Divino Modelo de heroísmo<br />
Santo Antônio Maria Claret,<br />
modelo de humildade heróica<br />
Aliás, na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo encontramos<br />
o heroísmo a cada momento, e praticado até o<br />
fim.<br />
13
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Ele estava em oposição aos escribas e fariseus, e sabia<br />
perfeitamente que estes O odiavam. Entretanto, continuou<br />
seu caminho ensinando, pregando e fazendo milagres<br />
atrás de milagres. E mesmo sendo um constante alvo<br />
da ira de seus adversários, Nosso Senhor ainda os desafiava,<br />
como na ocasião em que se referiu à Eucaristia,<br />
dizendo: “Se não comerdes a minha Carne e beberdes o<br />
meu Sangue, não tereis parte Comigo na vida eterna”.<br />
As pessoas que se encontravam junto d’Ele não entenderam.<br />
Imagine-se ouvir essas palavras dos lábios de<br />
um homem... Quem poderia entendê-lo? Contudo,<br />
Nosso Senhor havia praticado tais milagres e demonstrado<br />
tais virtudes, que era impossível não perceberem<br />
n’Ele o Homem-Deus. E como tal, haveria um modo<br />
misterioso de se realizar tudo quanto Ele dizia. Portanto,<br />
deveriam aceitar aquilo como verdade. Ele desafiou,<br />
pois, aquela gente. Vários se retiraram. O pequeno grupo<br />
d’Ele diminuiu ainda mais. Qual foi a resposta de Jesus?<br />
Voltou-se para os<br />
que restavam e lhes<br />
perguntou: “E<br />
vós, também<br />
não ides?”<br />
Quer dizer,<br />
desafiou-os<br />
também! E São Pedro disse então essas lindas palavras:<br />
“Para onde iremos, Senhor, se só Vós tendes palavras<br />
de vida eterna?”. Ou seja, aquele grupinho por sua vez<br />
lançou o desafio: transformaram-se depois nos Apóstolos.<br />
Rezar sempre e nunca desanimar<br />
Sentimos falta de coragem para algo assim? Devemos<br />
pedir a Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Nossa<br />
Senhora, que nos dê forças. Ninguém, sem uma ajuda<br />
da graça, tem capacidade para realizar semelhantes atos<br />
de heroísmo. Porém, suplicando a Nossa Senhora, Ela<br />
nos obterá de seu Divino Filho o auxílio sobrenatural de<br />
que necessitamos. Com a oração perseverante e com o<br />
socorro vindo do alto, teremos coragem e resistência<br />
para tudo, até mesmo para as coisas que julgamos as<br />
mais impossíveis de praticarmos.<br />
Mais uma vez, o exemplo desse recurso ao Céu nos<br />
foi dado pelo próprio Nosso Senhor. Quando, no Horto<br />
das Oliveiras, Ele considerou a Paixão que se aproximava,<br />
e anteviu todos os pecados e injúrias que se cometeriam<br />
contra Ele até o fim do mundo, e todos os sofrimentos<br />
pelos quais Ele teria de passar para redimir o<br />
gênero humano, Jesus começou a sentir tédio, pavor e<br />
tristeza. O peso de todas essas previsões foi tão aca-<br />
No Horto das<br />
Oliveiras, Jesus se<br />
tornou o divino<br />
exemplo de quem<br />
suplica ao Céu<br />
forças para<br />
praticar<br />
atos heróicos<br />
(“Oração no Horto”,<br />
escultura de Aleijadinho)<br />
14
unhador que Ele chegou a suar sangue. Então<br />
sentiu uma desproporção entre as forças que<br />
tinha e a imensidade do que Ele devia sofrer. E<br />
fez aquela oração sublime: “Meu Pai, se é possível,<br />
afastai de Mim este cálice”, quer dizer, esta<br />
taça de dor para beber. “Porém, se não for<br />
possível, faça-se a vossa vontade e não a minha”.<br />
Dali a pouco desceu um Anjo até ele e deu-<br />
Lhe um cálice com uma bebida misteriosa. Ele<br />
tomou, e o líquido lhe proporcionou novo vigor,<br />
recompôs dentro d’Ele uma posição de alma<br />
pela qual, quando chegaram os algozes, Nosso<br />
Senhor caminhou até eles e se ofereceu para a<br />
prisão. Depois veio todo o resto... até o alto da<br />
Cruz.<br />
Seguindo o Divino Modelo, nas horas de dificuldade<br />
devemos começar por rezar. Se não<br />
rezarmos, não obteremos nada. Roguemos e<br />
imploremos constantemente! E ainda que aconteça<br />
a desgraça de alguém cair em pecado, continue<br />
a rezar, porque Nossa Senhora é o Refúgio,<br />
a Mãe e Protetora dos pecadores. Estes,<br />
por pior que sejam suas faltas, encontram n’Ela<br />
a solução de seus problemas. Nunca duvidem de<br />
que Maria os auxiliará, pois o fará sempre e em<br />
qualquer caso.<br />
Há na Escritura esta expressão: Oportet semper<br />
orare et non deficere. — “É necessário orar<br />
sempre e não desanimar” (Luc18,1). É assim<br />
que devemos proceder. Portanto, não deixemos<br />
de rezar nas nossas dificuldades, nos nossos<br />
apuros e nossas vergonhas. A graça virá e teremos<br />
coragem para vencê-los, para ver de frente<br />
nossos defeitos, combatê-los e praticar, de modo<br />
magnífico, as virtudes opostas. Peçamos o<br />
socorro do Céu e comecemos de um ímpeto só.<br />
Aí seremos heróis.<br />
Especial confiança em<br />
Nossa Senhora<br />
Antes de encerrar, permito-me insistir num<br />
ponto. Pela minha experiência pessoal, posso<br />
dizer que, se não tivesse rezado muito, e especialmente<br />
a Nossa Senhora, com particular confiança<br />
n’Ela, a esta hora não estaria aqui lhes<br />
fazendo esta conferência. Foi pelas forças que Ela me<br />
deu que pude tocar minha vida de modo conforme à<br />
vontade d’Ela.<br />
Se, ao chegarem numa avançada idade como é a minha,<br />
quiserem dizer de si mesmos o que estou dizendo,<br />
creio que devem estar preparados para acrescentar:<br />
“Pelas forças que Nossa Senhora<br />
me concedeu, pude tocar minha vida<br />
segundo a vontade d’Ela”<br />
“Não fui eu que venci, mas Deus que venceu em mim.<br />
Venceu em mim, não por meus méritos, mas porque eu<br />
rezei por meio de Nossa Senhora. E por meio d’Ela se<br />
consegue tudo.”<br />
Com isso, meus caros, está terminada a nossa conferência.<br />
v<br />
15
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Num certo sentido, o renascentista<br />
é um liberal, e<br />
considera as normas rígidas<br />
do passado medieval como superadas.<br />
Seus costumes e suas idéias<br />
são livres. Porém, a par deste lado<br />
liberal e alegre, notamos nele o contrário.<br />
Pois sempre que o homem<br />
busca sofregamente a alegria, nascelhe<br />
a tristeza dentro da alma, dessas<br />
tristezas pesadas e sombrias, que o<br />
devoram e o acabrunham.<br />
Vemos então surgirem, lado a lado,<br />
dois veios de arte que se vão<br />
acentuando, e dois estados de espí-<br />
rito que vão também progredindo<br />
quase indefinidamente, até o nosso<br />
tempo. De uma parte, a alegria sem<br />
idéias, que começa por ser olímpica<br />
na Renascença, vai-se tornando cada<br />
vez mais a alegria de orgias até a<br />
Revolução Francesa, e depois passa<br />
para o tipo da alegria descontrolada<br />
de nossos dias. Mas, junto desse fluxo<br />
de alegria cada vez mais desordenado,<br />
a Renascença vai manifestando<br />
na arte a outra face da humanidade,<br />
que é a da tristeza desesperada,<br />
inseparável do gáudio descomedido.<br />
Essa tristeza, nós a vemos aparecer<br />
em dois homens típicos da Renascença:<br />
Michelangelo e Leonardo<br />
da Vinci. Sobretudo em da Vinci,<br />
um homem sombrio, hipocondríaco,<br />
amigo de viver sozinho, melancólico,<br />
pessimista, triste e imerso no desespero.<br />
Mas também em Michelangelo,<br />
cujos personagens, em geral,<br />
são olímpicos pela estatura, mas não<br />
pela alegria. São figuras tristes.<br />
É uma tristeza mórbida que começa<br />
a aparecer na arte, sob as formas<br />
pagãs das Fúrias, dos Cíclopes<br />
derrotados, dos heróis esmagados,<br />
16
“Morte de<br />
Leonardo<br />
da Vinci”,<br />
tela de<br />
F. Ménageot<br />
C<br />
ontinuamos a série de exposições sobre a Renascença.<br />
Nos artigos anteriores, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
demonstrava, em suma, como foi ela uma ampla<br />
Revolução feita em nome da cultura. E para os renascentistas,<br />
cultura era apenas o classicismo greco-romano, considerado<br />
por eles um valor supremo, a que tributavam delirante<br />
entusiasmo.<br />
Estigmatizando esse erro, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lembrava que,<br />
para um católico, cultura é a expressão da alma de um povo,<br />
de suas convicções e das condições em que vive, nascendo,<br />
portanto, de circunstâncias históricas e não podendo ser<br />
fabricada de modo teórico. A Renascença caiu no absurdo<br />
de tomar uma Europa modelada por mil anos de civilização<br />
cristã e obrigá-la a adotar uma cultura morta havia mais de<br />
um milênio. Isto causou profundos conflitos de consciência,<br />
pois envolveu, num ambiente que festejava o classicismo<br />
pagão, povos habituados ainda a viver segundo os princípios<br />
católicos.<br />
De outro lado, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> salientava ter ocorrido, na<br />
mentalidade do homem renascentista, uma espécie de saciedade<br />
da vida medieval, harmoniosa, razoável e ordenada,<br />
tornando-se ele sequioso de gargalhadas, prazeres e divertimentos<br />
contínuos.<br />
Após apontar essa falta de gravidade e esse relaxamento<br />
como a característica mais importante da Renascença,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> prossegue sua análise acerca dessa quadra<br />
histórica:<br />
dos grandes revoltados que querem<br />
destruir todas as coisas. Eis o sentido<br />
da glorificação de Espártaco, o<br />
chefe dos escravos rebelados. E começam<br />
a aparecer também certas<br />
canções, certas poesias de uma melancolia<br />
que logo descamba para o<br />
lúgubre e para o desesperado.<br />
Como expressão curiosa disto,<br />
não só a arte, mas também os costumes<br />
registram uma modificação.<br />
A época das grandes festas é também<br />
aquela em que vão aparecendo<br />
as grandes pompas fúnebres. Muito<br />
mais do que na Idade Média, a Renascença<br />
estilizou os enterros, o luto,<br />
os pêsames. Essa glorificação dos<br />
funerais complicou-se a tal ponto<br />
que, em certo momento, a humanidade<br />
teve de se libertar um pouco<br />
desses crepes, porque a vida tornava-se<br />
impossível.<br />
A perda de confiança na<br />
razão<br />
Essa atitude perante a dor e a<br />
alegria constitui uma das características<br />
da Renascença. Mas há outro<br />
ponto ainda mais sintomático. Por<br />
motivos que seria longo aqui enunciar,<br />
pode-se chegar à conclusão de<br />
que, provavelmente, o único tipo de<br />
homem que tem uma verdadeira<br />
certeza a respeito dos fins últimos<br />
de sua existência, do sentido da vida<br />
e da razão de ser de todas as coisas,<br />
bem como uma inteira convicção<br />
dos princípios filosóficos que sustenta<br />
— o único tipo de homem inteiramente<br />
assim é o que tem fé. E<br />
fé sobrenatural, católica apostólica<br />
romana. Quem a tem, evita a dúvida<br />
e é capaz de certezas. E torna-se incapaz<br />
disso, quando não a tem.<br />
17
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Leonardo da Vinci, homem típico da Renascença, imerso na tristeza<br />
e na melancolia (Auto-retrato)<br />
Ora, como sabemos, na Renascença<br />
a fé sofreu um enfraquecimento<br />
considerável. E o que o renascentista<br />
perdeu no terreno da<br />
sua fé, acabou perdendo também no<br />
campo da certeza acerca de todas as<br />
questões da vida, do fim último do<br />
homem, etc. Com isso, começou a<br />
nascer nele aquilo que é o corolário<br />
necessário da perda da fé: a falta de<br />
confiança na razão.<br />
A experiência mística<br />
tenebrosa substitui<br />
a razão e a fé<br />
Surgem, pois, na Renascença,<br />
dois veios que se prolongam também<br />
até os nossos dias. De um lado,<br />
o racionalismo; de outro, uma corrente<br />
que, tendo perdido a confiança<br />
na razão, já não é racionalista, e<br />
por isto vai procurar na experiência<br />
mística as certezas de que o espírito<br />
humano precisa.<br />
Para estudarmos como isto se dá,<br />
tomemos um renascentista gozador<br />
da vida. Ele aprendeu em pequeno<br />
que existe um inferno, um Céu, e assim<br />
por diante. Ele conserva essas<br />
convicções no fundo da alma, e elas<br />
o incomodam. O que faz ele? Passa<br />
a acolher com simpatia toda espécie<br />
de filósofos e teólogos que lhe dizem<br />
que essas convicções não são<br />
verídicas. E mesmo quando ele não<br />
se convence inteiramente, o fato de<br />
ver argumentos coruscantes contra<br />
as doutrinas da Igreja, lhe dá um<br />
certo prazer interior e uma esperança<br />
de que a fé não seja verdadeira.<br />
Naturalmente, alguns passam dessa<br />
posição de simpatia em relação<br />
aos argumentos anticatólicos para<br />
uma atitude de dúvida a respeito da<br />
fé. Ouvem os ensinamentos católicos,<br />
assim como as teses contrárias<br />
e, no fundo, dentro do emaranhado<br />
do assunto, não sabem bem como<br />
decidir.<br />
Outros, porém, vão mais longe.<br />
Para afogar o bramido da consciência,<br />
dão sua adesão aos raciocínios<br />
errados, tomam-nos como certos, e<br />
chegam até a descrença mais completa.<br />
O que acontece com uns e outros?<br />
Podemos nos figurar o caso de<br />
uma pessoa gozadora da vida, mas<br />
que começa a saturar-se dos prazeres.<br />
Tudo lhe parece horroroso, monótono,<br />
inexplicável. Passa a achar<br />
necessários outros horizontes e outras<br />
satisfações. Vêm as crises de desespero<br />
e a pessoa não encontra<br />
mais encaixe dentro da existência<br />
terrena. Naturalmente, nessas horas<br />
os espíritos, queiram ou não, começam<br />
a se tornar filosóficos. Se a pessoa<br />
ouve a voz da graça, repete-se a<br />
parábola do filho pródigo. Se não a<br />
ouve, para o que ela está preparada?<br />
Suponham uma dama renascentista<br />
sentada numa cadeira, na varanda<br />
de sua casa. É bonita, está<br />
18
em vestida e se compraz em olhar<br />
para a pequena rua à sua frente.<br />
Um grupo de seresteiros vem tocando<br />
e cantando de longe, até parar<br />
diante da residência dela e honrá-la<br />
com alguma música. Ela agradece.<br />
Os homens se distanciam, o silêncio<br />
se faz novamente na ruela estreita e<br />
a dama continua a pensar. Olha<br />
para o céu, olha para a lua, e sentese<br />
invadida de uma insatisfação.<br />
Qual será o futuro? Ah! tudo é incerto.<br />
E se houver certeza, é a certeza<br />
mesma que irrita.<br />
De repente passa embaixo uma<br />
cigana e se oferece para ler as cartas,<br />
prever o futuro nas linhas da<br />
mão, ou fazer aparecer um demônio<br />
no meio da sala, com o qual a mulher<br />
poderá conversar. É uma aragem,<br />
uma invasão do sonho dentro<br />
da realidade. Quem sabe se isso não<br />
é verdade?<br />
E de fato a cigana diz algo que<br />
talvez aconteça, faz mexer uma cortina<br />
no fundo da sala, ou promove a<br />
manifestação de um espírito qualquer.<br />
Isso traz um alívio. Uma espécie<br />
de solução. E assim surge o gosto<br />
por uma experiência mística que<br />
possa dar aquela certeza de que o<br />
raciocínio não é mais capaz.<br />
Em conseqüência, a magia, a necromancia,<br />
a invocação dos espíritos<br />
começam a florescer na Renascença,<br />
muito mais do que na Idade<br />
Média. Nesta certamente houve feiticeiros.<br />
Mas eram os homens malditos,<br />
com os quais a sociedade das<br />
pessoas direitas não tinha contato.<br />
Pelo contrário, na Renascença o feiticeiro<br />
era o apêndice necessário de<br />
toda corte. Esta tem seu capelão,<br />
mas se compraz em ter seu astrólogo.<br />
E o astrólogo e o capelão não<br />
são tão inimigos assim. O rei, entre<br />
os seus conselheiros, tem seus teólogos<br />
e também seus mágicos.<br />
Eis como a magia, a invocação do<br />
demônio, numa palavra, a experiência<br />
mística tenebrosa, acaba substituindo<br />
a razão e a fé.<br />
Acontece, pois, um deslocamento<br />
completo de princípios. O racionalismo<br />
e o experimentalismo místico<br />
mais cru acabam se justapondo. Temos<br />
toda uma crise criteriológica,<br />
uma crise religiosa e uma crise moral<br />
que repercutem profundamente<br />
no terreno dos costumes.<br />
Também nos monumentos fúnebres imprimiu a<br />
Renascença sua marca de tristeza desordenada<br />
(Gisante de Francisco I)<br />
19
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Cinismo e descrença a<br />
respeito de tudo<br />
Qual é o resultado de tudo isso?<br />
Uma espécie de cinismo do homem<br />
da Renascença a respeito de todos<br />
os assuntos da fé e de todos os que<br />
se relacionam com a verdade e o erro.<br />
Com algumas exceções, o escritor<br />
renascentista é cínico, sem princípios,<br />
não acredita nem no que diz,<br />
Perdendo a fé e a confiança na razão, o homem renascentista tomou gosto<br />
por superstições e certas experiências místicas.<br />
(“A dizedora de boa ventura”, quadro de Georges de La Tour)<br />
nem no que escreve, e abusa da<br />
palavra. Vemos aí uma espécie de<br />
decadência completa da inteligência<br />
humana, debaixo desse ponto de<br />
vista.<br />
Alguns exemplos são característicos.<br />
Há um Sebastião Brandt que<br />
faz a apologia da Imaculada Conceição.<br />
Adão Werner o defende ardentemente.<br />
Depois, Werner briga<br />
com Sebastião Brandt, transformase<br />
num inimigo ardoroso da Imaculada<br />
Conceição e começa a escrever<br />
para provar que não houve esse augusto<br />
privilégio de Maria Santíssima.<br />
Pedro Luder, sacerdote e um dos<br />
mais notáveis precursores do humanismo<br />
no mundo germânico, soube<br />
que os teólogos de Basiléia queriam<br />
denunciá-lo como herege, porque<br />
duvidava da Santíssima Trindade.<br />
Ele anuncia que, para<br />
não ser queimado, acreditaria<br />
até, se lhe pedissem,<br />
em uma divindade<br />
de quatro pessoas. Isto<br />
não é racionalismo. É a<br />
desesperança da razão<br />
em encontrar a verdade.<br />
Mais sutil que esses<br />
rigorosos germânicos era<br />
o italiano Pedro Aretino.<br />
Muitíssimo prudente em<br />
correr riscos de sangue,<br />
era totalmente imprudente<br />
quando tal perigo<br />
não existia. Transformara-se<br />
no murmurador<br />
mais escandaloso, satírico<br />
e mordaz de seu século.<br />
Por isso todos tinham<br />
medo de sua pena e o bajulavam.<br />
Quase não havia, pois,<br />
na época, valor das idéias,<br />
das coisas, das situações,<br />
dos princípios. O racionalismo<br />
conduzia a uma espécie<br />
de dissolução da<br />
razão.<br />
O Papa Adriano VI,<br />
um Pontífice anti-renascentista,<br />
via bem os estragos<br />
que o espírito do<br />
tempo produzia em seu<br />
rebanho. Segundo seus<br />
vigorosos termos, vinham<br />
ocorrendo “coisas abomináveis”,<br />
“abusos no espiritual”,<br />
e um “amolecimento<br />
geral”. “Ninguém<br />
tem feito algo de bom<br />
desde muitíssimo tempo,<br />
20
A antiga ordem medieval, austera e cristã, era desprezada pelos filhos da<br />
Renascença, que a ela se referiam como “o tempo da barbárie goda”...<br />
(Ao fundo, a vila e a igreja gótica de Moret-sur-Loing, França)<br />
e urge, por isso mesmo, que honremos<br />
a Deus, que humilhemos nossas<br />
almas diante d’Ele e que cada<br />
um veja de onde veio o mal” (Instrução<br />
ao Núncio Chieregati).<br />
Oncken comenta que esta reação<br />
não produziu efeito na sociedade<br />
peninsular em geral. Tanto<br />
assim que, quando em 14 de setembro<br />
de 1523 morreu esse Papa<br />
reformador, celebrou-se sua morte<br />
como um sucesso faustoso. Na<br />
casa do médico de cabeceira do<br />
defunto Pontífice, seus inimigos<br />
puseram esta inscrição: “O Senado<br />
e o povo felicitam o libertador<br />
da pátria”. Um literato escreveu:<br />
Se este acérrimo inimigo das musas<br />
, da eloqüência e de tudo quanto é<br />
belo tivesse vivido mais, forçosamente<br />
teríamos voltado ao tempo da<br />
barbárie goda.<br />
Isto bem indica a posição do homem<br />
renascentista diante de um Papa<br />
que representa a austeridade da<br />
era medieval. Tendo ainda o espetáculo<br />
das coisas da Idade Média<br />
diante dos olhos, ele as despreza falando<br />
em barbárie goda, e volta-se,<br />
cheio de benevolência e entusiasmo,<br />
para a civilização que vai nascendo<br />
e que iria nos conduzir ao<br />
neo-paganismo do século XX...<br />
Com essa consideração, que nos<br />
permite aprofundar um pouco mais<br />
o conhecimento dos fenômenos psicológicos<br />
que dominaram a Renascença,<br />
encerramos a análise de hoje,<br />
pretendendo retomá-la numa<br />
próxima ocasião.<br />
v<br />
21
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Agonia<br />
das<br />
tradições<br />
cristãs<br />
N<br />
este início do<br />
ano 2000, muitos<br />
se perguntam<br />
como o mundo, a par<br />
de alcançar um espetacular<br />
progresso técnico, pôde<br />
resvalar tão fundo na grande<br />
crise geral que o assola.<br />
Ainda muito jovem,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> notara o inexorável<br />
caminhar da humanidade<br />
para o abismo,<br />
causado pelo paulatino<br />
abandono dos valores cristãos.<br />
Desde então, não cessou de denunciar a<br />
derrocada que se aproximava, como num artigo escrito há 30 anos,<br />
do qual transcrevemos abaixo um significativo trecho:<br />
<strong>22</strong>
Consideremos só as décadas que se seguiram à Segunda<br />
Guerra Mundial. Incontáveis mudanças se<br />
têm produzido, nesse período, no modo de pensar,<br />
de sentir, de viver e de agir dos homens. Consideradas<br />
essas mudanças em seu todo — e descontadas as<br />
exceções — é inegável que elas rumam para uma situação<br />
violentamente oposta a todas as tradições espirituais<br />
e culturais que recebemos. Essas tradições ainda estão<br />
vivas, mas a todo momento alguma modificação as<br />
debilita. Logicamente, se ninguém se levantar em favor<br />
delas, acabarão por perecer. Ora, o perecimento dessas<br />
tradições importa, a meu ver, no maior naufrágio da história.<br />
Passarei a dar alguns exemplos. Mostrarei com eles<br />
como tradições das melhores vão sendo corroídas pela<br />
torsão sofística de alguns conceitos, aliás de alto valor:<br />
— “Bondade”: segundo o sofisma moderno, quem é<br />
bom jamais faz sofrer os outros. Ora, o esforço faz sofrer.<br />
Logo, só é bom quem não pede esforço a outrem.<br />
A civilização cristã, pelo contrário, modelou os povos do<br />
Ocidente conforme o princípio de que o esforço é condição<br />
essencial para a dignidade, o decoro, a boa ordem<br />
e a produtividade da vida. Se “bondade” é,<br />
em todos os campos, abolir o esforço, não é implicitamente<br />
privar a vida de valores sem os<br />
quais ela não é digna de ser vivida? E então, essa<br />
hipertrofiada “bondade” não constitui o pior malefício?<br />
— “Amor à criança”:<br />
segundo essa “bondade”<br />
adocicada e<br />
desfibrada, o amor<br />
à criança consiste<br />
em dispensá-la<br />
de todo<br />
esforço. Isto se pretende conseguir por mil técnicas,<br />
cujo efeito seria instruir e formar a criança sem nenhum<br />
sacrifício para esta. O aferramento a esta idéia vai a ponto<br />
de se condenarem as punições escolares, porque<br />
fazem sofrer os culpados, e a condenarem os prêmios,<br />
porque podem dar complexos aos vagabundos. Dado<br />
que, segundo a tradição cristã e o simples<br />
bom senso, um dos fins<br />
essenciais da educação é<br />
formar para a luta da vida<br />
através do hábito do<br />
esforço e do sacrifício, o<br />
que é esse “amor à<br />
criança” senão uma<br />
cruel deseducação?<br />
— “Simplicidade”,<br />
“despretensão”: simples<br />
seria quem prefere as<br />
coisas que não exigem muito<br />
gosto, nem muito esforço. Des-<br />
Hoje, o amor às<br />
crianças já não é<br />
entendido como<br />
outrora, quando a<br />
afetividade não excluía<br />
o prepará-las para o<br />
esforço e o sacrifício.<br />
Aqui, um pequeno e<br />
sorridente pescador<br />
espanhol, objeto do<br />
carinho de seus<br />
familiares<br />
23
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
pretensiosa seria a pessoa que sente bem-estar em ser<br />
vulgar. A “simplicidade” e a “despretensão” vão invadindo<br />
mais e mais os costumes de jovens e adultos.<br />
As regras da polidez e do trato, o modo de organizar<br />
uma casa, de receber, de se vestir, de falar, vão ficando<br />
sempre mais “simples” e “despretensiosos”. Decoro,<br />
brilho, qualidade, classe, prestígio, são valores do espírito<br />
dia a dia menos aceitos. Ora, eles encerram muito<br />
do que a tradição nos legou de mais precioso. Com isto,<br />
a vida vai ficando desbotada, os estímulos nobres fenecem,<br />
os horizontes se encurtam, e a vulgaridade invade<br />
tudo. Sob pretexto de “simplicidade” e “despretensão”,<br />
é o mais refinado comodismo que triunfa. Sim, comodismo<br />
refinado: o único “raffinement” que nos resta.<br />
— “Espontaneidade”, “naturalidade”, “sinceridade”:<br />
estas disposições de alma levariam a evitar outra forma<br />
de esforço, o de pensar, de querer, de se coibir. Induziriam<br />
a dar largas à sensação, à fantasia, à extravagância,<br />
a tudo enfim. A televisão, que excita, vai assim<br />
matando o livro, que convida à reflexão, as idéias se<br />
vão empobrecendo, e com elas o vocabulário também.<br />
Falar se reduz, em certas rodas, a narrar em alguns tantos<br />
vocábulos básicos alguns tantos fatos elementares.<br />
Divertir-se é pular e dar gritos sem eira nem beira. E<br />
rir. Rir muito, mas sem muita razão de rir. Claro está<br />
que em matéria sexual, mais ainda do que nas outras,<br />
qualquer contenção é rejeitada. A “moral sexual” de<br />
certa gente consiste em legitimar todos os desmandos<br />
... vão dando lugar à “simplicidade”<br />
e ao desbotamento<br />
O decoro, o brilho e a qualidade...<br />
para evitar complexos. O pudor seria, assim, o grande<br />
inimigo da moral; a libertinagem, o caminho para a<br />
normalidade.<br />
— “Idéias largas”: quem as tem, deve pactuar com<br />
tudo. Bispos ou governantes, professores ou pais que<br />
não sancionem todos os disparates que acabo de alinhar,<br />
são déspotas de idéias estreitas, que querem manter<br />
o jugo de preconceitos já hoje insustentáveis.<br />
Mas, dirá alguém, tal modo de ser não é o de uma<br />
minoria de extravagantes e não o da maioria? Não é<br />
verdade que esta assiste desolada e chocada a tais excessos?<br />
Desolada e chocada, sim, concordo. Mas acrescento<br />
logo: também esmagada e submissa. Pois a<br />
história de todos os “progressos” desta década tem sido<br />
esta: a) uma minoria lança uma extravagância “louca”;<br />
b) a maioria se arrepia e protesta; c) a minoria faz finca-pé;<br />
d) a maioria se vai habituando, adaptando e sujeitando;<br />
e) entrementes a minoria prepara novo escândalo;<br />
f) e este escândalo terá igual sucesso.<br />
Assim, a maioria vai entrando nesse mundo novo,<br />
fascinada, arrepiada, hipnotizada, como o passarinho<br />
entra na boca da cobra.<br />
De tanto diminuir a polidez, ela morrerá. De tanto<br />
encurtar os trajes, eles desaparecerão. De tanto silenciar<br />
sobre valores fundamentais da cultura e do espírito,<br />
eles desertarão a terra. De tanto estimular e desencadear<br />
desordens, estas acabarão por invadir e submergir<br />
tudo.<br />
(Excertos de artigo publicado<br />
na Folha de S. Paulo, de 20/3/69)<br />
24
DONA LUCILIA<br />
Perfeita<br />
harmonia de<br />
carinho e vigilância<br />
Em nosso último artigo pudemos<br />
conhecer algo do<br />
extremo desvelo de Dª<br />
Lucilia na educação de seus filhos.<br />
Seja no tocante à alimentação ou<br />
aos trajes, seja no referente às boas<br />
maneiras ou ao apreço pelos valores<br />
familiares, procurava ela nada negligenciar<br />
para que seus pequenos tivessem<br />
a melhor formação possível.<br />
Ao lado de tamanha solicitude,<br />
Dª Lucilia compreendia também ser<br />
obrigação de uma verdadeira mãe<br />
católica vigiar, aconselhar e corrigir<br />
pessoalmente os filhos.<br />
“Tenho saudades dos<br />
pitos de mamãe”<br />
Sempre que a governanta, a Fräulein<br />
Mathilde, ou outra pessoa dava<br />
conta de alguma travessura praticada<br />
pelas crianças, Dª Lucilia mandava<br />
o copeiro ou uma criada chamar<br />
o infrator. Este, localizado sem demora<br />
pelo empregado, recebia o aviso.<br />
A consciência pesada pela falta<br />
cometida já lhe fazia entrever o motivo<br />
da convocatória, assaltando-o<br />
logo um certo estremecimento de<br />
aflição por não encontrar nenhuma<br />
atenuante para o ato praticado.<br />
Dª Lucilia, intransigente no exigir<br />
o cumprimento do dever, sabia entretanto<br />
temperar essa nobre virtu-<br />
de com uma doçura de alma que levava<br />
seus filhos a aceitar com amor<br />
as obrigações que ela lhes impunha.<br />
Como sofria muito do fígado e<br />
necessitava de bastante repouso, passava<br />
boa parte do tempo em seu<br />
quarto, numa chaise longue, com as<br />
venezianas encostadas, o que dava<br />
ao ambiente um recolhimento muito<br />
afim com a alma dela.<br />
Era ali que a criança a encontrava.<br />
Introduzida nessa corte de justiça<br />
ao mesmo tempo grave e amena,<br />
sentia-se conquistada pela benquerença<br />
de Dª Lucilia, dissipando-selhe<br />
todas as anteriores turbações, ao<br />
contemplar a fisionomia pensativa<br />
de sua mãe. Dª Lucilia a chamava a<br />
si, deixando transparecer na voz um<br />
misto de tristeza, gravidade e afeto.<br />
Quando o filho, por exemplo, se<br />
aproximava receoso do merecido<br />
castigo, era logo tomado pelo encanto<br />
do trato materno. Freqüentemente<br />
ela lhe passava o braço ao redor<br />
da cintura, fitava-o bem no fundo<br />
dos olhos, incentivando de modo<br />
irresistível o pequeno e querido réu<br />
a confessar sua culpa, e perguntava:<br />
— Você fez tal coisa?<br />
— Fiz, sim, senhora — respondia<br />
ele, um pouco contrafeito.<br />
— Eu não lhe disse que não deveria<br />
fazer? — continuava ela, serenamente,<br />
num tom de suave censura.<br />
— Disse, sim, senhora.<br />
A cada pergunta o menino ia ficando<br />
mais tímido, acabrunhado pelo<br />
desgosto de haver contrariado tão<br />
bondosa mãe.<br />
— Então como é que você fez isto?<br />
— insistia ela mais um pouco.<br />
— Eu tinha vontade... — tentava<br />
ele explicar, convicto de que não<br />
atenuaria sua culpa.<br />
25
DONA LUCILIA<br />
Dª Lucilia desfiava em seguida as<br />
agravantes do delito, deixando porém<br />
entrever uma solução jeitosa<br />
para o caso:<br />
— Mas você não tinha o direito<br />
de fazer isto. Não era melhor ter<br />
procurado sua mãe e dizer: “Mamãe,<br />
eu desobedeci, perdão”? Eu<br />
lhe daria uma bênção e, depois de<br />
um beijo, estaria tudo resolvido.<br />
Quando ela percebia terem suas<br />
palavras vencido todas as resistências,<br />
induzindo o filho a um proporcionado<br />
arrependimento, concluía:<br />
— Está bem, agora você me promete<br />
não fazer mais isto?<br />
Ao que ele respondia “sim”, já inteiramente<br />
persuadido.<br />
Chegara a hora da misericórdia.<br />
Dª Lucilia mudava então de atitude<br />
e perguntava:<br />
— Está bem, então você pede<br />
perdão a mamãe?<br />
Formulado o pedido, ela passava<br />
da repreensão severa — nunca irritada<br />
— para um transbordamento<br />
de afeto. Entrava uma tal harmonia<br />
e entendimento recíproco que <strong>Plinio</strong><br />
sempre saía inundado de admiração<br />
e de contentamento, de tal<br />
maneira que, passados muitos anos<br />
da morte dela, afirmaria:<br />
“Ainda tenho saudades dos pitos<br />
de mamãe!”<br />
De tal modo transparecia no proceder<br />
de Dª Lucilia o amor materno<br />
que, mesmo em circunstâncias nas<br />
quais fulgurava a inflexibilidade, era<br />
impossível aos filhos não saírem encantados<br />
com ela, quase tendo vontade<br />
de lhe pedir outro castigo...<br />
Nas doenças, tempero de<br />
dor e de alegria<br />
No harmônico conjunto de suas<br />
virtudes, Dª Lucilia passava de um<br />
extremo a outro, sem a menor dificuldade.<br />
Bastava que algum de seus<br />
filhos adoecesse para brilhar de modo<br />
especial sua benignidade, que se<br />
convertia em cuidados e inimagináveis<br />
desvelos.<br />
Nas enfermidades, a preocupação<br />
de Dª Lucilia era serena mas vigilante.<br />
Dava preferência à homeopatia,<br />
cuja suave ação bem se adequava<br />
a seu modo de ser. Quando necessário,<br />
tanto para socorrer-se em<br />
seus achaques, quanto para solucionar<br />
os pequenos incômodos de<br />
seus filhos, consultava um excelente<br />
médico homeopata, no qual tinha<br />
muita confiança, o <strong>Dr</strong>. Murtinho<br />
Nobre, que atendia também Dª Gabriela<br />
e outros familiares.<br />
Era raro irem a<br />
seu consultório, chamando-o<br />
normalmente<br />
a casa.<br />
Habitualmente, ao<br />
receber os remédios receitados<br />
por <strong>Dr</strong>. Murtinho<br />
às crianças, Dª Lucilia<br />
escrevia os nomes<br />
em pequenas folhas de<br />
papel; depois, noutra,<br />
anotava as horas em<br />
que o doentezinho devia<br />
tomá-los. Queria<br />
ter a certeza de não se<br />
esquecer de nenhuma<br />
dose. Nas horas devidas,<br />
entrava sorrindo<br />
no quarto, trazendo na<br />
mão os vidrinhos. Rosée<br />
ou <strong>Plinio</strong> — conforme<br />
o caso — já se sentiam<br />
reconfortados só<br />
por vê-la chegar tão<br />
afável, comunicativa,<br />
carregada de promessas<br />
de que o remédio<br />
curaria, e extremamente<br />
carinhosa no modo<br />
de ministrá-lo.<br />
Nessas horas era tão<br />
bondosa com as crianças,<br />
que muitas vezes<br />
os familiares gracejavam:<br />
— Lucilia trata tão<br />
bem seus filhos quando<br />
estão doentes, que eles<br />
não ficam com vontade<br />
de sarar...<br />
Ela sabia aliar também, a esse tocante<br />
procedimento, um outro auxílio:<br />
a exigência no cumprimento dos<br />
preceitos médicos.<br />
Em determinados momentos do<br />
dia entrava com o termômetro, a<br />
fim de medir a temperatura do juveníssimo<br />
doente. Por mais que este<br />
afirmasse já estar bom, para poder<br />
sair da cama, Dª Lucilia lhe colocava<br />
a pequena haste de vidro sob o<br />
braço e, depois de escassos minutos<br />
O pequeno <strong>Plinio</strong>. “Ainda tenho<br />
saudades dos pitos de mamãe...”<br />
26
contados no relógio — que pareciam<br />
uma eternidade ao pequeno enfermo<br />
— recolhia o instrumento e<br />
se aproximava da janela a fim de vêlo<br />
melhor. Chegava o instante de o<br />
menino ouvir dos lábios maternos o<br />
veredicto, que não raramente era de<br />
condenação: a terrível colunazinha<br />
de mercúrio subira até 38º ou mais.<br />
Impacientava-se ele, por vezes, e Dª<br />
Lucilia, com todo o afeto, tentava<br />
acalmá-lo, explicando as razões pelas<br />
quais teria de ficar mais tempo<br />
na cama. Quando ela saía do quarto,<br />
o ânimo da criança estava de novo<br />
serenado.<br />
Dª Lucilia notava que sobretudo<br />
<strong>Plinio</strong> se enfadava muito com essa<br />
rotina. “Se ela não medisse tantas<br />
vezes a febre, esta não subiria assim...”,<br />
pensava o menino. Para evitar-lhe<br />
esse pequeno sofrimento,<br />
sua mãe se restringia, em algumas<br />
ocasiões, a pôr sua refrescante mão<br />
na testa dele. Ao menos não teria a<br />
desagradável sensação de que o termômetro<br />
prolongava a doença. E se<br />
nem por isso baixava a febre, algo<br />
que nele antes fervia se apaziguava.<br />
Esse efeito se acentuava quando,<br />
num tom de voz próprio a inspirar<br />
confiança, sua mãe lhe recomendava<br />
um tanto mais de paciência, pois<br />
o pouquinho de temperatura febril<br />
acabaria por descer.<br />
Ao desaparecerem os sintomas<br />
da doença, Dª Lucilia também não<br />
exagerava a alegria, limitando-se a<br />
dizer:<br />
— Bom, meu filho, então você<br />
pode se levantar.<br />
Ajudava a criança a sair alegremente<br />
da cama, mas sem manifestar<br />
demasiado contentamento, pelo receio<br />
de que os excessos pudessem<br />
levá-la a imprudências. Constituía<br />
esse mais um procedimento no qual<br />
o equilíbrio entre dor e alegria era<br />
dosado com sabedoria e incutido na<br />
alma dos filhos de forma didática.<br />
*<br />
À chegada do inverno, a fim de<br />
prevenir as enfermidades trazidas<br />
pela estação, multiplicava<br />
Dª Lucilia os<br />
cuidados maternos;<br />
ora enriquecia ainda<br />
mais a alimentação<br />
de seus filhos, ora vigiava<br />
para que estivessem<br />
bem agasalhados,<br />
ou evitar que<br />
saíssem de casa sob<br />
a garoa.<br />
Sempre envoltas<br />
em benquerença, essas<br />
providências se<br />
tornavam de fácil<br />
cumprimento, mesmo<br />
quando incômodas<br />
para as crianças.<br />
Tal era o caso do repulsivo<br />
óleo de fígado<br />
de bacalhau, muito<br />
famoso naquele<br />
tempo, tanto por sua<br />
eficácia tonificante<br />
quanto por seu desagradável<br />
sabor. Para<br />
tornar menos penoso<br />
o uso do fortificante,<br />
Dª Lucilia o<br />
fazia acompanhar sempre de um<br />
gole de vinho francês ou português.<br />
E se durante certo tempo Rosée e<br />
<strong>Plinio</strong> o bebessem com docilidade, a<br />
recompensa nunca faltaria. Dª Lucilia<br />
os levava a uma grande casa de<br />
brinquedos onde podiam escolher o<br />
que quisessem.<br />
Pequenos ferimentos, comuns na<br />
infância, recebiam da parte dela os<br />
necessários ungüentos, acompanhados<br />
de suaves bálsamos para a alma.<br />
Guardava previdentemente numa<br />
caixinha o material para essas circunstâncias.<br />
Sempre que algum filho<br />
acorria aflito em busca de auxílio<br />
e remédio para as diminutas conseqüências<br />
de algum tombo, ela,<br />
utilizando com delicadeza e habilidade<br />
tesourinha, gaze e pomada, fazia<br />
logo o curativo. O simples modo<br />
de prepará-lo já era motivo de encanto<br />
e alívio. Todavia, dessa singela<br />
operação, o que certamente mais<br />
Casa Grumbach, uma das lojas de brinquedos<br />
a que Dª Lucilia levava seus filhos<br />
reconfortava a criança era, no fim,<br />
um carinhoso beijo, acompanhado<br />
das palavras:<br />
— Filhinho, agora vá brincar...<br />
<strong>Plinio</strong> à beira da morte<br />
Certa manhã, <strong>Plinio</strong>, tendo despertado<br />
antes mesmo de a Fräulein<br />
entrar em seu quarto, sentiu faltarem-lhe<br />
as forças. Deixou-se então<br />
cair para trás sobre os travesseiros<br />
e chamou Dª Lucilia. Notando<br />
algo de anormal, acorreu ela<br />
imediatamente. Abraçou seu filho<br />
com carinho, beijou-o e indagou<br />
com ternura o que se passava. O<br />
rosto do menino, afogueado, denunciava<br />
febre alta. <strong>Plinio</strong> também se<br />
queixava de estar sentindo dor na<br />
garganta.<br />
Após o ter acomodado bem na<br />
cama, Dª Lucilia telefonou ao <strong>Dr</strong>.<br />
Murtinho. Este não tardou em com-<br />
27
DONA LUCILIA<br />
parecer ao palacete Ribeiro dos<br />
Santos. Depois de examinar a criança,<br />
fez um diagnóstico bem mais<br />
grave que das vezes anteriores: crupe.<br />
E após receitar a medicação<br />
conveniente se retirou.<br />
Não havia chegado ainda a era<br />
dos antibióticos. A terrível moléstia<br />
podia levar o paciente à morte por<br />
sufocação, em virtude de uma membrana<br />
que se formava na garganta.<br />
Para evitar isto, não raras vezes se<br />
fazia necessária uma intervenção<br />
cirúrgica, perspectiva que preocupava<br />
enormemente Dª Lucilia. Antes<br />
de ela aplicar o tratamento indicado<br />
por <strong>Dr</strong>. Murtinho, alguns familiares,<br />
adeptos da medicina alopática,<br />
recomendaram-lhe mandar<br />
logo operar o menino.<br />
<strong>Plinio</strong>, entrementes, começou a<br />
piorar e Dª Lucilia resolveu telefonar<br />
ao <strong>Dr</strong>. Murtinho. Este a tranqüilizou,<br />
dizendo-lhe que fizesse<br />
seu filho tomar o remédio receitado.<br />
Advertiu que por volta das três<br />
horas da tarde daquele dia, se tudo<br />
corresse normalmente, o menino<br />
expeliria a membrana formada em<br />
sua garganta. Ela deveria deixar um<br />
pano sobre a cama dele, a fim de a<br />
recolher e enterrar no quintal, ato<br />
contínuo, pois era matéria altamente<br />
contagiosa.<br />
Dª Lucilia começou a<br />
tomar as providências recomendadas.<br />
Mandou<br />
Madalena, uma das criadas,<br />
abrir um pequeno<br />
buraco no fundo do<br />
jardim e deixou um pano<br />
preparado. Uma vez tudo<br />
pronto, sentou-se à<br />
cabeceira da cama de seu<br />
filho e começou a rezar,<br />
pois <strong>Plinio</strong>, abatido pelos<br />
incômodos da doença,<br />
mal tinha ânimo para<br />
abrir os olhos. Embora<br />
ele não conseguisse conversar<br />
com sua bondosa<br />
mãe, a presença dela lhe<br />
era um suave refrigério<br />
para os ardores da febre e para o<br />
terrível mal-estar. À medida que o<br />
tempo passava, <strong>Plinio</strong> sentia as<br />
forças o abandonarem, o que lhe<br />
aumentava a aflição. Contudo Dª<br />
Lucilia o ia consolando com palavras<br />
de inefável doçura, e assim se<br />
aproximava a hora indicada pelo<br />
médico.<br />
Tendo aberto cuidadosamente o<br />
pano sobre os lençóis,<br />
esperou pelo momento<br />
previsto, com sua habitual<br />
serenidade. Cerca<br />
das três horas, tudo se<br />
realizou como <strong>Dr</strong>. Murtinho<br />
dissera. Após certificar-se<br />
ter sido convenientemente<br />
enterrado<br />
o pano com a fatídica<br />
membrana, Dª Lucilia<br />
telefonou para o<br />
médico a fim de lhe dar<br />
a boa notícia e pedir<br />
novas instruções. Este a<br />
interrompeu, antes mesmo<br />
de ela dizer algo sobre<br />
o ocorrido:<br />
— Dª Lucilia, pelo<br />
tom de voz da senhora,<br />
vejo que o <strong>Plinio</strong> já está<br />
bem. Nem precisa dizer-me<br />
o que aconteceu.<br />
Agora ele só precisa<br />
descansar bastante para se recuperar<br />
do abalo sofrido.<br />
Dª Lucilia agradeceu muito a <strong>Dr</strong>.<br />
Murtinho, desligou o telefone e voltou<br />
para junto de seu filho, que reclamava<br />
insistentemente sua presença.<br />
Ao entrar no quarto, ela estava<br />
radiante, luminosa de contentamento<br />
por sabê-lo fora de perigo.<br />
Abraçou-o e beijou, explicando-lhe<br />
haver tudo já passado. A grande<br />
alegria que inundava o olhar de Dª<br />
Lucilia foi para ele o melhor argumento.<br />
Sossegado ao ver que sua<br />
mãe não mais estava preocupada,<br />
deixou-se embalar pelas doces palavras<br />
dela, dormindo tranqüilo o<br />
resto da tarde.<br />
Nos dias seguintes, Dª Lucilia<br />
passou boa parte do tempo junto de<br />
seu filho. Procurava entretê-lo, servindo-se,<br />
como de costume, de sua<br />
inigualável arte de contar histórias.<br />
E envolto assim no carinho dela,<br />
correram rapidamente os dias de<br />
convalescença.<br />
(Transcrito, com adaptações,<br />
da obra “Dona Lucilia”, de<br />
João S. Clá Dias)<br />
28
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
O NOSSO MAIOR<br />
TESOURO<br />
Igreja de<br />
Santa Maria<br />
Maior, Roma<br />
C<br />
oncitando seus colegas a abraçar o verdadeiro apostolado católico, que não mede<br />
esforços nem sacrifícios, o jovem congregado <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira inaugurava,<br />
em janeiro de 1931, os trabalhos da Academia Jackson de Figueiredo, da qual era<br />
Presidente. É impressionante como, sete décadas depois, as palavras de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> permanecem<br />
atuais, como o atestam as seguintes passagens do discurso:<br />
Se falasse, senhores, em um círculo de estudos<br />
composto por elementos intelectualmente heterogêneos,<br />
se me dirigisse a um auditório não iluminado<br />
pelo farol da Fé, ver-me-ia na contingência de<br />
vos dirigir as palavras de saudação banais, as promessas<br />
sedutoras e enganadoras das plataformas que não se<br />
cumprem, a miragem de uma tarefa fácil a desempenhar,<br />
a promessa de reduzir ao minimum os esforços, e<br />
elevar ao maximum os frutos.<br />
Não é esta, porém, senhores, minha situação perante<br />
um auditório que sabe o que é sacrifício, que compreende<br />
o que é dever.<br />
Não nos diz o Cristianismo que todos os nossos esforços<br />
são inúteis, mas sim que, do mesmo modo por<br />
que uma pequena chama pode atear um imenso incêndio,<br />
uma pequena dose de amor de Deus pode atear no<br />
mundo um grande, imenso abrasamento de amor pelo<br />
bem.<br />
29
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
E, como se não bastassem estas afirmações, vem o<br />
recurso da graça e da oração, que faz de nós até participantes<br />
da onipotência divina! De párias que éramos no<br />
paganismo, o Cristianismo nos eleva a príncipes e a gigantes!<br />
Que magnífica vida, que estupendo destino!<br />
Vemos, senhores, que importância, que mar de felicidades<br />
representa para um homem o ser cristão. E em<br />
que estupenda época a Divina Providência nos fez<br />
nascer! Por toda a parte ouvimos rufos de tambor e<br />
toques de clarim, a chamar os combatentes para a<br />
grande luta que se vai travar. Por toda a parte já se engajam<br />
as primeiras escaramuças entre as duas imensas<br />
hostes do bem e do mal. E as do bem, pequenas, disciplinadas<br />
e aguerridas, reeditarão a vitória das Termópilas,<br />
em que poucos gregos venceram uma avalanche<br />
persa.<br />
Mas, para isto, é preciso que compreendamos que,<br />
longe de sermos como os pagãos, não devemos fugir ao<br />
sacrifício. O paganismo é a caça ao prazer, no fundo do<br />
qual só há sacrifício. O Cristianismo é a caça do sacrifício,<br />
no fundo do qual há prazer, mas com a admiração<br />
cheia de gratidão e unção religiosa de quem contempla<br />
um firmamento fulgurante, inundado de raios de sol<br />
que cortam o azul do espaço, e despejam sobre o mundo<br />
oceanos de luz e de paz. [...]<br />
Desilusões face aos prazeres pagãos<br />
Efetivamente, senhores, desde os seus primeiros instantes,<br />
vê o homem erguer-se diante de si o espectro da<br />
dor.<br />
Não há escritor, por mais profundo ou por mais banal,<br />
que não tenha descrito, entre atônito e temeroso, o<br />
terrível combate entre o homem e a dor. A existência<br />
humana nada mais é do que uma luta entre o homem e<br />
a dor. Luta trágica, luta terrível, em que a dor sempre<br />
vence o homem.<br />
Lutando com o polvo do sofrimento, mal consegue o<br />
homem desenvencilhar-se de um dos tentáculos que o<br />
oprimiam, logo outro se apodera dele, infligindo-lhe as<br />
mais dolorosas contorções.<br />
Muito conhecido é o vulto mitológico que, condenado<br />
pelos deuses a viver com sede, via subir até seus<br />
beiços as águas de que estava rodeado. Mas mal ia beber<br />
um gole apenas, que lhe refrescasse a boca ressequida<br />
pela sede, o nível das águas descia, e ele ficava<br />
impossibilitado de beber. Era, seguramente, um mito<br />
inventado pelo paganismo desiludido, que mal via<br />
aproximar-se de si o fantasma da felicidade, este se<br />
afastava, deixando apenas a ferida incandescente de<br />
uma dolorosa desilusão.<br />
A banalidade é uma espécie de consagração. As figuras<br />
e as imagens, quando se tornam banais, recebem<br />
a consagração que lhes presta este conjunto anônimo<br />
de inteligências que se chama senso comum.<br />
Por isso, julgo-me no direito de lançar mão de uma<br />
figura tão usada, que já é de domínio comum: os prazeres<br />
pagãos são como as praias de areias movediças. Na<br />
atraente beleza de sua alvura sem nódoas, são como<br />
que um convite mudo para o infeliz que ousa pisar sobre<br />
ela. Mas o solo se abre a seus pés e, sem ponto de<br />
apoio, ele está irremissivelmente perdido.<br />
30<br />
“Os funerais<br />
de César” —<br />
a dor era um<br />
espantalho<br />
para o velho<br />
paganismo<br />
romano,<br />
desiludido<br />
em meio aos<br />
seus<br />
desenfreados<br />
prazeres
Dentro em pouco, o indivíduo está inteiramente<br />
sepultado, e a superfície da areia se<br />
unifica e recompõe, a sorrir alva e maldosamente<br />
para outro incauto.<br />
Os prazeres são para o homem o que a água<br />
do mar é para o náufrago sedento: quanto<br />
mais bebe, mais tem sede. E à força de beber...<br />
morrerá de sede.<br />
Quem no-lo diz não são os austeros heróis<br />
de mortificação cristã, são os desiludidos das<br />
agruras do paganismo.<br />
Se quisermos colher no velho paganismo romano<br />
uma prova disto, teremos Petrônio, o<br />
elegante sibarita, que depois de gozar de todos<br />
os prazeres do corpo e do espírito, suicidou-se<br />
ainda jovem, rico, belo e saudável... porque<br />
não valia a pena viver.<br />
E Anatole France, o grande corifeu do ultrapaganismo<br />
moderno, já no declínio de sua<br />
vida, depois de ter esquadrinhado com o compasso<br />
poderoso de sua inteligência todas as<br />
ciências, dizia em um livro: Rien n’explique la<br />
tragique absurdité de vivre (“nada explica o trágico<br />
absurdo de viver”).<br />
E, afinal, o que é este espectro da dor, de<br />
que tanto fugiam os pagãos, e que tanto os<br />
perseguia?<br />
Levemos ao próximo a Fé,<br />
nosso maior tesouro<br />
Eis-nos chegados aos alicerces do Cristianismo,<br />
eis-nos em face das questões básicas<br />
que a filosofia pagã encarou como um tenebroso antro,<br />
e a filosofia cristã admirou como quem depara grutas<br />
negras de pensamento onde nem os incautos se atrevem<br />
a penetrar.<br />
[O mundo hodierno] se contorce por falta da luz dos<br />
verdadeiros princípios do verdadeiro Deus. O desencadeamento<br />
das paixões precipitou a humanidade sobre<br />
a areia movediça dos prazeres, e milhares e milhares de<br />
homens arrastam hoje, como a uma cadeia pesada, a<br />
grinalda de rosas de suas vidas de festim. [...]<br />
Temos uma Fé. Temos também um coração. Se queremos<br />
ver cessar esse estado de coisas, saibamos sujeitar-nos<br />
ao sofrimento, que exige de nós o apostolado.<br />
Tirarmos ao Cristianismo o sofrimento é tirar a um corpo<br />
a espinha dorsal.<br />
Nosso Deus, coroado de espinhos, não indica que a<br />
realeza de Deus é a realeza da dor? Aceitemos o sofrimento;<br />
o sofrimento por toda a sorte de humilhações; o<br />
sofrimento por toda a sorte de vantagens de que desistimos;<br />
o sofrimento pelo esforço infatigável pelo bem; o<br />
sofrimento pela abnegação que não conhece limites.<br />
A realeza da dor<br />
(Cristo del Gran<br />
Poder, Espanha)<br />
Privar o Cristianismo do sofrimento é injuriar a Cristo,<br />
que quis que fosse de espinhos sua coroa; ser católico e<br />
ter medo de sofrer por Deus é fazer deste um mero banqueiro,<br />
que nos fornece prazer ao sabor de nossos<br />
caprichos, ou lacaio a quem se encomenda felicidade,<br />
como se lhe pede um copo de água. É amizade o ter medo<br />
de sofrer por um amigo? Não. Logo, não é Cristianismo<br />
o ter medo de nos sacrificarmos por Jesus, nosso<br />
maior amigo. Não cometamos a atrocidade de abandonar<br />
Jesus no Calvário. Não demos a bofetada de um<br />
pecado no rosto que Ele nos apresenta chagado por<br />
amor de nós. Não sejamos atrozes, não sejamos hienas,<br />
sejamos mites et humiles corde (mansos e humildes de<br />
coração) como Ele.<br />
Tudo isso evidencia a necessidade do apostolado. Se<br />
amamos a Deus sobre todas as coisas, imolemo-nos por<br />
Ele. Se amamos ao próximo como a nós mesmos, demos-lhe<br />
a Fé, nosso maior tesouro.<br />
(Trechos da matéria publicada em “O Legionário”<br />
de 11/10/31. Título e subtítulos nossos.)<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Depois de Zurbaran e do<br />
Beato Fra Angélico, o<br />
pintor cujas obras mais<br />
me impressionaram foi Claude Lorrain.<br />
Artista do século XVII, seu estilo<br />
é diáfano, encantador, que revela<br />
uma habilidade única de reproduzir<br />
em suas telas aquilo sem o que —<br />
no dizer de um poeta francês — as<br />
coisas não seriam senão o que elas<br />
são: a luz do sol.<br />
Lorrain é o pintor do sol. Seus<br />
quadros são fantasias em torno do<br />
astro diurno, que ele se compraz em<br />
representar na sua beleza plena, esplendorosa<br />
e régia, projetando a feeria<br />
dessa luz sobre naturezas e ce-<br />
nários os quais, sob a ação dela, parecem<br />
se transformar em imensas e<br />
suntuosas cortes.<br />
Em geral, os temas de suas pinturas<br />
são frutos de uma privilegiada<br />
imaginação, misturando-se neles elementos<br />
antagônicos e quase se diria<br />
contraditórios. Por exemplo, um porto<br />
em que as águas do mar penetram<br />
por um lado da cidade e formam<br />
uma espécie de enorme laguna, cercada<br />
de magníficos palácios, que ombreiam<br />
com ruínas de construções<br />
romanas. As ondas banham prestigiosas<br />
escadarias de mármores policromados,<br />
ou investem contra uma<br />
torre medieval que está posta naquele<br />
panorama como a proa de um<br />
navio apontada para o amplo oceano.<br />
Nesse porto estão ancoradas várias<br />
embarcações, grandes e pequenas,<br />
a bordo das quais se vêem camponeses<br />
tocando e dançando uma<br />
tarantela. São pessoas do fundo do<br />
país, de regiões onde não há mar, e<br />
que ele coloca ali, em tombadilhos<br />
enfeitados, junto a marinheiros e estivadores<br />
que desembarcam mercadorias.<br />
Tudo isso é irreal, imaginário, e<br />
chega a ser inconciliável: escadas de<br />
mármore banhadas pela água do<br />
mar (que corrói essa pedra facil-<br />
32
mente), ruínas romanas ao lado de<br />
torres medievais, próximas a palácios<br />
clássicos, camponeses fazendo<br />
festas a bordo de navios, personagens<br />
bíblicos ao lado de homens do<br />
século XVII... Ele toma esses elementos<br />
díspares e pinta quadros de<br />
realidades que nunca existiram.<br />
Pergunta-se, então, qual o mérito<br />
dessa concepção artística. A resposta,<br />
a meu ver, é que tudo isto convém<br />
ao pintor para iluminar por um<br />
certo tipo de luz de sol, também ela<br />
mirífica e transcendente da realidade.<br />
Ele cria coisas em ordem a<br />
um sol igualmente criado pelo seu<br />
talento. Ao término de uma fabulosa<br />
tela, Claude Lorrain terá composto<br />
uma situação natural que ele<br />
gostaria muito fosse verdade, e cuja<br />
existência encheria a sua alma. Não<br />
se trata, pois, de uma pura fantasia,<br />
mas de uma criação. Ele gerou tudo<br />
aquilo para formar um mundo dourado<br />
e irreal, que atrai profundamente<br />
o senso artístico de incontáveis<br />
pessoas apreciadoras da arte<br />
pictórica.<br />
Algum espírito<br />
menos afeito a<br />
idealizações poderia<br />
objetar contra<br />
o valor e a admiração<br />
que se tributam<br />
aos quadros<br />
de Lorrain, porque<br />
não se deve<br />
gostar do que é<br />
imaginário. E nas<br />
pinturas dele tudo<br />
— incluindo a<br />
própria luz do sol,<br />
sans lequel les choses<br />
ne seraient que<br />
ce qu’elles sont —<br />
é imaginário e, por<br />
conseguinte, anorgânico.<br />
Esta é uma objeção<br />
perfeitamente<br />
estúpida, porque<br />
faz parte da<br />
organicidade do<br />
homem ter uma certa saudade do<br />
Paraíso, perdido após o pecado de<br />
nossos primeiros pais. E ter, portanto,<br />
uma necessidade equilibrada,<br />
sem descabelamentos, de imaginar<br />
coisas que ele sabe não existirem<br />
nesta terra de exílio, mas que podiam<br />
ter existido no Éden, e que<br />
poderão existir no Paraíso Celeste.<br />
Assim, longe de merecerem nosso<br />
desprezo, os quadros de Claude<br />
Lorrain são quase uma pré-visão do<br />
Céu Empíreo.<br />
* * *<br />
Há, todavia, nas telas de Lorrain<br />
uma simbologia de algo ainda mais<br />
elevado.<br />
Quando consideramos o conjunto<br />
de sua obra, podemos perceber<br />
que sua especialidade é pintar muros<br />
velhos, leprosos, escalavrados,<br />
que perderam pedaços de reboco e<br />
os tijolos se tornaram aparentes, sobre<br />
os quais, porém, bate um sol<br />
magnífico. E o muro, feíssimo, fica<br />
agradável de ver e contemplar.<br />
Aqueles fabulosos raios solares, ao<br />
conferir à parede derruída algo do<br />
esplendor e da vida deles, fazem<br />
com que ela se torne linda, realçamlhe<br />
o valor, o significado e o ideal.<br />
Quer dizer, o muro alquebrado,<br />
que enfrentou tempestades, suportou<br />
vilipêndios, agüentou terremotos<br />
e continua sempre de pé, sob a<br />
ação de um luz feérica, adquire um<br />
ar de velho granadeiro da guarda<br />
que lutou em todas as batalhas, e<br />
agora serve como sentinela do lado<br />
de fora do palácio real, e cuja beleza<br />
consiste em ter sido surrado pelos<br />
acontecimentos e ter resistido. É o<br />
herói de todas as intempéries e de<br />
todos os combates. Tornou-se um<br />
homem feio, enrugado, o bigode<br />
branco manchado de tabaco, a face<br />
e o corpo marcados de cicatrizes. É<br />
rude e pouco educado. Porém, ao<br />
vê-lo... prestamos-lhe continência.<br />
Reverenciamos o sol de seu passado,<br />
de suas dores e de seus sofrimentos,<br />
que incide sobre ele, levanos<br />
a interpretá-lo, e arranca de<br />
nossos lábios a exclamação: Que<br />
maravilha!<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Do fundo do muro emerge então,<br />
pelo toque do sol de Lorrain, o que<br />
já não aparecia, mas nele estava, e<br />
que é o “arqui-ele”.<br />
Ora, assim é também a ação da<br />
graça divina. Ela é, digamos, a tinta<br />
celestial que Nosso Senhor utiliza,<br />
como se fosse um infinito Claude<br />
Lorrain da criação. O genial talento<br />
do pintor francês não foi senão pálida<br />
e pequena representação das perfeições<br />
incomensuráveis de Deus no<br />
que diz respeito a esta forma de talento.<br />
Visto à luz da graça concedida<br />
por Deus, tudo o que é árido e difícil<br />
se torna belo. A perda desse modo<br />
de ver as coisas pode ocorrer por<br />
culpa nossa, porque cedemos aos<br />
nossos egoísmos, caprichos e manias.<br />
Ou por decisão de Deus que,<br />
nos seus insondáveis desígnios, deseja<br />
nos provar: depois de nos cumular<br />
com seus dons, de nos favorecer<br />
com maravilhosas situações à la<br />
pintura de Claude Lorrain, permite<br />
que tudo se apague de repente.<br />
Agindo assim, Nosso Senhor como<br />
que nos pergunta: “Meu filho,<br />
considerando a formosura da graça,<br />
tu, por assim dizer, me viste e compreendeste<br />
o que é a maravilha das<br />
coisas. Agora Eu vou te provar. Sabes<br />
me ser fiel nas horas em que Eu<br />
não te visito pela graça sensível?<br />
Nas horas em que anoitece, tu continuas<br />
a crer no sol? Ou és daqueles<br />
que pensam ter-se tornado cegos<br />
porque escureceu? Ou seja, porque<br />
há aridez, tu pensas que as consolações<br />
não voltarão jamais?<br />
“Quero conhecer tuas disposições,<br />
para saber se tu me és grato. Se o<br />
fores, dir-me-ás: Nas sombras da<br />
morte, Senhor, acreditarei em Vós como<br />
se estivesse na plenitude da vida,<br />
porque sei que é verdade tudo o que vi<br />
antes da escuridão.”<br />
Saibamos ter esse reconhecimento<br />
para com o Sol da Justiça, cujos<br />
raios são graças sob cuja ação o que<br />
é feio e velho torna-se belo e admirável.<br />
Compreendamos que, assim como<br />
nos quadros de Claude Lorrain<br />
não é ilusão o aspecto fabuloso que<br />
o muro derruído assume sob a luz<br />
de um sol magnífico que lhe penetra<br />
na superfície e faz reviver a grandeza<br />
dos primeiros dias, assim também<br />
nesta nossa vida mortal não<br />
são ilusões as coisas sobre as quais<br />
incidem as cintilações da graça divina,<br />
que nos faz ver tudo o que elas<br />
têm de ensolarável, de maravilhoso<br />
e de arqui-verdadeiro. v<br />
34
35
Como filhos carregados no colo...<br />
Mãe de todos os homens, Nossa<br />
Senhora deseja que cada um de<br />
nós seja, em relação a Ela, como<br />
o filho carregado no colo, que<br />
Lhe pede toda espécie de coisas<br />
e d’Ela recebe muito mais do<br />
que esperava, e até o que não<br />
sabia solicitar a essa tão<br />
dadivosa Mãe.<br />
A condição de tal benevolência,<br />
porém, é rogar-Lhe com essa<br />
intimidade especial e certeza de<br />
sermos atendidos, como se<br />
fôssemos crianças. Tornamo-nos<br />
então objetos de uma multidão<br />
de auxílios da Santíssima<br />
Virgem, os quais, mais do que<br />
aos grandes, compraz-Lhe dar<br />
aos pequenos.<br />
Por isso as almas mais<br />
majestosas, fortes e<br />
extraordinárias da Igreja,<br />
sempre que falaram de Nossa<br />
Senhora e a Ela se dirigiram,<br />
fizeram-no nesse diapasão. Isto<br />
é, tendo em mente ser Ela a<br />
Mãe que está disposta a tratar<br />
a cada um de nós com a<br />
bondade, a solicitude, o sorriso e<br />
a compreensão com que se trata<br />
um menino de colo...