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Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>157</strong> Abril de 2011<br />
Inteiramente justa,<br />
extremamente bondosa...
Praça de São Pedro, Roma.<br />
Allain Patrick<br />
C<br />
ada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes<br />
às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios<br />
da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos<br />
em determinada celebração.<br />
Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o<br />
“mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.<br />
No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo,<br />
a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós<br />
fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.<br />
De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para<br />
todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie<br />
de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.<br />
(Extraído de conferência de 7/4/1966)<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>157</strong> Abril de 2011<br />
Ano XIV - Nº <strong>157</strong> Abril de 2011<br />
Inteiramente justa,<br />
extremamente bondosa...<br />
Na capa, uma das<br />
últimas fotos de<br />
Dona Lucilia, um mês<br />
antes de sua morte.<br />
Foto: J. Dias.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
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Editorial<br />
4 Qual radiosa aurora<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 17 de Abril de 1913:<br />
De volta ao Brasil<br />
Dona Lucilia<br />
6 Inteiramente justa,<br />
extramamente bondosa…<br />
Hagiografia<br />
10 Contemplação: fruto da penitência<br />
e do desapego!<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
14 Despretensão: ensinamento<br />
e exemplo divinos<br />
Calendário dos Santos<br />
18 Santos de Abril<br />
“Revolução e Contra-Revolução”<br />
20 O perigo começa com a vitória! - II<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 101,00<br />
Colaborador .......... R$ 130,00<br />
Propulsor ............. R$ 260,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 430,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 13,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
24 O mistério da vida…<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 A Quarta-Feira de Cinzas<br />
em seu nascedouro<br />
Última página<br />
36 O ápice da “história dos olhares”<br />
3
Editorial<br />
Qual radiosa aurora<br />
Aregularidade com que se sucedem no calendário da Igreja os vários ciclos do ano litúrgico,<br />
imperturbáveis em sua sucessão — por mais que os acontecimentos da história humana variem<br />
em torno deles, e os altos e baixos da política e das finanças continuem sua corrida desordenada<br />
—, é bem uma afirmação da celestial majestade da Igreja, sobranceira ao vaivém caprichoso<br />
das paixões humanas.<br />
Sobranceira, não porém indiferente. Quando os dias dolorosos da Semana Santa transcorrem em<br />
quadras históricas tranquilas e felizes, a Igreja, como Mãe solícita, se serve deles para reavivar em<br />
seus filhos a abnegação, o senso do sofrimento heroico, o espírito de renúncia à trivialidade quotidiana<br />
e o inteiro devotamento a ideais dignos de darem um sentido cristão à vida humana.<br />
Mas a Igreja não é apenas Mãe quando nos ensina a grande missão austera do sofrimento. Ela<br />
também é Mãe quando, nos extremos de dor e aniquilação, faz brilhar aos nossos olhos a luz da esperança<br />
cristã, abrindo diante de nós os horizontes serenos que a virtude da confiança põe aos olhos de<br />
todos os verdadeiros filhos de Deus.<br />
Assim, a Santa Igreja se serve das alegrias vibrantes e castíssimas da Páscoa, para fazer brilhar aos<br />
nossos olhos a certeza triunfal de que Deus é o supremo Senhor de todas as coisas; de que Cristo é o<br />
Rei da glória, que venceu a morte e esmagou o demônio.<br />
* * *<br />
A alegria e a dor da alma resultam necessariamente do amor. O homem se alegra quando tem o<br />
que ama, e se entristece quando aquilo que ama lhe falta.<br />
O homem contemporâneo deita todo o seu amor em coisas de superfície, e por isso só os acontecimentos<br />
de superfície o emocionam. Assim, impressionam-no, sobretudo, suas desgraças pessoais e superficiais:<br />
a saúde abalada, a situação financeira vacilante, os amigos ingratos, as promoções que tardam.<br />
Porém, tudo isto é secundário para o verdadeiro católico que cuida antes de tudo da maior glória<br />
de Deus e, portanto, da salvação de sua própria alma, e da exaltação da Igreja.<br />
* * *<br />
Quando Nosso Senhor Jesus Cristo morreu, os judeus selaram sua sepultura, guarneceram-na<br />
com soldados, julgaram que estava tudo terminado.<br />
Em sua impiedade, eles negavam que Nosso Senhor fosse Filho de Deus, que fosse capaz de destruir<br />
a prisão sepulcral onde jazia, que, sobretudo, fosse capaz de passar da morte à vida. Ora, tudo<br />
isto se deu. Nosso Senhor ressuscitou sem qualquer auxílio humano, e sob seu império a pesada pedra<br />
da sepultura deslocou-se leve e rapidamente, como uma nuvem. E Ele ressurgiu.<br />
Assim também a Igreja imortal pode ser aparentemente abandonada, enxovalhada, perseguida.<br />
Ela pode jazer, derrotada na aparência, sob o peso sepulcral das mais pesadas provações. Ela tem em<br />
si mesma uma força interior e sobrenatural que lhe vem de Deus, e que lhe assegura uma vitória tanto<br />
mais esplêndida quanto mais inesperada e completa.<br />
Essa, a grande lição do dia de hoje, o grande consolo para os homens retos que amam acima de tudo<br />
a Igreja de Deus:<br />
Cristo morreu e ressuscitou!<br />
A Igreja imortal ressurge de suas provações, gloriosa como Cristo, na radiosa aurora de sua Ressurreição.<br />
(Extraído d’O Legionário de 1/4/1945)<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
17 de Abril de 1913<br />
De volta ao Brasil<br />
Após dez meses de viagem pela Europa 1 ,<br />
sob um radioso e cálido sol, o jovem<br />
<strong>Plinio</strong> retornava ao Brasil, acompanhado<br />
por Dona Lucilia e sua irmã, Rosée.<br />
A viagem de volta havia sido empreendida no<br />
transatlântico italiano Duca d’Aosta, partindo de<br />
Gênova em direção a Santos, no litoral paulista.<br />
Em diversas circunstâncias, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> narrou<br />
as impressões que tivera nessa ocasião:<br />
Lembro-me confusamente de uma cena,<br />
ao embarcar no transatlântico italiano Duca<br />
d’Aosta: o navio estava parado no porto, com<br />
umas rodelas abertas, das quais jorrava água em<br />
quantidade. Tive a impressão de que haveria<br />
alguma máquina funcionando para fazer sair<br />
aquela água às torrentes, e olhava pensando:<br />
“Está vendo? Ali está essa água que sai de<br />
dentro do navio e vai escorrendo. Assim é a<br />
vida! Os fatos vão saindo de dentro do possível<br />
para se tornarem reais e depois se perdem no<br />
que já passou, como essa água desaparece no<br />
mar. É bonito ver como isso se sucede. E o ruído<br />
que faz essa água caindo no mar é como o rumor<br />
dos fatos da vida, quando acabam de acontecer<br />
e se perdem no passado. É uma água que vai, vai<br />
e de repente acaba. Assim é a vida... Que bonito<br />
esse jorro! Como é bom que comece, como é<br />
bom que dure, como é bom que acabe!”<br />
Afinal aportamos em<br />
Santos, terminando assim<br />
a viagem, o que parecia um<br />
acontecimento sensacional.<br />
Chegando à casa após<br />
longo período de ausência,<br />
era natural que algumas<br />
coisas causassem surpresa a<br />
um menino de apenas quatro<br />
anos…<br />
Eu possuía um brinquedo<br />
comum: era um cavalinho de<br />
pano, posto sobre rodinhas<br />
com eixo de metal e com uma<br />
pequena fita pela qual eu<br />
podia puxá-lo. Para os meus<br />
braços, era um cavalo muito grande e eu tinha,<br />
inclusive, certa dificuldade em movimentá-lo.<br />
Então, chamava-o de “Enorme”.<br />
Durante a viagem, de vez em quando eu<br />
falava sobre o “Enorme”, e, quando voltamos,<br />
eu disse:<br />
— Quero o meu “Enorme”!<br />
Lembro-me como se fosse hoje: levaram-me<br />
para o quarto do andar térreo da casa, no qual<br />
existia um armário trancado, onde haviam sido<br />
guardados os brinquedos das crianças da família.<br />
Abriram-no e tiraram o “Enorme”. A minha<br />
primeira reação foi de exclamar:<br />
— Esse não é o “Enorme”!<br />
Duas ou três pessoas em torno de mim deram<br />
risada, afirmando ser o “Enorme”. E, de fato,<br />
era terrivelmente parecido...<br />
Mas para mim era muito inferior! Qual a<br />
razão?<br />
Eu tinha crescido e o “Enorme” tinha deixado<br />
de ser enorme...<br />
(Extraído da obra “Notas Autobiográficas”<br />
de <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira)<br />
1) 10/6/1912 – 17/4/1913.<br />
Transatlântico Duca d’Aosta.<br />
5
Dona Lucilia<br />
J. Dias<br />
Dona Lucilia um mês<br />
antes de sua morte.<br />
6
Inteiramente<br />
justa,<br />
extramamente<br />
bondosa…<br />
Mais do que os fatos da vida quotidiana,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> analisava em Dona Lucilia a<br />
sucessão de estados de espírito. Às vezes, em<br />
pessoas censuráveis ela encontrava qualidades<br />
e delas se tornava advogada. Em seu senso de<br />
justiça, a bondade vinha como acréscimo.<br />
Avida de Dona Lucilia se<br />
passava mais numa sucessão<br />
de estados de espírito<br />
do que num conjunto de ações. Ela<br />
levou, única e exclusivamente, a vida<br />
de uma dona de casa de seu tempo:<br />
pequenas obrigações sociais e domésticas.<br />
Embora possuísse uma constituição<br />
física forte, mamãe era muito<br />
achacada de doenças, indisposições.<br />
Ela viveu 92 anos, mas sempre enferma<br />
e obrigada, portanto, aos cuidados,<br />
limitações e regimes de uma<br />
pessoa doente. É dentro disso que a<br />
alma dela se manifestava.<br />
Lógica e bondade<br />
Ela era uma pessoa que realizava,<br />
com precisão, exatidão, a aparente<br />
contradição de ser, ao mesmo<br />
tempo, muito bondosa e muito lógica.<br />
Em geral, se entende como bondade<br />
algo que entra, não no antilógico,<br />
mas, pelo menos, no não lógico.<br />
Por exemplo, a oração em favor<br />
do adversário, à primeira vista, não<br />
parece lógica.<br />
Uma pessoa “ploc-ploc” 1 poderia<br />
fazer o seguinte raciocínio: “Tal indivíduo<br />
é meu inimigo, quer liquidar-me,<br />
e está passando mal à morte.<br />
Se eu pedir a Deus para ele sarar,<br />
ele fica curado e depois me mete<br />
uma porretada na cabeça. Que<br />
sentido tem isso? Não digo que vá<br />
pedir para ele morrer — é o impulso<br />
de muitos —, mas não rasgarei<br />
minha túnica devido à tristeza, se<br />
ele falecer; tampouco vou rezar para<br />
ele viver.”<br />
7
Dona Lucilia<br />
M. Shinoda<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no fim da década de 1970.<br />
Esse é um pensamento que Dona<br />
Lucilia não aprovaria.<br />
O fio do pensamento parece muito<br />
lógico, mas poderíamos perguntar<br />
a essa suposta pessoa: Por que<br />
você coloca limites à bondade de<br />
Deus? Ele não pode sarar de alma<br />
e corpo seu inimigo? Ou permitir,<br />
por exemplo, que ele venha em cima<br />
de você, para lhe fazer sofrer um<br />
tanto por amor a Deus? Assim você<br />
não acabaria conquistando uma alma<br />
para Nosso Senhor? No balanço<br />
estreito e vulgar de seus interesses<br />
pessoais, sua atitude é bem lógica,<br />
porém a premissa não está errada?<br />
Existe só você? Nas relações<br />
entre você e seu inimigo, não existe<br />
Deus? Ou é o Criador que existe<br />
principalmente, e ele e você são<br />
duas meras criaturas? Sendo assim,<br />
procure o interesse de Deus!<br />
Dona Lucilia era<br />
uma pessoa que<br />
realizava, com<br />
precisão, exatidão, a<br />
aparente contradição<br />
de ser, ao mesmo<br />
tempo, muito bondosa<br />
e muito lógica.<br />
Senso de observação...<br />
A lógica de Dona Lucilia coincidia<br />
com um senso de observação<br />
curioso, o qual não fazia dela um<br />
Sherlock Holmes 2 . Mamãe muitas<br />
vezes se iludia a respeito das pesso-<br />
as. Mas, às vezes ela pegava o lado<br />
ruim de um indivíduo com um discernimento<br />
espantoso, quando ele<br />
não tinha dado nenhuma manifestação<br />
disso.<br />
Lembro-me de um amigo a respeito<br />
do qual ela me desaconselhou. Perguntei-lhe:<br />
“Mas, por quê?” Ela disse:<br />
“Pelo jeito de ele pegar no garfo...”<br />
Eu não dizia nem sim, nem não,<br />
porque não queria que ela ficasse<br />
alarmada. Mas havia necessidade de<br />
apostolado com essa pessoa chegada<br />
a mim, e eu, portanto, a suportava<br />
de olho vivo. E percebia na prática<br />
de todos os dias como mamãe tinha<br />
razão.<br />
Essa pessoa tem quase minha idade,<br />
passou a vida no teatro, ou seja,<br />
“teatrando” para o mundo, e já vai<br />
saindo para o outro lado do palco;<br />
egoísta, egoísta...<br />
8
...não só para<br />
perceber defeitos, mas<br />
também qualidades<br />
Dona Lucilia revelava seu senso,<br />
não só em pegar defeitos,<br />
mas também, às vezes nas pessoas<br />
mais censuráveis, algumas<br />
qualidades e se transformava<br />
em advogada delas.<br />
Não eram qualidades<br />
comuns, que se alega comumente,<br />
“Ele é bonzinho”,<br />
mas do seguinte<br />
gênero:<br />
Eu, por exemplo,<br />
“truculentizava” contra<br />
os defeitos de alguém.<br />
Raras vezes<br />
ela me dizia: “Você<br />
tem razão!”<br />
Mas, quando havia<br />
cabimento, ela afirmava:<br />
“Filhão, é verdade!<br />
Mas, você note<br />
tal lado: apesar de tudo,<br />
ele é, por exemplo,<br />
muito franco. Muita<br />
gente, que não tem esses<br />
defeitos, é mais falsa<br />
do que ele. E essa franqueza<br />
tem seu valor. Você,<br />
quando falar de todos<br />
os defeitos dele, lembre-se<br />
de dizer também que é muito<br />
franco.”<br />
E nisso ela manifestava seu<br />
senso de justiça. Nunca tomava<br />
uma atitude apaixonada, por onde<br />
se pudesse dizer que ela foi injusta<br />
com outrem. Absolutamente não.<br />
Sempre justa, justa, justa.<br />
E a bondade vinha como acréscimo.<br />
Quer dizer, ainda que uma pessoa<br />
não prestasse para nada, fosse<br />
muito à toa, mamãe rezava por ela,<br />
suportava-a, enfim, fazia o bem que<br />
coubesse. Esse é o papel da misericórdia.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 4/2/1981)<br />
1) Expressão onomatopeica criada por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para designar o defeito de<br />
certas pessoas que, desprovidas de intuição,<br />
minoram a importância dos<br />
símbolos e negam o valor da ação de<br />
presença. Querem tudo explicar por<br />
raciocínios desenvolvidos de modo<br />
lento e pesado, à maneira de um pa-<br />
Pintura a óleo<br />
representando<br />
Dona Lucilia aos<br />
92 anos de idade.<br />
ralelepípedo que, ao ser girado sobre<br />
o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.<br />
2) Sherlock Holmes: Detetive fictício,<br />
famoso por seu astuto raciocínio lógico,<br />
sua capacidade de assumir qualquer<br />
disfarce, e seu uso da ciência forense<br />
com habilidades para resolver<br />
casos difíceis.<br />
9
Hagiografia<br />
Contemplação: fruto da<br />
penitência e do desapego!<br />
Estando profundamente arrependida, Santa Maria Madalena<br />
perdeu o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de<br />
pecado, e voou à contemplação.<br />
Meditando na vida da Santa Penitente, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> põe-se a seguinte<br />
interrogação: existirá alguma correlação entre espírito de contemplação,<br />
espírito de arrependimento, e desprendimento das coisas desta Terra?<br />
Fotos: G. Kralj; S. Hollmann; F. Lecaros.<br />
Santa Maria Madalena<br />
- Metropolitan Museum<br />
of Art, Nova York.<br />
Santa Maria Madalena mereceu<br />
ser a primeira pessoa a contemplar<br />
o Salvador ressuscitado.<br />
No famoso episódio do banquete,<br />
em que Maria Madalena — tudo leva<br />
a crer que dela se tratava — ungiu<br />
os pés de Nosso Senhor, há aspectos<br />
colaterais os quais nos fornecem algumas<br />
perspectivas da alma e da vida<br />
dela, bem como de sua posição no<br />
firmamento da Igreja, que seria o caso<br />
de comentarmos.<br />
Contemplação e<br />
penitência<br />
Ela era irmã de Lázaro, o qual, segundo<br />
a tradição, pertencia à alta sociedade<br />
porque era um homem muito rico.<br />
Portanto, Lázaro e suas duas irmãs<br />
eram pessoas de alta categoria, mas<br />
Maria Madalena havia decaído muito e<br />
se tornara uma pecadora pública.<br />
Depois do seu arrependimento,<br />
Santa Maria Madalena passou a representar<br />
duas coisas que se tornaram<br />
claras: de um lado a contemplação,<br />
e de outro a penitência.<br />
10
Enquanto Santa<br />
Maria Madalena<br />
representava a<br />
renúncia aos<br />
bens da Terra,<br />
Judas, como<br />
ladrão, traidor<br />
— e traidor por<br />
dinheiro —,<br />
simbolizava o<br />
apego aos bens<br />
deste mundo.<br />
Ela se diferenciou de Marta, no<br />
célebre episódio em que Nosso Senhor<br />
disse a esta última — que censurava<br />
Madalena porque não estava<br />
se ocupando das coisas da casa, mas<br />
se limitava a olhar para Ele e ouvi-<br />
-Lo —: “Marta, Marta, Maria escolheu<br />
a melhor parte, que não lhe será<br />
tirada!” 1<br />
A partir de então, Santa Maria<br />
Madalena representou o estado<br />
puramente contemplativo, destacado<br />
da vida ativa. E, pelo seu<br />
grande arrependimento, pela sua<br />
fidelidade ao pé da Cruz, e pelo<br />
fato de ter sido a primeira que teve<br />
notícia da ressurreição do Redentor,<br />
ela passou a simbolizar<br />
não apenas a contemplação, mas<br />
a penitência, a penitência na sua<br />
glória, no estado do maior perdão<br />
e da maior intimidade com Nosso<br />
Senhor.<br />
Com o exemplo da vida dela, e de<br />
outros santos, alguns teólogos pretenderam<br />
que o estado de penitência<br />
séria, profunda, é mais bonito que o<br />
estado de inocência.<br />
À esquerda, Jesus perdoa<br />
Santa Maria Madalena (Catedral<br />
de Salamanca, Espanha); à<br />
direita, Judas vende Nosso<br />
Senhor (Capela Notre Dame des<br />
Fontaines - La Brigue, França).<br />
Judas, o oposto de Santa<br />
Maria Madalena<br />
Em terceiro lugar, ela representou<br />
também a afirmação dos direitos<br />
da inocência e dos direitos de Nosso<br />
Senhor.<br />
Em que sentido?<br />
Todos se lembram deste fato: estando<br />
o Divino Salvador em Betânia,<br />
foi oferecida uma ceia em sua honra.<br />
Madalena entrou e, quebrando um<br />
vidro de perfume, começou a ungir<br />
os pés de Nosso Senhor. Judas censurou-a<br />
a esse respeito, mas o Redentor<br />
justificou a atitude dela. 2<br />
Vemos aí a penitência, juntamente<br />
com a contemplação, numa espécie<br />
de irredutível oposição ao espírito<br />
sem nenhum arrependimento de<br />
Judas. Este, em vez de arrepender-<br />
-se, caiu no desespero, como mostra<br />
o ato pelo qual ele se enforcou na figueira.<br />
Enquanto ela, como contemplativa<br />
e penitente, representava a renúncia<br />
aos bens da Terra, Judas, como<br />
ladrão, traidor — e traidor por<br />
dinheiro —, simbolizava o apego aos<br />
bens deste mundo.<br />
Dois itinerários<br />
que se cruzaram<br />
O que pode ter levado esse miserável<br />
a ter tanto apego ao dinheiro?<br />
Um apego que naturalmente<br />
chegou ao ódio ao Redentor, porque<br />
ninguém faz uma traição como<br />
aquela, apenas por lucro, sem<br />
ódio; no fundo, um ódio que domina<br />
o próprio espírito de lucro. A<br />
roubar as esmolas coletadas para os<br />
pobres? Ele que era o defensor dos<br />
direitos dos pobres, na hora em que<br />
se verteu o perfume nos pés de Divino<br />
Mestre... Ao desejo de se tornar<br />
rico, para ter uma carreira colateral<br />
à de apóstolo, e ser um homem<br />
considerado importante naquela sociedade<br />
de Jerusalém, julgando que<br />
ele perdia algo de sua carreira humana<br />
seguindo a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, a quem os fariseus desdenhavam<br />
como um homem sem<br />
importância?<br />
11
Hagiografia<br />
Jesus aparece a Santa Maria<br />
Madalena após a Ressurreição<br />
- Colmar, Alsácia.<br />
Judas fez tais coisas porque, quando<br />
ele estava junto a Nosso Senhor<br />
e ouvia as prédicas e assistia aos milagres<br />
do Divino Mestre, o seu espírito<br />
saía de lá e começava a pensar<br />
em Jerusalém, nas suas praças ou no<br />
Templo, onde ficavam os tão “finos,<br />
simpáticos e inteligentes” fariseus.<br />
Porque não se reteve nas contemplações<br />
do Redentor e começou a<br />
aspirar às coisas do mundo, ele caiu<br />
em pecado. E esse pecado, chegando<br />
até o extremo, o conduziu ao desespero:<br />
Judas então se enforcou na figueira<br />
maldita.<br />
Podemos admitir a possibilidade<br />
de que, em determinado momento,<br />
Judas esteve em estado de graça<br />
e Maria Madalena em pecado mortal.<br />
Ela saiu do pecado, para subir a<br />
um alto grau de virtude, e ele desceu<br />
da condição de apóstolo, para a qual<br />
tinha sido convidado por Nosso Senhor<br />
— houve, portanto, uma hora<br />
em que o Redentor não só o amou,<br />
mas o amou até o fim, e Judas amou<br />
a Nosso Senhor —, ele desceu desta<br />
condição, para ser o vendilhão do<br />
Salvador.<br />
Vemos assim quanto pode subir<br />
uma alma que está no lodo, e quanto<br />
pode cair uma alma chamada para<br />
o que há de melhor. Foram dois<br />
itinerários que se cruzaram; é<br />
uma coisa que nos arrepia,<br />
enche de terror.<br />
Santa Maria<br />
Madalena e<br />
Judas; espírito de<br />
Jacó e de Esaú<br />
A oposição das figuras de<br />
Santa Maria Madalena e de<br />
Judas torna-se tão flagrante que<br />
vai até ao Calvário e à Ressurreição.<br />
Ela estava ao pé da Cruz, e ele, o<br />
apóstolo maldito, o homem execrando,<br />
foi quem encaminhou Nosso Senhor<br />
para a Cruz. Santa Maria Madalena<br />
é a primeira a presenciar a Ressurreição,<br />
enquanto ele se enforca e<br />
sua alma cai porcamente no Inferno.<br />
As antíteses entre um e outro estado<br />
de alma são tremendas; os espíritos<br />
são diferentes. Compete-nos<br />
fazer uma análise dos traços desses<br />
espíritos.<br />
Que nexo há entre arrependimento,<br />
pura contemplação e desapego<br />
dos bens do mundo, de um lado; e<br />
de outro lado, impenitência final,<br />
desespero, apego aos bens do mundo,<br />
enchafurdamento na vida prática,<br />
ativa, como fazia Judas, homem<br />
que naturalmente roubava e fazia<br />
negócios desonestos? Que paralelismo<br />
existe entre uma coisa e outra?<br />
Há algum tempo tratei neste auditório<br />
a respeito de Esaú e de Jacó,<br />
e falei sobre o espírito de ambos.<br />
Santa Maria Madalena nos afigura<br />
como quem teve o espírito de<br />
Jacó. Quer dizer, espírito superior,<br />
voltado para as coisas elevadas, portanto<br />
para Deus, e indiferente às<br />
coisas materiais do mundo.<br />
Judas é o tipo do Esaú. Mais do que<br />
vender o direito de primogenitura por<br />
um prato de lentilhas, ele vende seu<br />
Salvador por trinta dinheiros, o que é<br />
muitíssimo pior. E não teve verdadeiro<br />
arrependimento, porque nele não havia<br />
mais nenhuma forma de virtude sobrenatural.<br />
Fracassou totalmente, caiu<br />
no desespero e suicidou-se.<br />
Contemplação<br />
nascida da penitência<br />
e do desapego<br />
Então, que nexo existe entre estas<br />
três coisas: o espírito de contemplação,<br />
o espírito de arrependimento, e o desprendimento<br />
das coisas desta Terra?<br />
É fácil compreender, pois uma pessoa,<br />
de qualquer um desses pontos<br />
parte para o outro. Estando profundamente<br />
arrependida, com arrependimento<br />
eficaz, ela perde o apego às coisas<br />
da Terra que lhe foram ocasião e<br />
motivo de pecado; e, tendo esse desapego,<br />
facilmente vai para a contemplação.<br />
A pura contemplação e a renúncia<br />
das coisas devido às quais ela pecou,<br />
levada ao último extremo, são o<br />
próprio da penitência. Quem pratica<br />
a verdadeira penitência não se limita<br />
a separar-se daquilo que o conduziu<br />
A morte de Judas - Museu São<br />
Pio V, Valência (Espanha).<br />
12
ao pecado; ele o execra. E por isso coloca,<br />
entre aquilo por onde pecou e si<br />
mesmo, a maior das distâncias.<br />
Para praticar essa penitência tão<br />
grande, convinha a Santa Maria Madalena<br />
separar-se completamente do<br />
mundo. E não ficar apenas no estado<br />
de uma vida contemplativa e ativa,<br />
mas levar vida puramente contemplativa,<br />
em que tudo foi abandonado,<br />
e qualquer forma indireta de<br />
contato com a matéria execrada devido<br />
ao pecado foi também cortada;<br />
assim, não lhe restava outra coisa senão<br />
a contemplação. Contemplação<br />
que, nascida da penitência e do desapego,<br />
faz compreender a excelência<br />
das coisas do Céu, e que todas as<br />
coisas da Terra foram feitas para as<br />
do Céu. Portanto, era justo e bom<br />
derramar unguento nos pés sacrossantos<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
mesmo quando houvesse pobre que<br />
precisasse de esmola.<br />
A pecadora arrependida<br />
amava Nossa Senhora,<br />
e o traidor A detestava<br />
Pranto sobre o corpo de Jesus - Museu Amedeo Lia, Itália.<br />
Todos os que têm tratado deste<br />
particular dizem o seguinte: Judas<br />
com certeza não tinha devoção<br />
a Nossa Senhora. Se tivesse para<br />
com a Santíssima Virgem um mínimo<br />
de instinto filial, de simpatia, de<br />
amor, quando ele caiu inteiramente<br />
em si iria procurar por Ela; e ter-<br />
-Lhe-ia pedido que arranjasse a situação<br />
dele. Mas Judas tinha antipatia<br />
por Nossa Senhora, e A detestava.<br />
O Evangelho diz, de modo taxativo,<br />
que o demônio tinha entrado nele.<br />
E o demônio afastava-o o quanto<br />
possível da Virgem Maria.<br />
Qual o resultado? Ele não se dirigiu<br />
Àquela que é o canal das graças,<br />
e isto ocasionou a sua perdição.<br />
São Pedro, depois de ter renegado<br />
Nosso Senhor, talvez tenha tido tentação<br />
de desespero. Mas é certo moralmente<br />
que ele procurou Nossa Senhora.<br />
Por isso, ele, que também tinha pecado<br />
muito, foi fiel, sendo o primeiro<br />
Papa da Santa Igreja Católica.<br />
Santa Maria Madalena sempre<br />
aparece fazendo parte do cortejo<br />
da Santíssima Virgem, intimamente<br />
unida a Ela em todos os momentos,<br />
sobretudo na hora régia da vida de<br />
Nossa Senhora, quando Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, com dores indizíveis,<br />
disse Consummatum est.<br />
Podemos imaginar Santa Maria<br />
Madalena junto a Nossa Senhora, na<br />
hora da piedade, quando a Mãe de<br />
Deus tinha Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
sobre seu colo.<br />
Naquele momento tremendo,<br />
Nossa Senhora ficou inteiramente<br />
abandonada: Nosso Senhor no sepulcro,<br />
o Colégio Apostólico vacilante,<br />
a cidade de Jerusalém entregue<br />
a terremotos, e os justos da Antiga<br />
Lei andando de um lado para o<br />
outro. A Santíssima Virgem, nessa<br />
situação tão pouco conhecida, estava<br />
completamente só.<br />
Tenho a impressão de que não<br />
Lhe faltou a assistência de Santa<br />
Maria Madalena, a qual estava junto<br />
d’Ela. E porque permaneceu junto à<br />
Mãe de Deus, ela recebeu um rosário<br />
de glórias, cada uma mais extraordinária<br />
do que outra.<br />
Quando vemos tudo isto, é impossível<br />
não estremecermos com a nossa<br />
própria fraqueza. Mas é impossível<br />
também que não nos sintamos<br />
concertados com este ponto: por<br />
mais fraco que o homem seja, desde<br />
que ele se apegue muito a Nossa Senhora,<br />
peça-Lhe muito por sua própria<br />
perseverança e para que Ela o<br />
ampare, nunca o abandone, ele encontra<br />
aí um ponto de firmeza, de<br />
solidez.<br />
A última das pecadoras aproximou-se<br />
de Nossa Senhora e se tornou<br />
uma penitente gloriosíssima.<br />
Um apóstolo, que era distante de<br />
Nossa Senhora e frio para com Ela,<br />
tornou-se o filho da maldição e da<br />
perdição, que Dante coloca no Inferno<br />
dentro da boca de Satanás, com<br />
as pernas para fora, o eternamente<br />
triturado. Enquanto que podemos<br />
imaginar, no Céu, Santa Maria Madalena<br />
posta bem perto do Sagrado<br />
Coração de Jesus e do Imaculado<br />
Coração de Maria, agradecendo os<br />
favores imerecidos de que ela foi repleta.<br />
v<br />
1) Lc 10,42.<br />
2) Cf. Jo 12,1-8.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 22/7/1965)<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Despretensão: ensi<br />
S. Hollmann<br />
Lava-pés - Catedral de Notre Dame, Paris.<br />
Formando os Apóstolos, Nosso Senhor deulhes<br />
o divino exemplo de despretensão:<br />
“Eu estou no meio de vós como aquele que<br />
serve.” Vindo ao mundo para remir o gênero<br />
humano, Jesus indicou que entre os católicos<br />
aquele que manda deve ser como quem serve;<br />
precisa ser o menor e mais apagado, deve<br />
sacrificar-se e imolar-se, a fim de que seu<br />
apostolado seja fecundo.<br />
Comentarei um trecho do<br />
Evangelho de São Lucas, muito<br />
propício para as comemorações<br />
da Paixão de Nosso Senhor.<br />
Ora, houve uma discussão entre<br />
eles sobre qual deles devia ser considerado<br />
o maior. Jesus, porém, lhes<br />
disse: “Os reis das nações dominam<br />
sobre elas, e os que exercem o poder<br />
se fazem chamar benfeitores. Entre<br />
vós, não deve ser assim. Pelo contrário,<br />
o maior entre vós seja como<br />
o mais novo, e o que manda, como<br />
quem está servindo. Afinal, quem é<br />
o maior: o que está à mesa ou o que<br />
está servindo? Não é aquele que está<br />
à mesa? Eu, porém, estou no meio<br />
de vós como aquele que serve. Vós<br />
sois aqueles que permaneceram comigo<br />
em minhas provações. Por isso,<br />
assim como o meu Pai me confiou o<br />
Reino, eu também vos confio o Reino.<br />
Havereis de comer e beber à minha<br />
mesa no meu Reino, e vos sentareis<br />
em tronos para julgar as doze<br />
tribos de Israel 1 .<br />
Desigualdade das<br />
classes sociais<br />
Trata-se de uma discussão entre<br />
os Apóstolos durante a Ceia. É<br />
curioso que, depois de Jesus lhes<br />
ter lavado os pés, instituído a Eucaristia,<br />
eles discutam entre si a respeito<br />
de quem seria o maior. Isso<br />
poderia ser chamado de pretensão,<br />
e tenho a impressão de que estaria<br />
perfeitamente bem designado.<br />
Na hora mais augusta, mais sagrada,<br />
quando eles deveriam se preparar<br />
para os maiores sacrifícios, sua<br />
preocupação era de quem seria o<br />
maior. É uma coisa completamente<br />
extrapolada, colocada fora da linha<br />
em que deveria estar.<br />
E Nosso Senhor lhes dá uma lição,<br />
dizendo-lhes incidentalmente<br />
uma série de coisas, que valeria a pena<br />
comentar. Afirma o Redentor:<br />
Afinal, quem é o maior: o que está<br />
à mesa ou o que está servindo? Não<br />
é aquele que está à mesa? Eu, porém,<br />
estou no meio de vós como aquele que<br />
serve.<br />
Vemos aqui uma afirmação<br />
muito interessante da legitimidade<br />
da desigualdade das classes sociais,<br />
feita por Nosso Senhor. Ele<br />
pergunta: o que é mais, ser servido<br />
ou servir? E responde: ser servido<br />
é mais do que servir; o servidor<br />
é menos do que aquele a quem<br />
ele serve.<br />
A autoridade existe para<br />
o bem dos subordinados<br />
Quer dizer, há uma desigualdade<br />
que vem da natureza das coisas.<br />
E essa desigualdade, que é um fato<br />
legítimo, o Divino Mestre toma como<br />
ponto de partida para exprimir<br />
a posição d’Ele: Jesus está no meio<br />
dos discípulos como aquele que veio<br />
servir.<br />
E aqui está a enorme lição de despretensão,<br />
como quem diz: “Se Eu<br />
Me coloco como servidor, como cada<br />
um de vós quer ser considerado<br />
o primeiro em relação aos outros?”<br />
Aqui está a coisa acachapante.<br />
É contrária ao espírito de Nosso<br />
Senhor, a toda a lição de sua vida, à<br />
doutrina que Ele veio ensinar, a preocupação<br />
de se fazer valer, de se colocar<br />
acima dos outros. Em sentido<br />
oposto, diz o Redentor, os que mandam<br />
devem ser como os que servem.<br />
Qual o significado disso? No caso<br />
d’Ele, o sentido é evidente: Jesus<br />
veio para remir, salvar os homens.<br />
Ele estava ali como pastor que<br />
salva suas ovelhas, portanto, para o<br />
bem deles. É a autoridade constituída<br />
para o benefício daqueles sobre<br />
os quais deve mandar. Daí vem<br />
14
namento e exemplo divinos<br />
S. Hollmann<br />
Última Ceia - Catedral de Notre Dame, Paris.<br />
a ideia de que a autoridade tem um<br />
fim dentro de uma ordem posta por<br />
Deus; ela precisa ser servidora desse<br />
fim, e por isso deve cercar-se de<br />
esplendor, de grandeza, de pompa.<br />
Nosso Senhor louvou a mulher que<br />
derramou unguento precioso sobre a<br />
cabeça d’Ele.<br />
Quem manda existe para o bem<br />
de seus subordinados. E aqueles que<br />
obedecem devem compreender e<br />
amar a autoridade e o princípio de<br />
autoridade, o qual é altamente benéfico.<br />
Megalice de certos<br />
soberanos da<br />
antiguidade<br />
Continua o Divino Salvador:<br />
Os reis das nações dominam sobre<br />
elas, e os que exercem o poder se<br />
fazem chamar benfeitores. Entre vós,<br />
não deve ser assim. Pelo contrário, o<br />
maior entre vós seja como o mais novo,<br />
e o que manda, como quem está<br />
servindo.<br />
A megalice 2 dos reis nas épocas<br />
anteriores a Nosso Senhor era uma<br />
coisa incrível. Os monarcas assírios,<br />
por exemplo, mandavam esculpir nas<br />
pedras dos rochedos os relatos dos<br />
seus feitos. E, para que não se apagassem,<br />
era colocada uma espécie de<br />
porcelana coberta com vidro, de maneira<br />
que eles tinham a esperança<br />
de que durante séculos ainda se lessem<br />
aquelas inscrições. E em muitos<br />
lugares ainda hoje podem ser lidas.<br />
Eles contavam coisas que eram evi-<br />
Aquele que manda<br />
existe para o bem de<br />
seus subordinados. E<br />
aqueles que obedecem<br />
devem compreender<br />
e amar a autoridade<br />
e o princípio de<br />
autoridade, o qual é<br />
altamente benéfico.<br />
dentemente falsas. Uma dessas inscrições,<br />
que eu li, narrava que, numa<br />
caçada, o rei tinha domado um leão,<br />
pegando-o pelas orelhas. Ou se tratava<br />
de um leão velho, que havia sido<br />
embebedado previamente pelos<br />
cortesãos, ou era simplesmente uma<br />
megalice sem nome!<br />
Aqueles imperadores romanos…<br />
quanta megalice! A veneração que<br />
faziam lhes prestar, o modo pelo<br />
qual dominavam e oprimiam os outros,<br />
dirigiam tudo pela força, e tantas<br />
outras coisas. Já tive ocasião de<br />
comentar neste auditório o respeito<br />
que se tributava aos faraós. Li aqui<br />
certa vez uma carta ao faraó, escrita<br />
por seu agente consular na Assíria,<br />
na qual dizia: “Eu, que sou indigno<br />
de beijar os vossos pés, indigno<br />
de beijar as patas de vossos cavalos;<br />
beijo o pó onde as patas de vossos<br />
cavalos se puseram.” Esse era o<br />
clima de megalice que os soberanos<br />
daquele tempo criavam.<br />
Nosso Senhor mostra que quem é<br />
católico deve servir. Embora sua autoridade<br />
seja muito grande e transpareça<br />
bastante, ele, como indivíduo,<br />
deve eclipsar-se por detrás de<br />
sua própria autoridade. O princípio,<br />
o cargo, a missão, o poder valem<br />
muito, o indivíduo vale pouco.<br />
Jorge V e Rainha Mary<br />
Certa vez li numa revista de História<br />
um fato a respeito de Jorge V,<br />
esposo da Rainha Mary. Todas as<br />
noites em que não recebiam visitas<br />
15
S. Miyazaki<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
no palácio, eles ficavam ouvindo vitrola,<br />
enquanto um secretário ia trocando<br />
os discos. Quando chegavam<br />
às dez horas em ponto, os monarcas<br />
se levantavam e o secretário colocava<br />
o disco com a música God save the<br />
King — Deus salve o Rei —; Jorge<br />
V tomava atitude de continência, e a<br />
Rainha ficava em posição de oração.<br />
Terminada a audição, iam dormir.<br />
E Rudyard Kipling 3 comentou<br />
que isso era a verdadeira humildade.<br />
Jorge V, detentor da autoridade,<br />
compreendia que o cargo, a dignidade,<br />
era grande, mas a pessoa dele,<br />
nada. E por isso tomava uma atitude<br />
de respeito diante de seu próprio<br />
cargo. Nesse ato, o Rei prestava<br />
continência à realeza; e a Rainha<br />
rezava, como uma fiel qualquer, por<br />
aquela que era a Rainha da Inglaterra.<br />
Vemos aqui o eclipsar-se da pessoa<br />
e o engrandecimento do cargo.<br />
Reis de França e<br />
Imperador Francisco José<br />
Nos tempos de monarquia cristã<br />
havia fatos nesse sentido. Quando os<br />
Reis de França saíam da Catedral de<br />
Reims, após serem coroados, o povo<br />
acreditava — e parece que algum<br />
fundamento havia nisso — que eles<br />
tinham o poder de curar a escrófula 4 .<br />
Então, filas de escrofulosos<br />
repugnantes<br />
ficavam à<br />
espera do novo<br />
Rei na saída<br />
da catedral,<br />
o qual tocava<br />
cada doente<br />
com a mão<br />
e dizia: “Le<br />
Roi te touche,<br />
Dieu te guérisse<br />
— O Rei te toca,<br />
Deus te cure.” Diziam<br />
os cronistas do<br />
tempo que muita gente<br />
ficava curada. Quer dizer,<br />
depois daquele esplendor<br />
máximo da realeza — a coroação<br />
de um Rei de França era uma<br />
cerimônia fabulosa, em que aparecia<br />
o cargo e não o homem —, o monarca<br />
condescendia em tocar com suas<br />
mãos régias os enfermos mais repelentes<br />
do seu reino, para curá-los,<br />
usando de um carisma que reconhecia<br />
não proceder dele. A frase “O<br />
Rei te toca, Deus te cure” queria dizer:<br />
“O Rei sabe que não cura nada,<br />
quem cura é Deus. O Rei é um mero<br />
instrumento para que a ação de<br />
Deus se exerça.”<br />
O exemplo de Nosso Senhor foi<br />
imitado nos tempos em que a Igre-<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência na década de 1980.<br />
G. Kralj<br />
Papa Bento XVI durante a<br />
cerimônia de lava-pés - Basílica<br />
de São João de Latrão, Roma.<br />
ja era unida ao Estado, em todas as<br />
monarquias europeias. Pouco antes<br />
da guerra de 1914-18, em que quase<br />
toda a Europa era monárquica,<br />
na Quinta-feira Santa os reis iam lavar<br />
os pés dos pobres. Francisco José,<br />
por exemplo, Imperador da Áustria-Hungria,<br />
lavava os pés dos pobres<br />
na Catedral de Viena. E um dos<br />
significados desse ato era este: uma<br />
é a dignidade do Imperador, e outra,<br />
a situação dele enquanto indivíduo,<br />
que devia estar sujeito a todas as humilhações,<br />
por mais que o cargo por<br />
ele ocupado fosse excelente.<br />
O Papa, “servidor dos<br />
servidores de Deus”<br />
Os próprios Papas realizavam o<br />
lava-pés. De um lado o Papa imita<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo — a dignidade<br />
pontifical, como a dignidade<br />
régia, deve tocar os pobres —; mas,<br />
de outro lado, esse ato significa a humilhação<br />
do homem, indicando o<br />
desaparecimento da pessoa, mesmo<br />
no esplendor do cargo e da função.<br />
Vemos assim, na tradição cristã, a<br />
aplicação do ensinamento do Divino<br />
16
Mestre. O Papa, chamando-se a si<br />
próprio “servidor dos servidores de<br />
Deus”, evoca uma reminiscência do<br />
que Nosso Senhor disse.<br />
Então, para praticarmos adequadamente<br />
a despretensão, devemos<br />
compreender que toda grandeza terrena<br />
deve existir — porque Deus quis<br />
que houvesse grandes na ordem espiritual,<br />
como na ordem temporal —,<br />
e precisa cercar-se do esplendor que<br />
lhe é próprio; mas o homem que está<br />
colocado nesse lugar de grandeza deve<br />
saber apagar-se. E aqueles que estão<br />
longe da grandeza, não possuem<br />
o cargo, não o devem invejar. Para o<br />
vaidoso, o que adianta ter um cargo<br />
se não pode se gabar dele? Nenhum<br />
cargo, nenhuma situação pessoal, na<br />
qual o indivíduo não possa consentir<br />
no envaidecimento, não lhe adianta<br />
de nada.<br />
São Vicente Ferrer:<br />
“A vaidade esvoaça<br />
em torno de mim,<br />
mas não entra”<br />
Lembro-me que li, numa biografia<br />
de São Vicente Ferrer, um fato<br />
muito curioso. Ao chegar a Barcelona<br />
— ele era grande missionário<br />
—, foi-lhe preparada uma recepção<br />
apoteótica. Todo o povo estava<br />
reunido, das janelas pendiam tapetes<br />
preciosos, ele caminhava debaixo<br />
do pálio, carregado pelos nobres da<br />
cidade. Durante o cortejo, alguém<br />
desconfiado perguntou-lhe: “Irmão<br />
Vicente, não estás vaidoso?”. Ele<br />
respondeu: “A vaidade esvoaça em<br />
torno de mim, mas não entra.”<br />
O que adianta para um homem<br />
receber todas essas homenagens, se<br />
ele é obrigado a resistir à tentação<br />
de se envaidecer? Não adianta nada.<br />
Porque, se é para ficar vaidoso, há<br />
um prazer terreno. Mas, se não pode<br />
se envaidecer, andar devagar no<br />
meio daquele povo aplaudindo, e ele<br />
resistindo contra a tentação, é muito<br />
cansativo. Quando termina, ele desabafa:<br />
“Uf! Acabou a tentação; ao<br />
menos estou trancado na minha cela,<br />
sozinho.” Esse é o verdadeiro dinamismo<br />
das coisas.<br />
Quem deseja aparecer<br />
não imita Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
O Papa, chamando-se<br />
a si próprio “servidor<br />
dos servidores de<br />
Deus”, evoca uma<br />
reminiscência do que<br />
Nosso Senhor disse.<br />
Precisamos ser muito cautelosos.<br />
Sempre que estamos apetecendo<br />
uma situação de mando, de destaque,<br />
de influência, devemos tomar<br />
cuidado, pois facilmente nos apegamos<br />
a isso para nos mostrarmos. E,<br />
se consentirmos ao desejo de aparecer,<br />
não estaremos imitando o exemplo<br />
de Nosso Senhor, o qual indicou<br />
que entre os católicos aquele que<br />
manda deve ser como quem serve;<br />
precisa ser o menor, apagado, sacrificado,<br />
e imolar-se.<br />
Alguém poderia fazer uma pergunta-objeção:<br />
“Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o<br />
senhor nos diz isso com uma ênfase,<br />
como se estivéssemos na iminência<br />
de sermos eleitos presidentes da república!<br />
Ora, acontece que nós, sendo<br />
membros do Movimento, não estamos<br />
em via de ser eleitos para nada<br />
e nem temos, ao menos de momento,<br />
um eleitorado muito grande.<br />
Então, por que o senhor nos fala essas<br />
coisas?”<br />
Digo isto porque não se trata apenas<br />
de cargos, mas de situações nas<br />
quais se exerce alguma influência<br />
numa roda de pessoas: querer ser o<br />
primeiro numa conversa, numa me-<br />
sa de refeições; aquele que conta a<br />
piada mais engraçada; conhece a última<br />
novidade ou comentário sobre<br />
nossa vida interna e o transmite para<br />
o pobre basbaque que ainda não<br />
sabe; está a par das coisas mais importantes;<br />
diz a coisa mais audaciosa<br />
em matéria de doutrina. Tudo isso<br />
são coisas que significam preeminência<br />
e dão apego. E disso tudo<br />
devemos mostrar-nos desapegados,<br />
lembrando o ensinamento e o exemplo<br />
de Nosso Senhor.<br />
A pretensão torna<br />
estéril o apostolado<br />
Quanto maior é a pretensão de<br />
uma pessoa, mais estéril é seu apostolado,<br />
porque só faz apostolado fecundo<br />
quem está unido ao Divino<br />
Mestre. Quem não está unido ao Redentor<br />
é como a vinha que está destacada<br />
do sarmento.<br />
Como podemos estar unidos a<br />
Ele, se temos pretensão? Não estou<br />
afirmando que sejamos todos uns<br />
poços de pretensão. Mas quero dizer<br />
que todo homem, na melhor das hipóteses,<br />
é como São Vicente Ferrer:<br />
está sempre com a pretensão esvoaçando<br />
em torno dele. Isso é evidente.<br />
Então, cuidado! Ainda que recebamos<br />
manifestações tão mais modestas<br />
do que as prestadas a São Vicente<br />
Ferrer, devemos lutar contra a<br />
pretensão, de todos os modos e com<br />
todo o empenho.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 1/4/1969)<br />
1) Lc 22, 24-30.<br />
2) Megalice: termo criado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
a fim de designar o vício de quem<br />
atribui a si mesmo qualidades que<br />
não possui ou então as exagera.<br />
3) Joseph Rudyard Kipling (1865-1936),<br />
escritor inglês.<br />
4) Infecção tuberculosa em gânglios linfáticos<br />
do pescoço.<br />
17
S. Hollmann<br />
Calendário dos Santos –––––––––<br />
São Francisco de Paula - Paróquia<br />
São Pedro Carmona, Sevilha.<br />
1. Beato Luís Pavoni, presbítero<br />
(†1848). Entregou-se à formação<br />
dos jovens pobres, dedicando-se à<br />
educação religiosa e artesã. Para isso<br />
fundou a Congregação dos Filhos<br />
de Maria Imaculada, em Bréscia,<br />
Itália.<br />
Beato José Bento Dusmet, Bispo<br />
(†1894). Monge e abade beneditino,<br />
foi Bispo de Catânia (Sicília).<br />
Entregou-se à instrução cristã<br />
do povo, com um cuidado especial<br />
ao clero.<br />
5. São Vicente Ferrer, presbítero<br />
(†1350).<br />
São Geraldo, Abade de Saint-<br />
-Sauve, França (†1095).<br />
6. São Pedro de Verona, presbítero<br />
e mártir (†1252). Nascido<br />
de pais maniqueus, ainda criança<br />
abraçou a Fé Católica. Na adolescência<br />
recebeu o hábito das mãos<br />
de São Domingos e consagrou-se<br />
a combater as heresias. Foi martirizado<br />
durante uma viagem a Milão,<br />
Itália.<br />
7. Santo Hermano José, sacerdote<br />
premonstratense (1152-1241).<br />
São João Batista de La Salle,<br />
presbítero (†1719).<br />
8. São Dionísio de Corinto, Bispo<br />
(†180).<br />
morreu em Luca, Itália, num Sábado<br />
Santo, aos vinte anos.<br />
12. São Júlio I, Papa. Eleito para<br />
o sólio pontifício em 6 de fevereiro<br />
de 337, defendeu valorosamente a<br />
Fé contra os arianos, e apoiou Santo<br />
Atanásio, Doutor da Igreja, na<br />
mesma missão (†352).<br />
13. São Martinho I, Papa (†656).<br />
Beata Ida de Val-des-Roses, virgem<br />
(†cerca de 1290). Religiosa do<br />
mosteiro cisterciense de Val-de-Roses,<br />
França.<br />
14. São Pedro González, (chamado<br />
São Telmo), sacerdote dominicano<br />
(†1246).<br />
15. Santo Ortário, abade (†séc.<br />
XI). Levou uma vida de austeridade<br />
e oração no mosteiro de Landelles<br />
(França), e foi assíduo em<br />
curar enfermos e ajudar os pobres.<br />
16. São Magno de Órcadas, mártir<br />
(†1116). Príncipe das Ilhas Órca-<br />
2. São Francisco de Paula, eremita<br />
(†1507).<br />
Santa Teodora, virgem e mártir<br />
(†307). Por haver pedido aos cristãos<br />
que estavam diante do tribunal,<br />
em Tiro (Líbano), que se lembrassem<br />
dela diante de Deus, foi<br />
presa, torturada e lançada ao mar.<br />
9. Santa Cacilda de Toledo, virgem<br />
(†1075). Nascida de família<br />
maometana, ajudou com misericórdia<br />
os cristãos presos, e depois, já<br />
cristã, viveu como ermitã em Burgos,<br />
Espanha.<br />
São Libório, Bispo de Le Mans,<br />
na Gália (atual França) (séc. IV).<br />
G. Kralj.<br />
3. IV Domingo da Quaresma.<br />
São Luís Scrosoppi, presbítero<br />
(†1884). Sacerdote da Congregação<br />
do Oratório, fundou em Udine, Itália,<br />
a Congregação das Irmãs da Divina<br />
Providência, para a educação<br />
cristã das jovens.<br />
4. Santo Isidoro, Bispo e Doutor<br />
da Igreja (†636).<br />
10. V Domingo da Quaresma.<br />
São Beda, o Jovem, monge<br />
(†cerca de 883).<br />
11. Santo Estanislau, Bispo e<br />
mártir (†1079).<br />
Santa Gemma Galgani, virgem<br />
(†1905). Mística italiana, insigne<br />
pela contemplação da Paixão e pelas<br />
dores suportadas com paciência,<br />
São João Batista de La Salle -<br />
Basílica de São Pedro, Roma.<br />
18
––––––––––––––––––– * Abril * ––––<br />
das, na Escócia, abraçou a Fé Católica<br />
e encontrando-se em dificuldades<br />
com o Rei da Noruega, por falsas<br />
acusações, foi assassinado traiçoeiramente.<br />
17. Domingo de Ramos e da Paixão<br />
do Senhor.<br />
Santos Pedro, diácono, e Hermógenes,<br />
seu servo, mártires em Melitene,<br />
na antiga Armênia.<br />
18. Beato José Moreau, presbítero<br />
e mártir (†1794). Durante a Revolução<br />
Francesa, foi guilhotinado<br />
em Anjou (França), numa Sexta-<br />
-Feira da Paixão, por ódio à Fé Católica.<br />
19. São Leão IX, Papa (†1054).<br />
Foi Bispo de Toul durante 25 anos<br />
e, como Papa, convocou vários sínodos<br />
para a reforma da vida do<br />
clero e a extirpação da simonia. Foi<br />
ajudado pelo futuro São Gregório<br />
VII.<br />
20. Santa Inês de Montepulciano,<br />
religiosa (†1317). Vestiu o hábito<br />
dominicano aos 9 anos, e aos<br />
15, contra sua vontade, foi eleita superiora<br />
das freiras de Proceno (Itália),<br />
fundando mais tarde um mosteiro<br />
com a regra de São Domingos.<br />
21. Santo Anselmo, Bispo e Doutor<br />
da Igreja, monge beneditino e<br />
Arcebispo da Cantuária (Inglaterra),<br />
defendeu a Igreja na luta das<br />
investiduras, sendo exilado duas vezes.<br />
Seus escritos exerceram grande<br />
influência em sua época e lhe granjearam<br />
o título de “Pai da Escolástica”<br />
(séc. XII).<br />
22. Sexta-Feira Santa.<br />
São Maryahb (“O Senhor chama”),<br />
mártir (†341). Arcediago na<br />
Pérsia, atual Iraque, foi martirizado<br />
G. Kralj<br />
Santa Catarina de Siena - Igreja de<br />
Santa Maria, Kitchener (Canadá).<br />
durante a perseguição do Rei Sapor<br />
II, na Oitava da Páscoa.<br />
23. Sábado Santo.<br />
São Jorge, mártir (†séc. IV).<br />
São Geraldo de Toul, (†994). Bispo<br />
de Toul (Alemanha) durante 31<br />
anos, atendeu aos pobres e intercedeu<br />
pelo povo com jejuns e orações<br />
no tempo de peste. Ajudou os mosteiros<br />
com bens materiais e instruiu<br />
os discípulos.<br />
24. Domingo da Páscoa da Ressurreição<br />
do Senhor.<br />
São Melito, abade. Foi enviado<br />
por São Gregório Magno para<br />
evangelizar a Inglaterra, e se tornou<br />
Bispo de Canterbury (Inglaterra)<br />
(†624).<br />
25. São Marcos Evangelista.<br />
Discípulo de São Pedro e autor do<br />
segundo Evangelho (séc. I).<br />
São Pedro de São José Betancur,<br />
(†1667). Religioso da Ordem<br />
Terceira Franciscana, fundou<br />
em Antigua, Guatemala, a Ordem<br />
de Nossa Senhora de Belém (Bethlemitas),<br />
para cuidar de órfãos,<br />
mendigos, doentes, jovens abandonados,<br />
peregrinos e homens inválidos.<br />
26. Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
de Genazzano.<br />
São Rafael Arnáiz Barón, <br />
(†1938). Religioso no mosteiro<br />
cisterciense de Santo Isidoro de<br />
Dueñas, Espanha. Foi atingido ainda<br />
noviço por graves enfermidades<br />
que o acompanharam por toda a vida<br />
e o obrigaram a abandonar várias<br />
vezes o mosteiro. Autor de numerosos<br />
escritos ascéticos e místicos.<br />
27. Beata Maria Antônia Bandrés<br />
y Elósegui, virgem (†1919).<br />
Religiosa espanhola da Congregação<br />
das Filhas de Jesus. Morreu aos<br />
21 anos, de uma grave enfermidade,<br />
pouco depois de entrar para o<br />
convento.<br />
28. São Luis Maria Grignion de<br />
Montfort, presbítero (†1716).<br />
Beato José Cebula, presbítero e<br />
mártir (†1941). Sacerdote de nacionalidade<br />
polonesa, da Congregação<br />
dos Missionários Oblatos de Maria<br />
Imaculada, foi martirizado no campo<br />
de concentração de Mauthausen,<br />
Áustria, por ódio à Fé Católica.<br />
29. Santa Catarina de Siena, virgem<br />
e Doutora da Igreja (†1380).<br />
Santo Acardo de Avranches, <br />
(†1172). Bispo de Avranches e abade<br />
de São Vítor, em Paris. Em Lucerna<br />
(Suíça), escreveu vários tratados<br />
de vida espiritual no mosteiro<br />
da Ordem Premonstratense, onde<br />
foi enterrado.<br />
30. São Pio V, Papa (†<strong>157</strong>2).<br />
19
Revolução e Contra-Revolução<br />
O perigo começa com<br />
a vitória! - II<br />
Após analisar a primeira fase medieval, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se<br />
a corrupção da sociedade.<br />
S. Hollmann<br />
É uma espécie de febricitação, de<br />
agitação, de delírio, que já define<br />
bem o século XV, fazendo com que<br />
muitas pessoas do tempo pensassem<br />
que o mundo iria acabar.<br />
Nota-se, então, a passagem<br />
sucessiva de um apogeu para<br />
um estado de decadência. O<br />
ponto de partida foi seguramente<br />
a falta de cuidado, a falta<br />
de prevenção. Uma atitude<br />
despreocupada da Cristandade<br />
Medieval foi a causa da decadência.<br />
Despreocupação esta que<br />
se caracterizava pela excessiva<br />
confiança em si mesmo, julgando<br />
haver na própria socieda-<br />
Dessa primeira fase em que a<br />
Idade Média se revela ainda<br />
ponderada, equilibrada,<br />
passamos para uma época em que<br />
os prazeres se vão acentuando. São<br />
ainda honestos, legítimos e até equilibrados.<br />
Há, porém, uma sede de<br />
prazer que se vai tornado progressivamente<br />
acentuada. Numa terceira<br />
etapa notamos todo o corpo social da<br />
Idade Média já deteriorado.<br />
Tratava-se de um<br />
relaxamento e não uma<br />
deliberação explícita<br />
em fazer o mal<br />
São Fernando de Castela -<br />
Catedral de Sevilha, Espanha.<br />
de medieval raízes e lastros de virtudes<br />
suficientes para se eliminar qualquer<br />
preocupação.<br />
Não se pode, entretanto, afirmar<br />
que havia má intenção nesta atitude.<br />
Tratava-se apenas de um relaxamento<br />
e não de uma deliberação em<br />
praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento<br />
do modo de viver, a Idade<br />
Média até nos impressiona pelo que<br />
tem de temperante, de digna, de nobre,<br />
mesmo nos seus prazeres.<br />
Note-se que isto não é uma afirmação,<br />
não é uma tese que venha acompanhada<br />
de documento, mas uma hipótese<br />
baseada em alguns conhecimentos.<br />
Mas, quando formulamos esta<br />
hipótese os fatos se alinham de tal<br />
maneira que tudo se torna claro. Assim<br />
sendo, os acontecimentos ficam<br />
arquitetonicamente explicados.<br />
Está na substância<br />
da santificação o<br />
desejo da cruz<br />
É necessário considerar que isto<br />
não se refere a desvios existentes,<br />
mais ou menos excepcionais, embora<br />
até profundos. Encontramos na<br />
Idade Média fenômenos marginais,<br />
como as heresias, mas que não são<br />
a Idade Média; casos de satanismo,<br />
mas que não são a Idade Média; um<br />
20
Jesus Crucificado<br />
- Lima, Peru.<br />
imperador que é até<br />
arabizante e muçulmanizante,<br />
mas isto também<br />
não é a Idade Média.<br />
É a doença inteira<br />
do corpo social que estou<br />
procurando descrever,<br />
e não apenas<br />
certas chagas.<br />
Isto interessa<br />
muito aos contrarrevolucionários,<br />
sobretudo<br />
tendo-se em<br />
vista o Reinado do<br />
Imaculado Coração<br />
de Maria conforme sua<br />
promessa em Fátima:<br />
“Por fim o meu Imaculado<br />
Coração triunfará.”<br />
Estes princípios são<br />
tão verdadeiros que se<br />
aplicam até aos fenômenos<br />
de vida espiritual dos<br />
contrarrevolucionários de<br />
hoje. Em virtude de quase<br />
todos os ambientes atualmente<br />
estarem, uns mais<br />
outros menos, impregnados<br />
do espírito revolucionário,<br />
quando uma alma<br />
ao converter-se torna-se<br />
contrarrevolucionária,<br />
entra em uma fase de lutas e<br />
enormes provações.<br />
Há depois, uma segunda fase, de<br />
estabilização, em que tudo se torna<br />
menos árduo e mais fácil. Esta é<br />
a fase perigosa. Não se devem<br />
temer tanto<br />
as lutas<br />
de conversão<br />
como<br />
as batalhas de<br />
segunda fase, porque é aí que vem a<br />
tentação de se viver sem preocupações<br />
dentro da virtude, o que significa<br />
abandonar a virtude e viver fora<br />
dela. Está na substância da santificação<br />
o desejo de cruz.<br />
As várias etapas da<br />
decadência medieval<br />
A primeira das<br />
várias etapas da<br />
decadência medieval<br />
se caracteriza pelo<br />
agradável-bom que<br />
se acentua demais,<br />
mas sem, entretanto,<br />
deixar de ser honesto,<br />
nobre e equilibrado.<br />
A primeira das várias etapas da<br />
decadência se caracteriza pelo agradável-bom<br />
que se acentua demais,<br />
mas ainda honesto, nobre e equilibrado.<br />
É exemplo disto o traje feminino<br />
habitual na Idade Média. Era<br />
lindíssimo, com os belíssimos chapéus<br />
de cone com véus pendentes,<br />
ou em forma de gomos, com<br />
uma coroa. É algo de muito<br />
nobre e bonito, e também<br />
muito calmo e repousante.<br />
Toda a arte medieval produz<br />
uma sensação muito agradável.<br />
O agradável encontra sua melhor<br />
expressão no Gótico Flamboyant.<br />
Mas o Flamboyant vai invadindo todos<br />
os campos, e em vez de ser apenas<br />
um agradável-bonito para a sala<br />
de visitas, passa a ser a nota dominante<br />
em quase todos os ambientes.<br />
Tudo piora sensivelmente a partir<br />
do momento em que o agradável<br />
se torna ilícito e, portanto, imoral. O<br />
mesmo se dá na literatura de Cavalaria<br />
e em inúmeros outros setores da<br />
vida medieval.<br />
Para se analisar como a crise se generalizou<br />
no corpo da sociedade medieval,<br />
é necessário ver as profundidades<br />
dessa crise. Por profundidade<br />
entendemos as várias camadas dessa<br />
sociedade; a mais baixa, a do povo,<br />
constituía a última profundidade.<br />
A mais elevada seriam as cortes.<br />
A corrupção da sociedade<br />
a partir das elites<br />
Antes de prosseguirmos, seria<br />
conveniente lembrar um princípio.<br />
S. Hollmann<br />
T. Ring<br />
21
Revolução e Contra-Revolução<br />
Fotos: G. Kralj / Wikipedia<br />
1<br />
Na Idade Média o princípio do diálogo<br />
interior entre várias personalidades<br />
dava-se conforme as classes<br />
sociais. Esse processo de deterioração<br />
começou com os mais ricos e poderosos.<br />
O fenômeno é mais evidente nas<br />
cortes reais, e mesmo em certas cortes<br />
principescas tão altas quanto as<br />
cortes de reis. Começa-se então uma<br />
2<br />
pequena. Este processo é lento, mas<br />
terrivelmente eficaz.<br />
Houve tempo, na Idade Média,<br />
em que se nota muito claramente este<br />
fenômeno de corrupção nos altíssimos<br />
letrados, nos altos aristocratas,<br />
nos altíssimos argentários, e<br />
mesmo no mais alto clero.<br />
Há, no entanto, correntes de opinião<br />
e umas tantas classes sociais<br />
que constituem centros naturais de<br />
resistência. É o que se passou com<br />
o movimento humanista e renascentista,<br />
que tanto floresceu entre<br />
os altos intelectuais, mas<br />
que encontrou focos de resistência<br />
nas universidades,<br />
a tal ponto que estas<br />
Ao analisarmos alguém<br />
de personalidade encontramos<br />
— sobretudo caso se<br />
trate de um liberal — várias<br />
personalidades conjuntas<br />
que entram numa espécie<br />
de diálogo. Há num mesmo<br />
homem o monarquista e o republicano,<br />
o católico e o protestante.<br />
É o princípio das várias personalidades<br />
opostas, estabelecendo<br />
um diálogo interno, e que se dá na<br />
vida espiritual de um homem.<br />
1- Henrique VIII,<br />
rei da Inglaterra;<br />
2- Personagem<br />
característico da média<br />
nobreza (Metropolitan<br />
Museum of Art, Nova<br />
York); 3- Casal de<br />
jovens burgueses<br />
(Metropolitan Museum<br />
of Art, Nova York).<br />
3<br />
A corte corrompe<br />
a média nobreza,<br />
que por sua vez<br />
corrompe a pequena.<br />
A alta burguesia,<br />
sempre a primeira<br />
a corromper-se com<br />
os reis, deteriora a<br />
média burguesia e a<br />
pequena.<br />
vida de extravagância.<br />
A metástase, à maneira<br />
de câncer, foi se<br />
dando, de proche en<br />
proche 1 , para as demais<br />
classes sociais.<br />
A corte corrompe a<br />
média nobreza, que por<br />
sua vez corrompe a pequena.<br />
A alta burguesia, sempre a<br />
primeira a corromper-se com os<br />
reis, deteriora a média burguesia e a<br />
22
Quando estudamos<br />
o problema da<br />
decadência da<br />
sociedade medieval,<br />
ocorre-nos uma<br />
indagação no sentido<br />
de saber por onde ela<br />
se vergou à Revolução.<br />
S Miyazaki<br />
durante muito tempo ficaram à margem<br />
do movimento novo, apegadas<br />
às fórmulas antigas.<br />
Entre as camadas inferiores do<br />
povo a corrupção é muito mais lenta,<br />
havendo muita resistência. Mas<br />
esta resistência sofre um processo<br />
de degradação que se delineia mais<br />
ou menos da seguinte maneira: inicialmente<br />
há uma indignação e resistência<br />
profunda à deterioração; a<br />
seguir, uma contemporização, apesar<br />
da não adesão e até da resistência;<br />
por fim, tolerância indiferente<br />
seguida de admiração, inveja e adesão<br />
ao processo que já estava vitorioso<br />
há muito tempo nas camadas superiores<br />
da sociedade.<br />
A decadência deveu-se<br />
à tolerância dos bons<br />
Quando estudamos o problema<br />
da decadência da sociedade medieval,<br />
ocorre-nos uma indagação no<br />
sentido de saber por onde ela se vergou<br />
à Revolução.<br />
Muitos afirmam que a decadência<br />
coube aos reis e ao clero, que<br />
deram o passo inicial. Há outra teoria,<br />
mais simpática, que é a de que<br />
tudo foi possível a partir do momento<br />
em que a resistência deixou<br />
de ser caracterizada por uma intolerância<br />
agressiva, indignada e militante.<br />
Só a reação enérgica é capaz<br />
de deter o progresso do mal. O mais<br />
lamentável não é que os maus sejam<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência, na década de 1990.<br />
audaciosos, mas que os bons não<br />
lhes oferecem a intolerância e resistência<br />
que eles demonstram para<br />
com o bem.<br />
Se alguém denuncia publicamente<br />
o mal praticado pelos revolucionários,<br />
algo se lhes atrapalha, ainda que<br />
eles não queiram. E é esta espécie de<br />
atrapalhação interna, que produz o<br />
estertor dos revolucionários. Poucos<br />
têm coragem para argumentar contra<br />
quem lhes denuncia. E vence quem<br />
argumenta com mais intolerância,<br />
no sentido mais profundo da palavra.<br />
Pode-se, em certo sentido, dizer, sob<br />
este aspecto, que tudo depende inteiramente<br />
da intolerância.<br />
O mal começa a vencer quando os<br />
bons deixam de ter essa intolerância<br />
ousada e triunfante. v<br />
1) Pouco a pouco.<br />
(Extraído de conferência de<br />
maio de 1959)<br />
23
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
O mistério da vida…<br />
Quem nunca terá pensando no que consiste a vida?<br />
Analisá-la em seus mais variados graus pode deixar qualquer um<br />
estarrecido diante dos mistérios que ela contém.<br />
Diante de tão interessante tema, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discorre magnificamente à<br />
maneira de um navegador que perscruta os mares desconhecidos.<br />
Fotos: G. Kralj; S. Miyazaki; Luíza Dantas; S. Hollmann; Wikipedia.<br />
Otema a respeito do qual me<br />
pediram que tratasse é de<br />
tal vastidão, imensidade e<br />
complexidade, que se fizéssemos um<br />
simpósio de um ano não teríamos<br />
senão aflorado o assunto.<br />
Considerações<br />
sobre heráldica<br />
Imaginemos, por exemplo, um<br />
leão heráldico. O leão é, sem dúvida,<br />
um espécime magnífico do que<br />
a vida pode produzir. Como a figura<br />
desse animal, pintada sobre uma<br />
superfície, é pouco em comparação<br />
com um leão de verdade! Entretanto,<br />
ela tem, sob certo ponto de vista,<br />
uma beleza maior do que o próprio<br />
leão vivo, pois apresentando suas<br />
formas de modo mais característico,<br />
pode ele ser mais bem compreendido.<br />
E, para se entender bem uma série<br />
de leões vivos, nada melhor do<br />
que ter visto um leão bem pintado.<br />
Representar bem um leão, procurando,<br />
não propriamente imitá-lo,<br />
estilizá-lo, mas<br />
sublimá-<br />
-lo, é o que faz a heráldica. Através<br />
desta, tudo é idealizado de um modo<br />
esquematizado, captando ao mesmo<br />
tempo a anatomia e a fisiologia; mais<br />
ainda, aquilo que se poderia chamar<br />
a vitalidade e a “mentalidade” do<br />
animal. E, se olharmos para cem leões<br />
vivos, teremos aprendido menos<br />
do que vendo um leão heráldico.<br />
Leão heráldico, tinturamãe<br />
da leonicidade<br />
O que de misterioso tem a vida<br />
do leão, por onde ele parece melhor,<br />
em alguns aspectos, quando não está<br />
vivo, mas esquematizado? É que<br />
ele foi visto, considerado, por um ser<br />
com um tipo de vida mais alto, que<br />
é o homem. E o leão, depois de ter<br />
formado uma imagem na mente humana,<br />
ter criado no espírito humano<br />
uma impressão tão forte, propiciou<br />
ao homem talentoso, após uma análise,<br />
a vontade e os meios de exprimi-lo.<br />
E isto pintado pelo homem<br />
tem, sob certo ponto de vista, mais<br />
vida do que propriamente quando<br />
vivo no leão.<br />
Por quê? Porque a imagem do<br />
leão desprendeu-se deste e entrou<br />
na mente do homem, passando assim<br />
para um circuito e um grau de<br />
vida superior. O leão corre, salta,<br />
ruge, mas não entende a si próprio<br />
porque ele não entende nada. Mas<br />
alguém que entende e tem, portanto,<br />
um grau de vida incomparavelmente<br />
mais elevado, olhou para o<br />
leão e tirou de dentro dele algo mais<br />
alto do que o próprio leão e pintou<br />
este algo. Assim, o que há de precioso<br />
na vida do leão, mas meio escondido,<br />
disfarçado, a vida da alma<br />
conseguiu apresentar melhor à nossa<br />
atenção.<br />
De maneira que o pensamento<br />
de quem concebeu o leão heráldico,<br />
hirto, figé 1 , faz com que este seja como<br />
que o leão dos leões, uma tintura-mãe<br />
da leonicidade. O conceito<br />
de leão deixou de ser um leão concreto<br />
e passou a ser um leão de quintessência.<br />
Talento de um pintor<br />
ao representar<br />
uma fisionomia<br />
Outro dia, ao folhear um álbum e<br />
deparar-me com uma pintura representando<br />
uma mulher, eu pensava o<br />
seguinte: “O imponderável de um talento!<br />
A fisionomia desta mulher é<br />
de uma velha, mas neste rosto o artista<br />
pintou uma pele de moça.” Aquilo<br />
produzia uma sensação de contradição,<br />
que causava mal-estar.<br />
À esquerda, leão alado, símbolo de São Marcos - Veneza,<br />
Itália; à direita, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência.<br />
24
Entretanto o mais curioso é que a<br />
pele, sendo ao mesmo tempo de moça,<br />
tinha qualquer coisa de ensebado,<br />
de uma pessoa que se lava pouco.<br />
E de uma forma de ensebamento<br />
que dá um brilho falso e ruim à pele.<br />
Não era o brilho da limpeza, mas um<br />
lustre de sujeira que foi aplicado naquela<br />
pele de moça.<br />
Que talento tem aquele pintor para<br />
saber exprimir, por meio de tintas<br />
sucessivas sobre uma superfície lisa,<br />
até a sensação da ligeira pátina de<br />
sujeira que pode tornar repugnante<br />
a pele mais brilhante! O que há na<br />
pele de uma pessoa que parece agradável<br />
de ver, e o que nela existe por<br />
onde engendra algo que lhe é mortal<br />
e, se ela deixa durar, a torna repugnante?<br />
Que quintessência de talento<br />
precisa ter um homem para saber<br />
ver isto e passar, por cima de uma<br />
pele que ele pintou, não sei que lustrina<br />
ou verniz imitando exatamente<br />
a sujeira! Que tesouros de observação<br />
tem ele sobre a vida! O que existe<br />
na vida humana, por onde ela algumas<br />
vezes frutifica a plenitude<br />
de si mesma, e outras vezes produz<br />
sua própria deterioração e degenerescência?<br />
Fonte, ao mesmo tempo,<br />
do que há de mais admirável e mais<br />
repugnante? De uma pedra não sai<br />
nada de repugnante, também não<br />
emerge nada de admirável.<br />
Alguém poderia dizer:<br />
— O brilho!<br />
Eu digo:<br />
— O brilho é uma coisa admirável,<br />
mas é algo que, posto na pedra,<br />
ela devolve. A pedra é inerte, não<br />
tem vida. O homem, entretanto, para<br />
elogiar um olhar, diz: “Esse olhar<br />
é brilhante.” Mas o olhar vivo é tanto<br />
mais, que ele nunca elogiará um<br />
brilhante dizendo: “Parece o olhar.”<br />
Um dos brilhantes mais conhecidos<br />
e bonitos, o Koh-I-Noor, está na<br />
coroa da Rainha da Inglaterra. Pode-se<br />
fazer daquele brilhante qualquer<br />
elogio, afirmar que ele lembra<br />
uma inteligência rútila etc. O olhar<br />
humano tem tal vida que se<br />
pode dizer a uma pes-<br />
25
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
soa: “Seus olhos são como o Koh-I-<br />
-Noor.” Mas não se pode afirmar a<br />
este último: “Tu és como um olho!”<br />
Metáfora da floresta<br />
ta, nela faz algumas incursões. Depois<br />
disso, ele não sai com um mapa<br />
da floresta, mas leva na alma exemplos<br />
do que há dentro dela, algumas<br />
noções sobre a vida da floresta. Percebendo<br />
que a floresta era variável<br />
O Pão de Açúcar<br />
é colossal! Quantos<br />
milhares de homens<br />
ele esmagaria;<br />
entretanto, chegou um<br />
dia em que o homem<br />
conseguiu esticar um<br />
fio até seu topo e fazer<br />
passar uma carreta,<br />
dominando-o. E o Pão<br />
de Açúcar não pôde<br />
sequer mover-se...<br />
quase ao infinito, ele compreendeu<br />
que as incursões o ajudariam a ter<br />
uma ideia dela, a qual é mais rica do<br />
que se apenas a contemplasse de fora<br />
para dentro.<br />
A vida é uma floresta; alguns estão<br />
no meio da picada, outros perto<br />
do fim, e outros no começo, mas<br />
a picada é a mesma. Convém fazer<br />
nela, de um lado ou de outro, incur-<br />
Quais as reciprocidades, qual o jogo<br />
das analogias, o que é, no fundo,<br />
esse mistério da vida que se oculta e<br />
se mostra de um modo fugaz em todos<br />
esses exemplos que apresentei,<br />
de maneira a termos, ao mesmo tempo,<br />
a impressão de apanhar coisas finas<br />
e definidas, mas, quando se vai<br />
apalpar, vê-se que algo foge, é indefinido<br />
e resiste a qualquer definição?<br />
Com efeito, a palavra “vida” não<br />
se define, e também o vocábulo<br />
“morte”; sendo a morte a cessação<br />
de algo que não é definido, ela mesma<br />
não pode ser definida. Porque o<br />
termo “não”, posto diante do indefinido,<br />
não define o indefinido.<br />
Isso não nos impede de ter certa<br />
noção de vida e de vitalidade. Que<br />
uso fazer dessas noções, tendo em<br />
vista as finalidades para as quais estamos<br />
reunidos aqui? O que é a vida<br />
natural da alma? O que é vida sobrenatural?<br />
O que é a vida de Deus? O<br />
que é vida?<br />
Aí nós esbarramos com um mistério;<br />
podemos apalpá-lo, como<br />
faz um cego, mas sem o ver, e é para<br />
apalpações que vos convido nesta<br />
reunião. Apalpações que faremos<br />
tanto quanto possamos, não procurando<br />
abarcar o tema inteiro.<br />
Realizaremos algumas incursões<br />
no assunto, à maneira de um<br />
viajante que penetra numa<br />
floresta grande demais;<br />
ele sabe que jamais poderá<br />
percorrê-la inteira,<br />
mas, para<br />
ter algumas<br />
ideias a respeito<br />
da<br />
floressões,<br />
apalpar pontos, a fim de extrair<br />
ideias e depois fazermos algumas<br />
considerações. Mais do que isso<br />
não nos permite o tempo, ainda<br />
mais numa reunião como esta. Vou<br />
tomar a vida de baixo para cima,<br />
desde o que ela tem de mais elementar<br />
e mais simples, até chegarmos ao<br />
mais complexo.<br />
Modo de agir dos antigos<br />
navegantes portugueses<br />
Empregaremos a marcha de proche<br />
en proche. O espírito humano<br />
funciona exatamente à maneira dos<br />
antigos navegantes portugueses, que<br />
chegaram até a Índia. Eles desciam<br />
um trecho ao longo do litoral africano,<br />
depois voltavam para Sagres e<br />
desenhavam o mapa. Descansavam<br />
e desciam mais um tanto. Regressavam<br />
e anotavam o que tinham visto,<br />
em conexão com o anteriormente<br />
feito. E assim, navegando de ponto<br />
em ponto, chegaram até a dobrar<br />
o Cabo da Boa Esperança.<br />
Lá, eles estavam tão longe que o<br />
caminho da certeza já não lhes era<br />
possível. Em vez de voltar para Sagres,<br />
resolveram seguir em frente. No<br />
Cabo, segundo Camões, apareceu o<br />
gigante Adamastor para intimidar o<br />
gênio lusitano. Nossos ancestrais portugueses<br />
vararam o espectro do Adamastor<br />
e entraram pelo Oceano Índico.<br />
Então, mais valia a pena continuar,<br />
e assim chegaram à Índia; e mais<br />
tarde até a China e o Japão.<br />
Há certo ponto atingido pelo espírito<br />
humano, do qual ele não volta atrás<br />
para formar certezas, mas embarca nas<br />
hipóteses. Ou ele, pela experiência, encontra<br />
a certeza na ponta<br />
da hipótese, ou não<br />
26
sossega, não se sente satisfeito. Vamos<br />
então viajar um pouco e lançar algumas<br />
hipóteses; assim teremos obedecido<br />
à segurança e à ousadia do gênio luso,<br />
do qual tantos de nós procedemos.<br />
A pedra, a grama,<br />
o homem<br />
Consideremos a coisa mais simples,<br />
comum, que a ordem natural<br />
pode oferecer aos nossos olhos.<br />
Imaginemos que um indivíduo, andando<br />
pelo campo, encontre uma<br />
pedrazinha sobre uma graminha.<br />
Quantas pedrinhas e graminhas haverá<br />
pelo mundo? Só a sabedoria<br />
divina conhece.<br />
Sendo reflexivo, ele se detém e vê<br />
que a pedrinha está colocada ligeiramente<br />
em cima da grama, a qual<br />
cresceu inicialmente sob a pedra, fez<br />
algumas voltas e continuou a se desenvolver.<br />
O indivíduo tem uma impressão<br />
de superioridade e, ao mesmo tempo,<br />
de inferioridade da pedra. Esta<br />
pesa sobre a planta de tal maneira<br />
que a tornou torta; a pedra é, portanto,<br />
mais forte do que a planta.<br />
Entretanto, a planta tem algo dentro<br />
de si por onde ela não se conforma<br />
com a pedra; apesar de ser mais<br />
fraca, ela empurra a pedra como que<br />
com o cotovelo. Ela se adapta à forma<br />
da pedra e encontra o caminho do sol.<br />
A grama tem uma superioridade de<br />
outro gênero, que só uma palavra, de<br />
quatro letras, pode explicar bem: “v”,<br />
“i”, “d”, “a”. Ela tem vida, e<br />
por isso resiste, encontra<br />
um caminho, se esgueira,<br />
fura e brilha à luz do Sol,<br />
embora a pedra queira<br />
atrapalhá-la.<br />
E a pedra, que foi colocada<br />
ali, fica estupidamente<br />
naquele local,<br />
se ninguém a retirar,<br />
enquanto o mundo<br />
for mundo. Se for uma<br />
pedra enorme, ela pode<br />
comprimir tudo quanto é vivo. Mas<br />
se quem tem vida não se deixar comprimir<br />
por ela, o ser vivo é tão superior<br />
à pedra que faz dela o que entende.<br />
Assim, se compreende o que<br />
é a matéria não-viva, e se tem um sinal<br />
do que é a vida.<br />
O Pão de Açúcar, por exemplo,<br />
tão colossal. Quantos milhares de<br />
homens ele esmagaria; entretanto,<br />
chegou um dia em que o homem<br />
conseguiu esticar um fio até seu topo<br />
e fazer passar uma carreta, dominando<br />
o Pão de Açúcar, servindo-<br />
-se dele para um passeio. E o Pão de<br />
Açúcar não pôde nem mover-se.<br />
Embora enorme e majestoso, ele<br />
não sentiu sequer o que lhe acontecia.<br />
E essa formiga chamada homem<br />
construiu um torreão em cima dele,<br />
amarrou-o com um fio de linha e se<br />
diverte com ele.<br />
O que é então a vida?<br />
Heliotropismo<br />
No que diz respeito ao vegetal, a<br />
vida se apresenta — estou indicando<br />
sintomas externos<br />
— como uma possibilidade de tirar<br />
de si mesmo uma mudança de sua situação.<br />
A planta cresce, se desenvolve,<br />
fenece. Ela existe dentro do tempo,<br />
está sujeita a mil condições, a mil<br />
infortúnios, mas de si tem uma coisa<br />
que o mineral absolutamente não<br />
possui: uma energia pela qual, por<br />
um princípio que lhe é próprio, crava<br />
raízes na terra e seleciona o que lhe<br />
convém. Ela se expande na direção<br />
dos minerais que lhe são úteis.<br />
O melhor dos mineralogistas não<br />
conhece tão bem os minerais como<br />
uma planta, incapaz de conhecer-<br />
-se a si própria ou qualquer outra<br />
coisa. E o trabalho dela, por debaixo<br />
da terra, é de antenas delicadas,<br />
por onde ela faz esta coisa admirável<br />
que o ser inerte não é capaz de realizar:<br />
encontrar, sugar e transformar<br />
em si mesma algo que não é ela.<br />
Quer dizer, ela faz um encontro e<br />
um trabalho de assimilação, de apropriação,<br />
que é o crescimento dela. E,<br />
da noite de suas raízes, ela tira a parte<br />
dela que brilha e frutifica.<br />
O mais extraordinário é que ela<br />
não conhece nada; a planta não tem<br />
nem sequer sensibilidade. E sem ter<br />
sensibilidade ela, entretanto,<br />
porque tem isto chamado<br />
vida, possui determinada<br />
ordenação<br />
por<br />
27
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Coroa da Rainha da Inglaterra;<br />
em destaque, o Koh-I-Noor.<br />
onde pega o que lhe convém e se desenvolve.<br />
O heliotropismo é a procura que<br />
a planta faz do sol. Algumas até giram,<br />
fazem torções para encontrar o<br />
astro rei, como o girassol. Se alguém<br />
quisesse caricaturar o Sol, imaginaria<br />
o girassol, que é a figura do bajulador<br />
procurando imitar o bajulado,<br />
voltando-se para este, mas sem conseguir<br />
imitá-lo em nada; sol vulgar,<br />
rasteiro, amarelo, quando o outro é<br />
dourado. O girassol tem uma bordadura<br />
que imita o dourado e um cebolão<br />
marrom, no seu interior. O marrom<br />
é o estado plebeu do ouro e o<br />
estado mortal do amarelo.<br />
O que é propriamente o heliotropismo?<br />
Os cientistas já o estudaram.<br />
Eles conseguem tornar tantas coisas<br />
sem graça; entretanto, aprofundando-se<br />
o que dizem, pode-se verificar<br />
a existência de alguma graça<br />
no assunto. O Sol traz consigo certas<br />
transformações do ar e determinados<br />
graus de calor necessários para<br />
que a planta, a qual, movida pela<br />
vida, procura — notem bem — a sua<br />
própria conservação e seu próprio<br />
desenvolvimento. Trata-se, portanto,<br />
de uma forma de energia nascida de<br />
dentro do próprio vegetal, que procura<br />
sua conservação<br />
e depois a plenitude<br />
— o que não se<br />
conserva não alcança<br />
a plenitude;<br />
mas às vezes o que<br />
não alcança a plenitude,<br />
se conserva. Isto<br />
que está na planta, e dessa forma<br />
se desenvolve, o que é?<br />
A graminha e o<br />
Koh-I-Noor<br />
É um mistério. Mas um mistério<br />
ordenadíssimo, que torna o vegetal<br />
muito superior ao mineral e faz da<br />
graminha — mesmo a mais insignificante,<br />
que não é alimento para o nobre<br />
cavalo, nem tapete para um leão,<br />
mas comida de formiga — algo intrinsecamente<br />
mais nobre do que<br />
o Koh-I-Noor. Este não reage, não<br />
opera, não cresce, não tende para<br />
perfeição nenhuma, é parado; dentro<br />
dele não habita nenhuma energia<br />
vital. A planta, porque é capaz dessas<br />
coisas, vale mais que o Koh-I-Noor.<br />
Isso de tal maneira é verdade que se<br />
imaginássemos dois artistas, um fizesse<br />
o Koh-I-Noor e o outro elaborasse<br />
um vegetal, diríamos que muito<br />
maior é aquele que soube fazer uma<br />
planta. Em outros termos, a grandeza<br />
de Deus se reflete muito mais numa<br />
plantinha feita para alimentar<br />
formiga do que no Koh-I-Noor.<br />
O Koh-I-Noor vai para a coroa da<br />
Rainha da Inglaterra. A graminha...<br />
Se um lacaio relaxado deixar que<br />
uma graminha fique no caminho da<br />
Rainha, no dia da coroação ou da<br />
inauguração do Parlamento, ela pisa<br />
em cima da graminha sem perceber.<br />
Ela calca o tesouro, mas leva sobre a<br />
fronte a coisa secundária!<br />
Metafisicamente falando, a obra-<br />
-prima de Deus é mais a graminha<br />
do que o Koh-I-Noor. De fato, o<br />
Criador colocou as coisas graduadas<br />
para nossas vistas, de maneira a podermos<br />
percebê-Lo mais no Koh-I-<br />
-Noor do que na graminha; mas na<br />
realidade a graminha é mais do que<br />
o Koh-I-Noor.<br />
A graminha não sabe nada, mas dela<br />
se pode dizer o que Nosso Senhor<br />
afirmou sobre os lírios do campo:<br />
“Olhai para os lírios do campo, não tecem<br />
nem fiam, entretanto Salomão,<br />
em sua grandeza, não se vestiu como<br />
eles!” 2 . Poderíamos dizer: “Olhai para<br />
a graminha, não tem ciência nem sensibilidade,<br />
entretanto nenhum botânico<br />
sabe, com tanto acerto, o que convém<br />
a ela; a graminha procura nas trevas,<br />
na escuridão, aquilo que lhe convém<br />
e o encontra.”<br />
Gramado de uma<br />
grande fábrica<br />
Considerem uma fábrica moderna<br />
fabulosa. Ela não realiza o que faz<br />
uma graminha, quando deita um milímetro<br />
a mais de seu próprio vegetal.<br />
Houve até quem dissesse que os<br />
vegetais eram fábricas feitas por<br />
Deus: por ordem de seu Criador, a<br />
natureza fabricava coisas que o homem<br />
não sabia produzir. A comparação<br />
só não me agrada porque diminui<br />
a importância da grama. A vida,<br />
que está no vegetal, é mais do<br />
que algo organizado pelo homem<br />
para produção de caráter material,<br />
remexendo coisas minerais, químicas<br />
etc.<br />
Imaginem uma fábrica na qual há<br />
um gramado. Quem haveria de dizer<br />
que, no fundo, o gramado é mais do<br />
que a fábrica? Um técnico poderia<br />
explicar tudo o que se faz na fábrica,<br />
mas nenhum grande cientista seria<br />
capaz de dizer o que é a vida que<br />
anima aquele gramado.<br />
Se compreendêssemos a lição de<br />
sabedoria que Deus nos dá! Enquanto<br />
estamos aqui conversando, a grama<br />
de nosso jardim está respirando.<br />
O Criador sabe o que cada folha de<br />
vegetal está fazendo, por causa desta<br />
vida que lhe deu. E numa hierarquia<br />
tão bem calculada que cada ve-<br />
28
getal faz tudo quanto está na sua natureza,<br />
mas não sobe um milímetro,<br />
um grau, além de sua natureza; faz<br />
o que está de acordo com a ordem<br />
vegetal, mas não é capaz de realizar<br />
nada de animal; pelo contrário,<br />
serve de moldura e de comida para<br />
o animal. O gramado é um banquete<br />
das formigas e dos passarinhos, e<br />
não vive senão voltado para os seres<br />
de ordem superior. Então compreendemos<br />
que tesouros da sabedoria<br />
divina existem num simples canteiro.<br />
Glorificar a Deus por<br />
ter criado os vegetais<br />
Se fôssemos capazes de entender<br />
isto, nos ajoelharíamos e glorificaríamos<br />
a Deus pelo que a planta faz na<br />
sua raiz e na parte que aparece acima<br />
da terra. Diríamos:<br />
“Meu Deus! Vós fizestes, entre<br />
outras coisas, as plantas tão feias na<br />
sua raiz e tão belas na parte que aparece.<br />
Mas, de outro lado, para que<br />
vossas regras, dentro do imobilismo<br />
de certos padrões, tivessem todas as<br />
mobilidades possíveis, fizestes em<br />
algumas plantas raízes tais que elas<br />
formam os mais bonitos parques para<br />
os palácios.<br />
“E algumas dessas raízes se comparam<br />
ao trigo, para alimentar o homem:<br />
o cará, a mandioca, a batata<br />
e tantas outras. Vós quisestes que a<br />
planta, às vezes, desse no fundo da<br />
terra aquilo que ela costuma apresentar,<br />
a título de fruto, balançando<br />
ao céu. Desejastes fazer tudo isso diverso<br />
e, apenas neste grau primeiro<br />
de vida, nos destes uma possibilidade<br />
quase infinita de meditação.<br />
“De todo esse formigamento de<br />
vida, Vós sois o Autor. Mas um Autor<br />
sem esforço, sem o trabalho da<br />
aplicação, que faz tudo isso com a<br />
serenidade e a facilidade que nenhum<br />
de nós homens conhece.”<br />
Eis aí uma primeira noção da vida,<br />
que nos aproxima diretamente de<br />
Deus. E nos faz compreender que esse<br />
primeiro degrau da vida, debaixo de<br />
certo ponto de vista, já é um santuário.<br />
Nós nos sentimos pequeninos, desconcertados,<br />
mas temos uma experiência<br />
interna curiosa. Olhando para a planta,<br />
na perspectiva em que estou falando,<br />
nós dizemos: “Como somos grandes<br />
em relação aos vegetais!”<br />
O que qualquer homem é capaz<br />
de falar sobre uma planta, ou fazer<br />
dela, é uma coisa fenomenal! Pobre<br />
planta! Mas Deus põe ali mistérios,<br />
perto dos quais somos pequeninos e<br />
então dizemos: “Aquele que conhece<br />
o que não conhecemos e fez o que<br />
não podemos fazer, e nos fez a nós<br />
mesmos, é superior a nós, assim como<br />
somos superiores à planta.”<br />
Podemos então imaginar, vagamente,<br />
como Ele nos vê. Somos incomensuravelmente<br />
superiores a um vegetal,<br />
o Criador é infinitamente superior<br />
a nós. Como será Ele, que criou a<br />
mim e a planta, e fez que eu pensasse<br />
o que acabo de dizer sobre ela, e<br />
quis esse contraste, essa comparação,<br />
para que me reportasse a Ele, tivesse<br />
uma figura d’Ele, e me enchesse de<br />
respeito e de amor para com Ele, mas<br />
me sentisse face a Ele menor do que<br />
Jardim do Castelo<br />
de Angers, França.<br />
a menor das plantas diante do Himalaia?<br />
Oh, meu Deus! Que lição! E<br />
quanta sabedoria d’Ele para que, sem<br />
me revelar nada, nem me falar nada a<br />
não ser o que está nos livros da Revelação,<br />
entretanto, me desse um espírito<br />
por onde eu fosse capaz de calcular<br />
tudo isso e ver quem Ele é!<br />
O homem criou uma<br />
planta imaginária:<br />
o lírio heráldico<br />
Deus aparece ao homem e lhe<br />
diz algumas coisas a respeito da vida<br />
que Ele criou; mas não se sabe quando<br />
surgiram os seres vivos. Que coisa<br />
gloriosa o homem receber essa comunicação<br />
de Deus! E como Deus me<br />
amou fazendo com que eu conhecesse<br />
tal comunicação; e, de outro lado,<br />
deu-me inteligência por onde algo eu<br />
descobrisse e me dignificasse. Porque<br />
descobrir não é de nenhum modo<br />
criar, mas tem analogia com criar.<br />
E o Criador, que é infinito, deu-me a<br />
possibilidade de fazer essa analogia.<br />
Um homem colhe uma planta,<br />
um lírio, por exemplo, e o transforma<br />
num lírio que não existe: o lírio<br />
da heráldica. Esse homem criou<br />
uma planta imaginária. E nisso ele<br />
se parece um pouco com Aquele que<br />
criou a planta real.<br />
Isso é uma analogia que Deus, a<br />
propósito dos vegetais, bondosamente<br />
concedeu ao espírito humano.<br />
É bonito receber a Revelação!<br />
Mas também é bonito andar com os<br />
passos da inteligência e construir<br />
uma determinada coisa. Como é bonito<br />
viver! Porque isso é viver. E como<br />
é bela a vida!<br />
v<br />
Continua no próximo número…<br />
1) Fixo, imobilizado.<br />
2) Mt 6, 28-29.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/2/1980)<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
A Quarta-Feira de Cinzas<br />
em seu nascedouro<br />
Dentre as inúmeras luzes irradiadas pela Santa Igreja sobre a<br />
Civilização Cristã, encontra-se uma de inigualável valor: a Liturgia<br />
católica! Esta, quando vista em função do contexto no qual surgiu,<br />
apresenta brilhos e encantos próprios.<br />
Analisando a gênese da Quarta-Feira de Cinzas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
aponta-nos o verdadeiro estado de espírito com que devemos<br />
ingressar na Quaresma.<br />
Para bem se compreender a<br />
intenção da Igreja ao instituir<br />
o cerimonial da Quarta‐Feira<br />
de Cinzas, é necessário considerar<br />
suas origens, bem como sua<br />
repercussão na época em que foi estabelecido.<br />
Portanto, é necessário voltarmos<br />
nossa atenção a um longínquo passado,<br />
visto que essa prática litúrgica<br />
— à semelhança de como quase todas<br />
as outras — se constituiu, provavelmente,<br />
de modo definitivo na Idade<br />
Média. Algo ainda se acrescentou<br />
nos primeiros séculos dos tempos<br />
modernos, e depois disso quase<br />
nada foi acrescido.<br />
A Igreja, centro<br />
da vida social<br />
Como eram constituídas as cidades<br />
no tempo em que essa prática litúrgica<br />
surgiu?<br />
Por aquilo que delas restou, ou<br />
pelo que ficou retratado nas iluminuras,<br />
vê-se que as cidades medievais<br />
eram pequeninas, com ruas estreitas<br />
a fim de caber dentro de muralhas,<br />
as quais eram necessariamen-<br />
30
Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.<br />
Genazzano, Itália.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Aspectos da cidade<br />
de La Brigue, França.<br />
só tinha verdadeira<br />
aute<br />
circunscritas, pois que<br />
serviam para defender os<br />
habitantes de ataques inimigos.<br />
Por isso, as casas eram muito<br />
próximas umas das outras; o andar<br />
superior se projetava mais para<br />
a frente de modo a ficar sobre a<br />
rua, a ponto de, estando à janela de<br />
uma dessas casas, ao estender o braço,<br />
poder-se tocar na casa que estava<br />
adiante.<br />
No centro desse emaranhado orgânico<br />
de edifícios erguia-se uma<br />
torre: o campanário da igreja. Mais<br />
próximo à igreja havia, às vezes, uma<br />
ou mais abadias ou conventos, em<br />
torno dos quais se agrupava a população.<br />
Deste modo, tudo quanto se<br />
passava na igreja constituía o centro<br />
da vida social.<br />
Os pecadores ante<br />
a sociedade<br />
Ora, o que se passava na igreja,<br />
na quarta-feira que marcava o início<br />
da Quaresma?<br />
As pessoas que haviam se tornado<br />
claramente pecadores — tendo,<br />
por exemplo, matado alguém sem<br />
disso ter se arrependido e confessado,<br />
portanto, vivendo afastadas dos<br />
sacramentos; ou então blasfemado<br />
publicamente contra Deus e contra<br />
a Igreja, e apesar de repreendidas<br />
persistiram em sua obstinação;<br />
e até mesmo aquelas<br />
que notoriamente<br />
se tinham afastado<br />
da Igreja, deixando<br />
de comparecer<br />
à Missa e<br />
frequentar os<br />
sacramentos<br />
— eram chamadas<br />
pecadores<br />
públicos.<br />
Como eram<br />
vistos pela sociedade<br />
estes<br />
pecadores?<br />
O conceito do<br />
homem medieval a<br />
respeito deste tipo de<br />
gente era o seguinte: “Eles<br />
são pecadores, miseráveis e, por isso,<br />
altamente censuráveis, deles devemos<br />
viver afastados, pois o homem<br />
reto não convive com o pecador,<br />
e quando tem que tratar com<br />
um deles, o faz com distância e frieza,<br />
pois, até que se arrependa e faça<br />
penitência por seu pecado, sendo<br />
inimigo de Deus ele é também inimigo<br />
do gênero humano!”<br />
Apesar disso, a centralidade da<br />
Igreja na sociedade medieval era<br />
tal que até mesmo esses pecadores<br />
compareciam à igreja por ocasião da<br />
Quarta-Feira de Cinzas, mesmo porque<br />
a maior parte deles sabia que estava<br />
no mau caminho e pesava-lhes<br />
viver naquele estado, apesar de não<br />
querer abandoná-lo.<br />
Além desses pecadores, nesta<br />
ocasião havia outros que se denunciavam<br />
como tais. Às vezes, eram<br />
homens tidos como muito virtuosos,<br />
mas que nessas cerimônias apareciam<br />
entre os pecadores públicos,<br />
acusando‐se de algum pecado. E,<br />
por terem sido objeto de uma honraria<br />
e consideração à qual não tinham<br />
direito, estando arrependidos<br />
queriam receber o desprezo que mereciam.<br />
Ademais, a estes se somavam<br />
muitos que, por terem cometido pecados<br />
que não eram públicos, mas<br />
se julgavam pecadores, juntavam-se<br />
àqueles para fazer penitência e assim<br />
reparar suas faltas.<br />
Aproximai-vos de onde<br />
o perdão vos vem<br />
Assim, quando os sinos começavam<br />
a tocar, as pessoas iam saindo<br />
de suas casas, e no grupo dos inocentes<br />
ou dos pecadores se dirigiam<br />
para a igreja. Imaginemos o estado<br />
de espírito desses homens pecadores,<br />
andando pela rua, ao lado da<br />
população inocente, vendo de longe<br />
a fachada imponente da igreja, adornada<br />
de santos e de anjos, tendo no<br />
centro uma imagem do Crucificado,<br />
ou de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo abençoando, ou então a<br />
imagem da Virgem das Virgens,<br />
concebida sem pecado original.<br />
Ouvindo ainda o bimbalhar<br />
dos sinos, chegam diante da<br />
fachada da igreja que se ergue<br />
imponente, aparentando<br />
severidade, entretanto tão<br />
acolhedora que parece dizer:<br />
“Vinde, filhos! Vós pecastes,<br />
mas aproximai-vos<br />
de onde o perdão vos vem,<br />
confessai‐vos e arrependei‐vos.”<br />
Entravam todos e,<br />
transcorrida a cerimônia,<br />
os pecadores<br />
se retiravam para um<br />
determinado<br />
onde iriam fazer<br />
penitência.<br />
Contudo, isto<br />
lugar<br />
32
No centro do emaranhado<br />
orgânico de edifícios<br />
erguia-se uma torre: o<br />
campanário da igreja.<br />
Tudo quanto se passava<br />
na igreja constituía o<br />
centro da vida social.<br />
tenticidade porque o homem na Idade<br />
Média possuía uma profunda noção<br />
da gravidade do pecado.<br />
Alguém que não se toma<br />
a sério a si próprio<br />
Como manter firme esta noção<br />
que inúmeras circunstâncias procuram<br />
desbotar em nós?<br />
Para compreendermos isso, vou<br />
levantar uma pergunta um tanto estranha.<br />
O que meus ouvintes pensam<br />
de um homem, do qual se afirmasse<br />
o seguinte: “Você é um tipo<br />
leviano, que não se toma a sério a si<br />
próprio.” A resposta normal a tal injúria<br />
poderia ser uma bofetada! Pois,<br />
um homem que não se toma a sério<br />
a si próprio não vale nada; é próprio<br />
do homem tomar‐se a sério, e este é<br />
o primeiro passo para ele ser alguma<br />
coisa.<br />
Ora, quanto mais descabida, para<br />
não dizer blásfema, a seguinte pergunta:<br />
Será que Deus se toma a sério<br />
a Si próprio?<br />
Evidentemente, Deus Se toma<br />
infinitamente a sério, assim como<br />
Se ama infinitamente a Si próprio.<br />
Donde deflui que, tendo Ele apontado<br />
que determinadas atitudes constituem<br />
pecado, de tal forma que os<br />
homens que as praticam rompem<br />
com Deus e tornam-se seus inimigos,<br />
isto é tomado realmente a sério por<br />
Deus.<br />
Tomando-Se a sério, Deus não diz<br />
algo que não produz efeito, não proclama<br />
uma inimizade que não é autêntica.<br />
Do contrário seria o caso de<br />
se perguntar se Deus existe.<br />
A seriedade de tudo<br />
diante de Deus<br />
A Virgem e o Menino,<br />
Aachen (Alemanha). À<br />
esquerda, Catedral de<br />
Chartres, França.<br />
Com esta seriedade, que participa<br />
de sua infinita sabedoria e santidade,<br />
Deus vê as ações dos homens.<br />
Tudo é imensamente sério diante<br />
de Deus. O pecado, portanto, é profundamente<br />
sério, execrável e gravís-<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
simo! Quem o comete rompe com<br />
Deus, pondo-se na mais miserável<br />
das situações.<br />
Por mais rico que alguém possa<br />
ser, ao pecar torna-se o mais desafortunado<br />
dos homens, pois tendo<br />
tudo o que a Terra pode oferecer,<br />
não pode merecer o Céu. O pecador<br />
deve saber que é ainda pior o fato<br />
de ele estar na contingência de, a<br />
qualquer momento, advir-lhe a punição<br />
divina, seja com penas nesta vida,<br />
através de inúmeras e inopinadas<br />
desgraças que podem desabar sucessivamente<br />
sobre ele, ou então com a<br />
pior das punições, que é a do inferno,<br />
às quais nada nesta Terra serve<br />
como termo de comparação: as trevas<br />
eternas, onde o fogo queima e<br />
não ilumina, onde os piores tormentos<br />
atazanam continuamente os homens,<br />
os quais compreendem não<br />
haver para eles mais remédio.<br />
O pecador tem a noção viva do<br />
mal que fez contra Deus e que não<br />
deveria ter feito, por ser Ele infinitamente<br />
Santo, Bom e Verdadeiro.<br />
Sabe igualmente que é pela infinita<br />
Justiça divina que aquela tremenda<br />
cólera desaba sobre os pecadores.<br />
Esta noção os pecadores na Idade<br />
Média a tinham, e por isso iam à igreja<br />
pedir perdão e fazer penitência.<br />
Sentir a gravidade<br />
do pecado<br />
O que são essa penitência e esse<br />
perdão?<br />
Em primeiro lugar, o pecador deve<br />
reconhecer todo o mal que fez.<br />
Para isso a Igreja incita-o a recitar<br />
os salmos penitenciais, os quais, de<br />
modo magnífico, estimulam o sentir<br />
da enorme gravidade e malícia<br />
do pecado. Através dos salmos penitenciais<br />
nota-se que sendo Deus<br />
tão insondavelmente bom, Ele cria<br />
o homem com a glória do estado<br />
de prova para assim poder adquirir<br />
méritos. Contudo, tendo o homem<br />
Note-se a bela atitude<br />
da Igreja: ao mesmo<br />
tempo em que ela<br />
estimula o uso dos<br />
cilícios, institui uma<br />
cerimônia para<br />
abençoá-los, como se<br />
dissesse: Penitencia‐te<br />
até o sangue, mas<br />
sendo tu meu filho,<br />
aproxima-te que vou<br />
deitar minha bênção<br />
neste instrumento que<br />
te tortura!<br />
pecado — ao invés de exterminá-lo<br />
de imediato conforme a ofensa mereceria<br />
—, Deus “cochicha” no ouvido<br />
do homem aquilo que o homem<br />
deve considerar a fim de medir<br />
a gravidade do mal cometido,<br />
além de ensiná-lo como<br />
pedir perdão, tal como<br />
um juiz que recebe<br />
Imposição das cinzas.<br />
o réu com uma majestade indizível,<br />
com aparatos de força e severidade<br />
tremendos, mas ao mesmo tempo<br />
manda alguém entregar ao réu um<br />
bilhete que diz: “Se rogares ao juiz<br />
na sinceridade de tua alma e pedires<br />
com as seguintes palavras que<br />
estão neste bilhete, o juiz te manda<br />
o recado que te atenderá!”<br />
Assim, o pecador como um réu<br />
caminha para o Deus Juiz, com a<br />
oração ditada por Ele próprio. Não<br />
se pode imaginar maior manifestação<br />
de misericórdia do que esta.<br />
Então, do fundo da igreja, vinha<br />
o mísero cortejo dos pecadores rezando:<br />
“Miserere mei Deus, secundum<br />
magnam misericordiam tuam,<br />
et secundum multitudinem miserationum<br />
tuarum, dele iniquitatem<br />
meam — Tende compaixão de<br />
mim ó Deus, segundo a vossa grande<br />
misericórdia. E segundo a multidão<br />
de vossas bondades, apagai a<br />
minha falta.”<br />
Sentindo-se esmagados pela grandeza<br />
do Juiz e pela infâmia de sua<br />
culpa, eles rezam para pedir perdão.<br />
Mas, ao mesmo tempo, são alentados<br />
pela promessa do Juiz que lhes<br />
diz: “Reza desta forma, meu filho,<br />
sente isto, que eu me tornarei teu<br />
amigo!” Nisso vê-se o magnífico<br />
equilíbrio da atitude divina.<br />
Havendo Deus “ditado” a oração<br />
que deve ser a Ele dirigida para pedirmos<br />
perdão, não poderia ter Ele<br />
34
Cilícios utilizados por São Geraldo Majella.<br />
Como eram as penitências?<br />
Antes de tudo tratava-se de jejuar,<br />
alguns chegavam a passar os quarenta<br />
dias a pão e água. Mas havia<br />
também uma cerimônia da bênresumido<br />
esta súplica numa jaculatória,<br />
com isso adiantando o momento<br />
do perdão?<br />
De súplica em súplica,<br />
até a confiança<br />
no perdão<br />
Tal como está constituído, este<br />
conjunto de salmos dá a impressão<br />
de que, enquanto a pessoa reza,<br />
permanece, entretanto, certa<br />
dúvida acerca do perdão de Deus.<br />
Por isso o penitente repete o pedido<br />
com um novo argumento. Por<br />
vezes apela-se à bondade de Deus,<br />
noutra parte à glória. Porém, cada<br />
uma dessas palavras é muito adequada<br />
e útil para preparar o espírito<br />
à compenetração da gravidade<br />
do pecado, mas também para<br />
que vá se adquirindo uma confiança<br />
inabalável de que Deus o perdoará.<br />
À medida que os salmos se sucedem,<br />
tem-se a impressão de que o<br />
Salmo da Confiança vai despontando,<br />
até chegar à última palavra, a<br />
qual opera uma explosão de confiança:<br />
“Vós me salvareis ó Deus!”<br />
Quando se chega a esta esperança<br />
cheia de alegria pelo fato de Deus<br />
ter dito no fundo da alma do pecador<br />
que ele será salvo, inicia-se a<br />
Quaresma. Movido por esta esperança<br />
o pecador quer sofrer para expiar<br />
suas faltas.<br />
Então, aproximando-se do padre,<br />
o pecador se ajoelha e este lhe traça<br />
com cinza uma cruz sobre a fronte,<br />
dizendo: “Lembra‐te, homem, que<br />
és pó e ao pó hás de voltar.” O que<br />
naquela ocasião equivalia a dizer:<br />
“Cuidado! A morte ronda em torno<br />
de ti. Deus, apesar de infinitamente<br />
bom, é justo também. Agora vai e faze<br />
penitência.”<br />
Ela fere, mas também<br />
cuida da ferida<br />
ção dos cilícios, os quais geralmente<br />
eram cintos cheios de pequenos ganchos<br />
de ferro que arranhavam a carne<br />
em torno do tronco, causando dolorosas<br />
feridas. Estes eram usados<br />
por alguns durante todo o período<br />
da Quaresma.<br />
Note-se a bela atitude da Igreja<br />
que aqui está contida. Ao mesmo<br />
tempo em que ela estimula o uso dos<br />
cilícios, institui uma cerimônia para<br />
abençoá-los, como se dissesse: Penitencia‐te<br />
até o sangue, mas sendo tu<br />
meu filho, aproxima-te que vou deitar<br />
minha bênção neste instrumento<br />
que te tortura!<br />
Aí se vê mais uma vez o equilíbrio<br />
entre a justiça e a misericórdia.<br />
E justamente por dever existir este<br />
equilíbrio entre estas, bem como<br />
entre as demais virtudes, é que devemos<br />
amar a justiça tanto quanto a<br />
misericórdia.<br />
De maneira que diante de uma<br />
afirmação como a seguinte: “Deus<br />
disse ao pecador: Eu te execro!” Nós<br />
devemos exclamar, assim como o faríamos<br />
diante de uma frase misericordiosa.<br />
Pois, quando o pecador<br />
compreende o mal de seu pecado, e<br />
percebe quanto Deus odeia o pecado,<br />
ele compreende também quanto<br />
Deus é a Pureza. E diante da Pureza<br />
infinita de Deus, como pode alguém<br />
não se entusiasmar?<br />
Quem tem horror ao pecado, ama<br />
a virtude à qual este se opõe. Portanto,<br />
é sumamente necessário ter entusiasmo<br />
pela severidade de Deus.<br />
Uma bela oração para se fazer<br />
nesta Quaresma é a seguinte: “Ó<br />
meu Senhor, como Vós odiais meus<br />
pecados! Eu Vos peço: dai‐me uma<br />
centelha de vosso ódio sagrado em<br />
relação a eles!” Porém, logo depois,<br />
nós devemos também pedir a misericórdia,<br />
pois sem ela quem pode subsistir?<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/3/1984)<br />
35
O ápice da “história dos olhares”<br />
F. Boulay.<br />
Encontro de Jesus<br />
com sua Mãe - Igreja<br />
de Nossa Senhora<br />
do Bom Socorro,<br />
Montreal (Canadá).<br />
Como terá sido a última troca de olhares entre Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima?<br />
Imaginemos o afeto, o mundo de amor e de respeito, a veneração, o entendimento<br />
de almas recíproco que nessa hora transpareceu.<br />
Este foi o momento culminante da “história dos olhares”.<br />
Caso alguém tenha podido contemplar esses dois olhares, seria uma vantagem ficar cego em<br />
seguida. Pois, o que ver depois disso?<br />
(Extraído de conferência de 23/9/1972)