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Revista Dr Plinio 157

Abril de 2011

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Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>157</strong> Abril de 2011<br />

Inteiramente justa,<br />

extremamente bondosa...


Praça de São Pedro, Roma.<br />

Allain Patrick<br />

C<br />

ada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes<br />

às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios<br />

da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos<br />

em determinada celebração.<br />

Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o<br />

“mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.<br />

No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo,<br />

a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós<br />

fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.<br />

De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para<br />

todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie<br />

de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.<br />

(Extraído de conferência de 7/4/1966)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>157</strong> Abril de 2011<br />

Ano XIV - Nº <strong>157</strong> Abril de 2011<br />

Inteiramente justa,<br />

extremamente bondosa...<br />

Na capa, uma das<br />

últimas fotos de<br />

Dona Lucilia, um mês<br />

antes de sua morte.<br />

Foto: J. Dias.<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Editorial<br />

4 Qual radiosa aurora<br />

Datas na vida de um cruzado<br />

5 17 de Abril de 1913:<br />

De volta ao Brasil<br />

Dona Lucilia<br />

6 Inteiramente justa,<br />

extramamente bondosa…<br />

Hagiografia<br />

10 Contemplação: fruto da penitência<br />

e do desapego!<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

14 Despretensão: ensinamento<br />

e exemplo divinos<br />

Calendário dos Santos<br />

18 Santos de Abril<br />

“Revolução e Contra-Revolução”<br />

20 O perigo começa com a vitória! - II<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 101,00<br />

Colaborador .......... R$ 130,00<br />

Propulsor ............. R$ 260,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 430,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 13,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

24 O mistério da vida…<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

30 A Quarta-Feira de Cinzas<br />

em seu nascedouro<br />

Última página<br />

36 O ápice da “história dos olhares”<br />

3


Editorial<br />

Qual radiosa aurora<br />

Aregularidade com que se sucedem no calendário da Igreja os vários ciclos do ano litúrgico,<br />

imperturbáveis em sua sucessão — por mais que os acontecimentos da história humana variem<br />

em torno deles, e os altos e baixos da política e das finanças continuem sua corrida desordenada<br />

—, é bem uma afirmação da celestial majestade da Igreja, sobranceira ao vaivém caprichoso<br />

das paixões humanas.<br />

Sobranceira, não porém indiferente. Quando os dias dolorosos da Semana Santa transcorrem em<br />

quadras históricas tranquilas e felizes, a Igreja, como Mãe solícita, se serve deles para reavivar em<br />

seus filhos a abnegação, o senso do sofrimento heroico, o espírito de renúncia à trivialidade quotidiana<br />

e o inteiro devotamento a ideais dignos de darem um sentido cristão à vida humana.<br />

Mas a Igreja não é apenas Mãe quando nos ensina a grande missão austera do sofrimento. Ela<br />

também é Mãe quando, nos extremos de dor e aniquilação, faz brilhar aos nossos olhos a luz da esperança<br />

cristã, abrindo diante de nós os horizontes serenos que a virtude da confiança põe aos olhos de<br />

todos os verdadeiros filhos de Deus.<br />

Assim, a Santa Igreja se serve das alegrias vibrantes e castíssimas da Páscoa, para fazer brilhar aos<br />

nossos olhos a certeza triunfal de que Deus é o supremo Senhor de todas as coisas; de que Cristo é o<br />

Rei da glória, que venceu a morte e esmagou o demônio.<br />

* * *<br />

A alegria e a dor da alma resultam necessariamente do amor. O homem se alegra quando tem o<br />

que ama, e se entristece quando aquilo que ama lhe falta.<br />

O homem contemporâneo deita todo o seu amor em coisas de superfície, e por isso só os acontecimentos<br />

de superfície o emocionam. Assim, impressionam-no, sobretudo, suas desgraças pessoais e superficiais:<br />

a saúde abalada, a situação financeira vacilante, os amigos ingratos, as promoções que tardam.<br />

Porém, tudo isto é secundário para o verdadeiro católico que cuida antes de tudo da maior glória<br />

de Deus e, portanto, da salvação de sua própria alma, e da exaltação da Igreja.<br />

* * *<br />

Quando Nosso Senhor Jesus Cristo morreu, os judeus selaram sua sepultura, guarneceram-na<br />

com soldados, julgaram que estava tudo terminado.<br />

Em sua impiedade, eles negavam que Nosso Senhor fosse Filho de Deus, que fosse capaz de destruir<br />

a prisão sepulcral onde jazia, que, sobretudo, fosse capaz de passar da morte à vida. Ora, tudo<br />

isto se deu. Nosso Senhor ressuscitou sem qualquer auxílio humano, e sob seu império a pesada pedra<br />

da sepultura deslocou-se leve e rapidamente, como uma nuvem. E Ele ressurgiu.<br />

Assim também a Igreja imortal pode ser aparentemente abandonada, enxovalhada, perseguida.<br />

Ela pode jazer, derrotada na aparência, sob o peso sepulcral das mais pesadas provações. Ela tem em<br />

si mesma uma força interior e sobrenatural que lhe vem de Deus, e que lhe assegura uma vitória tanto<br />

mais esplêndida quanto mais inesperada e completa.<br />

Essa, a grande lição do dia de hoje, o grande consolo para os homens retos que amam acima de tudo<br />

a Igreja de Deus:<br />

Cristo morreu e ressuscitou!<br />

A Igreja imortal ressurge de suas provações, gloriosa como Cristo, na radiosa aurora de sua Ressurreição.<br />

(Extraído d’O Legionário de 1/4/1945)<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Datas na vida de um cruzado<br />

17 de Abril de 1913<br />

De volta ao Brasil<br />

Após dez meses de viagem pela Europa 1 ,<br />

sob um radioso e cálido sol, o jovem<br />

<strong>Plinio</strong> retornava ao Brasil, acompanhado<br />

por Dona Lucilia e sua irmã, Rosée.<br />

A viagem de volta havia sido empreendida no<br />

transatlântico italiano Duca d’Aosta, partindo de<br />

Gênova em direção a Santos, no litoral paulista.<br />

Em diversas circunstâncias, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> narrou<br />

as impressões que tivera nessa ocasião:<br />

Lembro-me confusamente de uma cena,<br />

ao embarcar no transatlântico italiano Duca<br />

d’Aosta: o navio estava parado no porto, com<br />

umas rodelas abertas, das quais jorrava água em<br />

quantidade. Tive a impressão de que haveria<br />

alguma máquina funcionando para fazer sair<br />

aquela água às torrentes, e olhava pensando:<br />

“Está vendo? Ali está essa água que sai de<br />

dentro do navio e vai escorrendo. Assim é a<br />

vida! Os fatos vão saindo de dentro do possível<br />

para se tornarem reais e depois se perdem no<br />

que já passou, como essa água desaparece no<br />

mar. É bonito ver como isso se sucede. E o ruído<br />

que faz essa água caindo no mar é como o rumor<br />

dos fatos da vida, quando acabam de acontecer<br />

e se perdem no passado. É uma água que vai, vai<br />

e de repente acaba. Assim é a vida... Que bonito<br />

esse jorro! Como é bom que comece, como é<br />

bom que dure, como é bom que acabe!”<br />

Afinal aportamos em<br />

Santos, terminando assim<br />

a viagem, o que parecia um<br />

acontecimento sensacional.<br />

Chegando à casa após<br />

longo período de ausência,<br />

era natural que algumas<br />

coisas causassem surpresa a<br />

um menino de apenas quatro<br />

anos…<br />

Eu possuía um brinquedo<br />

comum: era um cavalinho de<br />

pano, posto sobre rodinhas<br />

com eixo de metal e com uma<br />

pequena fita pela qual eu<br />

podia puxá-lo. Para os meus<br />

braços, era um cavalo muito grande e eu tinha,<br />

inclusive, certa dificuldade em movimentá-lo.<br />

Então, chamava-o de “Enorme”.<br />

Durante a viagem, de vez em quando eu<br />

falava sobre o “Enorme”, e, quando voltamos,<br />

eu disse:<br />

— Quero o meu “Enorme”!<br />

Lembro-me como se fosse hoje: levaram-me<br />

para o quarto do andar térreo da casa, no qual<br />

existia um armário trancado, onde haviam sido<br />

guardados os brinquedos das crianças da família.<br />

Abriram-no e tiraram o “Enorme”. A minha<br />

primeira reação foi de exclamar:<br />

— Esse não é o “Enorme”!<br />

Duas ou três pessoas em torno de mim deram<br />

risada, afirmando ser o “Enorme”. E, de fato,<br />

era terrivelmente parecido...<br />

Mas para mim era muito inferior! Qual a<br />

razão?<br />

Eu tinha crescido e o “Enorme” tinha deixado<br />

de ser enorme...<br />

(Extraído da obra “Notas Autobiográficas”<br />

de <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira)<br />

1) 10/6/1912 – 17/4/1913.<br />

Transatlântico Duca d’Aosta.<br />

5


Dona Lucilia<br />

J. Dias<br />

Dona Lucilia um mês<br />

antes de sua morte.<br />

6


Inteiramente<br />

justa,<br />

extramamente<br />

bondosa…<br />

Mais do que os fatos da vida quotidiana,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> analisava em Dona Lucilia a<br />

sucessão de estados de espírito. Às vezes, em<br />

pessoas censuráveis ela encontrava qualidades<br />

e delas se tornava advogada. Em seu senso de<br />

justiça, a bondade vinha como acréscimo.<br />

Avida de Dona Lucilia se<br />

passava mais numa sucessão<br />

de estados de espírito<br />

do que num conjunto de ações. Ela<br />

levou, única e exclusivamente, a vida<br />

de uma dona de casa de seu tempo:<br />

pequenas obrigações sociais e domésticas.<br />

Embora possuísse uma constituição<br />

física forte, mamãe era muito<br />

achacada de doenças, indisposições.<br />

Ela viveu 92 anos, mas sempre enferma<br />

e obrigada, portanto, aos cuidados,<br />

limitações e regimes de uma<br />

pessoa doente. É dentro disso que a<br />

alma dela se manifestava.<br />

Lógica e bondade<br />

Ela era uma pessoa que realizava,<br />

com precisão, exatidão, a aparente<br />

contradição de ser, ao mesmo<br />

tempo, muito bondosa e muito lógica.<br />

Em geral, se entende como bondade<br />

algo que entra, não no antilógico,<br />

mas, pelo menos, no não lógico.<br />

Por exemplo, a oração em favor<br />

do adversário, à primeira vista, não<br />

parece lógica.<br />

Uma pessoa “ploc-ploc” 1 poderia<br />

fazer o seguinte raciocínio: “Tal indivíduo<br />

é meu inimigo, quer liquidar-me,<br />

e está passando mal à morte.<br />

Se eu pedir a Deus para ele sarar,<br />

ele fica curado e depois me mete<br />

uma porretada na cabeça. Que<br />

sentido tem isso? Não digo que vá<br />

pedir para ele morrer — é o impulso<br />

de muitos —, mas não rasgarei<br />

minha túnica devido à tristeza, se<br />

ele falecer; tampouco vou rezar para<br />

ele viver.”<br />

7


Dona Lucilia<br />

M. Shinoda<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no fim da década de 1970.<br />

Esse é um pensamento que Dona<br />

Lucilia não aprovaria.<br />

O fio do pensamento parece muito<br />

lógico, mas poderíamos perguntar<br />

a essa suposta pessoa: Por que<br />

você coloca limites à bondade de<br />

Deus? Ele não pode sarar de alma<br />

e corpo seu inimigo? Ou permitir,<br />

por exemplo, que ele venha em cima<br />

de você, para lhe fazer sofrer um<br />

tanto por amor a Deus? Assim você<br />

não acabaria conquistando uma alma<br />

para Nosso Senhor? No balanço<br />

estreito e vulgar de seus interesses<br />

pessoais, sua atitude é bem lógica,<br />

porém a premissa não está errada?<br />

Existe só você? Nas relações<br />

entre você e seu inimigo, não existe<br />

Deus? Ou é o Criador que existe<br />

principalmente, e ele e você são<br />

duas meras criaturas? Sendo assim,<br />

procure o interesse de Deus!<br />

Dona Lucilia era<br />

uma pessoa que<br />

realizava, com<br />

precisão, exatidão, a<br />

aparente contradição<br />

de ser, ao mesmo<br />

tempo, muito bondosa<br />

e muito lógica.<br />

Senso de observação...<br />

A lógica de Dona Lucilia coincidia<br />

com um senso de observação<br />

curioso, o qual não fazia dela um<br />

Sherlock Holmes 2 . Mamãe muitas<br />

vezes se iludia a respeito das pesso-<br />

as. Mas, às vezes ela pegava o lado<br />

ruim de um indivíduo com um discernimento<br />

espantoso, quando ele<br />

não tinha dado nenhuma manifestação<br />

disso.<br />

Lembro-me de um amigo a respeito<br />

do qual ela me desaconselhou. Perguntei-lhe:<br />

“Mas, por quê?” Ela disse:<br />

“Pelo jeito de ele pegar no garfo...”<br />

Eu não dizia nem sim, nem não,<br />

porque não queria que ela ficasse<br />

alarmada. Mas havia necessidade de<br />

apostolado com essa pessoa chegada<br />

a mim, e eu, portanto, a suportava<br />

de olho vivo. E percebia na prática<br />

de todos os dias como mamãe tinha<br />

razão.<br />

Essa pessoa tem quase minha idade,<br />

passou a vida no teatro, ou seja,<br />

“teatrando” para o mundo, e já vai<br />

saindo para o outro lado do palco;<br />

egoísta, egoísta...<br />

8


...não só para<br />

perceber defeitos, mas<br />

também qualidades<br />

Dona Lucilia revelava seu senso,<br />

não só em pegar defeitos,<br />

mas também, às vezes nas pessoas<br />

mais censuráveis, algumas<br />

qualidades e se transformava<br />

em advogada delas.<br />

Não eram qualidades<br />

comuns, que se alega comumente,<br />

“Ele é bonzinho”,<br />

mas do seguinte<br />

gênero:<br />

Eu, por exemplo,<br />

“truculentizava” contra<br />

os defeitos de alguém.<br />

Raras vezes<br />

ela me dizia: “Você<br />

tem razão!”<br />

Mas, quando havia<br />

cabimento, ela afirmava:<br />

“Filhão, é verdade!<br />

Mas, você note<br />

tal lado: apesar de tudo,<br />

ele é, por exemplo,<br />

muito franco. Muita<br />

gente, que não tem esses<br />

defeitos, é mais falsa<br />

do que ele. E essa franqueza<br />

tem seu valor. Você,<br />

quando falar de todos<br />

os defeitos dele, lembre-se<br />

de dizer também que é muito<br />

franco.”<br />

E nisso ela manifestava seu<br />

senso de justiça. Nunca tomava<br />

uma atitude apaixonada, por onde<br />

se pudesse dizer que ela foi injusta<br />

com outrem. Absolutamente não.<br />

Sempre justa, justa, justa.<br />

E a bondade vinha como acréscimo.<br />

Quer dizer, ainda que uma pessoa<br />

não prestasse para nada, fosse<br />

muito à toa, mamãe rezava por ela,<br />

suportava-a, enfim, fazia o bem que<br />

coubesse. Esse é o papel da misericórdia.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 4/2/1981)<br />

1) Expressão onomatopeica criada por<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para designar o defeito de<br />

certas pessoas que, desprovidas de intuição,<br />

minoram a importância dos<br />

símbolos e negam o valor da ação de<br />

presença. Querem tudo explicar por<br />

raciocínios desenvolvidos de modo<br />

lento e pesado, à maneira de um pa-<br />

Pintura a óleo<br />

representando<br />

Dona Lucilia aos<br />

92 anos de idade.<br />

ralelepípedo que, ao ser girado sobre<br />

o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.<br />

2) Sherlock Holmes: Detetive fictício,<br />

famoso por seu astuto raciocínio lógico,<br />

sua capacidade de assumir qualquer<br />

disfarce, e seu uso da ciência forense<br />

com habilidades para resolver<br />

casos difíceis.<br />

9


Hagiografia<br />

Contemplação: fruto da<br />

penitência e do desapego!<br />

Estando profundamente arrependida, Santa Maria Madalena<br />

perdeu o apego às coisas da Terra que lhe foram ocasião e motivo de<br />

pecado, e voou à contemplação.<br />

Meditando na vida da Santa Penitente, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> põe-se a seguinte<br />

interrogação: existirá alguma correlação entre espírito de contemplação,<br />

espírito de arrependimento, e desprendimento das coisas desta Terra?<br />

Fotos: G. Kralj; S. Hollmann; F. Lecaros.<br />

Santa Maria Madalena<br />

- Metropolitan Museum<br />

of Art, Nova York.<br />

Santa Maria Madalena mereceu<br />

ser a primeira pessoa a contemplar<br />

o Salvador ressuscitado.<br />

No famoso episódio do banquete,<br />

em que Maria Madalena — tudo leva<br />

a crer que dela se tratava — ungiu<br />

os pés de Nosso Senhor, há aspectos<br />

colaterais os quais nos fornecem algumas<br />

perspectivas da alma e da vida<br />

dela, bem como de sua posição no<br />

firmamento da Igreja, que seria o caso<br />

de comentarmos.<br />

Contemplação e<br />

penitência<br />

Ela era irmã de Lázaro, o qual, segundo<br />

a tradição, pertencia à alta sociedade<br />

porque era um homem muito rico.<br />

Portanto, Lázaro e suas duas irmãs<br />

eram pessoas de alta categoria, mas<br />

Maria Madalena havia decaído muito e<br />

se tornara uma pecadora pública.<br />

Depois do seu arrependimento,<br />

Santa Maria Madalena passou a representar<br />

duas coisas que se tornaram<br />

claras: de um lado a contemplação,<br />

e de outro a penitência.<br />

10


Enquanto Santa<br />

Maria Madalena<br />

representava a<br />

renúncia aos<br />

bens da Terra,<br />

Judas, como<br />

ladrão, traidor<br />

— e traidor por<br />

dinheiro —,<br />

simbolizava o<br />

apego aos bens<br />

deste mundo.<br />

Ela se diferenciou de Marta, no<br />

célebre episódio em que Nosso Senhor<br />

disse a esta última — que censurava<br />

Madalena porque não estava<br />

se ocupando das coisas da casa, mas<br />

se limitava a olhar para Ele e ouvi-<br />

-Lo —: “Marta, Marta, Maria escolheu<br />

a melhor parte, que não lhe será<br />

tirada!” 1<br />

A partir de então, Santa Maria<br />

Madalena representou o estado<br />

puramente contemplativo, destacado<br />

da vida ativa. E, pelo seu<br />

grande arrependimento, pela sua<br />

fidelidade ao pé da Cruz, e pelo<br />

fato de ter sido a primeira que teve<br />

notícia da ressurreição do Redentor,<br />

ela passou a simbolizar<br />

não apenas a contemplação, mas<br />

a penitência, a penitência na sua<br />

glória, no estado do maior perdão<br />

e da maior intimidade com Nosso<br />

Senhor.<br />

Com o exemplo da vida dela, e de<br />

outros santos, alguns teólogos pretenderam<br />

que o estado de penitência<br />

séria, profunda, é mais bonito que o<br />

estado de inocência.<br />

À esquerda, Jesus perdoa<br />

Santa Maria Madalena (Catedral<br />

de Salamanca, Espanha); à<br />

direita, Judas vende Nosso<br />

Senhor (Capela Notre Dame des<br />

Fontaines - La Brigue, França).<br />

Judas, o oposto de Santa<br />

Maria Madalena<br />

Em terceiro lugar, ela representou<br />

também a afirmação dos direitos<br />

da inocência e dos direitos de Nosso<br />

Senhor.<br />

Em que sentido?<br />

Todos se lembram deste fato: estando<br />

o Divino Salvador em Betânia,<br />

foi oferecida uma ceia em sua honra.<br />

Madalena entrou e, quebrando um<br />

vidro de perfume, começou a ungir<br />

os pés de Nosso Senhor. Judas censurou-a<br />

a esse respeito, mas o Redentor<br />

justificou a atitude dela. 2<br />

Vemos aí a penitência, juntamente<br />

com a contemplação, numa espécie<br />

de irredutível oposição ao espírito<br />

sem nenhum arrependimento de<br />

Judas. Este, em vez de arrepender-<br />

-se, caiu no desespero, como mostra<br />

o ato pelo qual ele se enforcou na figueira.<br />

Enquanto ela, como contemplativa<br />

e penitente, representava a renúncia<br />

aos bens da Terra, Judas, como<br />

ladrão, traidor — e traidor por<br />

dinheiro —, simbolizava o apego aos<br />

bens deste mundo.<br />

Dois itinerários<br />

que se cruzaram<br />

O que pode ter levado esse miserável<br />

a ter tanto apego ao dinheiro?<br />

Um apego que naturalmente<br />

chegou ao ódio ao Redentor, porque<br />

ninguém faz uma traição como<br />

aquela, apenas por lucro, sem<br />

ódio; no fundo, um ódio que domina<br />

o próprio espírito de lucro. A<br />

roubar as esmolas coletadas para os<br />

pobres? Ele que era o defensor dos<br />

direitos dos pobres, na hora em que<br />

se verteu o perfume nos pés de Divino<br />

Mestre... Ao desejo de se tornar<br />

rico, para ter uma carreira colateral<br />

à de apóstolo, e ser um homem<br />

considerado importante naquela sociedade<br />

de Jerusalém, julgando que<br />

ele perdia algo de sua carreira humana<br />

seguindo a Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, a quem os fariseus desdenhavam<br />

como um homem sem<br />

importância?<br />

11


Hagiografia<br />

Jesus aparece a Santa Maria<br />

Madalena após a Ressurreição<br />

- Colmar, Alsácia.<br />

Judas fez tais coisas porque, quando<br />

ele estava junto a Nosso Senhor<br />

e ouvia as prédicas e assistia aos milagres<br />

do Divino Mestre, o seu espírito<br />

saía de lá e começava a pensar<br />

em Jerusalém, nas suas praças ou no<br />

Templo, onde ficavam os tão “finos,<br />

simpáticos e inteligentes” fariseus.<br />

Porque não se reteve nas contemplações<br />

do Redentor e começou a<br />

aspirar às coisas do mundo, ele caiu<br />

em pecado. E esse pecado, chegando<br />

até o extremo, o conduziu ao desespero:<br />

Judas então se enforcou na figueira<br />

maldita.<br />

Podemos admitir a possibilidade<br />

de que, em determinado momento,<br />

Judas esteve em estado de graça<br />

e Maria Madalena em pecado mortal.<br />

Ela saiu do pecado, para subir a<br />

um alto grau de virtude, e ele desceu<br />

da condição de apóstolo, para a qual<br />

tinha sido convidado por Nosso Senhor<br />

— houve, portanto, uma hora<br />

em que o Redentor não só o amou,<br />

mas o amou até o fim, e Judas amou<br />

a Nosso Senhor —, ele desceu desta<br />

condição, para ser o vendilhão do<br />

Salvador.<br />

Vemos assim quanto pode subir<br />

uma alma que está no lodo, e quanto<br />

pode cair uma alma chamada para<br />

o que há de melhor. Foram dois<br />

itinerários que se cruzaram; é<br />

uma coisa que nos arrepia,<br />

enche de terror.<br />

Santa Maria<br />

Madalena e<br />

Judas; espírito de<br />

Jacó e de Esaú<br />

A oposição das figuras de<br />

Santa Maria Madalena e de<br />

Judas torna-se tão flagrante que<br />

vai até ao Calvário e à Ressurreição.<br />

Ela estava ao pé da Cruz, e ele, o<br />

apóstolo maldito, o homem execrando,<br />

foi quem encaminhou Nosso Senhor<br />

para a Cruz. Santa Maria Madalena<br />

é a primeira a presenciar a Ressurreição,<br />

enquanto ele se enforca e<br />

sua alma cai porcamente no Inferno.<br />

As antíteses entre um e outro estado<br />

de alma são tremendas; os espíritos<br />

são diferentes. Compete-nos<br />

fazer uma análise dos traços desses<br />

espíritos.<br />

Que nexo há entre arrependimento,<br />

pura contemplação e desapego<br />

dos bens do mundo, de um lado; e<br />

de outro lado, impenitência final,<br />

desespero, apego aos bens do mundo,<br />

enchafurdamento na vida prática,<br />

ativa, como fazia Judas, homem<br />

que naturalmente roubava e fazia<br />

negócios desonestos? Que paralelismo<br />

existe entre uma coisa e outra?<br />

Há algum tempo tratei neste auditório<br />

a respeito de Esaú e de Jacó,<br />

e falei sobre o espírito de ambos.<br />

Santa Maria Madalena nos afigura<br />

como quem teve o espírito de<br />

Jacó. Quer dizer, espírito superior,<br />

voltado para as coisas elevadas, portanto<br />

para Deus, e indiferente às<br />

coisas materiais do mundo.<br />

Judas é o tipo do Esaú. Mais do que<br />

vender o direito de primogenitura por<br />

um prato de lentilhas, ele vende seu<br />

Salvador por trinta dinheiros, o que é<br />

muitíssimo pior. E não teve verdadeiro<br />

arrependimento, porque nele não havia<br />

mais nenhuma forma de virtude sobrenatural.<br />

Fracassou totalmente, caiu<br />

no desespero e suicidou-se.<br />

Contemplação<br />

nascida da penitência<br />

e do desapego<br />

Então, que nexo existe entre estas<br />

três coisas: o espírito de contemplação,<br />

o espírito de arrependimento, e o desprendimento<br />

das coisas desta Terra?<br />

É fácil compreender, pois uma pessoa,<br />

de qualquer um desses pontos<br />

parte para o outro. Estando profundamente<br />

arrependida, com arrependimento<br />

eficaz, ela perde o apego às coisas<br />

da Terra que lhe foram ocasião e<br />

motivo de pecado; e, tendo esse desapego,<br />

facilmente vai para a contemplação.<br />

A pura contemplação e a renúncia<br />

das coisas devido às quais ela pecou,<br />

levada ao último extremo, são o<br />

próprio da penitência. Quem pratica<br />

a verdadeira penitência não se limita<br />

a separar-se daquilo que o conduziu<br />

A morte de Judas - Museu São<br />

Pio V, Valência (Espanha).<br />

12


ao pecado; ele o execra. E por isso coloca,<br />

entre aquilo por onde pecou e si<br />

mesmo, a maior das distâncias.<br />

Para praticar essa penitência tão<br />

grande, convinha a Santa Maria Madalena<br />

separar-se completamente do<br />

mundo. E não ficar apenas no estado<br />

de uma vida contemplativa e ativa,<br />

mas levar vida puramente contemplativa,<br />

em que tudo foi abandonado,<br />

e qualquer forma indireta de<br />

contato com a matéria execrada devido<br />

ao pecado foi também cortada;<br />

assim, não lhe restava outra coisa senão<br />

a contemplação. Contemplação<br />

que, nascida da penitência e do desapego,<br />

faz compreender a excelência<br />

das coisas do Céu, e que todas as<br />

coisas da Terra foram feitas para as<br />

do Céu. Portanto, era justo e bom<br />

derramar unguento nos pés sacrossantos<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

mesmo quando houvesse pobre que<br />

precisasse de esmola.<br />

A pecadora arrependida<br />

amava Nossa Senhora,<br />

e o traidor A detestava<br />

Pranto sobre o corpo de Jesus - Museu Amedeo Lia, Itália.<br />

Todos os que têm tratado deste<br />

particular dizem o seguinte: Judas<br />

com certeza não tinha devoção<br />

a Nossa Senhora. Se tivesse para<br />

com a Santíssima Virgem um mínimo<br />

de instinto filial, de simpatia, de<br />

amor, quando ele caiu inteiramente<br />

em si iria procurar por Ela; e ter-<br />

-Lhe-ia pedido que arranjasse a situação<br />

dele. Mas Judas tinha antipatia<br />

por Nossa Senhora, e A detestava.<br />

O Evangelho diz, de modo taxativo,<br />

que o demônio tinha entrado nele.<br />

E o demônio afastava-o o quanto<br />

possível da Virgem Maria.<br />

Qual o resultado? Ele não se dirigiu<br />

Àquela que é o canal das graças,<br />

e isto ocasionou a sua perdição.<br />

São Pedro, depois de ter renegado<br />

Nosso Senhor, talvez tenha tido tentação<br />

de desespero. Mas é certo moralmente<br />

que ele procurou Nossa Senhora.<br />

Por isso, ele, que também tinha pecado<br />

muito, foi fiel, sendo o primeiro<br />

Papa da Santa Igreja Católica.<br />

Santa Maria Madalena sempre<br />

aparece fazendo parte do cortejo<br />

da Santíssima Virgem, intimamente<br />

unida a Ela em todos os momentos,<br />

sobretudo na hora régia da vida de<br />

Nossa Senhora, quando Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, com dores indizíveis,<br />

disse Consummatum est.<br />

Podemos imaginar Santa Maria<br />

Madalena junto a Nossa Senhora, na<br />

hora da piedade, quando a Mãe de<br />

Deus tinha Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

sobre seu colo.<br />

Naquele momento tremendo,<br />

Nossa Senhora ficou inteiramente<br />

abandonada: Nosso Senhor no sepulcro,<br />

o Colégio Apostólico vacilante,<br />

a cidade de Jerusalém entregue<br />

a terremotos, e os justos da Antiga<br />

Lei andando de um lado para o<br />

outro. A Santíssima Virgem, nessa<br />

situação tão pouco conhecida, estava<br />

completamente só.<br />

Tenho a impressão de que não<br />

Lhe faltou a assistência de Santa<br />

Maria Madalena, a qual estava junto<br />

d’Ela. E porque permaneceu junto à<br />

Mãe de Deus, ela recebeu um rosário<br />

de glórias, cada uma mais extraordinária<br />

do que outra.<br />

Quando vemos tudo isto, é impossível<br />

não estremecermos com a nossa<br />

própria fraqueza. Mas é impossível<br />

também que não nos sintamos<br />

concertados com este ponto: por<br />

mais fraco que o homem seja, desde<br />

que ele se apegue muito a Nossa Senhora,<br />

peça-Lhe muito por sua própria<br />

perseverança e para que Ela o<br />

ampare, nunca o abandone, ele encontra<br />

aí um ponto de firmeza, de<br />

solidez.<br />

A última das pecadoras aproximou-se<br />

de Nossa Senhora e se tornou<br />

uma penitente gloriosíssima.<br />

Um apóstolo, que era distante de<br />

Nossa Senhora e frio para com Ela,<br />

tornou-se o filho da maldição e da<br />

perdição, que Dante coloca no Inferno<br />

dentro da boca de Satanás, com<br />

as pernas para fora, o eternamente<br />

triturado. Enquanto que podemos<br />

imaginar, no Céu, Santa Maria Madalena<br />

posta bem perto do Sagrado<br />

Coração de Jesus e do Imaculado<br />

Coração de Maria, agradecendo os<br />

favores imerecidos de que ela foi repleta.<br />

v<br />

1) Lc 10,42.<br />

2) Cf. Jo 12,1-8.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 22/7/1965)<br />

13


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Despretensão: ensi<br />

S. Hollmann<br />

Lava-pés - Catedral de Notre Dame, Paris.<br />

Formando os Apóstolos, Nosso Senhor deulhes<br />

o divino exemplo de despretensão:<br />

“Eu estou no meio de vós como aquele que<br />

serve.” Vindo ao mundo para remir o gênero<br />

humano, Jesus indicou que entre os católicos<br />

aquele que manda deve ser como quem serve;<br />

precisa ser o menor e mais apagado, deve<br />

sacrificar-se e imolar-se, a fim de que seu<br />

apostolado seja fecundo.<br />

Comentarei um trecho do<br />

Evangelho de São Lucas, muito<br />

propício para as comemorações<br />

da Paixão de Nosso Senhor.<br />

Ora, houve uma discussão entre<br />

eles sobre qual deles devia ser considerado<br />

o maior. Jesus, porém, lhes<br />

disse: “Os reis das nações dominam<br />

sobre elas, e os que exercem o poder<br />

se fazem chamar benfeitores. Entre<br />

vós, não deve ser assim. Pelo contrário,<br />

o maior entre vós seja como<br />

o mais novo, e o que manda, como<br />

quem está servindo. Afinal, quem é<br />

o maior: o que está à mesa ou o que<br />

está servindo? Não é aquele que está<br />

à mesa? Eu, porém, estou no meio<br />

de vós como aquele que serve. Vós<br />

sois aqueles que permaneceram comigo<br />

em minhas provações. Por isso,<br />

assim como o meu Pai me confiou o<br />

Reino, eu também vos confio o Reino.<br />

Havereis de comer e beber à minha<br />

mesa no meu Reino, e vos sentareis<br />

em tronos para julgar as doze<br />

tribos de Israel 1 .<br />

Desigualdade das<br />

classes sociais<br />

Trata-se de uma discussão entre<br />

os Apóstolos durante a Ceia. É<br />

curioso que, depois de Jesus lhes<br />

ter lavado os pés, instituído a Eucaristia,<br />

eles discutam entre si a respeito<br />

de quem seria o maior. Isso<br />

poderia ser chamado de pretensão,<br />

e tenho a impressão de que estaria<br />

perfeitamente bem designado.<br />

Na hora mais augusta, mais sagrada,<br />

quando eles deveriam se preparar<br />

para os maiores sacrifícios, sua<br />

preocupação era de quem seria o<br />

maior. É uma coisa completamente<br />

extrapolada, colocada fora da linha<br />

em que deveria estar.<br />

E Nosso Senhor lhes dá uma lição,<br />

dizendo-lhes incidentalmente<br />

uma série de coisas, que valeria a pena<br />

comentar. Afirma o Redentor:<br />

Afinal, quem é o maior: o que está<br />

à mesa ou o que está servindo? Não<br />

é aquele que está à mesa? Eu, porém,<br />

estou no meio de vós como aquele que<br />

serve.<br />

Vemos aqui uma afirmação<br />

muito interessante da legitimidade<br />

da desigualdade das classes sociais,<br />

feita por Nosso Senhor. Ele<br />

pergunta: o que é mais, ser servido<br />

ou servir? E responde: ser servido<br />

é mais do que servir; o servidor<br />

é menos do que aquele a quem<br />

ele serve.<br />

A autoridade existe para<br />

o bem dos subordinados<br />

Quer dizer, há uma desigualdade<br />

que vem da natureza das coisas.<br />

E essa desigualdade, que é um fato<br />

legítimo, o Divino Mestre toma como<br />

ponto de partida para exprimir<br />

a posição d’Ele: Jesus está no meio<br />

dos discípulos como aquele que veio<br />

servir.<br />

E aqui está a enorme lição de despretensão,<br />

como quem diz: “Se Eu<br />

Me coloco como servidor, como cada<br />

um de vós quer ser considerado<br />

o primeiro em relação aos outros?”<br />

Aqui está a coisa acachapante.<br />

É contrária ao espírito de Nosso<br />

Senhor, a toda a lição de sua vida, à<br />

doutrina que Ele veio ensinar, a preocupação<br />

de se fazer valer, de se colocar<br />

acima dos outros. Em sentido<br />

oposto, diz o Redentor, os que mandam<br />

devem ser como os que servem.<br />

Qual o significado disso? No caso<br />

d’Ele, o sentido é evidente: Jesus<br />

veio para remir, salvar os homens.<br />

Ele estava ali como pastor que<br />

salva suas ovelhas, portanto, para o<br />

bem deles. É a autoridade constituída<br />

para o benefício daqueles sobre<br />

os quais deve mandar. Daí vem<br />

14


namento e exemplo divinos<br />

S. Hollmann<br />

Última Ceia - Catedral de Notre Dame, Paris.<br />

a ideia de que a autoridade tem um<br />

fim dentro de uma ordem posta por<br />

Deus; ela precisa ser servidora desse<br />

fim, e por isso deve cercar-se de<br />

esplendor, de grandeza, de pompa.<br />

Nosso Senhor louvou a mulher que<br />

derramou unguento precioso sobre a<br />

cabeça d’Ele.<br />

Quem manda existe para o bem<br />

de seus subordinados. E aqueles que<br />

obedecem devem compreender e<br />

amar a autoridade e o princípio de<br />

autoridade, o qual é altamente benéfico.<br />

Megalice de certos<br />

soberanos da<br />

antiguidade<br />

Continua o Divino Salvador:<br />

Os reis das nações dominam sobre<br />

elas, e os que exercem o poder se<br />

fazem chamar benfeitores. Entre vós,<br />

não deve ser assim. Pelo contrário, o<br />

maior entre vós seja como o mais novo,<br />

e o que manda, como quem está<br />

servindo.<br />

A megalice 2 dos reis nas épocas<br />

anteriores a Nosso Senhor era uma<br />

coisa incrível. Os monarcas assírios,<br />

por exemplo, mandavam esculpir nas<br />

pedras dos rochedos os relatos dos<br />

seus feitos. E, para que não se apagassem,<br />

era colocada uma espécie de<br />

porcelana coberta com vidro, de maneira<br />

que eles tinham a esperança<br />

de que durante séculos ainda se lessem<br />

aquelas inscrições. E em muitos<br />

lugares ainda hoje podem ser lidas.<br />

Eles contavam coisas que eram evi-<br />

Aquele que manda<br />

existe para o bem de<br />

seus subordinados. E<br />

aqueles que obedecem<br />

devem compreender<br />

e amar a autoridade<br />

e o princípio de<br />

autoridade, o qual é<br />

altamente benéfico.<br />

dentemente falsas. Uma dessas inscrições,<br />

que eu li, narrava que, numa<br />

caçada, o rei tinha domado um leão,<br />

pegando-o pelas orelhas. Ou se tratava<br />

de um leão velho, que havia sido<br />

embebedado previamente pelos<br />

cortesãos, ou era simplesmente uma<br />

megalice sem nome!<br />

Aqueles imperadores romanos…<br />

quanta megalice! A veneração que<br />

faziam lhes prestar, o modo pelo<br />

qual dominavam e oprimiam os outros,<br />

dirigiam tudo pela força, e tantas<br />

outras coisas. Já tive ocasião de<br />

comentar neste auditório o respeito<br />

que se tributava aos faraós. Li aqui<br />

certa vez uma carta ao faraó, escrita<br />

por seu agente consular na Assíria,<br />

na qual dizia: “Eu, que sou indigno<br />

de beijar os vossos pés, indigno<br />

de beijar as patas de vossos cavalos;<br />

beijo o pó onde as patas de vossos<br />

cavalos se puseram.” Esse era o<br />

clima de megalice que os soberanos<br />

daquele tempo criavam.<br />

Nosso Senhor mostra que quem é<br />

católico deve servir. Embora sua autoridade<br />

seja muito grande e transpareça<br />

bastante, ele, como indivíduo,<br />

deve eclipsar-se por detrás de<br />

sua própria autoridade. O princípio,<br />

o cargo, a missão, o poder valem<br />

muito, o indivíduo vale pouco.<br />

Jorge V e Rainha Mary<br />

Certa vez li numa revista de História<br />

um fato a respeito de Jorge V,<br />

esposo da Rainha Mary. Todas as<br />

noites em que não recebiam visitas<br />

15


S. Miyazaki<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

no palácio, eles ficavam ouvindo vitrola,<br />

enquanto um secretário ia trocando<br />

os discos. Quando chegavam<br />

às dez horas em ponto, os monarcas<br />

se levantavam e o secretário colocava<br />

o disco com a música God save the<br />

King — Deus salve o Rei —; Jorge<br />

V tomava atitude de continência, e a<br />

Rainha ficava em posição de oração.<br />

Terminada a audição, iam dormir.<br />

E Rudyard Kipling 3 comentou<br />

que isso era a verdadeira humildade.<br />

Jorge V, detentor da autoridade,<br />

compreendia que o cargo, a dignidade,<br />

era grande, mas a pessoa dele,<br />

nada. E por isso tomava uma atitude<br />

de respeito diante de seu próprio<br />

cargo. Nesse ato, o Rei prestava<br />

continência à realeza; e a Rainha<br />

rezava, como uma fiel qualquer, por<br />

aquela que era a Rainha da Inglaterra.<br />

Vemos aqui o eclipsar-se da pessoa<br />

e o engrandecimento do cargo.<br />

Reis de França e<br />

Imperador Francisco José<br />

Nos tempos de monarquia cristã<br />

havia fatos nesse sentido. Quando os<br />

Reis de França saíam da Catedral de<br />

Reims, após serem coroados, o povo<br />

acreditava — e parece que algum<br />

fundamento havia nisso — que eles<br />

tinham o poder de curar a escrófula 4 .<br />

Então, filas de escrofulosos<br />

repugnantes<br />

ficavam à<br />

espera do novo<br />

Rei na saída<br />

da catedral,<br />

o qual tocava<br />

cada doente<br />

com a mão<br />

e dizia: “Le<br />

Roi te touche,<br />

Dieu te guérisse<br />

— O Rei te toca,<br />

Deus te cure.” Diziam<br />

os cronistas do<br />

tempo que muita gente<br />

ficava curada. Quer dizer,<br />

depois daquele esplendor<br />

máximo da realeza — a coroação<br />

de um Rei de França era uma<br />

cerimônia fabulosa, em que aparecia<br />

o cargo e não o homem —, o monarca<br />

condescendia em tocar com suas<br />

mãos régias os enfermos mais repelentes<br />

do seu reino, para curá-los,<br />

usando de um carisma que reconhecia<br />

não proceder dele. A frase “O<br />

Rei te toca, Deus te cure” queria dizer:<br />

“O Rei sabe que não cura nada,<br />

quem cura é Deus. O Rei é um mero<br />

instrumento para que a ação de<br />

Deus se exerça.”<br />

O exemplo de Nosso Senhor foi<br />

imitado nos tempos em que a Igre-<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência na década de 1980.<br />

G. Kralj<br />

Papa Bento XVI durante a<br />

cerimônia de lava-pés - Basílica<br />

de São João de Latrão, Roma.<br />

ja era unida ao Estado, em todas as<br />

monarquias europeias. Pouco antes<br />

da guerra de 1914-18, em que quase<br />

toda a Europa era monárquica,<br />

na Quinta-feira Santa os reis iam lavar<br />

os pés dos pobres. Francisco José,<br />

por exemplo, Imperador da Áustria-Hungria,<br />

lavava os pés dos pobres<br />

na Catedral de Viena. E um dos<br />

significados desse ato era este: uma<br />

é a dignidade do Imperador, e outra,<br />

a situação dele enquanto indivíduo,<br />

que devia estar sujeito a todas as humilhações,<br />

por mais que o cargo por<br />

ele ocupado fosse excelente.<br />

O Papa, “servidor dos<br />

servidores de Deus”<br />

Os próprios Papas realizavam o<br />

lava-pés. De um lado o Papa imita<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo — a dignidade<br />

pontifical, como a dignidade<br />

régia, deve tocar os pobres —; mas,<br />

de outro lado, esse ato significa a humilhação<br />

do homem, indicando o<br />

desaparecimento da pessoa, mesmo<br />

no esplendor do cargo e da função.<br />

Vemos assim, na tradição cristã, a<br />

aplicação do ensinamento do Divino<br />

16


Mestre. O Papa, chamando-se a si<br />

próprio “servidor dos servidores de<br />

Deus”, evoca uma reminiscência do<br />

que Nosso Senhor disse.<br />

Então, para praticarmos adequadamente<br />

a despretensão, devemos<br />

compreender que toda grandeza terrena<br />

deve existir — porque Deus quis<br />

que houvesse grandes na ordem espiritual,<br />

como na ordem temporal —,<br />

e precisa cercar-se do esplendor que<br />

lhe é próprio; mas o homem que está<br />

colocado nesse lugar de grandeza deve<br />

saber apagar-se. E aqueles que estão<br />

longe da grandeza, não possuem<br />

o cargo, não o devem invejar. Para o<br />

vaidoso, o que adianta ter um cargo<br />

se não pode se gabar dele? Nenhum<br />

cargo, nenhuma situação pessoal, na<br />

qual o indivíduo não possa consentir<br />

no envaidecimento, não lhe adianta<br />

de nada.<br />

São Vicente Ferrer:<br />

“A vaidade esvoaça<br />

em torno de mim,<br />

mas não entra”<br />

Lembro-me que li, numa biografia<br />

de São Vicente Ferrer, um fato<br />

muito curioso. Ao chegar a Barcelona<br />

— ele era grande missionário<br />

—, foi-lhe preparada uma recepção<br />

apoteótica. Todo o povo estava<br />

reunido, das janelas pendiam tapetes<br />

preciosos, ele caminhava debaixo<br />

do pálio, carregado pelos nobres da<br />

cidade. Durante o cortejo, alguém<br />

desconfiado perguntou-lhe: “Irmão<br />

Vicente, não estás vaidoso?”. Ele<br />

respondeu: “A vaidade esvoaça em<br />

torno de mim, mas não entra.”<br />

O que adianta para um homem<br />

receber todas essas homenagens, se<br />

ele é obrigado a resistir à tentação<br />

de se envaidecer? Não adianta nada.<br />

Porque, se é para ficar vaidoso, há<br />

um prazer terreno. Mas, se não pode<br />

se envaidecer, andar devagar no<br />

meio daquele povo aplaudindo, e ele<br />

resistindo contra a tentação, é muito<br />

cansativo. Quando termina, ele desabafa:<br />

“Uf! Acabou a tentação; ao<br />

menos estou trancado na minha cela,<br />

sozinho.” Esse é o verdadeiro dinamismo<br />

das coisas.<br />

Quem deseja aparecer<br />

não imita Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

O Papa, chamando-se<br />

a si próprio “servidor<br />

dos servidores de<br />

Deus”, evoca uma<br />

reminiscência do que<br />

Nosso Senhor disse.<br />

Precisamos ser muito cautelosos.<br />

Sempre que estamos apetecendo<br />

uma situação de mando, de destaque,<br />

de influência, devemos tomar<br />

cuidado, pois facilmente nos apegamos<br />

a isso para nos mostrarmos. E,<br />

se consentirmos ao desejo de aparecer,<br />

não estaremos imitando o exemplo<br />

de Nosso Senhor, o qual indicou<br />

que entre os católicos aquele que<br />

manda deve ser como quem serve;<br />

precisa ser o menor, apagado, sacrificado,<br />

e imolar-se.<br />

Alguém poderia fazer uma pergunta-objeção:<br />

“Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o<br />

senhor nos diz isso com uma ênfase,<br />

como se estivéssemos na iminência<br />

de sermos eleitos presidentes da república!<br />

Ora, acontece que nós, sendo<br />

membros do Movimento, não estamos<br />

em via de ser eleitos para nada<br />

e nem temos, ao menos de momento,<br />

um eleitorado muito grande.<br />

Então, por que o senhor nos fala essas<br />

coisas?”<br />

Digo isto porque não se trata apenas<br />

de cargos, mas de situações nas<br />

quais se exerce alguma influência<br />

numa roda de pessoas: querer ser o<br />

primeiro numa conversa, numa me-<br />

sa de refeições; aquele que conta a<br />

piada mais engraçada; conhece a última<br />

novidade ou comentário sobre<br />

nossa vida interna e o transmite para<br />

o pobre basbaque que ainda não<br />

sabe; está a par das coisas mais importantes;<br />

diz a coisa mais audaciosa<br />

em matéria de doutrina. Tudo isso<br />

são coisas que significam preeminência<br />

e dão apego. E disso tudo<br />

devemos mostrar-nos desapegados,<br />

lembrando o ensinamento e o exemplo<br />

de Nosso Senhor.<br />

A pretensão torna<br />

estéril o apostolado<br />

Quanto maior é a pretensão de<br />

uma pessoa, mais estéril é seu apostolado,<br />

porque só faz apostolado fecundo<br />

quem está unido ao Divino<br />

Mestre. Quem não está unido ao Redentor<br />

é como a vinha que está destacada<br />

do sarmento.<br />

Como podemos estar unidos a<br />

Ele, se temos pretensão? Não estou<br />

afirmando que sejamos todos uns<br />

poços de pretensão. Mas quero dizer<br />

que todo homem, na melhor das hipóteses,<br />

é como São Vicente Ferrer:<br />

está sempre com a pretensão esvoaçando<br />

em torno dele. Isso é evidente.<br />

Então, cuidado! Ainda que recebamos<br />

manifestações tão mais modestas<br />

do que as prestadas a São Vicente<br />

Ferrer, devemos lutar contra a<br />

pretensão, de todos os modos e com<br />

todo o empenho.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 1/4/1969)<br />

1) Lc 22, 24-30.<br />

2) Megalice: termo criado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

a fim de designar o vício de quem<br />

atribui a si mesmo qualidades que<br />

não possui ou então as exagera.<br />

3) Joseph Rudyard Kipling (1865-1936),<br />

escritor inglês.<br />

4) Infecção tuberculosa em gânglios linfáticos<br />

do pescoço.<br />

17


S. Hollmann<br />

Calendário dos Santos –––––––––<br />

São Francisco de Paula - Paróquia<br />

São Pedro Carmona, Sevilha.<br />

1. Beato Luís Pavoni, presbítero<br />

(†1848). Entregou-se à formação<br />

dos jovens pobres, dedicando-se à<br />

educação religiosa e artesã. Para isso<br />

fundou a Congregação dos Filhos<br />

de Maria Imaculada, em Bréscia,<br />

Itália.<br />

Beato José Bento Dusmet, Bispo<br />

(†1894). Monge e abade beneditino,<br />

foi Bispo de Catânia (Sicília).<br />

Entregou-se à instrução cristã<br />

do povo, com um cuidado especial<br />

ao clero.<br />

5. São Vicente Ferrer, presbítero<br />

(†1350).<br />

São Geraldo, Abade de Saint-<br />

-Sauve, França (†1095).<br />

6. São Pedro de Verona, presbítero<br />

e mártir (†1252). Nascido<br />

de pais maniqueus, ainda criança<br />

abraçou a Fé Católica. Na adolescência<br />

recebeu o hábito das mãos<br />

de São Domingos e consagrou-se<br />

a combater as heresias. Foi martirizado<br />

durante uma viagem a Milão,<br />

Itália.<br />

7. Santo Hermano José, sacerdote<br />

premonstratense (1152-1241).<br />

São João Batista de La Salle,<br />

presbítero (†1719).<br />

8. São Dionísio de Corinto, Bispo<br />

(†180).<br />

morreu em Luca, Itália, num Sábado<br />

Santo, aos vinte anos.<br />

12. São Júlio I, Papa. Eleito para<br />

o sólio pontifício em 6 de fevereiro<br />

de 337, defendeu valorosamente a<br />

Fé contra os arianos, e apoiou Santo<br />

Atanásio, Doutor da Igreja, na<br />

mesma missão (†352).<br />

13. São Martinho I, Papa (†656).<br />

Beata Ida de Val-des-Roses, virgem<br />

(†cerca de 1290). Religiosa do<br />

mosteiro cisterciense de Val-de-Roses,<br />

França.<br />

14. São Pedro González, (chamado<br />

São Telmo), sacerdote dominicano<br />

(†1246).<br />

15. Santo Ortário, abade (†séc.<br />

XI). Levou uma vida de austeridade<br />

e oração no mosteiro de Landelles<br />

(França), e foi assíduo em<br />

curar enfermos e ajudar os pobres.<br />

16. São Magno de Órcadas, mártir<br />

(†1116). Príncipe das Ilhas Órca-<br />

2. São Francisco de Paula, eremita<br />

(†1507).<br />

Santa Teodora, virgem e mártir<br />

(†307). Por haver pedido aos cristãos<br />

que estavam diante do tribunal,<br />

em Tiro (Líbano), que se lembrassem<br />

dela diante de Deus, foi<br />

presa, torturada e lançada ao mar.<br />

9. Santa Cacilda de Toledo, virgem<br />

(†1075). Nascida de família<br />

maometana, ajudou com misericórdia<br />

os cristãos presos, e depois, já<br />

cristã, viveu como ermitã em Burgos,<br />

Espanha.<br />

São Libório, Bispo de Le Mans,<br />

na Gália (atual França) (séc. IV).<br />

G. Kralj.<br />

3. IV Domingo da Quaresma.<br />

São Luís Scrosoppi, presbítero<br />

(†1884). Sacerdote da Congregação<br />

do Oratório, fundou em Udine, Itália,<br />

a Congregação das Irmãs da Divina<br />

Providência, para a educação<br />

cristã das jovens.<br />

4. Santo Isidoro, Bispo e Doutor<br />

da Igreja (†636).<br />

10. V Domingo da Quaresma.<br />

São Beda, o Jovem, monge<br />

(†cerca de 883).<br />

11. Santo Estanislau, Bispo e<br />

mártir (†1079).<br />

Santa Gemma Galgani, virgem<br />

(†1905). Mística italiana, insigne<br />

pela contemplação da Paixão e pelas<br />

dores suportadas com paciência,<br />

São João Batista de La Salle -<br />

Basílica de São Pedro, Roma.<br />

18


––––––––––––––––––– * Abril * ––––<br />

das, na Escócia, abraçou a Fé Católica<br />

e encontrando-se em dificuldades<br />

com o Rei da Noruega, por falsas<br />

acusações, foi assassinado traiçoeiramente.<br />

17. Domingo de Ramos e da Paixão<br />

do Senhor.<br />

Santos Pedro, diácono, e Hermógenes,<br />

seu servo, mártires em Melitene,<br />

na antiga Armênia.<br />

18. Beato José Moreau, presbítero<br />

e mártir (†1794). Durante a Revolução<br />

Francesa, foi guilhotinado<br />

em Anjou (França), numa Sexta-<br />

-Feira da Paixão, por ódio à Fé Católica.<br />

19. São Leão IX, Papa (†1054).<br />

Foi Bispo de Toul durante 25 anos<br />

e, como Papa, convocou vários sínodos<br />

para a reforma da vida do<br />

clero e a extirpação da simonia. Foi<br />

ajudado pelo futuro São Gregório<br />

VII.<br />

20. Santa Inês de Montepulciano,<br />

religiosa (†1317). Vestiu o hábito<br />

dominicano aos 9 anos, e aos<br />

15, contra sua vontade, foi eleita superiora<br />

das freiras de Proceno (Itália),<br />

fundando mais tarde um mosteiro<br />

com a regra de São Domingos.<br />

21. Santo Anselmo, Bispo e Doutor<br />

da Igreja, monge beneditino e<br />

Arcebispo da Cantuária (Inglaterra),<br />

defendeu a Igreja na luta das<br />

investiduras, sendo exilado duas vezes.<br />

Seus escritos exerceram grande<br />

influência em sua época e lhe granjearam<br />

o título de “Pai da Escolástica”<br />

(séc. XII).<br />

22. Sexta-Feira Santa.<br />

São Maryahb (“O Senhor chama”),<br />

mártir (†341). Arcediago na<br />

Pérsia, atual Iraque, foi martirizado<br />

G. Kralj<br />

Santa Catarina de Siena - Igreja de<br />

Santa Maria, Kitchener (Canadá).<br />

durante a perseguição do Rei Sapor<br />

II, na Oitava da Páscoa.<br />

23. Sábado Santo.<br />

São Jorge, mártir (†séc. IV).<br />

São Geraldo de Toul, (†994). Bispo<br />

de Toul (Alemanha) durante 31<br />

anos, atendeu aos pobres e intercedeu<br />

pelo povo com jejuns e orações<br />

no tempo de peste. Ajudou os mosteiros<br />

com bens materiais e instruiu<br />

os discípulos.<br />

24. Domingo da Páscoa da Ressurreição<br />

do Senhor.<br />

São Melito, abade. Foi enviado<br />

por São Gregório Magno para<br />

evangelizar a Inglaterra, e se tornou<br />

Bispo de Canterbury (Inglaterra)<br />

(†624).<br />

25. São Marcos Evangelista.<br />

Discípulo de São Pedro e autor do<br />

segundo Evangelho (séc. I).<br />

São Pedro de São José Betancur,<br />

(†1667). Religioso da Ordem<br />

Terceira Franciscana, fundou<br />

em Antigua, Guatemala, a Ordem<br />

de Nossa Senhora de Belém (Bethlemitas),<br />

para cuidar de órfãos,<br />

mendigos, doentes, jovens abandonados,<br />

peregrinos e homens inválidos.<br />

26. Nossa Senhora do Bom Conselho<br />

de Genazzano.<br />

São Rafael Arnáiz Barón, <br />

(†1938). Religioso no mosteiro<br />

cisterciense de Santo Isidoro de<br />

Dueñas, Espanha. Foi atingido ainda<br />

noviço por graves enfermidades<br />

que o acompanharam por toda a vida<br />

e o obrigaram a abandonar várias<br />

vezes o mosteiro. Autor de numerosos<br />

escritos ascéticos e místicos.<br />

27. Beata Maria Antônia Bandrés<br />

y Elósegui, virgem (†1919).<br />

Religiosa espanhola da Congregação<br />

das Filhas de Jesus. Morreu aos<br />

21 anos, de uma grave enfermidade,<br />

pouco depois de entrar para o<br />

convento.<br />

28. São Luis Maria Grignion de<br />

Montfort, presbítero (†1716).<br />

Beato José Cebula, presbítero e<br />

mártir (†1941). Sacerdote de nacionalidade<br />

polonesa, da Congregação<br />

dos Missionários Oblatos de Maria<br />

Imaculada, foi martirizado no campo<br />

de concentração de Mauthausen,<br />

Áustria, por ódio à Fé Católica.<br />

29. Santa Catarina de Siena, virgem<br />

e Doutora da Igreja (†1380).<br />

Santo Acardo de Avranches, <br />

(†1172). Bispo de Avranches e abade<br />

de São Vítor, em Paris. Em Lucerna<br />

(Suíça), escreveu vários tratados<br />

de vida espiritual no mosteiro<br />

da Ordem Premonstratense, onde<br />

foi enterrado.<br />

30. São Pio V, Papa (†<strong>157</strong>2).<br />

19


Revolução e Contra-Revolução<br />

O perigo começa com<br />

a vitória! - II<br />

Após analisar a primeira fase medieval, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

nos mostra como, a partir de um relaxamento, operou-se<br />

a corrupção da sociedade.<br />

S. Hollmann<br />

É uma espécie de febricitação, de<br />

agitação, de delírio, que já define<br />

bem o século XV, fazendo com que<br />

muitas pessoas do tempo pensassem<br />

que o mundo iria acabar.<br />

Nota-se, então, a passagem<br />

sucessiva de um apogeu para<br />

um estado de decadência. O<br />

ponto de partida foi seguramente<br />

a falta de cuidado, a falta<br />

de prevenção. Uma atitude<br />

despreocupada da Cristandade<br />

Medieval foi a causa da decadência.<br />

Despreocupação esta que<br />

se caracterizava pela excessiva<br />

confiança em si mesmo, julgando<br />

haver na própria socieda-<br />

Dessa primeira fase em que a<br />

Idade Média se revela ainda<br />

ponderada, equilibrada,<br />

passamos para uma época em que<br />

os prazeres se vão acentuando. São<br />

ainda honestos, legítimos e até equilibrados.<br />

Há, porém, uma sede de<br />

prazer que se vai tornado progressivamente<br />

acentuada. Numa terceira<br />

etapa notamos todo o corpo social da<br />

Idade Média já deteriorado.<br />

Tratava-se de um<br />

relaxamento e não uma<br />

deliberação explícita<br />

em fazer o mal<br />

São Fernando de Castela -<br />

Catedral de Sevilha, Espanha.<br />

de medieval raízes e lastros de virtudes<br />

suficientes para se eliminar qualquer<br />

preocupação.<br />

Não se pode, entretanto, afirmar<br />

que havia má intenção nesta atitude.<br />

Tratava-se apenas de um relaxamento<br />

e não de uma deliberação em<br />

praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento<br />

do modo de viver, a Idade<br />

Média até nos impressiona pelo que<br />

tem de temperante, de digna, de nobre,<br />

mesmo nos seus prazeres.<br />

Note-se que isto não é uma afirmação,<br />

não é uma tese que venha acompanhada<br />

de documento, mas uma hipótese<br />

baseada em alguns conhecimentos.<br />

Mas, quando formulamos esta<br />

hipótese os fatos se alinham de tal<br />

maneira que tudo se torna claro. Assim<br />

sendo, os acontecimentos ficam<br />

arquitetonicamente explicados.<br />

Está na substância<br />

da santificação o<br />

desejo da cruz<br />

É necessário considerar que isto<br />

não se refere a desvios existentes,<br />

mais ou menos excepcionais, embora<br />

até profundos. Encontramos na<br />

Idade Média fenômenos marginais,<br />

como as heresias, mas que não são<br />

a Idade Média; casos de satanismo,<br />

mas que não são a Idade Média; um<br />

20


Jesus Crucificado<br />

- Lima, Peru.<br />

imperador que é até<br />

arabizante e muçulmanizante,<br />

mas isto também<br />

não é a Idade Média.<br />

É a doença inteira<br />

do corpo social que estou<br />

procurando descrever,<br />

e não apenas<br />

certas chagas.<br />

Isto interessa<br />

muito aos contrarrevolucionários,<br />

sobretudo<br />

tendo-se em<br />

vista o Reinado do<br />

Imaculado Coração<br />

de Maria conforme sua<br />

promessa em Fátima:<br />

“Por fim o meu Imaculado<br />

Coração triunfará.”<br />

Estes princípios são<br />

tão verdadeiros que se<br />

aplicam até aos fenômenos<br />

de vida espiritual dos<br />

contrarrevolucionários de<br />

hoje. Em virtude de quase<br />

todos os ambientes atualmente<br />

estarem, uns mais<br />

outros menos, impregnados<br />

do espírito revolucionário,<br />

quando uma alma<br />

ao converter-se torna-se<br />

contrarrevolucionária,<br />

entra em uma fase de lutas e<br />

enormes provações.<br />

Há depois, uma segunda fase, de<br />

estabilização, em que tudo se torna<br />

menos árduo e mais fácil. Esta é<br />

a fase perigosa. Não se devem<br />

temer tanto<br />

as lutas<br />

de conversão<br />

como<br />

as batalhas de<br />

segunda fase, porque é aí que vem a<br />

tentação de se viver sem preocupações<br />

dentro da virtude, o que significa<br />

abandonar a virtude e viver fora<br />

dela. Está na substância da santificação<br />

o desejo de cruz.<br />

As várias etapas da<br />

decadência medieval<br />

A primeira das<br />

várias etapas da<br />

decadência medieval<br />

se caracteriza pelo<br />

agradável-bom que<br />

se acentua demais,<br />

mas sem, entretanto,<br />

deixar de ser honesto,<br />

nobre e equilibrado.<br />

A primeira das várias etapas da<br />

decadência se caracteriza pelo agradável-bom<br />

que se acentua demais,<br />

mas ainda honesto, nobre e equilibrado.<br />

É exemplo disto o traje feminino<br />

habitual na Idade Média. Era<br />

lindíssimo, com os belíssimos chapéus<br />

de cone com véus pendentes,<br />

ou em forma de gomos, com<br />

uma coroa. É algo de muito<br />

nobre e bonito, e também<br />

muito calmo e repousante.<br />

Toda a arte medieval produz<br />

uma sensação muito agradável.<br />

O agradável encontra sua melhor<br />

expressão no Gótico Flamboyant.<br />

Mas o Flamboyant vai invadindo todos<br />

os campos, e em vez de ser apenas<br />

um agradável-bonito para a sala<br />

de visitas, passa a ser a nota dominante<br />

em quase todos os ambientes.<br />

Tudo piora sensivelmente a partir<br />

do momento em que o agradável<br />

se torna ilícito e, portanto, imoral. O<br />

mesmo se dá na literatura de Cavalaria<br />

e em inúmeros outros setores da<br />

vida medieval.<br />

Para se analisar como a crise se generalizou<br />

no corpo da sociedade medieval,<br />

é necessário ver as profundidades<br />

dessa crise. Por profundidade<br />

entendemos as várias camadas dessa<br />

sociedade; a mais baixa, a do povo,<br />

constituía a última profundidade.<br />

A mais elevada seriam as cortes.<br />

A corrupção da sociedade<br />

a partir das elites<br />

Antes de prosseguirmos, seria<br />

conveniente lembrar um princípio.<br />

S. Hollmann<br />

T. Ring<br />

21


Revolução e Contra-Revolução<br />

Fotos: G. Kralj / Wikipedia<br />

1<br />

Na Idade Média o princípio do diálogo<br />

interior entre várias personalidades<br />

dava-se conforme as classes<br />

sociais. Esse processo de deterioração<br />

começou com os mais ricos e poderosos.<br />

O fenômeno é mais evidente nas<br />

cortes reais, e mesmo em certas cortes<br />

principescas tão altas quanto as<br />

cortes de reis. Começa-se então uma<br />

2<br />

pequena. Este processo é lento, mas<br />

terrivelmente eficaz.<br />

Houve tempo, na Idade Média,<br />

em que se nota muito claramente este<br />

fenômeno de corrupção nos altíssimos<br />

letrados, nos altos aristocratas,<br />

nos altíssimos argentários, e<br />

mesmo no mais alto clero.<br />

Há, no entanto, correntes de opinião<br />

e umas tantas classes sociais<br />

que constituem centros naturais de<br />

resistência. É o que se passou com<br />

o movimento humanista e renascentista,<br />

que tanto floresceu entre<br />

os altos intelectuais, mas<br />

que encontrou focos de resistência<br />

nas universidades,<br />

a tal ponto que estas<br />

Ao analisarmos alguém<br />

de personalidade encontramos<br />

— sobretudo caso se<br />

trate de um liberal — várias<br />

personalidades conjuntas<br />

que entram numa espécie<br />

de diálogo. Há num mesmo<br />

homem o monarquista e o republicano,<br />

o católico e o protestante.<br />

É o princípio das várias personalidades<br />

opostas, estabelecendo<br />

um diálogo interno, e que se dá na<br />

vida espiritual de um homem.<br />

1- Henrique VIII,<br />

rei da Inglaterra;<br />

2- Personagem<br />

característico da média<br />

nobreza (Metropolitan<br />

Museum of Art, Nova<br />

York); 3- Casal de<br />

jovens burgueses<br />

(Metropolitan Museum<br />

of Art, Nova York).<br />

3<br />

A corte corrompe<br />

a média nobreza,<br />

que por sua vez<br />

corrompe a pequena.<br />

A alta burguesia,<br />

sempre a primeira<br />

a corromper-se com<br />

os reis, deteriora a<br />

média burguesia e a<br />

pequena.<br />

vida de extravagância.<br />

A metástase, à maneira<br />

de câncer, foi se<br />

dando, de proche en<br />

proche 1 , para as demais<br />

classes sociais.<br />

A corte corrompe a<br />

média nobreza, que por<br />

sua vez corrompe a pequena.<br />

A alta burguesia, sempre a<br />

primeira a corromper-se com os<br />

reis, deteriora a média burguesia e a<br />

22


Quando estudamos<br />

o problema da<br />

decadência da<br />

sociedade medieval,<br />

ocorre-nos uma<br />

indagação no sentido<br />

de saber por onde ela<br />

se vergou à Revolução.<br />

S Miyazaki<br />

durante muito tempo ficaram à margem<br />

do movimento novo, apegadas<br />

às fórmulas antigas.<br />

Entre as camadas inferiores do<br />

povo a corrupção é muito mais lenta,<br />

havendo muita resistência. Mas<br />

esta resistência sofre um processo<br />

de degradação que se delineia mais<br />

ou menos da seguinte maneira: inicialmente<br />

há uma indignação e resistência<br />

profunda à deterioração; a<br />

seguir, uma contemporização, apesar<br />

da não adesão e até da resistência;<br />

por fim, tolerância indiferente<br />

seguida de admiração, inveja e adesão<br />

ao processo que já estava vitorioso<br />

há muito tempo nas camadas superiores<br />

da sociedade.<br />

A decadência deveu-se<br />

à tolerância dos bons<br />

Quando estudamos o problema<br />

da decadência da sociedade medieval,<br />

ocorre-nos uma indagação no<br />

sentido de saber por onde ela se vergou<br />

à Revolução.<br />

Muitos afirmam que a decadência<br />

coube aos reis e ao clero, que<br />

deram o passo inicial. Há outra teoria,<br />

mais simpática, que é a de que<br />

tudo foi possível a partir do momento<br />

em que a resistência deixou<br />

de ser caracterizada por uma intolerância<br />

agressiva, indignada e militante.<br />

Só a reação enérgica é capaz<br />

de deter o progresso do mal. O mais<br />

lamentável não é que os maus sejam<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência, na década de 1990.<br />

audaciosos, mas que os bons não<br />

lhes oferecem a intolerância e resistência<br />

que eles demonstram para<br />

com o bem.<br />

Se alguém denuncia publicamente<br />

o mal praticado pelos revolucionários,<br />

algo se lhes atrapalha, ainda que<br />

eles não queiram. E é esta espécie de<br />

atrapalhação interna, que produz o<br />

estertor dos revolucionários. Poucos<br />

têm coragem para argumentar contra<br />

quem lhes denuncia. E vence quem<br />

argumenta com mais intolerância,<br />

no sentido mais profundo da palavra.<br />

Pode-se, em certo sentido, dizer, sob<br />

este aspecto, que tudo depende inteiramente<br />

da intolerância.<br />

O mal começa a vencer quando os<br />

bons deixam de ter essa intolerância<br />

ousada e triunfante. v<br />

1) Pouco a pouco.<br />

(Extraído de conferência de<br />

maio de 1959)<br />

23


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

O mistério da vida…<br />

Quem nunca terá pensando no que consiste a vida?<br />

Analisá-la em seus mais variados graus pode deixar qualquer um<br />

estarrecido diante dos mistérios que ela contém.<br />

Diante de tão interessante tema, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discorre magnificamente à<br />

maneira de um navegador que perscruta os mares desconhecidos.<br />

Fotos: G. Kralj; S. Miyazaki; Luíza Dantas; S. Hollmann; Wikipedia.<br />

Otema a respeito do qual me<br />

pediram que tratasse é de<br />

tal vastidão, imensidade e<br />

complexidade, que se fizéssemos um<br />

simpósio de um ano não teríamos<br />

senão aflorado o assunto.<br />

Considerações<br />

sobre heráldica<br />

Imaginemos, por exemplo, um<br />

leão heráldico. O leão é, sem dúvida,<br />

um espécime magnífico do que<br />

a vida pode produzir. Como a figura<br />

desse animal, pintada sobre uma<br />

superfície, é pouco em comparação<br />

com um leão de verdade! Entretanto,<br />

ela tem, sob certo ponto de vista,<br />

uma beleza maior do que o próprio<br />

leão vivo, pois apresentando suas<br />

formas de modo mais característico,<br />

pode ele ser mais bem compreendido.<br />

E, para se entender bem uma série<br />

de leões vivos, nada melhor do<br />

que ter visto um leão bem pintado.<br />

Representar bem um leão, procurando,<br />

não propriamente imitá-lo,<br />

estilizá-lo, mas<br />

sublimá-<br />

-lo, é o que faz a heráldica. Através<br />

desta, tudo é idealizado de um modo<br />

esquematizado, captando ao mesmo<br />

tempo a anatomia e a fisiologia; mais<br />

ainda, aquilo que se poderia chamar<br />

a vitalidade e a “mentalidade” do<br />

animal. E, se olharmos para cem leões<br />

vivos, teremos aprendido menos<br />

do que vendo um leão heráldico.<br />

Leão heráldico, tinturamãe<br />

da leonicidade<br />

O que de misterioso tem a vida<br />

do leão, por onde ele parece melhor,<br />

em alguns aspectos, quando não está<br />

vivo, mas esquematizado? É que<br />

ele foi visto, considerado, por um ser<br />

com um tipo de vida mais alto, que<br />

é o homem. E o leão, depois de ter<br />

formado uma imagem na mente humana,<br />

ter criado no espírito humano<br />

uma impressão tão forte, propiciou<br />

ao homem talentoso, após uma análise,<br />

a vontade e os meios de exprimi-lo.<br />

E isto pintado pelo homem<br />

tem, sob certo ponto de vista, mais<br />

vida do que propriamente quando<br />

vivo no leão.<br />

Por quê? Porque a imagem do<br />

leão desprendeu-se deste e entrou<br />

na mente do homem, passando assim<br />

para um circuito e um grau de<br />

vida superior. O leão corre, salta,<br />

ruge, mas não entende a si próprio<br />

porque ele não entende nada. Mas<br />

alguém que entende e tem, portanto,<br />

um grau de vida incomparavelmente<br />

mais elevado, olhou para o<br />

leão e tirou de dentro dele algo mais<br />

alto do que o próprio leão e pintou<br />

este algo. Assim, o que há de precioso<br />

na vida do leão, mas meio escondido,<br />

disfarçado, a vida da alma<br />

conseguiu apresentar melhor à nossa<br />

atenção.<br />

De maneira que o pensamento<br />

de quem concebeu o leão heráldico,<br />

hirto, figé 1 , faz com que este seja como<br />

que o leão dos leões, uma tintura-mãe<br />

da leonicidade. O conceito<br />

de leão deixou de ser um leão concreto<br />

e passou a ser um leão de quintessência.<br />

Talento de um pintor<br />

ao representar<br />

uma fisionomia<br />

Outro dia, ao folhear um álbum e<br />

deparar-me com uma pintura representando<br />

uma mulher, eu pensava o<br />

seguinte: “O imponderável de um talento!<br />

A fisionomia desta mulher é<br />

de uma velha, mas neste rosto o artista<br />

pintou uma pele de moça.” Aquilo<br />

produzia uma sensação de contradição,<br />

que causava mal-estar.<br />

À esquerda, leão alado, símbolo de São Marcos - Veneza,<br />

Itália; à direita, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência.<br />

24


Entretanto o mais curioso é que a<br />

pele, sendo ao mesmo tempo de moça,<br />

tinha qualquer coisa de ensebado,<br />

de uma pessoa que se lava pouco.<br />

E de uma forma de ensebamento<br />

que dá um brilho falso e ruim à pele.<br />

Não era o brilho da limpeza, mas um<br />

lustre de sujeira que foi aplicado naquela<br />

pele de moça.<br />

Que talento tem aquele pintor para<br />

saber exprimir, por meio de tintas<br />

sucessivas sobre uma superfície lisa,<br />

até a sensação da ligeira pátina de<br />

sujeira que pode tornar repugnante<br />

a pele mais brilhante! O que há na<br />

pele de uma pessoa que parece agradável<br />

de ver, e o que nela existe por<br />

onde engendra algo que lhe é mortal<br />

e, se ela deixa durar, a torna repugnante?<br />

Que quintessência de talento<br />

precisa ter um homem para saber<br />

ver isto e passar, por cima de uma<br />

pele que ele pintou, não sei que lustrina<br />

ou verniz imitando exatamente<br />

a sujeira! Que tesouros de observação<br />

tem ele sobre a vida! O que existe<br />

na vida humana, por onde ela algumas<br />

vezes frutifica a plenitude<br />

de si mesma, e outras vezes produz<br />

sua própria deterioração e degenerescência?<br />

Fonte, ao mesmo tempo,<br />

do que há de mais admirável e mais<br />

repugnante? De uma pedra não sai<br />

nada de repugnante, também não<br />

emerge nada de admirável.<br />

Alguém poderia dizer:<br />

— O brilho!<br />

Eu digo:<br />

— O brilho é uma coisa admirável,<br />

mas é algo que, posto na pedra,<br />

ela devolve. A pedra é inerte, não<br />

tem vida. O homem, entretanto, para<br />

elogiar um olhar, diz: “Esse olhar<br />

é brilhante.” Mas o olhar vivo é tanto<br />

mais, que ele nunca elogiará um<br />

brilhante dizendo: “Parece o olhar.”<br />

Um dos brilhantes mais conhecidos<br />

e bonitos, o Koh-I-Noor, está na<br />

coroa da Rainha da Inglaterra. Pode-se<br />

fazer daquele brilhante qualquer<br />

elogio, afirmar que ele lembra<br />

uma inteligência rútila etc. O olhar<br />

humano tem tal vida que se<br />

pode dizer a uma pes-<br />

25


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

soa: “Seus olhos são como o Koh-I-<br />

-Noor.” Mas não se pode afirmar a<br />

este último: “Tu és como um olho!”<br />

Metáfora da floresta<br />

ta, nela faz algumas incursões. Depois<br />

disso, ele não sai com um mapa<br />

da floresta, mas leva na alma exemplos<br />

do que há dentro dela, algumas<br />

noções sobre a vida da floresta. Percebendo<br />

que a floresta era variável<br />

O Pão de Açúcar<br />

é colossal! Quantos<br />

milhares de homens<br />

ele esmagaria;<br />

entretanto, chegou um<br />

dia em que o homem<br />

conseguiu esticar um<br />

fio até seu topo e fazer<br />

passar uma carreta,<br />

dominando-o. E o Pão<br />

de Açúcar não pôde<br />

sequer mover-se...<br />

quase ao infinito, ele compreendeu<br />

que as incursões o ajudariam a ter<br />

uma ideia dela, a qual é mais rica do<br />

que se apenas a contemplasse de fora<br />

para dentro.<br />

A vida é uma floresta; alguns estão<br />

no meio da picada, outros perto<br />

do fim, e outros no começo, mas<br />

a picada é a mesma. Convém fazer<br />

nela, de um lado ou de outro, incur-<br />

Quais as reciprocidades, qual o jogo<br />

das analogias, o que é, no fundo,<br />

esse mistério da vida que se oculta e<br />

se mostra de um modo fugaz em todos<br />

esses exemplos que apresentei,<br />

de maneira a termos, ao mesmo tempo,<br />

a impressão de apanhar coisas finas<br />

e definidas, mas, quando se vai<br />

apalpar, vê-se que algo foge, é indefinido<br />

e resiste a qualquer definição?<br />

Com efeito, a palavra “vida” não<br />

se define, e também o vocábulo<br />

“morte”; sendo a morte a cessação<br />

de algo que não é definido, ela mesma<br />

não pode ser definida. Porque o<br />

termo “não”, posto diante do indefinido,<br />

não define o indefinido.<br />

Isso não nos impede de ter certa<br />

noção de vida e de vitalidade. Que<br />

uso fazer dessas noções, tendo em<br />

vista as finalidades para as quais estamos<br />

reunidos aqui? O que é a vida<br />

natural da alma? O que é vida sobrenatural?<br />

O que é a vida de Deus? O<br />

que é vida?<br />

Aí nós esbarramos com um mistério;<br />

podemos apalpá-lo, como<br />

faz um cego, mas sem o ver, e é para<br />

apalpações que vos convido nesta<br />

reunião. Apalpações que faremos<br />

tanto quanto possamos, não procurando<br />

abarcar o tema inteiro.<br />

Realizaremos algumas incursões<br />

no assunto, à maneira de um<br />

viajante que penetra numa<br />

floresta grande demais;<br />

ele sabe que jamais poderá<br />

percorrê-la inteira,<br />

mas, para<br />

ter algumas<br />

ideias a respeito<br />

da<br />

floressões,<br />

apalpar pontos, a fim de extrair<br />

ideias e depois fazermos algumas<br />

considerações. Mais do que isso<br />

não nos permite o tempo, ainda<br />

mais numa reunião como esta. Vou<br />

tomar a vida de baixo para cima,<br />

desde o que ela tem de mais elementar<br />

e mais simples, até chegarmos ao<br />

mais complexo.<br />

Modo de agir dos antigos<br />

navegantes portugueses<br />

Empregaremos a marcha de proche<br />

en proche. O espírito humano<br />

funciona exatamente à maneira dos<br />

antigos navegantes portugueses, que<br />

chegaram até a Índia. Eles desciam<br />

um trecho ao longo do litoral africano,<br />

depois voltavam para Sagres e<br />

desenhavam o mapa. Descansavam<br />

e desciam mais um tanto. Regressavam<br />

e anotavam o que tinham visto,<br />

em conexão com o anteriormente<br />

feito. E assim, navegando de ponto<br />

em ponto, chegaram até a dobrar<br />

o Cabo da Boa Esperança.<br />

Lá, eles estavam tão longe que o<br />

caminho da certeza já não lhes era<br />

possível. Em vez de voltar para Sagres,<br />

resolveram seguir em frente. No<br />

Cabo, segundo Camões, apareceu o<br />

gigante Adamastor para intimidar o<br />

gênio lusitano. Nossos ancestrais portugueses<br />

vararam o espectro do Adamastor<br />

e entraram pelo Oceano Índico.<br />

Então, mais valia a pena continuar,<br />

e assim chegaram à Índia; e mais<br />

tarde até a China e o Japão.<br />

Há certo ponto atingido pelo espírito<br />

humano, do qual ele não volta atrás<br />

para formar certezas, mas embarca nas<br />

hipóteses. Ou ele, pela experiência, encontra<br />

a certeza na ponta<br />

da hipótese, ou não<br />

26


sossega, não se sente satisfeito. Vamos<br />

então viajar um pouco e lançar algumas<br />

hipóteses; assim teremos obedecido<br />

à segurança e à ousadia do gênio luso,<br />

do qual tantos de nós procedemos.<br />

A pedra, a grama,<br />

o homem<br />

Consideremos a coisa mais simples,<br />

comum, que a ordem natural<br />

pode oferecer aos nossos olhos.<br />

Imaginemos que um indivíduo, andando<br />

pelo campo, encontre uma<br />

pedrazinha sobre uma graminha.<br />

Quantas pedrinhas e graminhas haverá<br />

pelo mundo? Só a sabedoria<br />

divina conhece.<br />

Sendo reflexivo, ele se detém e vê<br />

que a pedrinha está colocada ligeiramente<br />

em cima da grama, a qual<br />

cresceu inicialmente sob a pedra, fez<br />

algumas voltas e continuou a se desenvolver.<br />

O indivíduo tem uma impressão<br />

de superioridade e, ao mesmo tempo,<br />

de inferioridade da pedra. Esta<br />

pesa sobre a planta de tal maneira<br />

que a tornou torta; a pedra é, portanto,<br />

mais forte do que a planta.<br />

Entretanto, a planta tem algo dentro<br />

de si por onde ela não se conforma<br />

com a pedra; apesar de ser mais<br />

fraca, ela empurra a pedra como que<br />

com o cotovelo. Ela se adapta à forma<br />

da pedra e encontra o caminho do sol.<br />

A grama tem uma superioridade de<br />

outro gênero, que só uma palavra, de<br />

quatro letras, pode explicar bem: “v”,<br />

“i”, “d”, “a”. Ela tem vida, e<br />

por isso resiste, encontra<br />

um caminho, se esgueira,<br />

fura e brilha à luz do Sol,<br />

embora a pedra queira<br />

atrapalhá-la.<br />

E a pedra, que foi colocada<br />

ali, fica estupidamente<br />

naquele local,<br />

se ninguém a retirar,<br />

enquanto o mundo<br />

for mundo. Se for uma<br />

pedra enorme, ela pode<br />

comprimir tudo quanto é vivo. Mas<br />

se quem tem vida não se deixar comprimir<br />

por ela, o ser vivo é tão superior<br />

à pedra que faz dela o que entende.<br />

Assim, se compreende o que<br />

é a matéria não-viva, e se tem um sinal<br />

do que é a vida.<br />

O Pão de Açúcar, por exemplo,<br />

tão colossal. Quantos milhares de<br />

homens ele esmagaria; entretanto,<br />

chegou um dia em que o homem<br />

conseguiu esticar um fio até seu topo<br />

e fazer passar uma carreta, dominando<br />

o Pão de Açúcar, servindo-<br />

-se dele para um passeio. E o Pão de<br />

Açúcar não pôde nem mover-se.<br />

Embora enorme e majestoso, ele<br />

não sentiu sequer o que lhe acontecia.<br />

E essa formiga chamada homem<br />

construiu um torreão em cima dele,<br />

amarrou-o com um fio de linha e se<br />

diverte com ele.<br />

O que é então a vida?<br />

Heliotropismo<br />

No que diz respeito ao vegetal, a<br />

vida se apresenta — estou indicando<br />

sintomas externos<br />

— como uma possibilidade de tirar<br />

de si mesmo uma mudança de sua situação.<br />

A planta cresce, se desenvolve,<br />

fenece. Ela existe dentro do tempo,<br />

está sujeita a mil condições, a mil<br />

infortúnios, mas de si tem uma coisa<br />

que o mineral absolutamente não<br />

possui: uma energia pela qual, por<br />

um princípio que lhe é próprio, crava<br />

raízes na terra e seleciona o que lhe<br />

convém. Ela se expande na direção<br />

dos minerais que lhe são úteis.<br />

O melhor dos mineralogistas não<br />

conhece tão bem os minerais como<br />

uma planta, incapaz de conhecer-<br />

-se a si própria ou qualquer outra<br />

coisa. E o trabalho dela, por debaixo<br />

da terra, é de antenas delicadas,<br />

por onde ela faz esta coisa admirável<br />

que o ser inerte não é capaz de realizar:<br />

encontrar, sugar e transformar<br />

em si mesma algo que não é ela.<br />

Quer dizer, ela faz um encontro e<br />

um trabalho de assimilação, de apropriação,<br />

que é o crescimento dela. E,<br />

da noite de suas raízes, ela tira a parte<br />

dela que brilha e frutifica.<br />

O mais extraordinário é que ela<br />

não conhece nada; a planta não tem<br />

nem sequer sensibilidade. E sem ter<br />

sensibilidade ela, entretanto,<br />

porque tem isto chamado<br />

vida, possui determinada<br />

ordenação<br />

por<br />

27


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Coroa da Rainha da Inglaterra;<br />

em destaque, o Koh-I-Noor.<br />

onde pega o que lhe convém e se desenvolve.<br />

O heliotropismo é a procura que<br />

a planta faz do sol. Algumas até giram,<br />

fazem torções para encontrar o<br />

astro rei, como o girassol. Se alguém<br />

quisesse caricaturar o Sol, imaginaria<br />

o girassol, que é a figura do bajulador<br />

procurando imitar o bajulado,<br />

voltando-se para este, mas sem conseguir<br />

imitá-lo em nada; sol vulgar,<br />

rasteiro, amarelo, quando o outro é<br />

dourado. O girassol tem uma bordadura<br />

que imita o dourado e um cebolão<br />

marrom, no seu interior. O marrom<br />

é o estado plebeu do ouro e o<br />

estado mortal do amarelo.<br />

O que é propriamente o heliotropismo?<br />

Os cientistas já o estudaram.<br />

Eles conseguem tornar tantas coisas<br />

sem graça; entretanto, aprofundando-se<br />

o que dizem, pode-se verificar<br />

a existência de alguma graça<br />

no assunto. O Sol traz consigo certas<br />

transformações do ar e determinados<br />

graus de calor necessários para<br />

que a planta, a qual, movida pela<br />

vida, procura — notem bem — a sua<br />

própria conservação e seu próprio<br />

desenvolvimento. Trata-se, portanto,<br />

de uma forma de energia nascida de<br />

dentro do próprio vegetal, que procura<br />

sua conservação<br />

e depois a plenitude<br />

— o que não se<br />

conserva não alcança<br />

a plenitude;<br />

mas às vezes o que<br />

não alcança a plenitude,<br />

se conserva. Isto<br />

que está na planta, e dessa forma<br />

se desenvolve, o que é?<br />

A graminha e o<br />

Koh-I-Noor<br />

É um mistério. Mas um mistério<br />

ordenadíssimo, que torna o vegetal<br />

muito superior ao mineral e faz da<br />

graminha — mesmo a mais insignificante,<br />

que não é alimento para o nobre<br />

cavalo, nem tapete para um leão,<br />

mas comida de formiga — algo intrinsecamente<br />

mais nobre do que<br />

o Koh-I-Noor. Este não reage, não<br />

opera, não cresce, não tende para<br />

perfeição nenhuma, é parado; dentro<br />

dele não habita nenhuma energia<br />

vital. A planta, porque é capaz dessas<br />

coisas, vale mais que o Koh-I-Noor.<br />

Isso de tal maneira é verdade que se<br />

imaginássemos dois artistas, um fizesse<br />

o Koh-I-Noor e o outro elaborasse<br />

um vegetal, diríamos que muito<br />

maior é aquele que soube fazer uma<br />

planta. Em outros termos, a grandeza<br />

de Deus se reflete muito mais numa<br />

plantinha feita para alimentar<br />

formiga do que no Koh-I-Noor.<br />

O Koh-I-Noor vai para a coroa da<br />

Rainha da Inglaterra. A graminha...<br />

Se um lacaio relaxado deixar que<br />

uma graminha fique no caminho da<br />

Rainha, no dia da coroação ou da<br />

inauguração do Parlamento, ela pisa<br />

em cima da graminha sem perceber.<br />

Ela calca o tesouro, mas leva sobre a<br />

fronte a coisa secundária!<br />

Metafisicamente falando, a obra-<br />

-prima de Deus é mais a graminha<br />

do que o Koh-I-Noor. De fato, o<br />

Criador colocou as coisas graduadas<br />

para nossas vistas, de maneira a podermos<br />

percebê-Lo mais no Koh-I-<br />

-Noor do que na graminha; mas na<br />

realidade a graminha é mais do que<br />

o Koh-I-Noor.<br />

A graminha não sabe nada, mas dela<br />

se pode dizer o que Nosso Senhor<br />

afirmou sobre os lírios do campo:<br />

“Olhai para os lírios do campo, não tecem<br />

nem fiam, entretanto Salomão,<br />

em sua grandeza, não se vestiu como<br />

eles!” 2 . Poderíamos dizer: “Olhai para<br />

a graminha, não tem ciência nem sensibilidade,<br />

entretanto nenhum botânico<br />

sabe, com tanto acerto, o que convém<br />

a ela; a graminha procura nas trevas,<br />

na escuridão, aquilo que lhe convém<br />

e o encontra.”<br />

Gramado de uma<br />

grande fábrica<br />

Considerem uma fábrica moderna<br />

fabulosa. Ela não realiza o que faz<br />

uma graminha, quando deita um milímetro<br />

a mais de seu próprio vegetal.<br />

Houve até quem dissesse que os<br />

vegetais eram fábricas feitas por<br />

Deus: por ordem de seu Criador, a<br />

natureza fabricava coisas que o homem<br />

não sabia produzir. A comparação<br />

só não me agrada porque diminui<br />

a importância da grama. A vida,<br />

que está no vegetal, é mais do<br />

que algo organizado pelo homem<br />

para produção de caráter material,<br />

remexendo coisas minerais, químicas<br />

etc.<br />

Imaginem uma fábrica na qual há<br />

um gramado. Quem haveria de dizer<br />

que, no fundo, o gramado é mais do<br />

que a fábrica? Um técnico poderia<br />

explicar tudo o que se faz na fábrica,<br />

mas nenhum grande cientista seria<br />

capaz de dizer o que é a vida que<br />

anima aquele gramado.<br />

Se compreendêssemos a lição de<br />

sabedoria que Deus nos dá! Enquanto<br />

estamos aqui conversando, a grama<br />

de nosso jardim está respirando.<br />

O Criador sabe o que cada folha de<br />

vegetal está fazendo, por causa desta<br />

vida que lhe deu. E numa hierarquia<br />

tão bem calculada que cada ve-<br />

28


getal faz tudo quanto está na sua natureza,<br />

mas não sobe um milímetro,<br />

um grau, além de sua natureza; faz<br />

o que está de acordo com a ordem<br />

vegetal, mas não é capaz de realizar<br />

nada de animal; pelo contrário,<br />

serve de moldura e de comida para<br />

o animal. O gramado é um banquete<br />

das formigas e dos passarinhos, e<br />

não vive senão voltado para os seres<br />

de ordem superior. Então compreendemos<br />

que tesouros da sabedoria<br />

divina existem num simples canteiro.<br />

Glorificar a Deus por<br />

ter criado os vegetais<br />

Se fôssemos capazes de entender<br />

isto, nos ajoelharíamos e glorificaríamos<br />

a Deus pelo que a planta faz na<br />

sua raiz e na parte que aparece acima<br />

da terra. Diríamos:<br />

“Meu Deus! Vós fizestes, entre<br />

outras coisas, as plantas tão feias na<br />

sua raiz e tão belas na parte que aparece.<br />

Mas, de outro lado, para que<br />

vossas regras, dentro do imobilismo<br />

de certos padrões, tivessem todas as<br />

mobilidades possíveis, fizestes em<br />

algumas plantas raízes tais que elas<br />

formam os mais bonitos parques para<br />

os palácios.<br />

“E algumas dessas raízes se comparam<br />

ao trigo, para alimentar o homem:<br />

o cará, a mandioca, a batata<br />

e tantas outras. Vós quisestes que a<br />

planta, às vezes, desse no fundo da<br />

terra aquilo que ela costuma apresentar,<br />

a título de fruto, balançando<br />

ao céu. Desejastes fazer tudo isso diverso<br />

e, apenas neste grau primeiro<br />

de vida, nos destes uma possibilidade<br />

quase infinita de meditação.<br />

“De todo esse formigamento de<br />

vida, Vós sois o Autor. Mas um Autor<br />

sem esforço, sem o trabalho da<br />

aplicação, que faz tudo isso com a<br />

serenidade e a facilidade que nenhum<br />

de nós homens conhece.”<br />

Eis aí uma primeira noção da vida,<br />

que nos aproxima diretamente de<br />

Deus. E nos faz compreender que esse<br />

primeiro degrau da vida, debaixo de<br />

certo ponto de vista, já é um santuário.<br />

Nós nos sentimos pequeninos, desconcertados,<br />

mas temos uma experiência<br />

interna curiosa. Olhando para a planta,<br />

na perspectiva em que estou falando,<br />

nós dizemos: “Como somos grandes<br />

em relação aos vegetais!”<br />

O que qualquer homem é capaz<br />

de falar sobre uma planta, ou fazer<br />

dela, é uma coisa fenomenal! Pobre<br />

planta! Mas Deus põe ali mistérios,<br />

perto dos quais somos pequeninos e<br />

então dizemos: “Aquele que conhece<br />

o que não conhecemos e fez o que<br />

não podemos fazer, e nos fez a nós<br />

mesmos, é superior a nós, assim como<br />

somos superiores à planta.”<br />

Podemos então imaginar, vagamente,<br />

como Ele nos vê. Somos incomensuravelmente<br />

superiores a um vegetal,<br />

o Criador é infinitamente superior<br />

a nós. Como será Ele, que criou a<br />

mim e a planta, e fez que eu pensasse<br />

o que acabo de dizer sobre ela, e<br />

quis esse contraste, essa comparação,<br />

para que me reportasse a Ele, tivesse<br />

uma figura d’Ele, e me enchesse de<br />

respeito e de amor para com Ele, mas<br />

me sentisse face a Ele menor do que<br />

Jardim do Castelo<br />

de Angers, França.<br />

a menor das plantas diante do Himalaia?<br />

Oh, meu Deus! Que lição! E<br />

quanta sabedoria d’Ele para que, sem<br />

me revelar nada, nem me falar nada a<br />

não ser o que está nos livros da Revelação,<br />

entretanto, me desse um espírito<br />

por onde eu fosse capaz de calcular<br />

tudo isso e ver quem Ele é!<br />

O homem criou uma<br />

planta imaginária:<br />

o lírio heráldico<br />

Deus aparece ao homem e lhe<br />

diz algumas coisas a respeito da vida<br />

que Ele criou; mas não se sabe quando<br />

surgiram os seres vivos. Que coisa<br />

gloriosa o homem receber essa comunicação<br />

de Deus! E como Deus me<br />

amou fazendo com que eu conhecesse<br />

tal comunicação; e, de outro lado,<br />

deu-me inteligência por onde algo eu<br />

descobrisse e me dignificasse. Porque<br />

descobrir não é de nenhum modo<br />

criar, mas tem analogia com criar.<br />

E o Criador, que é infinito, deu-me a<br />

possibilidade de fazer essa analogia.<br />

Um homem colhe uma planta,<br />

um lírio, por exemplo, e o transforma<br />

num lírio que não existe: o lírio<br />

da heráldica. Esse homem criou<br />

uma planta imaginária. E nisso ele<br />

se parece um pouco com Aquele que<br />

criou a planta real.<br />

Isso é uma analogia que Deus, a<br />

propósito dos vegetais, bondosamente<br />

concedeu ao espírito humano.<br />

É bonito receber a Revelação!<br />

Mas também é bonito andar com os<br />

passos da inteligência e construir<br />

uma determinada coisa. Como é bonito<br />

viver! Porque isso é viver. E como<br />

é bela a vida!<br />

v<br />

Continua no próximo número…<br />

1) Fixo, imobilizado.<br />

2) Mt 6, 28-29.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 2/2/1980)<br />

29


Luzes da Civilização Cristã<br />

A Quarta-Feira de Cinzas<br />

em seu nascedouro<br />

Dentre as inúmeras luzes irradiadas pela Santa Igreja sobre a<br />

Civilização Cristã, encontra-se uma de inigualável valor: a Liturgia<br />

católica! Esta, quando vista em função do contexto no qual surgiu,<br />

apresenta brilhos e encantos próprios.<br />

Analisando a gênese da Quarta-Feira de Cinzas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

aponta-nos o verdadeiro estado de espírito com que devemos<br />

ingressar na Quaresma.<br />

Para bem se compreender a<br />

intenção da Igreja ao instituir<br />

o cerimonial da Quarta‐Feira<br />

de Cinzas, é necessário considerar<br />

suas origens, bem como sua<br />

repercussão na época em que foi estabelecido.<br />

Portanto, é necessário voltarmos<br />

nossa atenção a um longínquo passado,<br />

visto que essa prática litúrgica<br />

— à semelhança de como quase todas<br />

as outras — se constituiu, provavelmente,<br />

de modo definitivo na Idade<br />

Média. Algo ainda se acrescentou<br />

nos primeiros séculos dos tempos<br />

modernos, e depois disso quase<br />

nada foi acrescido.<br />

A Igreja, centro<br />

da vida social<br />

Como eram constituídas as cidades<br />

no tempo em que essa prática litúrgica<br />

surgiu?<br />

Por aquilo que delas restou, ou<br />

pelo que ficou retratado nas iluminuras,<br />

vê-se que as cidades medievais<br />

eram pequeninas, com ruas estreitas<br />

a fim de caber dentro de muralhas,<br />

as quais eram necessariamen-<br />

30


Fotos: E. Salas; P. Mikio; R. C. Branco; S. Hollmann; O. Melo; S. Miyazaki.<br />

Genazzano, Itália.<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

Aspectos da cidade<br />

de La Brigue, França.<br />

só tinha verdadeira<br />

aute<br />

circunscritas, pois que<br />

serviam para defender os<br />

habitantes de ataques inimigos.<br />

Por isso, as casas eram muito<br />

próximas umas das outras; o andar<br />

superior se projetava mais para<br />

a frente de modo a ficar sobre a<br />

rua, a ponto de, estando à janela de<br />

uma dessas casas, ao estender o braço,<br />

poder-se tocar na casa que estava<br />

adiante.<br />

No centro desse emaranhado orgânico<br />

de edifícios erguia-se uma<br />

torre: o campanário da igreja. Mais<br />

próximo à igreja havia, às vezes, uma<br />

ou mais abadias ou conventos, em<br />

torno dos quais se agrupava a população.<br />

Deste modo, tudo quanto se<br />

passava na igreja constituía o centro<br />

da vida social.<br />

Os pecadores ante<br />

a sociedade<br />

Ora, o que se passava na igreja,<br />

na quarta-feira que marcava o início<br />

da Quaresma?<br />

As pessoas que haviam se tornado<br />

claramente pecadores — tendo,<br />

por exemplo, matado alguém sem<br />

disso ter se arrependido e confessado,<br />

portanto, vivendo afastadas dos<br />

sacramentos; ou então blasfemado<br />

publicamente contra Deus e contra<br />

a Igreja, e apesar de repreendidas<br />

persistiram em sua obstinação;<br />

e até mesmo aquelas<br />

que notoriamente<br />

se tinham afastado<br />

da Igreja, deixando<br />

de comparecer<br />

à Missa e<br />

frequentar os<br />

sacramentos<br />

— eram chamadas<br />

pecadores<br />

públicos.<br />

Como eram<br />

vistos pela sociedade<br />

estes<br />

pecadores?<br />

O conceito do<br />

homem medieval a<br />

respeito deste tipo de<br />

gente era o seguinte: “Eles<br />

são pecadores, miseráveis e, por isso,<br />

altamente censuráveis, deles devemos<br />

viver afastados, pois o homem<br />

reto não convive com o pecador,<br />

e quando tem que tratar com<br />

um deles, o faz com distância e frieza,<br />

pois, até que se arrependa e faça<br />

penitência por seu pecado, sendo<br />

inimigo de Deus ele é também inimigo<br />

do gênero humano!”<br />

Apesar disso, a centralidade da<br />

Igreja na sociedade medieval era<br />

tal que até mesmo esses pecadores<br />

compareciam à igreja por ocasião da<br />

Quarta-Feira de Cinzas, mesmo porque<br />

a maior parte deles sabia que estava<br />

no mau caminho e pesava-lhes<br />

viver naquele estado, apesar de não<br />

querer abandoná-lo.<br />

Além desses pecadores, nesta<br />

ocasião havia outros que se denunciavam<br />

como tais. Às vezes, eram<br />

homens tidos como muito virtuosos,<br />

mas que nessas cerimônias apareciam<br />

entre os pecadores públicos,<br />

acusando‐se de algum pecado. E,<br />

por terem sido objeto de uma honraria<br />

e consideração à qual não tinham<br />

direito, estando arrependidos<br />

queriam receber o desprezo que mereciam.<br />

Ademais, a estes se somavam<br />

muitos que, por terem cometido pecados<br />

que não eram públicos, mas<br />

se julgavam pecadores, juntavam-se<br />

àqueles para fazer penitência e assim<br />

reparar suas faltas.<br />

Aproximai-vos de onde<br />

o perdão vos vem<br />

Assim, quando os sinos começavam<br />

a tocar, as pessoas iam saindo<br />

de suas casas, e no grupo dos inocentes<br />

ou dos pecadores se dirigiam<br />

para a igreja. Imaginemos o estado<br />

de espírito desses homens pecadores,<br />

andando pela rua, ao lado da<br />

população inocente, vendo de longe<br />

a fachada imponente da igreja, adornada<br />

de santos e de anjos, tendo no<br />

centro uma imagem do Crucificado,<br />

ou de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo abençoando, ou então a<br />

imagem da Virgem das Virgens,<br />

concebida sem pecado original.<br />

Ouvindo ainda o bimbalhar<br />

dos sinos, chegam diante da<br />

fachada da igreja que se ergue<br />

imponente, aparentando<br />

severidade, entretanto tão<br />

acolhedora que parece dizer:<br />

“Vinde, filhos! Vós pecastes,<br />

mas aproximai-vos<br />

de onde o perdão vos vem,<br />

confessai‐vos e arrependei‐vos.”<br />

Entravam todos e,<br />

transcorrida a cerimônia,<br />

os pecadores<br />

se retiravam para um<br />

determinado<br />

onde iriam fazer<br />

penitência.<br />

Contudo, isto<br />

lugar<br />

32


No centro do emaranhado<br />

orgânico de edifícios<br />

erguia-se uma torre: o<br />

campanário da igreja.<br />

Tudo quanto se passava<br />

na igreja constituía o<br />

centro da vida social.<br />

tenticidade porque o homem na Idade<br />

Média possuía uma profunda noção<br />

da gravidade do pecado.<br />

Alguém que não se toma<br />

a sério a si próprio<br />

Como manter firme esta noção<br />

que inúmeras circunstâncias procuram<br />

desbotar em nós?<br />

Para compreendermos isso, vou<br />

levantar uma pergunta um tanto estranha.<br />

O que meus ouvintes pensam<br />

de um homem, do qual se afirmasse<br />

o seguinte: “Você é um tipo<br />

leviano, que não se toma a sério a si<br />

próprio.” A resposta normal a tal injúria<br />

poderia ser uma bofetada! Pois,<br />

um homem que não se toma a sério<br />

a si próprio não vale nada; é próprio<br />

do homem tomar‐se a sério, e este é<br />

o primeiro passo para ele ser alguma<br />

coisa.<br />

Ora, quanto mais descabida, para<br />

não dizer blásfema, a seguinte pergunta:<br />

Será que Deus se toma a sério<br />

a Si próprio?<br />

Evidentemente, Deus Se toma<br />

infinitamente a sério, assim como<br />

Se ama infinitamente a Si próprio.<br />

Donde deflui que, tendo Ele apontado<br />

que determinadas atitudes constituem<br />

pecado, de tal forma que os<br />

homens que as praticam rompem<br />

com Deus e tornam-se seus inimigos,<br />

isto é tomado realmente a sério por<br />

Deus.<br />

Tomando-Se a sério, Deus não diz<br />

algo que não produz efeito, não proclama<br />

uma inimizade que não é autêntica.<br />

Do contrário seria o caso de<br />

se perguntar se Deus existe.<br />

A seriedade de tudo<br />

diante de Deus<br />

A Virgem e o Menino,<br />

Aachen (Alemanha). À<br />

esquerda, Catedral de<br />

Chartres, França.<br />

Com esta seriedade, que participa<br />

de sua infinita sabedoria e santidade,<br />

Deus vê as ações dos homens.<br />

Tudo é imensamente sério diante<br />

de Deus. O pecado, portanto, é profundamente<br />

sério, execrável e gravís-<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

simo! Quem o comete rompe com<br />

Deus, pondo-se na mais miserável<br />

das situações.<br />

Por mais rico que alguém possa<br />

ser, ao pecar torna-se o mais desafortunado<br />

dos homens, pois tendo<br />

tudo o que a Terra pode oferecer,<br />

não pode merecer o Céu. O pecador<br />

deve saber que é ainda pior o fato<br />

de ele estar na contingência de, a<br />

qualquer momento, advir-lhe a punição<br />

divina, seja com penas nesta vida,<br />

através de inúmeras e inopinadas<br />

desgraças que podem desabar sucessivamente<br />

sobre ele, ou então com a<br />

pior das punições, que é a do inferno,<br />

às quais nada nesta Terra serve<br />

como termo de comparação: as trevas<br />

eternas, onde o fogo queima e<br />

não ilumina, onde os piores tormentos<br />

atazanam continuamente os homens,<br />

os quais compreendem não<br />

haver para eles mais remédio.<br />

O pecador tem a noção viva do<br />

mal que fez contra Deus e que não<br />

deveria ter feito, por ser Ele infinitamente<br />

Santo, Bom e Verdadeiro.<br />

Sabe igualmente que é pela infinita<br />

Justiça divina que aquela tremenda<br />

cólera desaba sobre os pecadores.<br />

Esta noção os pecadores na Idade<br />

Média a tinham, e por isso iam à igreja<br />

pedir perdão e fazer penitência.<br />

Sentir a gravidade<br />

do pecado<br />

O que são essa penitência e esse<br />

perdão?<br />

Em primeiro lugar, o pecador deve<br />

reconhecer todo o mal que fez.<br />

Para isso a Igreja incita-o a recitar<br />

os salmos penitenciais, os quais, de<br />

modo magnífico, estimulam o sentir<br />

da enorme gravidade e malícia<br />

do pecado. Através dos salmos penitenciais<br />

nota-se que sendo Deus<br />

tão insondavelmente bom, Ele cria<br />

o homem com a glória do estado<br />

de prova para assim poder adquirir<br />

méritos. Contudo, tendo o homem<br />

Note-se a bela atitude<br />

da Igreja: ao mesmo<br />

tempo em que ela<br />

estimula o uso dos<br />

cilícios, institui uma<br />

cerimônia para<br />

abençoá-los, como se<br />

dissesse: Penitencia‐te<br />

até o sangue, mas<br />

sendo tu meu filho,<br />

aproxima-te que vou<br />

deitar minha bênção<br />

neste instrumento que<br />

te tortura!<br />

pecado — ao invés de exterminá-lo<br />

de imediato conforme a ofensa mereceria<br />

—, Deus “cochicha” no ouvido<br />

do homem aquilo que o homem<br />

deve considerar a fim de medir<br />

a gravidade do mal cometido,<br />

além de ensiná-lo como<br />

pedir perdão, tal como<br />

um juiz que recebe<br />

Imposição das cinzas.<br />

o réu com uma majestade indizível,<br />

com aparatos de força e severidade<br />

tremendos, mas ao mesmo tempo<br />

manda alguém entregar ao réu um<br />

bilhete que diz: “Se rogares ao juiz<br />

na sinceridade de tua alma e pedires<br />

com as seguintes palavras que<br />

estão neste bilhete, o juiz te manda<br />

o recado que te atenderá!”<br />

Assim, o pecador como um réu<br />

caminha para o Deus Juiz, com a<br />

oração ditada por Ele próprio. Não<br />

se pode imaginar maior manifestação<br />

de misericórdia do que esta.<br />

Então, do fundo da igreja, vinha<br />

o mísero cortejo dos pecadores rezando:<br />

“Miserere mei Deus, secundum<br />

magnam misericordiam tuam,<br />

et secundum multitudinem miserationum<br />

tuarum, dele iniquitatem<br />

meam — Tende compaixão de<br />

mim ó Deus, segundo a vossa grande<br />

misericórdia. E segundo a multidão<br />

de vossas bondades, apagai a<br />

minha falta.”<br />

Sentindo-se esmagados pela grandeza<br />

do Juiz e pela infâmia de sua<br />

culpa, eles rezam para pedir perdão.<br />

Mas, ao mesmo tempo, são alentados<br />

pela promessa do Juiz que lhes<br />

diz: “Reza desta forma, meu filho,<br />

sente isto, que eu me tornarei teu<br />

amigo!” Nisso vê-se o magnífico<br />

equilíbrio da atitude divina.<br />

Havendo Deus “ditado” a oração<br />

que deve ser a Ele dirigida para pedirmos<br />

perdão, não poderia ter Ele<br />

34


Cilícios utilizados por São Geraldo Majella.<br />

Como eram as penitências?<br />

Antes de tudo tratava-se de jejuar,<br />

alguns chegavam a passar os quarenta<br />

dias a pão e água. Mas havia<br />

também uma cerimônia da bênresumido<br />

esta súplica numa jaculatória,<br />

com isso adiantando o momento<br />

do perdão?<br />

De súplica em súplica,<br />

até a confiança<br />

no perdão<br />

Tal como está constituído, este<br />

conjunto de salmos dá a impressão<br />

de que, enquanto a pessoa reza,<br />

permanece, entretanto, certa<br />

dúvida acerca do perdão de Deus.<br />

Por isso o penitente repete o pedido<br />

com um novo argumento. Por<br />

vezes apela-se à bondade de Deus,<br />

noutra parte à glória. Porém, cada<br />

uma dessas palavras é muito adequada<br />

e útil para preparar o espírito<br />

à compenetração da gravidade<br />

do pecado, mas também para<br />

que vá se adquirindo uma confiança<br />

inabalável de que Deus o perdoará.<br />

À medida que os salmos se sucedem,<br />

tem-se a impressão de que o<br />

Salmo da Confiança vai despontando,<br />

até chegar à última palavra, a<br />

qual opera uma explosão de confiança:<br />

“Vós me salvareis ó Deus!”<br />

Quando se chega a esta esperança<br />

cheia de alegria pelo fato de Deus<br />

ter dito no fundo da alma do pecador<br />

que ele será salvo, inicia-se a<br />

Quaresma. Movido por esta esperança<br />

o pecador quer sofrer para expiar<br />

suas faltas.<br />

Então, aproximando-se do padre,<br />

o pecador se ajoelha e este lhe traça<br />

com cinza uma cruz sobre a fronte,<br />

dizendo: “Lembra‐te, homem, que<br />

és pó e ao pó hás de voltar.” O que<br />

naquela ocasião equivalia a dizer:<br />

“Cuidado! A morte ronda em torno<br />

de ti. Deus, apesar de infinitamente<br />

bom, é justo também. Agora vai e faze<br />

penitência.”<br />

Ela fere, mas também<br />

cuida da ferida<br />

ção dos cilícios, os quais geralmente<br />

eram cintos cheios de pequenos ganchos<br />

de ferro que arranhavam a carne<br />

em torno do tronco, causando dolorosas<br />

feridas. Estes eram usados<br />

por alguns durante todo o período<br />

da Quaresma.<br />

Note-se a bela atitude da Igreja<br />

que aqui está contida. Ao mesmo<br />

tempo em que ela estimula o uso dos<br />

cilícios, institui uma cerimônia para<br />

abençoá-los, como se dissesse: Penitencia‐te<br />

até o sangue, mas sendo tu<br />

meu filho, aproxima-te que vou deitar<br />

minha bênção neste instrumento<br />

que te tortura!<br />

Aí se vê mais uma vez o equilíbrio<br />

entre a justiça e a misericórdia.<br />

E justamente por dever existir este<br />

equilíbrio entre estas, bem como<br />

entre as demais virtudes, é que devemos<br />

amar a justiça tanto quanto a<br />

misericórdia.<br />

De maneira que diante de uma<br />

afirmação como a seguinte: “Deus<br />

disse ao pecador: Eu te execro!” Nós<br />

devemos exclamar, assim como o faríamos<br />

diante de uma frase misericordiosa.<br />

Pois, quando o pecador<br />

compreende o mal de seu pecado, e<br />

percebe quanto Deus odeia o pecado,<br />

ele compreende também quanto<br />

Deus é a Pureza. E diante da Pureza<br />

infinita de Deus, como pode alguém<br />

não se entusiasmar?<br />

Quem tem horror ao pecado, ama<br />

a virtude à qual este se opõe. Portanto,<br />

é sumamente necessário ter entusiasmo<br />

pela severidade de Deus.<br />

Uma bela oração para se fazer<br />

nesta Quaresma é a seguinte: “Ó<br />

meu Senhor, como Vós odiais meus<br />

pecados! Eu Vos peço: dai‐me uma<br />

centelha de vosso ódio sagrado em<br />

relação a eles!” Porém, logo depois,<br />

nós devemos também pedir a misericórdia,<br />

pois sem ela quem pode subsistir?<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 2/3/1984)<br />

35


O ápice da “história dos olhares”<br />

F. Boulay.<br />

Encontro de Jesus<br />

com sua Mãe - Igreja<br />

de Nossa Senhora<br />

do Bom Socorro,<br />

Montreal (Canadá).<br />

Como terá sido a última troca de olhares entre Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima?<br />

Imaginemos o afeto, o mundo de amor e de respeito, a veneração, o entendimento<br />

de almas recíproco que nessa hora transpareceu.<br />

Este foi o momento culminante da “história dos olhares”.<br />

Caso alguém tenha podido contemplar esses dois olhares, seria uma vantagem ficar cego em<br />

seguida. Pois, o que ver depois disso?<br />

(Extraído de conferência de 23/9/1972)

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