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Revista Dr Plinio 160

Julho de 2011

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Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>160</strong> Julho de 2011<br />

Contemplando a História<br />

e os planos de Deus


Santo Inácio de<br />

Loyola - Coleção<br />

particular (cópia<br />

do original de<br />

Cláudio Coelho -<br />

Madrid, Espanha).<br />

G. Kralj<br />

O<br />

grande Santo Inácio, fundador da Companhia<br />

de Jesus, à qual se deve a primeira e talvez<br />

a mais gloriosa e mais eficaz das Contra-<br />

-Revoluções, que é a Contra-Reforma, tornou-se famoso<br />

pelo seu espírito pugnaz, pela sua penetração política,<br />

sua psicologia finíssima e pela capacidade que possuía<br />

de pregar extraordinários exercícios espirituais.<br />

Homem capaz de guardar segredo, de fazer no silêncio<br />

uma longa, complexa e subtil trama política,<br />

dotado de um espírito de autoridade invulgar, Santo<br />

Inácio exercia sobre os seus religiosos um mando total,<br />

que fez da Companhia de Jesus o próprio símbolo<br />

da obediência.<br />

Entretanto, esse mando que Santo Inácio exercia sobre<br />

os outros, ele começou por praticar sobre si mesmo:<br />

é um homem que tem o completo domínio sobre si.<br />

Ao contemplar sua fisionomia, tem-se a impressão<br />

de que se estourasse uma bomba nas proximidades, ele<br />

não se assustaria.<br />

Se tivesse que pegar uma espada para combater, ele<br />

não mostraria sanha, mas deveria ser um combatente<br />

excelente. Entretanto, ele possuía não o hábito de esgrimir<br />

com a espada, mas sim com argumentos. E,<br />

por nobre que seja esgrimir com espadas, é mais nobre<br />

ainda esgrimir com argumentos.<br />

(Extraído de conferência de 17/1/1986)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>160</strong> Julho de 2011<br />

Ano XIV - Nº <strong>160</strong> Julho de 2011<br />

Contemplando a História<br />

e os planos de Deus<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1993.<br />

Foto: M. Shinoda<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Editorial<br />

4 O Império Eterno<br />

Datas na vida de um cruzado<br />

5 Julho de 1935: Um Ano depois…<br />

Dona Lucilia<br />

6 As carruagens douradas<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Hagiografia<br />

12 Santo Henrique, Imperador<br />

O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

16 A História do Universo<br />

e sua interpretação doutrinária - II<br />

Perspectiva pliniana da história<br />

22 O Império Romano nos planos de Deus<br />

Calendário dos Santos<br />

28 Santos de Julho<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 101,00<br />

Colaborador .......... R$ 130,00<br />

Propulsor ............. R$ 260,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 430,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 13,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

30 Na encruzilhada da História…<br />

Última página<br />

36 A poderosa intercessão de Maria<br />

3


Editorial<br />

O Império Eterno<br />

Q<br />

uem contempla a arte romana pode apalpar algo do aroma de grandeza do povo que maior<br />

influência teve sobre a cultura ocidental. Roma é eterna em seus mosaicos dourados, nas<br />

suas portentosas ruínas e nas estátuas de mármore onde se contemplam personagens hieráticos<br />

que demonstram uma capacidade humana invejável. Lógica, autodomínio e desejo de grandeza<br />

são predicados salientes naquelas fisionomias que parecem mais voltadas à eternidade.<br />

As representações dos antigos patrícios parecem mitificar o romano como um herói acima da própria<br />

natureza, não como mera utopia, mas com o empenho de refletir algo da alta concepção de plenitude<br />

humana admirada pelo povo que conquistou reinos e impérios, que fez do Mediterrâneo uma<br />

propriedade exclusiva, o Mare Nostrum.<br />

Durante cerca de oito séculos, o Velho Mundo viveu sob a influência imediata das águias latinas<br />

pendentes em seu vitorioso estandarte. Ainda hoje esta civilização é admirada em sua engenhosa arquitetura,<br />

em suas técnicas militares, em sua arte de governar os conquistados, na ordem admirável<br />

do seu Direito, na sua arte secular e na riqueza da literatura.<br />

A perenidade da cultura romana é vista, por exemplo, no latim, o idioma da cultura. Durante séculos<br />

foi usado nas universidades para transmitir o conhecimento humano. Inclusive após as invasões,<br />

quando as províncias cederam lugar aos reinos germânicos, a língua de Cícero espalhou-se por toda a<br />

Europa e se manteve pelos séculos através do inegável contributo da Igreja.<br />

Os povos latinos, legítimos e imediatos herdeiros de Roma, espalharam as línguas românicas por<br />

todos os continentes. Cerca de metade da população mundial usa o alfabeto latino, e quase um terço<br />

da superfície terrestre é habitado por povos que têm por idioma uma das línguas românicas.<br />

Roma é eterna. Entretanto, esta grandiosa perenidade do Império abrigou dois modos de conceber<br />

o espírito romano. Duas cidades disputavam abertamente a herança dos gloriosos antepassados<br />

do Lácio: Roma e Bizâncio. Ambas reluzem qualidades específicas nas expressões artísticas, nas formas<br />

de governo e na mentalidade de cada cidadão.<br />

Com o decorrer dos séculos, esta diferença foi se solidificando até o momento no qual, com a divisão<br />

do Império em 395, a parte oriental passou a ser conhecida como Bizantina. Púrpura, cerimônia<br />

e esplendor lhe eram palavras correlatas. A erudição, a inteligência e a diplomacia de Bizâncio procuravam<br />

afirmá-la como única herdeira da cultura helênica e da grandeza latina.<br />

Roma ou Bizâncio, quem haverá herdado a totalidade do espírito do Império? Como a Teologia<br />

da História poderia definir a diferença psicológica dos romanos orientais e dos ocidentais? Qual era,<br />

em última análise, o desígnio de Deus a respeito dessa maravilha de lógica, esplendor e grandeza vivida<br />

com matizes diversos, porém harmônicos, pelas duas capitais?<br />

No artigo deste mês, O Império Romano nos planos de Deus, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discorre sobre a vocação de<br />

uma das maiores civilizações da História. Para ele, as glórias de Roma e de Constantinopla serão objeto<br />

de contemplação inclusive no Céu, pois somente na ultravida poder-se-á atingir a plena concepção<br />

da grandeza deste Império que desde seus primórdios estava consciente de que nascera para ser<br />

eterno.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Datas na vida de um cruzado<br />

Julho de 1935<br />

Um Ano depois…<br />

Um ano após a solene promulgação da<br />

Constituição Federal, na qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

trabalhara assiduamente pelos interesses<br />

da Igreja, as emendas católicas, entretanto, continuavam<br />

em tese… Ficaria ele calado após tantas<br />

lutas e esforços?<br />

Enquanto se festeja ruidosamente o primeiro<br />

aniversário da Constituição — e “O Legionário”<br />

se associa de todo o coração a tais festejos,<br />

pois que a Constituição Federal foi realmente<br />

uma conquista — não será mau que os católicos<br />

examinem o fruto que tiraram das emendas<br />

que, tão laboriosamente, foram introduzidas em<br />

nossa magna carta.<br />

Quem escreve estas linhas lembra-se perfeitamente<br />

de uma afirmação de Tristão de Athayde,<br />

feita pouco depois de 16 de julho, e que lhe<br />

causou profunda impressão, pois que encerra<br />

uma verdade grave e evidente: “Até ontem — dizia<br />

ele — podíamos atribuir à imperfeição das<br />

leis vigentes o estado calamitoso em que se encontra<br />

o Brasil sob o ponto de vista moral. Hoje,<br />

porém, temos uma Constituição ideal, e de hoje<br />

em diante a imperfeição das leis não mais poderá<br />

servir de escusa à nossa situação, que passará<br />

a ser fruto exclusivo da indolência e da inércia<br />

dos católicos.” Quem ousará contestar afirmação<br />

tão evidentemente verdadeira?<br />

Pois já lá vão três centenas de dias que nossa<br />

Constituição foi promulgada, e ainda nos encontramos<br />

quase no mesmo estado em que estávamos<br />

antes de 16 de julho.<br />

Não foi regulamentado o casamento religioso.<br />

Não foram introduzidas capelanias nas Forças<br />

Armadas. Não sabemos de nenhuma alteração<br />

no regime das relações entre a Igreja e o Es-<br />

tado, a despeito da “colaboração recíproca” permitida<br />

pela Constituição. A única conquista que<br />

foi aproveitada foi o ensino religioso. E, assim<br />

mesmo, em alguns Estados ainda não foi efetuado,<br />

em outros começa apenas a ser posto em<br />

execução e, finalmente, no nosso São Paulo, um<br />

decreto matreiro o concedeu nas vésperas das<br />

eleições, e outro decreto, mais matreiro ainda, o<br />

regulamentou quando já estavam fora de perigo<br />

certos interesses, depois do prélio eleitoral, estatuindo<br />

que tal ensino apenas seria ministrado<br />

durante meia hora por semana!<br />

E por que isto? Porque os católicos, que souberam<br />

apresentar-se coordenados e disciplinados<br />

em 1932; deixaram-se empolgar, em 1934,<br />

por ideais políticos febrilmente absorventes, que<br />

deixaram em segunda plana as preocupações de<br />

ordem religiosa.<br />

Por que razão não foram ainda regulamentadas<br />

nossas conquistas? Porque a atual Câmara,<br />

que conta em seu seio com elementos de dedicação<br />

à Igreja, compõe-se, através da maioria dos<br />

seus representantes, de indiferentes. E estes indiferentes<br />

nenhum compromisso particular têm,<br />

em via de regra, com a consciência católica porque,<br />

antes da eleição, o eleitorado católico não<br />

lhes perguntou quais eram suas convicções religiosas,<br />

mas apenas quais seriam suas paixões políticas.<br />

E aí está o resultado: a grande maioria de<br />

nossas conquistas é, até a presente data, inoperante.<br />

Congratulem-se por esta bela situação os<br />

católicos que puseram o facciosismo acima da<br />

Religião.<br />

(Extraído de “O Legionário”<br />

de 7/7/1935)<br />

5


Dona Lucilia<br />

As histórias narradas<br />

por Dona Lucilia<br />

Em tudo, até mesmo na narração de uma simples história,<br />

Dona Lucilia encontrava meios para cumprir o mais importante<br />

dever materno: ensinar aos filhos os mais altos princípios,<br />

conduzindo-os, assim, pelas sendas da salvação eterna.<br />

Embora não ministrasse aulas<br />

— não lhe cabia este dever<br />

—, Dona Lucilia correspondeu<br />

inteiramente ao papel de<br />

mestra.<br />

O papel de uma mãe consiste em<br />

rezar pelo filho, desejar sua salvação,<br />

fazer de tudo para ele ser inteiramente<br />

de Nossa Senhora, amando<br />

os princípios que são conformes<br />

à Doutrina Católica e à razão. Isto<br />

Mamãe fez profundamente, sendo<br />

uma mãe exemplaríssima.<br />

Como ela o fez?<br />

Por exemplo, o modo de ela contar<br />

histórias era muito especial.<br />

Narrações imbuídas de<br />

profunda seriedade<br />

As várias histórias por ela narradas<br />

tinham como principal intenção<br />

a formação de minha alma, assim como<br />

a de minha irmã e de uma primazinha<br />

que era educada conosco.<br />

De que modo ela contava essas<br />

histórias?<br />

Ela as contava com uma profunda<br />

seriedade, mesmo porque ela não<br />

narrava contos engraçados, pois ela<br />

nem sabia fazer graças. Se bem que,<br />

às vezes, para nos entreter, ela procurasse<br />

dizer alguma coisa engraçada,<br />

sua pessoa não se prestava a fazer<br />

rir. Pelo contrário, eu tinha vontade<br />

de admirar profundamente as<br />

coisas sérias, afetuosas, amáveis e<br />

cheias de sentido que ela dizia.<br />

Desta forma, uma das histórias<br />

que ela nos contava era a do “Gato<br />

de Botas e o Marquês de Carabás”,<br />

a qual me deixava simplesmente entusiasmado.<br />

Um arquetípico Marquês<br />

Como era a história?<br />

Há tantos anos que eu a ouvi, que<br />

eu me lembro dela apenas de modo<br />

vago. Recordo-me de haver um gato<br />

que usava botas colossais, as quais<br />

lhe proporcionavam a possibilidade<br />

de andar muito depressa, pois o<br />

grande tamanho destas fazia os passos<br />

do gato serem muito grandes, locomovendo-se,<br />

por isso, muito rapidamente.<br />

Eu me perguntava seriamente por<br />

que Mamãe não mandava fazer sapatos<br />

muito grandes para mim. Pois,<br />

com minha monumental preguiça de<br />

andar 1 , se eu tomasse calçados grandes<br />

como os do “gato de botas”, com<br />

poucos passos eu poderia transpor<br />

distâncias consideráveis, o que para<br />

mim seria uma solução de primeira<br />

ordem.<br />

O “gato de botas” era um felino<br />

muito singular: Ele falava, podendo<br />

assim entrar em contato com os homens<br />

e fazer boas ações; mas, às vezes,<br />

fazia também alguma malandragem,<br />

constituindo o exemplo do espertalhão.<br />

Por outro lado, ele era um<br />

bom diplomata, pois sabia arranjar<br />

bem as coisas.<br />

Nas narrações de Mamãe, o enredo<br />

da história girava em torno do<br />

Marquês de Carabás, em cujas terras<br />

vivia o gato. Esse Marquês era descrito<br />

por ela como sendo um homem<br />

muito rico, possuidor de um belo<br />

castelo localizado no meio de um<br />

trigal, inteiramente dourado, muito<br />

bonito e abundante. Dito campo<br />

era ceifado pelos colonos que viviam<br />

a serviço do Marquês, e o trigo era<br />

depois vendido, rendendo-lhe assim<br />

muito dinheiro.<br />

Sendo muito rico, o Marquês possuía<br />

uma carruagem esplêndida,<br />

dourada, com janelas de cristal, forrada<br />

de seda. Na parte dianteira do<br />

coche vinham os postilhões, e atrás,<br />

os dois lacaios, que iam em pé numa<br />

espécie de terracinho.<br />

Quando o carro parava por ordem<br />

do Marquês, os dois empregados<br />

de trás pulavam depressa, e cada<br />

um numa porta colocava um degrau<br />

para auxiliá-lo a descer, pois as carruagens<br />

eram bastante altas.<br />

O Marquês de Carabás estava<br />

sempre muito bem vestido, trajado<br />

de seda e portando um chapéu de<br />

6


três bicos com plumas brancas; seus<br />

sapatos possuíam saltos vermelhos<br />

que constituíam privilégio dos nobres;<br />

e, do lado pendia-lhe uma espada<br />

com a qual duelava, de vez em<br />

quando, contra os que atentavam<br />

contra o respeito a ele devido.<br />

Não me lembro bem das razões<br />

pelas quais, certa vez, o “gato de botas”<br />

andou metendo-se com o Marquês<br />

de Carabás, o qual, furioso,<br />

mas com muita destreza, foi de espada<br />

em cima do gato para matá-lo,<br />

mas este, com seus calçados muito<br />

grandes, saiu correndo.<br />

Interesse por tudo<br />

quanto dizia respeito<br />

ao Marquês<br />

Não me recordo do enredo da história,<br />

mas quando Mamãe começava<br />

a descrever o ambiente que cercava<br />

o Marquês de Carabás — o qual me<br />

interessava muito mais do que o “gato<br />

de botas”—, eu começava a perguntar<br />

como era a roupa do Marquês;<br />

como eram suas botas e sua espada;<br />

qual seria a soma de dinheiro<br />

contida na bolsa que ele trazia consigo,<br />

pois, sendo ele tão rico, deveria<br />

levar muito dinheiro, ou, então,<br />

apenas uma pequena quantia devido<br />

ao medo de que lhe roubassem;<br />

se ele tinha guardas para o acompanharem,<br />

uma vez que era um homem<br />

tão importante.<br />

Eu também questionava a respeito<br />

do trigal, se era todo o ano bonito<br />

dourado, ou se havia épocas em que<br />

o trigo era ceifado e a fazenda ficava<br />

sem-graça. “O que fazia o Marquês<br />

quando a fazenda ficava sem-graça,<br />

como é que ele se divertia?”<br />

Vê-se que eu estava muito mais interessado<br />

pela instituição nobiliárquica<br />

do que pelo “gato de botas”.<br />

Dona Lucilia,<br />

pouco antes de seu<br />

casamento, em 1906.<br />

Formação pelos exemplos<br />

Eu perguntava toda espécie de<br />

pormenores para Mamãe, e ela ia<br />

7


Dona Lucilia<br />

prevendo, com muito senso psicológico,<br />

como eu gostaria que fossem<br />

as coisas, e assim as descrevia. Desta<br />

maneira, eu ficava encantado, porque<br />

tanto o Marquês quanto o gato<br />

eram sempre como eu queria.<br />

No meio disso tudo entravam episódios<br />

que constituíam a parte moralizadora<br />

da história. Em certo momento,<br />

por exemplo, o Marquês pregava<br />

uma mentira. Então, Mamãe<br />

mudava de fisionomia e ficava muito<br />

séria. Nessas horas os olhos dela,<br />

que eram de um castanho comum<br />

aqui no Brasil, passavam a ser castanho-escuros.<br />

Ela descrevia com muita censura<br />

como o Marquês tinha mentido:<br />

“Onde é que se viu isso, um homem<br />

como o Marquês! Já um menino não<br />

deve mentir — este quando mente<br />

anda muito mal e merece um castigo<br />

dos pais —, mas um homem já formado<br />

que mente é uma coisa horrorosa!<br />

O Marquês mentia porque desde<br />

pequeno já se tinha habituado a<br />

mentir, e quando ficou homem tornou-se<br />

um mentiroso. Talvez tenha<br />

faltado quem explicasse ao Marquês<br />

que nunca se deve mentir.”<br />

Percebe-se ser a narração calculada<br />

para que eu, ouvindo-a, ficasse<br />

com horror à mentira, e compreendesse<br />

que se, já naquela idade,<br />

me habituasse com a mentira, poderia<br />

depois tornar-me um homem<br />

mentiroso, sem palavra nem critério.<br />

Ela ainda acrescentava outros casos<br />

de castigos que recebiam os homens<br />

que mentiam.<br />

A loucura da mentira<br />

Lembro-me, por exemplo, ouvi-<br />

-la contar o caso de um parente dela<br />

— assim nós saíamos do mundo dos<br />

contos de fada para passar à realidade<br />

— que estudava em São Paulo,<br />

numa escola superior. Certa ocasião,<br />

havendo uma greve em sua escola,<br />

ele, homem de cabeça muito<br />

quente e irritadiço, tomou parte na<br />

greve, tornando-se um dos chefes<br />

desta. Quando a greve chegou ao<br />

auge, os dirigentes da escola acharam<br />

que era preciso fazer algumas<br />

concessões aos alunos. E, de fato,<br />

isso fez com que os ânimos se acalmassem.<br />

Os líderes diziam entre si:<br />

— Vamos acabar essa greve? Eles<br />

estão cedendo, vamos ceder alguma<br />

coisa nós também.<br />

Então, este parente colocou-se no<br />

meio de todos e disse:<br />

— Se vocês acabarem com essa<br />

greve, eu a continuo sozinho. E se<br />

eu ceder, vocês podem se considerar<br />

no direito de, sempre que me encontrarem,<br />

me cuspir no rosto. Pois,<br />

eu sou um homem que tenho palavra<br />

e não volto atrás, não sou um sujeito<br />

sem palavra como vocês. Vocês<br />

se incumbiram de fazer a greve e de<br />

levá-la até o fim, agora não têm<br />

coragem.<br />

É uma atitude desparatada,<br />

pois ele não tinha de fato<br />

aquela convicção, e mentiu ao<br />

afirmar aquilo.<br />

O resultado foi que ele ficou<br />

com o curso interrompido. Porque<br />

se ele aparecesse na faculdade<br />

iam cuspir nele, e, como ele não podia<br />

tolerar aquilo, ele abandonou o<br />

curso e não se formou.<br />

Mamãe então dizia:<br />

— Está vendo a loucura de<br />

quem mente? Ele mentiu e<br />

a mentira colou nele, e o impediu<br />

de se formar. Era um<br />

homem inteligente, mas<br />

não teve curso superior. Por<br />

quê? Porque mentiu. Você se<br />

lembra ontem que você mentiu<br />

a tal hora assim, e que ficou<br />

uma coisa feia? Mamãe<br />

falou com você.<br />

Eu ficava muito impressionado<br />

e envergonhado com<br />

aqueles exemplos dela, e dizia:<br />

— Sim, senhora, me lembro.<br />

Ela aproveitava e dizia:<br />

— Você se arrependeu, ou ainda<br />

não está arrependido?<br />

— Estou arrependido, sim, e peço<br />

perdão à senhora.<br />

Ela me beijava, me abraçava com<br />

muito afeto e dizia:<br />

— Então vamos voltar ao Marquês<br />

de Carabás…<br />

E eu já tinha as perguntas preparadas<br />

para o resto da história.<br />

O despretensioso desejo<br />

de contemplar as<br />

coisas mais elevadas<br />

Quando Mamãe iniciou a descrição<br />

da carruagem do Marquês de<br />

Carabás, sem notar que eu estava<br />

fazendo uma relação com as carruagens<br />

dos reis de França vistas por<br />

O Gato de Botas<br />

8


mim anos antes, e achando que todas<br />

as carruagens eram iguais, comecei<br />

a perguntar sobre os pormenores,<br />

segundo as carruagens que<br />

eu contemplara em Versailles. E ela,<br />

com paciência e bondade enormes,<br />

dizia:<br />

— Não, a carruagem do Marquês<br />

era assim...<br />

No dia seguinte, eu acrescentava:<br />

— Mamãe, eu estive pensando<br />

bem. A carruagem não tinha pedras<br />

preciosas do lado de fora?<br />

Ela sorria com enorme amabilidade<br />

e dizia:<br />

— Ah! é verdade, tinha, sim.<br />

Ela o fazia com indizível carinho<br />

e afeto, com alegria de poder dar-<br />

-me a certeza de que essa carruagem<br />

imaginária era como eu pensava. No<br />

fundo, ela estava alimentando o meu<br />

desejo de contemplar o mais perfeito.<br />

Tudo isso constituía um mundo de<br />

maravilhoso e seriedade, mas também<br />

um mundo de carinho e adaptação<br />

à minha personalidade e a meu<br />

modo de ser. Desta maneira, nos<br />

queríamos inteiramente bem.<br />

O casamento de<br />

D. Pedro II<br />

Além dessas histórias, ela contava<br />

também coisas do passado da família,<br />

apanhando o que havia de maravilhoso<br />

no tempo dos avós dela.<br />

Ela me contava, por exemplo,<br />

que o Imperador D. Pedro II,<br />

quando ainda jovem, foi o único<br />

membro da Família Imperial a ficar<br />

no Brasil. D. Pedro I tinha ido<br />

para a Europa levando consigo sua<br />

segunda esposa — a primeira havia<br />

morrido —, Da. Amélia de Leuchtenberg,<br />

e então D. Pedro II acabou<br />

ficando sozinho aqui com José<br />

Bonifácio de Andrada e Silva —<br />

o homem da Independência —, tomando<br />

conta dele.<br />

Quando ficou mocinho, D. Pedro<br />

deveria casar-se, e como naquele<br />

tempo não havia fotografia, o modo<br />

usado pelo Imperador para encontrar<br />

alguém com quem se casar<br />

foi mandar um diplomata à Europa<br />

para percorrer as principais cortes e<br />

trazer pinturas sobre marfim das várias<br />

princesas que tinha encontrado.<br />

Chegando de volta ao Brasil, este<br />

lhe mostraria, acrescentando: “Essa<br />

tem tal qualidade; essa tem tal outra.”<br />

Nomearam para essa função um<br />

Conde de Alcejur, o qual percorreu<br />

a Europa, enviando pinturas para D.<br />

Pedro II. Porém, este não achava nenhuma<br />

que tivesse uma apresentação<br />

de seu agrado. Afinal, veio do<br />

Reino das duas Sicílias a pintura de<br />

uma princesa muito bonita, distinta<br />

e leve, da qual o Imperador gostou.<br />

Um histórico e familiar<br />

exemplo de caridade<br />

Tendo a Imperatriz chegado ao<br />

Brasil, houve um pomposo baile no<br />

palácio imperial. Enquanto todos<br />

dançavam, meu bisavô 2 — que era<br />

deputado e membro do parlamento<br />

— passou por uma sala contígua<br />

à sala de baile e encontrou a Imperatriz<br />

sozinha, sentada. Enquanto isso,<br />

ao lado, todos dançavam alegremente.<br />

Ele se aproximou dela, apresentou-se<br />

e perguntou como ela ia passando.<br />

Ao que ela respondeu:<br />

— O senhor me pergunta como<br />

eu vou? Não percebe que eu estou<br />

aqui sozinha, sendo a Imperatriz, e<br />

que ninguém está junto a mim? Isso<br />

se deve ao fato de eu não dançar,<br />

além de não ser bonita… Não atraio<br />

a atenção de ninguém, e por isso sou<br />

uma infeliz…<br />

De fato, já quando a Imperatriz<br />

chegara ao Brasil, Dom Pedro percebeu<br />

que a pintura a ele enviada era<br />

falha, pois ela era muito feia, além<br />

de ser gravemente manca.<br />

O meu bisavô ficou com pena dela<br />

e disse:<br />

— Vossa Majestade me permite<br />

uma liberdade?<br />

— Pode dizer.<br />

— Eu estive estudando seu modo<br />

de mancar. Se Vossa Majestade pisar<br />

de tal modo assim, e depois assim,<br />

ninguém percebe, e Vossa Majestade<br />

pode andar de um modo normal,<br />

e até mesmo dançar.<br />

Então, a Imperatriz levantou-se, e<br />

ele disse:<br />

— Experimente, ande assim —<br />

ensinando-a a dançar.<br />

— Bem, já que o senhor foi tão<br />

amável, eu o convido para dançar<br />

comigo; vamos entrar no salão dançando<br />

juntos. Vai ser uma surpresa<br />

para todos do baile, além de uma<br />

grande alegria para o Imperador.<br />

Aquilo foi uma sensação no baile<br />

e a alegria do Imperador.<br />

Esta historieta, verdadeira, era<br />

contada por Dona Lucilia com o intuito<br />

de despertar em mim os sentimentos<br />

bons, a pena das pessoas que<br />

não andam bem, que claudicam, que<br />

têm algum defeito, às quais é preciso<br />

ajudar.<br />

Isto era contado por ela de um<br />

modo tão agradável, que eu ficava<br />

suspenso nos lábios dela durante<br />

todo o tempo da narração. No<br />

dia seguinte eu chegava junto dela<br />

e dizia:<br />

— Mãezinha, eu quero mais uma<br />

história.<br />

— Qual?<br />

Eu, às vezes, dizia:<br />

— A história de vovô Gabriel com<br />

a Imperatriz — e ela então repetia a<br />

história.<br />

Assim meu espírito foi amadurecendo.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 7/8/1993)<br />

1) Desde menino, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> possuía um<br />

desvio na coluna, o qual lhe tornava o<br />

andar muito penoso.<br />

2) <strong>Dr</strong>. Gabriel José Rodrigues dos Santos.<br />

9


Dona Lucilia<br />

As carruagens douradas<br />

Oponto alto de nosso passeio<br />

a Versailles foi a visita aos<br />

coches da família real, considerados<br />

como as carruagens mais<br />

lindas do mundo, as quais estavam<br />

num edifício separado do palácio.<br />

Eram altas, com rodas grandes e<br />

estribos de dois degraus. Algumas<br />

eram douradas, com pinturas delicadas<br />

e plumas nos ângulos do teto, o<br />

que me pareceu a perfeição da beleza.<br />

Fiquei pasmo de admiração! Era<br />

assim que eu imaginava a carruagem<br />

do Marquês de Carabás, da história<br />

do Gato de Botas! Parei diante de<br />

uma carruagem linda, especialmente<br />

ornada: era para o uso do rei e da<br />

rainha, toda feita de madeira dourada<br />

e cristal ligeiramente bombeado,<br />

como uma bombonnière. O que<br />

mais me atraiu foram os reflexos e<br />

jogos de luz magníficos que aquilo<br />

produzia! Senti-me arrebatado por<br />

ver aquela maravilha; foi, para mim,<br />

quase um êxtase!<br />

Do lado de fora da porta desta<br />

carruagem, entre o vidro e o piso, havia<br />

uma cena de cores muito suaves,<br />

representando um pastor e uma pastora,<br />

com cordeirinhos, numa paisagem<br />

de aurora, rósea e azul, com uns<br />

rios de fundo. Aquela natureza mirífica<br />

me parecia tão amiga dos pastores;<br />

o verniz martel que cobria a cena<br />

dava-lhe um aspecto tão belo, que<br />

tive uma impressão de delicadeza de<br />

todas as coisas, fascinando-me como<br />

sendo o ambiente e a pátria de minha<br />

alma.<br />

Para minha felicidade, a porta estava<br />

aberta e era possível ver a carruagem<br />

por dentro, iluminada. Era<br />

uma maravilha! As paredes eram<br />

acolchoadas com tecidos magníficos.<br />

Havia cordões para os viajantes<br />

segurarem-se, com pingentes muito<br />

bonitos; assentos revestidos de uma<br />

seda de primeira categoria, cuja cor<br />

estava entre o cinza quase prateado<br />

e o azul muito claro; tapetes...<br />

Dava-me a impressão de um pequeno<br />

palácio ambulante! Então,<br />

vendo que o interior era conforme<br />

à parte externa, tive uma sensação<br />

de autenticidade, como uma criança<br />

que dá uma mordida num bonito<br />

bombom e o acha delicioso. Essa<br />

nota acentuou ainda mais o valor<br />

que eu sentia na carruagem e<br />

não consegui resistir! Entrei correndo<br />

e comecei a passar a mão sobre<br />

aqueles tecidos, pois embora eu tivesse<br />

ótima vista, a minha tendência<br />

era sempre tocar. Enquanto não<br />

tocasse as coisas, parecia-me que<br />

não as conhecera inteiramente! Porém,<br />

quando tocava, às vezes quebrava...<br />

E isso se prestava a protestos<br />

de certas pessoas. Uma tia disse-<br />

-me então:<br />

— Monsieur Touche-à-tout, não<br />

pegue nisso.<br />

Eu respondi:<br />

— Madame Remarque-tout, pense<br />

em outra coisa!<br />

Mamãe não gostou da minha resposta,<br />

mas eu a achei saborosa. Senti-me<br />

muito bem servido com a réplica<br />

que dei! Entretanto, meu pai interveio:<br />

— Não pode entrar! Tem de olhar<br />

a carruagem de fora. Dê-me aqui sua<br />

mão! Quem vai tomar conta de você<br />

sou eu.<br />

Ele receava que minha mãe não<br />

tivesse força para me segurar... Eu<br />

me senti derrotado,<br />

fiquei quieto e continuei<br />

analisando o<br />

coche, entusiasmado,<br />

pensando: “Quanta<br />

doçura tem aqui!<br />

Quanto Jesus Cristo está<br />

presente nisto!”<br />

Regalei-me com a carruagem;<br />

mas não pela ideia de que<br />

seria gostoso entrar nela e passear.<br />

Sentia que, em si mesma considerada,<br />

ela era delicada, harmoniosa<br />

e fina, possuindo uma categoria em<br />

função da qual minha alma se sentia<br />

“em casa”... Em nenhum momento<br />

passou-me pela mente a ideia de<br />

possuir a carruagem. Eu queria vê-la<br />

e dar graças a Deus por aquilo existir<br />

com tanta pompa! E desejava que<br />

todos os homens vissem e dessem<br />

glória a Deus. A ideia de desejar alguma<br />

daquelas maravilhas para mim<br />

me pareceria tão louca quanto olhar<br />

o céu durante a noite e querer possuir<br />

uma estrela.<br />

Seria um absurdo! Do mesmo<br />

modo, eu não queria as grandezas<br />

da Terra que não fossem proporcionadas<br />

a mim, senão para admirá-las.<br />

E este meu pensamento era exatamente<br />

este: “Vou comprar Versailles<br />

com a minha libra esterlina, para<br />

poder admirá-lo!” Não me lembro<br />

de um panorama no mundo que<br />

me tenha deixado tão encantado como<br />

aquele coche.<br />

Chegou a hora de sair. Percebendo<br />

que eu estava demorando demais<br />

junto à carruagem, Mamãe disse várias<br />

vezes:<br />

— Meu filho, é preciso ir andando.<br />

Vamos embora.<br />

10


Mas eu não ouvia. Ela ter-me-ia<br />

deixado permanecer ali o dia inteiro,<br />

se eu quisesse, mas os familiares<br />

fizeram certa pressão; ela então pediu<br />

a meu pai, que estava um tanto<br />

distraído:<br />

— João Paulo, traga o <strong>Plinio</strong>.<br />

Recordo-me de que ele estava<br />

usando capote. Puxou-me pela mão<br />

— sem brutalidade, pois era um homem<br />

muito pacífico — e disse:<br />

— <strong>Plinio</strong>, nós agora vamos! Chegou<br />

o momento de sair.<br />

Eu não disse nada, mas permaneci<br />

onde estava. Ele me puxou um<br />

pouquinho mais, dizendo:<br />

— <strong>Plinio</strong>, vamos!<br />

Eu respondi:<br />

— Não! Nós não vamos.<br />

Ele não esperava essa resposta e<br />

disse:<br />

— O quê? Venha logo, estou mandando.<br />

Você vai ter de ir embora!<br />

— Não! Vou provar que não vou!<br />

Escapei da sua mão, agarrei-me<br />

com ambos os braços aos raios de<br />

uma das rodas da carruagem e disse:<br />

— Agora quero ver!<br />

Ele possuía um temperamento<br />

muito calmo e indulgente, mas não<br />

ia perder tempo com um menino de<br />

quatro anos... Lembro-me dele, disfarçando<br />

um sorriso e fingindo estar<br />

zangado.<br />

Tomou-me pelo braço e disse com<br />

afeto:<br />

— Você vai ou não vai? Porque<br />

senão eu te levo.<br />

— Eu não vou. Daqui eu não saio.<br />

Vou ficar aqui, olhando.<br />

— Você vai ver.<br />

Ele ia resolver isso de modo paterno<br />

— ou seja, com um safanão<br />

— mas, nesse momento, Mamãe se<br />

aproximou e perguntou:<br />

— O que há?<br />

Eu disse:<br />

— Mamãe, diga-me uma coisa:<br />

qual é o preço deste castelo?<br />

— Meu filho, há certas coisas no<br />

mundo que valem tanto, que ninguém<br />

possui dinheiro para<br />

comprá-las. Este castelo não<br />

tem preço.<br />

Mas continuei, tirando<br />

do bolso a minha libra<br />

esterlina:<br />

— Não, isso não é<br />

tanto assim! Meu tio<br />

me deu ontem uma moeda!<br />

Quem sabe se, entregando<br />

isto, posso ficar<br />

dono de Versailles e morar<br />

aqui? Vamos falar com o gerente<br />

e compramos o palácio!<br />

— Hii, meu filho! Não dá nem para<br />

comprar uma pedra do caminho<br />

do castelo!<br />

— Mas é de ouro...<br />

Ela sorriu com muita amenidade<br />

e explicou-me que, mesmo assim,<br />

era impossível. Eu não fiquei muito<br />

persuadido, mas tive de aceitar. Foi<br />

o primeiro cálculo financeiro que fiz<br />

em minha vida e, desde então, nunca<br />

consegui bom resultado nas finanças...<br />

Então meu pai me suspendeu<br />

pelo tronco, tirou os meus braços<br />

de lá e levou-me para o táxi, no<br />

qual fomos até a estação. Aquilo me<br />

deixou profundamente inconformado<br />

e muito saudoso da carruagem. O<br />

automóvel não me causava o menor<br />

interesse, mas tive de ceder diante<br />

da força. Comecei a aprender que os<br />

acontecimentos da vida nem sempre<br />

transcorrem como desejamos...<br />

(Extraído da obra<br />

“Notas Autobiográficas”,<br />

de <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira)<br />

11


Hagiografia<br />

Santo Henrique,<br />

Imperador<br />

Fotos: S. Hollmann; Wikipedia.<br />

Comentando Santo Henrique, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

procura mostrar o contraste entre a figura<br />

deturpada que se formou da santidade,<br />

e a personalidade varonil, sagaz, guerreira,<br />

humilde e combativa deste santo imperador.<br />

Em geral, as pessoas têm a<br />

respeito da santidade uma<br />

ideia unilateral. Pensam<br />

que a santidade consiste apenas em<br />

sorrir, em estar de acordo com tudo<br />

e a tudo perdoar. Porém, muitos não<br />

têm ideia do vulto completo e da fisionomia<br />

geral da santidade.<br />

Isso se deve, em parte, às imagens<br />

que se produziram nos últimos vinte<br />

anos, ou nos últimos trinta anos,<br />

em que apresentam os santos com<br />

umas carinhas lisinhas e um olharzinho<br />

meigo, quando, na realidade, se<br />

trata de santos que tiveram uma extraordinária<br />

personalidade, a ponto<br />

de marcar a sua época.<br />

A verdadeira face<br />

da santidade<br />

Quando eu estive na Itália, em<br />

Pádua, há alguns anos atrás, fui visitar<br />

o famoso santuário de Santo<br />

Antônio, onde se encontra o corpo<br />

do santo. Lá eu vi uma obra de um<br />

grande pintor, quase contemporâneo<br />

deste santo, chamado Giotto.<br />

É a imagem mais próxima da fisionomia<br />

de Santo Antônio que se<br />

conhece: homem alto, possante, com<br />

fisionomia severa e com uma atitude<br />

hercúlea.<br />

Eu comprei uma fotografia desse<br />

quadro e depois fui para a sacristia.<br />

Na sacristia vendiam ao povo santinhos<br />

representando Santo Antônio:<br />

um rapaz sem nada de varonil, imberbe,<br />

coradinho, dando a impressão<br />

que tinha usado carmim, sua fisionomia<br />

era a de quem diz: “Eu estou<br />

com medo”…<br />

Quer dizer, apresenta-se o santo<br />

sem personalidade, um ente sem arrojo<br />

e privado do conjunto das virtudes,<br />

sem as quais ninguém é santo. O<br />

santo é declarado herói nas três virtudes<br />

teologais e nas quatro virtudes<br />

cardeais. Virtudes teologais: fé, esperança,<br />

caridade. Virtudes cardeais:<br />

justiça, fortaleza, temperança,<br />

prudência. Uma das virtudes sem a<br />

qual ninguém é santo é, portanto, a<br />

virtude da fortaleza.<br />

No que consiste a virtude da fortaleza?<br />

Consiste em ser capaz de empregar<br />

toda a força necessária nas lutas<br />

que neste mundo devemos travar contra<br />

nós mesmos, contra os inimigos da<br />

fé e contra os inimigos da Igreja.<br />

É preciso restaurar, aos olhos das<br />

pessoas, a verdadeira fisionomia da<br />

santidade, que inclui exatamente essa<br />

coragem. E por essa razão escolhi,<br />

para comentar na reunião de hoje,<br />

um modelo de coragem masculina:<br />

Santo Henrique,<br />

Imperador - Catedral de<br />

Estrasburgo, Alsácia.<br />

12


Santo Henrique, Imperador do Sacro<br />

Império Romano Alemão.<br />

Vida repleta de<br />

fatos memoráveis<br />

Santo Henrique colocou seu exército<br />

sob as bênçãos especiais de Deus,<br />

valendo-se da proteção dos grandes<br />

santos preferidos do seu povo. Elegeu<br />

dentre eles Santo Adriano, oficial<br />

mártir, cuja espada se guardava ciosamente,<br />

como relíquia, desde antigos<br />

tempos, em Valbach.<br />

Assim armado, organizou um exército<br />

para reprimir as invasões bárbaras<br />

dos povos do Norte, vencendo-os na<br />

Polônia e na Boêmia. Quando defrontaram<br />

os eslavônios, muito superiores<br />

em força, Santo Henrique determinou<br />

preces coletivas e a comunhão geral do<br />

exército. Ao se apresentarem as primeiras<br />

tropas para o combate, verificou-<br />

-se pânico súbito entre os inimigos que,<br />

desorganizados, fugiam em debandada.<br />

Os anjos combateram e derrotaram<br />

os eslavônios. Os inimigos se submeteram,<br />

ficando Boêmia, Morávia e Polônia<br />

tributárias do Sacro Império.<br />

Promoveu, a seguir, uma reunião<br />

de bispos em Frankfurt, com o objetivo<br />

de fomentar a disciplina eclesiástica<br />

nos seus estados.<br />

Por duas vezes teve que subjugar os<br />

lombardos, que ameaçavam os Estados<br />

Pontifícios. Na primeira vez, após submetê-los,<br />

foi coroado, em Pavia, Rei da<br />

Lombardia, cingindo a célebre coroa de<br />

ferro desse reino. Numa segunda vez,<br />

sua atuação foi além da pacificação<br />

dos lombardos, pois graves problemas<br />

afligiam a Igreja: o antipapa Gregório<br />

movia disputa contra o legítimo Papa<br />

Bento VIII. Por esses dias do ano de<br />

1014, em plena Idade Média, portanto,<br />

recebeu ele e a Imperatriz uma das<br />

maiores homenagens de suas vidas: visitando<br />

o Papa, foram solenemente coroados<br />

Imperadores dos Romanos.<br />

O Pontífice presenteou o santo com<br />

um globo de ouro cravejado de pérolas,<br />

encimado de uma cruz, emblema de<br />

dignidade imperial. O monarca, dignificado<br />

por tantas honras e para perpetuar<br />

a lembrança dessas homenagens,<br />

transferiu o globo e a coroa às mãos de<br />

Santo Odilon para dotar o célebre mosteiro<br />

de Cluny, do qual este era abade.<br />

Outra oportunidade teve ainda o<br />

monarca de concorrer para o bem da<br />

Cristandade. Aproximou-se de Estevão,<br />

Rei da Hungria, príncipe ainda<br />

pagão e que carecia vir com seu povo<br />

ao grêmio das nações cristãs. Santo<br />

Henrique ofereceu-lhe aliança e sua<br />

piedosa irmã, Gisela, por esposa. Ganhou<br />

ele um Santo Estêvão, cuja conversão<br />

foi maravilhosa, um grande rei<br />

para a Igreja e um santo para o Céu.<br />

Teve de empenhar-se novamente<br />

em campanhas na Itália. Enquanto<br />

consolidava os estados no interior,<br />

e assegurava a paz com os vizinhos de<br />

Leste, os lombardos, associados aos<br />

gregos e normandos, assolavam as<br />

províncias da Itália. O monarca preparou-se<br />

para castigá-los. Derrotou-<br />

-os em várias batalhas, repelindo uns e<br />

subjugando outros. Reintegrou a Igreja<br />

na posse das terras invadidas, ocupou<br />

Nápoles, Salerno e Benevento e<br />

restabeleceu a paz na península.<br />

Ao voltar para a Alemanha, teve com<br />

Ricardo, o Bom, Rei dos franceses, a<br />

célebre entrevista do rio Mosa na qual<br />

se entenderam amistosamente os dois<br />

príncipes acerca dos grandes problemas<br />

cristãos e políticos da Europa. Dispunha<br />

o cerimonial que o encontro se desse<br />

no meio do rio, cada um em seu barco.<br />

Santo Henrique, em atenção às virtudes<br />

do príncipe francês, resolveu quebrar<br />

os rigores do protocolo: atravessou<br />

o Mosa com seu séquito e foi saudar o<br />

Rei da França na margem oposta. 1<br />

Invasão dos bárbaros<br />

e início da Idade Média<br />

A ficha é um pouco longa, pois a<br />

vida desse santo é tão cheia de atos<br />

memoráveis, que dela não se poderia<br />

ter uma ideia sem que vários elementos<br />

de sua biografia fossem mencionados.<br />

Para compreendermos bem o<br />

conjunto desses fatos, é preciso situá-<br />

-los em seu contexto histórico: plena<br />

Idade Média, no ano de 1014.<br />

Como é sabido, a Idade Média se<br />

iniciou com a queda do Império Romano<br />

do Ocidente. O Império Romano<br />

foi invadido por uma quantidade<br />

incalculável de bárbaros, completamente<br />

selvagens, os quais, estabelecendo-se<br />

no território do Império,<br />

sujeitaram os romanos ao seu<br />

domínio.<br />

Aos poucos, toda a antiga população<br />

romana foi caindo na barbárie<br />

também. Então, as estradas não<br />

tinham mais quem delas cuidasse; os<br />

aquedutos que levavam água às cidades<br />

se rompiam; as cidades afundavam<br />

na sujeira; os palácios eram agora<br />

habitados por bárbaros selvagens<br />

que se degradavam completamente;<br />

as obras de arte eram quebradas nas<br />

ruas. Em suma, tudo o que pudesse<br />

representar civilização e cultura era<br />

miseravelmente liquidado.<br />

Aos poucos, sob o bafejo da Igreja<br />

— a única organização que continuou<br />

a existir depois que tudo se dissolveu<br />

—, a Europa foi sendo reconduzida<br />

ao estado de civilização. Os<br />

bárbaros se converteram e, então,<br />

foram progredindo, à semelhança de<br />

uma tribo selvagem aonde chega um<br />

missionário.<br />

Desta maneira — por mais que<br />

ainda estivesse abaixo do que ela estaria<br />

duzentos ou trezentos anos depois<br />

—, por volta do ano 1000 a civilização<br />

já se encontrava bastante<br />

adiantada no que diz respeito ao estado<br />

originário dos bárbaros. Ou seja,<br />

trata-se de um estado semibárbaro.<br />

Ademais, alguns povos eram mais<br />

civilizados do que outros, havendo,<br />

portanto, dentro do continente europeu,<br />

ilhas de Cristandade, ilhas de Civilização<br />

Católica incipiente no meio<br />

de conglomerados de povos que, sendo<br />

bárbaros pagãos, estavam sempre<br />

atacando e lutando de maneira a tornar<br />

a vida dos católicos dificílima.<br />

13


Hagiografia<br />

Formação do Sacro<br />

Império Romano Alemão<br />

O povo germânico, que ocupava<br />

mais ou menos o território onde hoje<br />

se situa a Alemanha, a Áustria, parte<br />

da Tchecoslováquia e a Suíça, foi um<br />

dos primeiros a se converter. Após se<br />

civilizarem, os germanos constituíram<br />

uma entidade política chamada o Sacro<br />

Império Romano Alemão.<br />

No fundo, tratava-se de uma liga<br />

dos povos cristãos contra a barbárie.<br />

E, como essa liga abrangia uma extensão<br />

grande de território, chamavam-<br />

-na Império; Romano, por ser uma reminiscência<br />

do antigo Império Romano,<br />

que tinha abrangido toda a Terra;<br />

e, por fim, Alemão, pois o núcleo do<br />

Império eram as nações alemãs. Porém,<br />

acima de tudo, era um Sacro Império,<br />

pois sua principal finalidade<br />

consistia em defender a Religião Católica<br />

contra a agressão dos pagãos.<br />

Deus é quem dá a vitória<br />

Santo Henrique foi eleito Imperador<br />

do Sacro Império Romano Alemão,<br />

sendo colocado numa situação<br />

onde nem sempre a hagiografia popular<br />

mostra os santos. Ele estava à<br />

testa de toda a organização política<br />

da Europa de seu tempo, era o homem<br />

mais poderoso do continente.<br />

Mas, ao mesmo tempo, ele tinha a<br />

obrigação de ser o melhor político e<br />

o melhor filho da Igreja.<br />

Ele era, por excelência, o filho da<br />

Igreja, aquele que devia protegê-la<br />

em suas necessidades contra a barbárie.<br />

E como acontece sempre com<br />

os santos, ele desempenhou magnificamente<br />

suas funções.<br />

Havendo hordas bárbaras que continuamente<br />

agrediam o seu povo, o<br />

santo monarca armou-se de força,<br />

constituiu um exército e o conduziu à<br />

guerra. Porém, por ser um herói católico,<br />

um homem de fé, ele sabia que<br />

não bastava lutar fazendo uso das forças<br />

humanas e naturais, mas era preciso<br />

contar com os recursos sobrenaturais.<br />

Por isso, ele pedia a Deus que lhe<br />

desse a força necessária para vencer.<br />

Então, para mostrar ao santo<br />

quanto suas orações Lhe eram gratas,<br />

em certa ocasião, Deus fez um<br />

grande milagre: no momento em<br />

que as tropas dos eslavônios, mais<br />

numerosas do que as germânicas, estavam<br />

prontas para o combate e os<br />

Santo Henrique<br />

estava à testa de<br />

toda a organização<br />

política da Europa<br />

de seu tempo, era o<br />

homem mais poderoso<br />

do continente. Mas,<br />

ao mesmo tempo ele<br />

tinha a obrigação de<br />

ser o melhor<br />

político e o melhor<br />

filho da Igreja.<br />

exércitos postos frente a frente, vê-<br />

-se que os pagãos começam a fugir<br />

em debandada: os anjos haviam lhes<br />

aparecido, incutindo-lhes terror.<br />

Desse modo, Deus dava a entender<br />

como Ele considerava a oração:<br />

pela prece de Santo Henrique, Deus<br />

dispensou seus heróis do combate.<br />

Assim, a pressão pagã foi quebrada<br />

e uma das garras do paganismo, contra<br />

os católicos, liquidada.<br />

Reconhecimento<br />

pontifício dos<br />

serviços prestados<br />

Entre os inimigos da fé, havia também<br />

os lombardos, os quais tinham<br />

sua capital na cidade de Milão, hoje<br />

Itália, onde formavam um reino de<br />

hereges. Eles não eram propriamente<br />

pagãos, mas sim hereges arianos.<br />

Santo Henrique desceu, então,<br />

pela Lombardia, atacou os lombardos,<br />

quebrou-lhes o poder e foi depois<br />

até Roma, a fim de visitar o Papa.<br />

Foi nessa ocasião que o Romano<br />

Pontífice coroou-o, junto com sua<br />

esposa, Imperador do Sacro Império<br />

Romano Alemão, numa cerimônia<br />

realizada com grande esplendor.<br />

Deu-lhe também de presente uma<br />

Coroação Imperial de Santo Henrique.<br />

14


esfera de ouro, cravejada de pérolas,<br />

representando seu poder sobre<br />

toda a Terra.<br />

Mas, para provar seu amor à<br />

Igreja, Santo Henrique não ficou<br />

com o tesouro: deu-o a Santo<br />

Odilon, Abade de Cluny, chefe<br />

da maior Ordem Religiosa da Europa<br />

naquele tempo.<br />

Voltando para a Alemanha,<br />

Santo Henrique derrotou novamente<br />

os lombardos, quebrando<br />

definitivamente seu poder.<br />

Insigne ato de<br />

apostolado e esplêndida<br />

manobra política<br />

Sendo um tão grande batalhador,<br />

Santo Henrique mostrou-se<br />

também um hábil político.<br />

Na Hungria, havia um rei que,<br />

apesar de ser pagão, era famoso por<br />

sua virtude. Compreendendo que,<br />

por demonstrar ser virtuoso, tal rei<br />

poderia ser atraído para a Religião<br />

Católica, ao invés de atacá-lo, Santo<br />

Henrique mandou pedir uma entrevista<br />

com ele, e ofereceu em casamento<br />

sua irmã, Gisela, de grande<br />

formosura e muito virtuosa.<br />

O Rei da Hungria, chamado Estêvão,<br />

aceitou. Gisela cumpriu a tal<br />

ponto sua missão de converter o rei<br />

que este se tornou um santo da Igreja<br />

Católica, o qual converteu toda a<br />

Hungria.<br />

Com isso, por uma manobra diplomática<br />

inteligente e muito bem<br />

sucedida, o Imperador estendeu os<br />

limites da Cristandade até além do<br />

Danúbio, conquistando um amigo<br />

onde ele tinha anteriormente apenas<br />

inimigos.<br />

Grande por ser católico<br />

Já naquele tempo havia uma secular<br />

rivalidade entre alemães e franceses:<br />

povos com índole e temperamento<br />

diferentes, e com questões de<br />

fronteira complicadas de resolver.<br />

Wikipedia<br />

Santo Estêvão, Rei da Hungria, e sua esposa<br />

Rainha Gisela - Fontevraud, França.<br />

Para o bem da<br />

Cristandade, Santo<br />

Henrique aproximouse<br />

de Estêvão, Rei da<br />

Hungria, príncipe<br />

ainda pagão e que<br />

carecia vir com seu<br />

povo ao grêmio das<br />

nações cristãs.<br />

Mas, nesse tempo, a França era<br />

governada por um muito bom rei, e<br />

o Sacro Império Romano Alemão<br />

por um santo imperador. Pelo que,<br />

um acordo entre ambos não foi difícil.<br />

Santo Henrique, muito bom diplomata,<br />

quis ter um encontro com<br />

esse rei para ajustarem todos os problemas<br />

políticos da Europa, porque<br />

os dois principais países da Europa<br />

cristã eram a Alemanha e a França.<br />

Então, foram encontrar-se junto ao<br />

rio Mosa.<br />

O protocolo mandava que, por serem<br />

dois soberanos importantes, nenhum<br />

fosse à terra do outro, pois<br />

aquele que fosse à terra do outro,<br />

por assim dizer, prestava homenagem<br />

à importância do outro. Então,<br />

deveria ser feito um encontro<br />

no meio do rio, em duas barcas.<br />

Trata-se de um rio de curso de<br />

água tranquilo, onde esse encontro<br />

comodamente podia ser feito. Preparou-se<br />

a barca do Imperador, assim<br />

como a do Rei da França.<br />

O Imperador, sendo mais importante<br />

que o Rei da França, embora<br />

esse fosse muito importante<br />

também, podia pretender que<br />

o rei fosse ao seu território. Mas<br />

sendo um homem cheio de espírito<br />

católico, e bom diplomata, Santo<br />

Henrique fez o contrário: entrou<br />

na barca e preparou uma surpresa<br />

ao Rei da França, atravessou<br />

o rio e desembarcou. Quer dizer,<br />

o que era mais foi prestar homenagem<br />

ao que era menos, fazendo sentir<br />

pela sua atitude cordial que ele estava<br />

cheio de boas disposições, de boas<br />

intenções. De fato, realizaram-se então<br />

conversações muito cordiais, que<br />

concorreram para a paz dos dois países<br />

e para regular todos os problemas<br />

da Europa daquele tempo.<br />

Essa é a história de Santo Henrique:<br />

Um grande católico e um grande<br />

santo, que por ser católico, foi<br />

grande rei, grande militar, grande<br />

guerreiro, grande diplomata, grande<br />

político, morrendo aureolado de toda<br />

espécie de êxitos e sucessos. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 14/1/1970)<br />

1) Não possuímos referência da ficha comentada<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nessa ocasião.<br />

Errata: Por um erro na transcrição da<br />

conferência feita por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />

25/6/1976, no artigo desta seção do<br />

mês passado (junho), registrou-se,<br />

nas páginas 10 e 11, o termo “hermetismo”<br />

ao invés de “eremismo”, o<br />

qual representa um neologismo criado<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para significar a vida<br />

enclausurada, religiosa, eremítica.<br />

15


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

A História do Universo<br />

e sua interpretação<br />

doutrinária - II<br />

Após discorrer acerca do fim último da Obra da Criação,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> continua sua exposição explanando os meios estabelecidos<br />

pelo Criador para que esse fim fosse realizado, e qual<br />

o uso que deles suas criaturas fizeram.<br />

Por que se deu a queda dos<br />

anjos?<br />

Logo após criá-los, Deus<br />

queria que eles Lhe dessem a glória devida.<br />

Porém, aconteceu que Ele criou<br />

os anjos como seres livres — e tinha<br />

que criá‐los como seres livres —, e uma<br />

parte dos anjos, induzida por Satanás,<br />

recusou a homenagem devida a Deus.<br />

S. Hollmann.<br />

A prova dos anjos<br />

A felicidade deles era de uma natureza<br />

completa, perfeita, sem defeito<br />

e alcançando seu fim; não era a visão<br />

beatífica, mas um conhecimento<br />

intelectivo altíssimo de Deus.<br />

A prova dos anjos deu-se porque<br />

Deus lhes revelou a Encarnação<br />

do Verbo; e mostrou que a Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade haveria<br />

de se unir hipostaticamente, não a<br />

um anjo, mas a um homem; e eles deveriam<br />

adorar esse Homem‐Deus. 1<br />

Compreendemos que isso é uma<br />

coisa muito mortificante para o orgulho<br />

deles.<br />

Imaginem, por exemplo, Satanás<br />

— o maior, o mais magnífico de todos<br />

— que ouve dizer:<br />

Anunciação - Catedral de Manresa, Espanha.<br />

16


S. Miyazaki<br />

— Deus vai constituir uma união<br />

hipostática!<br />

Ele pensa: “Me voilà! Sou eu.”<br />

Mas ele fica sabendo que não será<br />

ele o escolhido. Sua reação: “Como?<br />

Que anjo Ele escolheu?”<br />

— Nenhum anjo. Vai haver homens<br />

e vai ser um homem. E a este<br />

homem você vai ter que adorar.<br />

Podemos imaginar a constrição revoltada,<br />

imunda, mas autêntica, explicável<br />

— explicável à maneira de<br />

defeito — de Satanás diante do fato:<br />

“Então, todo o meu brilho, todo<br />

o meu talento, toda a minha sabedoria,<br />

todo o meu charme, toda a<br />

preeminência que eu tenho sobre todos<br />

os espíritos angélicos, isso é nada?<br />

Na hora da melhor predileção,<br />

da maior honra, da preferência mais<br />

excelsa, lá vai um homem?<br />

Entretanto, para Satanás o pior<br />

foi a seguinte revelação:<br />

— Não só Ele — que, afinal, é<br />

Homem‐Deus —, mas a Mãe d’Ele,<br />

Maria Santíssima, que é pura criatura,<br />

recebe tal honra em ser Mãe<br />

d’Ele que vai ser Rainha de todos<br />

vocês. E um bater de sobrancelhas<br />

d’Ela moverá todos os anjos.<br />

Evidentemente, eles foram tentados<br />

internamente. Até há um problema<br />

de Filosofia curioso: como, sendo<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1990.<br />

puros espíritos e sem nenhum defeito,<br />

eles puderam sofrer a tentação? Se<br />

neles não havia defeitos, como é que<br />

de dentro deles surgiu o mal? É um<br />

problema interessante para ser estudado.<br />

O que, aliás, levaria muito tempo,<br />

e não é o caso de analisar aqui.<br />

Não é, portanto, uma tentação<br />

que lhes veio de fora para dentro,<br />

mas veio de dentro para fora. E<br />

diante da ordem sobrenatural, eles<br />

recusaram.<br />

Então, o demônio recusou a homenagem<br />

devida a Deus.<br />

Resultado da revolta: Proelium<br />

magnum factum est in caelo! —<br />

Fez‐se nos Céus uma grande luta!<br />

São Miguel colocou as coisas nos termos<br />

em que deveriam ser colocadas.<br />

Então, os tronos dos anjos nos<br />

Céus ficaram vazios: os anjos que caíram<br />

desfalcaram a coleção.<br />

Como preencher<br />

os vazios?<br />

A Humanidade não foi, propriamente,<br />

feita para preencher as clareiras<br />

deixadas entre os anjos pela queda<br />

de Satanás. Pode‐se admitir que,<br />

embora os anjos não tivessem pecado,<br />

Deus criasse os homens. Seria muito<br />

bonito que Deus quisesse tomar<br />

um esquema de todas as possibilidades<br />

da Criação e realizá‐lo: realizando<br />

o puro espírito, o animal com espírito,<br />

o animal sem espírito, a planta e<br />

a matéria; é uma espécie de esquema<br />

das possibilidades de uma Criação. E<br />

é possível que Ele fizesse isso, ainda<br />

que os anjos não tivessem caído.<br />

Mas, uma vez que os anjos caíram,<br />

pôs‐se o problema: como remediar<br />

a queda dos anjos? E o remédio<br />

estava nos homens.<br />

Com a queda dos anjos, foi conforme<br />

a sua Sabedoria constituir um<br />

plano segundo, no qual os homens<br />

fossem ocupar os tronos dos anjos<br />

e completar as harmonias que ficariam<br />

deficientes no Céu.<br />

Era como quem, perdendo alguns<br />

músicos de uma orquestra, chama<br />

outra orquestra para fazer um novo<br />

conjunto. E surge a vocação do homem<br />

para preencher os lugares dos<br />

anjos no Céu e formar com os anjos<br />

uma só imagem de Deus para cantar<br />

uma só glória de Deus.<br />

Deus criou os homens<br />

no Paraíso<br />

Deus, então, criou os homens.<br />

Qual era o papel dos homens para<br />

realizar a glória de Deus?<br />

Deus criou os homens no lugar<br />

mais magnífico de todo o universo:<br />

o Paraíso Terrestre. A intenção d’Ele<br />

era que os homens, vivendo no Paraíso,<br />

tivessem já a vida da graça; que<br />

eles vivessem nesta Terra ainda sem<br />

a visão beatífica, embora Deus falasse<br />

com eles com frequência, se manifestasse<br />

a eles com frequência, e que<br />

quando eles chegassem ao fim da vida<br />

fossem levados vivos para o Céu.<br />

Convém não ter uma visão do Paraíso<br />

à maneira do mundo de Walt<br />

Disney. É impossível ter uma visão<br />

mais primitiva e mais boba do que<br />

essa, que não é nem um pouco o que<br />

ensina a Teologia.<br />

Os homens no Paraíso deveriam,<br />

pelo seu talento, fazer cultura, civiliza-<br />

17


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

S. Hollmann<br />

com tintas desta Terra, mas com uma<br />

tinta feita com uma flor azul do Paraíso.<br />

Que azul ele obteria? O que<br />

seria, no Paraíso, um quadro de Fra<br />

Angelico? Não se pode imaginar!<br />

Compreende-se, assim, qual era o<br />

chamado do homem no Paraíso.<br />

Pois bem, esse plano ruiu por causa<br />

do pecado original!<br />

Castigos devidos ao<br />

pecado original<br />

ção, sistemas artísticos, literatura; tudo<br />

aquilo que o homem faz aqui, ele deveria<br />

fazer lá. Mas ele o deveria fazer de<br />

um modo muito mais magnífico do que<br />

aqui; acrescido pelo fato de que o homem,<br />

pelos dons sobrenaturais que tinha,<br />

possuía uma ciência enorme.<br />

Diante de Adão desfilaram todos<br />

os bichos, e ele deu a cada bicho o<br />

nome de acordo com sua natureza.<br />

Quer dizer, ele era um zoologista fabuloso<br />

e um linguista extraordinário.<br />

Ele encontrou logo a palavra para<br />

chamar cada bicho por seu nome,<br />

pela sua nota distintiva natural.<br />

Imaginemos dois, cinco, dez bilhões<br />

de homens vivendo durante<br />

dezenas ou centenas de séculos<br />

no Paraíso, acumulando tudo isso: o<br />

que poderia ser o Paraíso?<br />

Nós não podemos ter ideia do que<br />

poderia ter sido a civilização humana<br />

no Paraíso e a glória que teria dado<br />

a Deus.<br />

O plano de Deus<br />

para com os homens<br />

no Paraíso<br />

Mas, nós devemos reter daqui alguns<br />

pontos fundamentais para compreendermos<br />

o resto.<br />

Catedral de Notre Dame - Paris, França.<br />

Essa obra de glorificação de Deus<br />

deveria ser executada pelos homens<br />

vivendo juntos, quer dizer, influenciando‐se<br />

uns aos outros, colaborando<br />

uns com os outros.<br />

No Paraíso, todas as pessoas boas<br />

ficariam melhores vendo as outras, e<br />

vendo o conjunto dos homens, que<br />

era ótimo, melhor do que cada homem<br />

particular. Com isso os homens<br />

iam se santificando.<br />

Por outro lado, não só os homens,<br />

mas toda a cultura e toda a civilização<br />

dominantes no Paraíso seriam<br />

um instrumento para a santificação<br />

dos homens.<br />

Em síntese, os homens deveriam<br />

viver juntos para santificarem‐se; deveriam,<br />

para se santificar, viver numa<br />

ordem temporal perfeita; deveriam<br />

atuar sobre a natureza, tornando‐a<br />

muito mais semelhante a eles<br />

mesmos e a Deus.<br />

Dante chama as obras do homem<br />

“netas de Deus”, porque o homem é<br />

filho de Deus e a obra de arte é filha<br />

do homem, logo, é neta de Deus.<br />

Então, o Paraíso ainda ficaria inconcebivelmente<br />

mais belo com a presença<br />

das obras dos homens.<br />

Imaginemos, por exemplo, Fra<br />

Angelico pintando no Paraíso, não<br />

O homem foi expulso do Paraíso,<br />

perdeu os dons sobrenaturais e preternaturais<br />

que possuía. E, pelo pecado,<br />

foi sujeito a apetências desregradas,<br />

sua inteligência se obnubilou,<br />

sua vontade se enfraqueceu.<br />

Não imaginemos que no Paraíso<br />

as pessoas seriam como são agora<br />

na Terra. No Paraíso seria uma<br />

coisa horrenda um indivíduo deitar<br />

uma lágrima, a menos que fosse<br />

uma destilação sublime, de uma cor<br />

magnífica, de um perfume incomparável;<br />

e não resultante da dor, mas<br />

apenas da plenitude de uma emoção<br />

de alegria. Essas nossas lágrimas<br />

torvas, salgadas, feitas ao longo<br />

de uma careta em que a pessoa chora,<br />

para o Paraíso seria uma verdadeira<br />

degradação.<br />

A sociedade deve<br />

construir um estado,<br />

uma cultura, uma<br />

civilização como<br />

meio de santificação;<br />

os homens devem<br />

produzir obras de arte<br />

e de cultura de toda<br />

ordem, não só para<br />

seu serviço, mas para<br />

embelezar a natureza<br />

feita por Deus.<br />

18


Tudo era ultralindo, ultraperfeito,<br />

inteiramente superior. Nós não temos<br />

ideia de como era.<br />

O plano de Deus<br />

após o homem ser<br />

expulso do Paraíso<br />

Mas, após o pecado começou a vida<br />

nesta Terra.<br />

Entretanto, mesmo fora do Paraíso<br />

o plano de Deus continuou o mesmo,<br />

porque a natureza humana continuou<br />

fundamentalmente a mesma.<br />

E esse plano consiste essencialmente<br />

no seguinte:<br />

Primeiro: os homens devem santificar‐se<br />

juntos, formando uma sociedade.<br />

Segundo: essa sociedade deve construir<br />

um estado, uma cultura, uma civilização<br />

como meio de santificação.<br />

Em terceiro lugar: os homens devem<br />

produzir as obras de arte e de<br />

cultura de toda ordem, não só para<br />

seu serviço, mas para embelezar a<br />

natureza feita por Deus.<br />

Consideremos, por exemplo, a<br />

Sainte Chapelle, ou Notre‐Dame. São<br />

sacrossantas, e indicam bem como<br />

o homem pode tornar mais belas as<br />

coisas de Deus.<br />

Temos esplêndido elemento de meditação<br />

na observação da Catedral de<br />

Notre‐Dame vista pela parte de trás:<br />

o Sena, na ilha a abside de Notre‐Dame,<br />

e, de ambos os lados, plantadas<br />

com mão de francês, trepadeiras e árvores<br />

que vegetaram e se desenvolveram<br />

em ar francês, e deram plantas de<br />

francês. Coisas positivamente lindas!<br />

O rio Sena do tempo dos selvagens<br />

devia ser “poca”, mas entrando a mão<br />

do católico, entrando o sobrenatural,<br />

as coisas tomaram outro jeito; e aquela<br />

mesma água está lindíssima.<br />

Veneza! Os senhores sabem que<br />

era um pântano, uma charneca de lo<br />

último com, de vez em quando, umas<br />

ilhas; mas ilha no meio de lodo não é<br />

senão sujeira mais dura no meio da<br />

sujeira mais mole. Era um lugar horrendo.<br />

Eu posso imaginar os maus<br />

cheiros, as umidades antes de Veneza<br />

ser Veneza; talvez infestada até<br />

por alguns demônios, porque eles<br />

gostam de habitar lugares desses. Os<br />

venezianos ocuparam aquilo, drenaram,<br />

separaram a água e saiu Veneza;<br />

tudo esvoaçou e levantou‐se a catedral,<br />

bimbalhando com seus sinos<br />

a glória de São Marcos por cima da<br />

glória de Veneza.<br />

São exemplos do que faz o homem<br />

acrescendo a glória de Deus<br />

nesta Terra.<br />

Na História da Humanidade, nota-se<br />

o seguinte: Deus está sempre<br />

induzindo os homens a desenvolver<br />

uma ordem perfeita, e os homens<br />

sempre estão fugindo de fazê-lo; e<br />

Deus então passa para o plano B, para<br />

o plano C, para o plano D... E cada<br />

vez que Ele passa para outro plano,<br />

inaugura uma maravilha maior.<br />

O plano de Deus na<br />

Era Patriarcal<br />

Por exemplo, na Era Patriarcal, os<br />

descendentes de Adão conheciam a<br />

religião verdadeira e tinham a possibilidade<br />

de criar uma ordem patriarcal<br />

boa. E Deus lhes dava graças para<br />

isso.<br />

Já antes do pecado original, a graça<br />

era dada na previsão dos méritos<br />

infinitamente preciosos de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo. De maneira<br />

que eles podiam construir uma<br />

ordem correta, embora esta ordem<br />

não tivesse a magnificência que teria<br />

quando Nosso Senhor viesse.<br />

Os Reis Magos exprimem isso de<br />

alguma maneira: são reis de zonas<br />

onde talvez houvesse certa virtude<br />

natural, e que vieram adorar o Messias.<br />

Imaginem que tivessem vindo,<br />

por exemplo, mil reis adorar o Messias,<br />

em vez de três, representando<br />

estados que praticavam a Lei Natural<br />

e que tinham restos de Revela-<br />

F. Boulay; V. Toniolo<br />

Aspectos de Veneza, Itália.<br />

19


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

F. Lecaros<br />

Construção da Torre de Babel - Museu da Catedral de Pisa, Itália.<br />

ção. O que teria sido a noite na gruta<br />

de Belém?<br />

Mas, na Era Patriarcal, os homens<br />

pecaram, criando uma ordem errada.<br />

Essa desordem traz como consequência<br />

que Deus a castiga, destruindo-a.<br />

Vem o Dilúvio. No Dilúvio,<br />

não foram apenas mortos os homens<br />

que não prestavam, mas foi<br />

destruída uma ordem de coisas.<br />

Nós temos, então, um primeiro<br />

movimento de Deus; depois, a<br />

constituição de uma ordem de coisas,<br />

a qual foi seguida de uma recusa;<br />

e, por fim, a destruição dessa<br />

ordem.<br />

Mas Ele separa o resto: é o residuum<br />

revertetur 2 . Resta Noé e sua família,<br />

e, em favor de Noé, para continuar<br />

a realização do plano d’Ele,<br />

Deus faz maravilhas mais belas do<br />

que aquilo que Ele destruiu.<br />

Esse episódio dá uma beleza<br />

maior à História do homem do que<br />

se não tivesse existido.<br />

A Torre de Babel,<br />

como que um segundo<br />

pecado original<br />

Então, tudo recomeça, mas os homens<br />

pecam de novo.<br />

Eles pecam no seu interior e sob a<br />

influência do pecado introduzem novamente<br />

a desordem, que os leva a<br />

pecar ainda mais. A expressão mais<br />

aguda dessa desordem é a Torre de<br />

Babel.<br />

Com a Torre de Babel, vem o castigo:<br />

a dispersão dos povos.<br />

Quase que se poderia dizer que<br />

o pecado da Torre de Babel foi<br />

um segundo pecado original. Porque<br />

houve uma baixa no homem e<br />

ele passou a sofrer da confusão<br />

das línguas. A confusão das línguas<br />

supõe um enfraquecimento<br />

do intelecto, porque a palavra é<br />

o termo normal e final do pensamento,<br />

e onde qualquer coisa<br />

amoleceu na ordem da palavra,<br />

algo amoleceu na ordem do pensamento.<br />

Eu não posso garantir que antes<br />

da dispersão não houvesse<br />

uma língua diversificada em muitos<br />

dialetos. Uma coisa é a diversificação<br />

das línguas, outra coisa é<br />

a confusão das línguas.<br />

Que houvesse uma diversificação<br />

harmoniosa, por onde uns entendessem<br />

as línguas dos outros,<br />

seria uma coisa bonita e teria certa<br />

riqueza. Mas, o mal está nas<br />

línguas herméticas. Porque assim<br />

como qualquer um pode saber falar<br />

mais de uma língua, poderia<br />

ser que todas as línguas fossem<br />

tão harmônicas que nós soubéssemos<br />

todas, e houvesse uma clave<br />

por onde elas fossem entendidas.<br />

Elas estariam umas para as outras<br />

como os diversos instrumentos de<br />

uma orquestra, e não como a cacofonia<br />

de nossos dias, que é confusão<br />

e não se entende.<br />

Deus escolhe um<br />

povo para Si<br />

Depois da confusão das línguas,<br />

em vez de se corrigirem, os povos<br />

dispersos constituem a gentilidade,<br />

formando as nações pagãs.<br />

Então, Deus constitui um povo<br />

para Si, para por meio desse povo<br />

construir essa ordem. E Ele suscita<br />

o povo hebraico e opera uma maravilha<br />

maior do que a anterior: nesse<br />

povo nascerá o Messias, nesse povo<br />

nascerá Nossa Senhora.<br />

Há, então, toda a História narrada<br />

no Antigo Testamento.<br />

Pelo menos um povo na Terra conhecia<br />

a Lei e prestava a Deus o verdadeiro<br />

culto<br />

20


Porém, várias vezes, esse povo<br />

viola essa ordem, revolta‐se contra<br />

Deus, e vem numa decadência contínua<br />

até o momento do nascimento<br />

de Nosso Senhor.<br />

Portanto, outra vez o plano não se<br />

realiza.<br />

Deus revida. De que maneira?<br />

Ele castiga e dispersa o povo hebraico;<br />

mas Ele se serve dos restos fiéis<br />

do povo hebraico para fundar a verdadeira<br />

Igreja.<br />

O nascimento da<br />

Santa Igreja<br />

Aparece, então, a obra-prima das<br />

obras-primas da Criação, excetuando<br />

Nosso Senhor e Nossa Senhora:<br />

nasce a Santa Igreja Católica, Apostólica<br />

e Romana. Como uma espécie<br />

de vingança de Deus, a Igreja estende‐se<br />

a todos os povos gentios, os tira<br />

da gentilidade e remedeia todos<br />

os males até então existentes. É um<br />

novo lance, uma nova vitória. É de<br />

uma beleza magnífica!<br />

A Igreja Católica, em certo momento,<br />

dá origem à Idade Média:<br />

começa a construção da ordem perfeita!<br />

Mas aparece a Revolução…<br />

O revide de Deus: o<br />

Reino de Maria<br />

Quando aparece a Revolução,<br />

Deus vai aprimorando a Igreja através<br />

da Contra‐Revolução.<br />

Deus vai requintando sua obra, e<br />

ao mesmo tempo se dão os seguintes<br />

fatos: a Igreja, hoje em dia, anuncia<br />

o Evangelho a todos os povos; antes<br />

da História encerrar-se, é preciso<br />

que o plano de Deus se realize inteiramente,<br />

e se realize em condições<br />

de durabilidade. É preciso que em<br />

determinado momento fique provado<br />

que o Reino de Deus existe,<br />

e existe porque a máxima força de<br />

Deus vai ser empregada. Essa máxima<br />

força é Nossa Senhora.<br />

Exatamente a glória de Nossa Senhora<br />

será de dar durabilidade e<br />

consistência ao que até agora foram<br />

tentativas precursoras.<br />

Teremos, então, o Reino de Maria<br />

previsto por São Luís Maria Grignion<br />

de Montfort.<br />

A plenitude da perfeição<br />

Mas, depois da duração devida,<br />

também virão a revolta última e o Anticristo.<br />

Então, estará tudo acabado.<br />

Quando tudo<br />

recomeçava, o homem<br />

pecou novamente<br />

construindo a Torre<br />

de Babel. Como<br />

castigo, deu-se a<br />

confusão das línguas e<br />

a dispersão dos povos.<br />

Mas ainda há uma maravilha. Os<br />

últimos fiéis vão ser incomparáveis,<br />

tão fiéis e tão bons que neles a Igreja<br />

terá realizado a plenitude de sua<br />

perfeição. Eles serão a própria beleza<br />

plena da Igreja.<br />

Na Igreja, como numa espécie de<br />

trepadeira que dá rosas no pior da<br />

tempestade e em plena meia‐noite,<br />

florescem essas almas fiéis. E, nessa<br />

morte aparente, a Igreja chegará ao<br />

apogeu de sua beleza, ao apogeu de<br />

sua perseguição e na totalidade da<br />

tempestade.<br />

Porém, uma beleza incomparável<br />

vai se somar a isso, e esta não tem<br />

nomes, não tem palavras, não tem<br />

expressão. Deveríamos prostrar‐nos<br />

em terra para dizê‐lo: o próprio Filho<br />

de Deus virá em sua pompa e<br />

majestade, de um modo visível, colher<br />

essas últimas rosas da Igreja para<br />

levá‐las consigo para o Céu. De<br />

maneira tal que haverá um ósculo<br />

de Nosso Senhor na Igreja Militan-<br />

te expirante, que se transforma em<br />

um elemento a mais e na maior beleza<br />

da Igreja Gloriosa.<br />

E com isso o plano terá acabado.<br />

E, durante esse sucessivo decorrer<br />

da História, os homens foram se salvando,<br />

de maneira que, quando tudo<br />

estiver terminado, o número de tronos<br />

celestes deixados pelos anjos decaídos<br />

estará preenchido. A sinfonia<br />

celeste estará completa, e a História<br />

da Criação, terminada.<br />

A majestade divina<br />

no Juízo Final<br />

Segundo diz o Pe. Arminjon 3 ,<br />

quando houver o Juízo Final, os corpos<br />

gloriosos vão estar em torno do<br />

Vale de Josafá, pairando pelo céu<br />

em quantidades enormes; todos os<br />

anjos vão aparecer; Nossa Senhora<br />

estará presente com uma irradiação<br />

da qual não se pode ter ideia.<br />

Enquanto isso, um incêndio lavra<br />

na Terra, destrói tudo quanto na Terra<br />

é capaz de morrer, e a morte desaparece<br />

da face da Terra.<br />

Os réprobos caem no Inferno.<br />

E nós estaremos, pelo favor de<br />

Nossa Senhora, no Paraíso Celeste,<br />

um lugar físico e material incomparavelmente<br />

mais bonito do que o Paraíso<br />

Terrestre; e ali as nossas almas<br />

verão Deus face a face.<br />

Assim, o plano revelado a Satanás<br />

se terá realizado, sem ele e contra<br />

ele.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 17/1/1967)<br />

1) Segundo afirmam Tertuliano, São Cipriano,<br />

São Basílio, São Bernardo e<br />

outros santos, a prova que decidiu o<br />

destino eterno dos espíritos angélicos<br />

foi, de fato, o anúncio da Encarnação<br />

do Verbo, Jesus Cristo, verdadeiro<br />

Deus e verdadeiro Homem, o qual<br />

haveria de nascer da Virgem Maria.<br />

2) O resto que voltará.<br />

3) Padre Charles Arminjon (1824-1885).<br />

21


Perspectiva pliniana da história<br />

O Império Romano<br />

nos planos de Deus<br />

A Grécia deixou de ser uma simples nação subjugada pelas<br />

garras da Roma pagã, para tornar-se a capital oriental<br />

do Império. Seja pela influência de sua cultura, seja pela<br />

grandeza de sua civilização, Bizâncio representava uma<br />

espécie de síntese do esplendor imperial.<br />

G. Kralj<br />

22


T<br />

odas as coisas, em seu estado<br />

inicial, dão a Deus uma glória<br />

especial, diversa daquela que<br />

lhe propiciam em sua etapa final.<br />

A origem de algo sempre apresenta<br />

uma forma de beleza própria,<br />

a qual, em geral, é caracterizada pela<br />

simplicidade, candura e pelo evidente<br />

esplendor da bondade, que transparecem<br />

no “sorriso primeiro” das<br />

coisas, e raramente podem ser igualmente<br />

percebidos no auge de seu desenvolvimento.<br />

Tal princípio pode ser comprovado,<br />

por exemplo, com as flores. Observando<br />

um botão de rosa, verifica-<br />

-se que ele possui neste estado inicial<br />

certa forma de esplendor que supera<br />

o da flor inteiramente desabrochada.<br />

Arco de Séptimo Severo<br />

- Forum Romano.<br />

Até certo ponto, essa regra se<br />

aplica também à Igreja, a qual —<br />

apesar de sua imortalidade, que não<br />

lhe permite passar nem por mortes<br />

aparentes — tem também fases de<br />

aurora, de meio-dia e de certas formas<br />

de ocaso.<br />

A Igreja no tempo<br />

das catacumbas<br />

Pode-se dizer que a Igreja em seu<br />

estado inicial teve aspectos de pulcritude<br />

ímpares. Nota-se, por exemplo,<br />

no tempo das catacumbas, uma presença<br />

sensível da divindade de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, como depois não<br />

mais se viu. Ao tomar contato com escritos<br />

e outras coisas desta época, tem-<br />

-se a impressão de que a presença do<br />

Redentor ainda ecoa neles.<br />

Nesta fase primitiva da História<br />

da Igreja, pelo frescor da pregação<br />

dos Apóstolos, pela tradição deixada<br />

por aqueles que tinham conhecido<br />

Nosso Senhor, bem como pelas<br />

graças dadas para corroborar tudo<br />

quanto a respeito de Jesus se dizia,<br />

por tudo isso se sente uma manifestação<br />

de simplicidade, candura e beleza<br />

que são próprias ao estado embrionário.<br />

Assim, apesar da feiúra<br />

e do negrume das catacumbas, sente-se<br />

nelas muito vivamente defluir<br />

uma plenitude de vida, na qual está<br />

contido tudo quanto se verá nas outras<br />

fases da Igreja.<br />

Na organização canônica, no desenvolvimento<br />

doutrinário, nas formas<br />

litúrgicas, em cada aspecto da<br />

Igreja no tempo das catacumbas resplandecia<br />

um esplendor magnífico.<br />

Creio não exagerar em supor que nos<br />

diversos grupinhos de cristãos, apesar<br />

das improbabilidades de êxito, o calor<br />

e a beleza da presença do Divino Salvador<br />

neles se faziam mais intensos<br />

do que quando a Igreja se desenvolveu<br />

e atingiu sua plena estatura.<br />

Recordo-me ter visto numa catacumba<br />

uma capela, a qual não podia<br />

ser mais simples. No entanto, as pinturas,<br />

a decoração e, sobretudo, o conjunto<br />

que ela formava, davam a impressão<br />

de que Nosso Senhor há pouco tempo<br />

ali estivera. Por aquele conjunto, podia-se<br />

sentir o incomparável encanto<br />

da Religião Católica ao desabrochar de<br />

dentro das brumas do paganismo, manifestando<br />

uma magnificência como<br />

em nenhuma outra fase o teve.<br />

A era das catacumbas poderia ser<br />

subdividida em fases internas, nas<br />

quais este mesmo processo em escala<br />

menor se verificou. Deixemos, porém,<br />

este período, a fim de analisar a<br />

História da Igreja no tempo do Império<br />

Romano.<br />

Bizâncio e Roma<br />

O Império do Oriente, sobretudo<br />

Bizâncio, parece-me ter sido chamado<br />

a realizar o ideal do Império uno<br />

e cristão, católico, mais do que Roma<br />

e o Império do Ocidente, o qual<br />

já estava em decadência e não tinha<br />

mais o brilho do Império do Oriente.<br />

Em meio às corrupções e horrores,<br />

Bizâncio teve uma indiscutível<br />

grandeza, herança do Império Romano,<br />

com sua força, lógica e espírito<br />

de organização acrescidos da<br />

graça do batismo. E por isso com<br />

um pulchrum próprio, que não chegava<br />

a ser o de uma sociedade orgânica<br />

perfeita; esta deveria ter essa<br />

grandeza natural, porém aprimorada<br />

pela graça que, sendo amiga da<br />

natureza, pousa sobre ela e a sacraliza,<br />

dando-lhe fulgores próprios, os<br />

quais não excluem a glória natural<br />

que, de acordo com um desígnio da<br />

Providência, se tenha acumulado.<br />

O Império Cristão do Ocidente<br />

parece-me ter sido chamado a representar<br />

mais a força enquanto vencendo.<br />

E o do Oriente, a força já vitoriosa<br />

que se inclina sobre os escombros<br />

daquilo que ele havia derrotado<br />

e, não mais com temor, mas<br />

com amor, vai selecionando de dentro<br />

deles coisas para adornar a sua<br />

própria glória. De maneira que há<br />

23


Perspectiva pliniana da história<br />

S. Miyazaki<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência, na década de 1980.<br />

mas dominadas por ele até o momento<br />

das invasões dos bárbaros; tinha, portanto,<br />

uma estrutura cultural mais unitária.<br />

E o do Oriente trabalhava com<br />

povos podres, caindo aos pedaços, mas<br />

numerosos e com algum poder.<br />

O melhor de tudo isso era o estado<br />

de alma que essas várias justaposições<br />

criavam, recompondo, unindo todos<br />

esses passados gloriosos, salvando-os,<br />

numa tentativa de introduzi-los<br />

na Igreja e de irmaná-los. De algum<br />

modo, portanto, restabelecendo uma<br />

ordem legal mais próxima do feudalismo:<br />

protetorados, povos com relativas<br />

independências, com seus governos<br />

próprios e muito mais autônomos.<br />

Cartago e Alexandria<br />

um quê de síntese no Império Romano<br />

do Oriente.<br />

Influência<br />

da cultura grega<br />

A Roma pagã mantinha a Grécia<br />

debaixo de suas garras, como nação<br />

escrava. De tanto admirar a cultura<br />

grega, Roma acaba transferindo parte<br />

do seu diadema para a Grécia. E o<br />

Império do Oriente seria uma espécie<br />

de Império grego; a cultura grega<br />

dominava e — isso tem certa importância<br />

histórica — o povo grego<br />

já não era um povo escravo, mas inteiramente<br />

colocado no frontispício.<br />

Pode-se dizer que a Igreja libertou<br />

os gregos. Entrou então um pouco<br />

de um sábio ecletismo católico,<br />

algo do velho espírito clássico, já não<br />

temendo o adversário e indo procurar<br />

nos escombros o que aproveitar<br />

para enfeitar o seu próprio palácio.<br />

A Basílica de Santa Sofia é inteiramente<br />

característica. Nela existe<br />

uma nota evidente de helenismo<br />

e também de uma Grécia que já não<br />

desdenhava o Oriente como outrora,<br />

mas estava meio aberta a orientalizar-se.<br />

De maneira que eram sucessivos<br />

vencedores coletando tesouros<br />

Se o Império<br />

Bizantino tivesse sido<br />

ortodoxo; se o irmão<br />

mais rico, mais forte,<br />

tivesse reconhecido<br />

a primogenitura do<br />

irmão mais pobre,<br />

mais fraco, entretanto<br />

mais espiritual, que<br />

era o Império do<br />

Ocidente — seriam<br />

como um Esaú bom e<br />

um Jacó bom —, isso<br />

seria o encanto do<br />

universo.<br />

nos escombros dos vencidos, e assim<br />

honrando-os, reabilitando-os, incorporando-os<br />

a um todo. É um trabalho<br />

que — a ser levado sem heterodoxia<br />

— poderia ter sido de uma beleza<br />

difícil de imaginar.<br />

É preciso ponderar ainda que as situações<br />

dos dois impérios eram diferentes.<br />

O Império do Ocidente tratava<br />

com vastidões europeias “caipirosas”,<br />

Wikipedia<br />

Exemplo característico é a diferença<br />

do estatuto da maior cidade<br />

vencida, pertencente ao Império Romano<br />

do Ocidente, que era Cartago,<br />

e as do Império do Oriente. Cartago<br />

passou a ser uma província romana;<br />

ela estava para Roma como Santos,<br />

Campinas ou Ribeirão Preto 1 estão<br />

para a capital paulista. Todo o Norte<br />

da África, chegando até o Egito, passou<br />

a pertencer ao Império Romano<br />

do Ocidente.<br />

À esquerda, ruínas do Anfiteatro<br />

24


Alexandria pertencia ao Egito,<br />

que já não era o Egito dos faraós,<br />

mas era uma grande coisa. Houve ali<br />

uma transição entre as duas faixas, a<br />

ser vista mais como helenizante, do<br />

que ligada com as pirâmides. O caso<br />

de Alexandria mostra como o Império<br />

Romano do Ocidente possuía<br />

uma zona, o Egito, que tinha as condições<br />

da Ásia e não as da caipirada<br />

da Europa e do Norte da África.<br />

A ideia de dividir o Império em<br />

dois subimpérios — impérios irmãos,<br />

unitários, mas diferentes e parecidos<br />

entre si como os dois lados da face;<br />

não idênticos, pois ficariam monstruosos<br />

— já mostrava certa composição<br />

da velha tradição unitária romana<br />

com condições novas, que impeliam<br />

sair daquela camisa de força da<br />

unidade primitiva da época heroica<br />

das conquistas, mas sem perder o sonho<br />

de unidade, o desejo de um todo.<br />

Um Esaú bom e um Jacó<br />

romano de Cartago (Tunísia); à direita, Teatro romano de Alexandria.<br />

Se o Império Bizantino tivesse sido<br />

ortodoxo, submetendo-se à velha<br />

Roma em qualquer de suas fases; se<br />

o irmão mais rico, mais forte, tivesse<br />

reconhecido a primogenitura do<br />

irmão mais pobre, mais fraco, entretanto<br />

mais espiritual, que era o Império<br />

do Ocidente — seriam como<br />

um Esaú bom e um Jacó bom —, isso<br />

seria o encanto do universo.<br />

Dessa forma se teriam afirmado<br />

reciprocidades de espírito, estilos<br />

de vida, enfim, todo um colorido<br />

da alma humana do qual não temos<br />

ideia, mas que era uma possibilidade<br />

da natureza e da Igreja Católica. De<br />

algum modo isso veio a lume, apresentando<br />

uma continuidade com a<br />

Igreja das catacumbas, que salta aos<br />

olhos, mas com uma diferença: nessa<br />

espécie de fogo de artifício, que se<br />

abre em leque, há tudo menos certo<br />

encanto da coisa primeira no seu reluzimento<br />

inicial. Tudo isso se conservaria<br />

muito mais se tivesse havido<br />

uma soma das idades.<br />

Devemos então imaginar uma<br />

forma de vida espiritual católica que<br />

fosse a inserção dentro da vida da<br />

graça do gosto do imperial, do monumental,<br />

do magnífico, do unitário,<br />

mas reluzente de variedades unas,<br />

de ecletismos sadios, de aproveitamentos<br />

e de composições infatigáveis.<br />

Tudo isso feito sem muito plano<br />

prévio, porém guiado por aquilo que<br />

vale mais do que qualquer plano: o<br />

senso por onde, como uma flor desabrocha<br />

e tende para o Sol, isso tenderia<br />

para a plenitude de si mesmo;<br />

o senso e o plano se juntando como<br />

dois trilhos para a continuidade de<br />

uma mesma estrada.<br />

Esplendor superior ao<br />

das pirâmides<br />

Teríamos assim uma beleza magnífica.<br />

O esplendor humano que daí<br />

deveria nascer, eu considero, sob vários<br />

aspectos, superior ao das pirâmides.<br />

Fazer uma obra destas, na ordem<br />

do espírito, vale muito mais do<br />

que as pirâmides. E ainda que se pudesse<br />

provar que as pirâmides eram<br />

deslocadas por enigmáticas forças<br />

mentais não diabólicas, elas valeriam<br />

menos do que essa construção.<br />

O Sacro Império teria sido filho<br />

dessa obra.<br />

E tudo constituindo uma espécie de<br />

síntese, onde também entraria um lado<br />

que não vejo ter sido muito aproveitado<br />

na Antiguidade: o panorama.<br />

Roma, por exemplo, não tem panorama.<br />

Se não fosse Constantino, mas um<br />

homem de hoje, em vez de Constantinopla<br />

ele pensaria em restaurar Atenas,<br />

em reconstruir a Acrópole ou fazer<br />

desta um museu monumental da<br />

cidade. E teria feito outras estultices<br />

do gênero, que absolutamente não<br />

atormentaram Constantino. Eles estavam<br />

tão certos da sua continuidade<br />

com Roma e a Grécia, que não se<br />

preocuparam muito com aquelas ruínas;<br />

aquilo tudo foi aproveitado como<br />

o senso faz e o plano não faz.<br />

Não sou contrário ao plano, quando<br />

este não é senão a florada magnífica<br />

das premissas dadas pelo senso.<br />

Nesse caso, sou muito favorável<br />

ao plano.<br />

Agrada-me saudar tudo isso, como<br />

formando um conjunto no qual a graça<br />

punha qualquer coisa que a Basílica<br />

de Santa Sofia ainda hoje exprime.<br />

É preciso reconhecê-lo. E os minaretes<br />

acrescentam algo. Dir-se-ia<br />

que faltava à Santa Sofia alguma coi-<br />

25


Perspectiva pliniana da história<br />

sa à maneira da graça do minarete<br />

que nasceria. Isso proporcionou<br />

um conjunto que deveria<br />

ter dado glória a Nossa Senhora<br />

e a Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Os “Confiteor”<br />

capazes de encher<br />

os desertos<br />

G. Kralj<br />

Essa glória tinha um preço: o<br />

equilíbrio que todas essas coisas<br />

devem possuir. Eu vejo na formação<br />

dos grandes solitários,<br />

no povoamento dos desertos,<br />

nas macerações, nas penitências<br />

fenomenais, na vida mística,<br />

nos milagres, alimento para<br />

o outro aspecto.<br />

Para que pudesse haver o outro<br />

lado em toda a retidão, apesar<br />

da miséria humana concebida<br />

no pecado original, deveriam<br />

existir os eremitas monumentais,<br />

capazes dos sofrimentos inenarráveis,<br />

também dos isolamentos sem<br />

nome, dos areais de uma secura sem<br />

palavras, mas nos quais ocorriam milagres<br />

que prenunciavam os fioretti:<br />

um corvo que vem todo dia trazer<br />

um pão para um eremita, uns sorrisos<br />

pré-Fra Angelico luzindo naqueles<br />

desertos, no meio de tragédias dilacerantes<br />

que fazem quase pressentir<br />

a Espanha.<br />

E conversões de pessoas como<br />

Santa Maria Egipcíaca. Contou-me<br />

um antigo padre de São Paulo que<br />

há um livro sobre a vida de Santa<br />

Maria Egipcíaca, mandado escrever<br />

ou escrito por um velho bispo de São<br />

Paulo, que relata penitências tais<br />

dessa santa que os bispos posteriores<br />

reputaram que podia arrepiar os fiéis<br />

e fazer mal a sua vida espiritual.<br />

Então, tiraram o livro de circulação.<br />

À beleza espiritual dessa época<br />

se integram, como em todas as eras<br />

da Igreja, manifestações de virgindade<br />

e castidade — as virgens de Deus<br />

consagradas em Bizâncio, Roma e<br />

outros lugares. Mas o grande traço<br />

Santa Maria Egipcíaca - Catedral de Lima, Peru.<br />

A cultura bizantina<br />

conservaria à<br />

vista simplicidades<br />

maiores, para fazer<br />

entender a glória que<br />

ela possuía por ser<br />

nascida diretamente<br />

do Estado patriarcal,<br />

primitivo, com o qual<br />

não tinha perdido<br />

ligações.<br />

eram as penitências lancinantes, os<br />

“Confiteor” capazes de encher desertos,<br />

as tristezas desoladas de ter<br />

pecado, os pedidos de perdão do indigno,<br />

do miserável que de repente<br />

começa a resplandecer como um<br />

querubim. Isso era próprio a uma<br />

humanidade pecadora que ia entrando<br />

para o seio da verdadeira Igreja, e<br />

precisava se arrepender dos desbordamentos<br />

do passado. A Igreja herdava<br />

os esplendores, expurgava<br />

o mundo das demasias e ia formando<br />

as pessoas rumo à ordem<br />

perfeita. Assim, com penitências<br />

monumentais, ela limpava<br />

o que o paganismo tinha<br />

trazido de ruim.<br />

A História da Igreja<br />

fará um unum<br />

com a História da<br />

civilização cristã<br />

Aliás, é preciso dizer que<br />

a população do Império do<br />

Oriente contribuiu muito mais<br />

para isso do que a do Império<br />

Romano. Os romanos fizeram<br />

algo, mas de um modo incompleto.<br />

Em determinado momento<br />

um gongo toca na História<br />

e Deus decreta: “É o fim.”<br />

Por exemplo, o Império Romano<br />

do Oriente ficou imóvel, depois<br />

começou a apodrecer por dentro,<br />

conservando o aspecto externo de<br />

beleza, de ordenação; posteriormente,<br />

no exterior começam as rugas, os<br />

sinais de podridão e vem o fim. Os<br />

sarracenos terminam a destruição.<br />

A Igreja engendrou esse ideal,<br />

tornando possível às almas fiéis reconstituírem-no<br />

e, assim, compreenderem<br />

o plano de Nosso Senhor.<br />

E entenderem uma potencialidade<br />

que a Igreja tem e fica registrada na<br />

História; e, debaixo de certo ponto<br />

de vista, consignada como âmago da<br />

história d’Ele.<br />

Deus queria que os bizantinos<br />

e os romanos do Ocidente refletissem<br />

a santidade, a perfeição d’Ele,<br />

enquanto Criador, enquanto motor<br />

imóvel.<br />

E isso, que não foi feito, Nossa<br />

Senhora e Nosso Senhor de algum<br />

modo completam. Porque, como o<br />

Redentor e a Igreja formam um só,<br />

a intenção d’Ele, como cabeça do<br />

Corpo Místico, de ter feito isso fica<br />

válida em nome do Corpo Místico.<br />

26


G. Kralj<br />

E fundamentalmente, na última radicalidade<br />

dos fatos, Nosso Senhor<br />

emitiu aquele raio de luz, o qual Ele<br />

queria que o Padre Eterno visse. E,<br />

sob este aspecto, a Igreja deu a Deus<br />

essa glória, embora não tão perfeitamente.<br />

E um católico do Reino de Maria,<br />

um católico dos últimos tempos, deve<br />

ser capaz de ver isto. A História<br />

da Igreja, que deveria fazer em certa<br />

altura um unum com a História da<br />

civilização cristã, precisaria refletir<br />

isto.<br />

Tudo isso formaria um conjunto,<br />

com o qual o homem conversaria como<br />

se pode conversar com as ideias.<br />

E o sentido dos museus, da conservação<br />

das coisas, é para que nos deem<br />

a ideia, antes de tudo, desse passado,<br />

desses planos.<br />

E a Igreja Latina, muito poeticamente,<br />

deixa restos dessas coisas<br />

subsistirem. Por exemplo, há um<br />

templo do rito grego em Roma, desde<br />

o tempo dos bizantinos, que a<br />

Igreja manteve como uma raridade,<br />

um tesouro. Pertencia a monges que<br />

falavam o grego e moravam na Cidade<br />

Eterna, ou numa ilha do Tibre, e<br />

continuaram na obediência aos Papas.<br />

E nessa igreja se segue a liturgia<br />

grega, com todo o seu pulchrum<br />

natural.<br />

A Igreja conservou os ritos<br />

orientais, como quem se adorna e<br />

diz: “Em determinado momento<br />

de minha vida, meu Bem-Amado<br />

quis que eu tivesse essa face.” Quase<br />

se poderiam aplicar aqui expressões<br />

do Cântico dos Cânticos, sobre<br />

a atitude de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo quanto a essas várias faces<br />

que a Igreja sucessivamente foi<br />

tendo, como um pai amoroso que<br />

vai escolhendo joias diferentes para<br />

as várias idades da filha. E a filha<br />

gosta de, às vezes, usar as joias deste<br />

ou daquele tempo; e algumas ela<br />

usa a vida inteira. É natural, é direito,<br />

é bonito.<br />

Bizâncio e França<br />

Gostaria de fazer agora uma comparação<br />

entre Bizâncio e França.<br />

Bizâncio tinha que trazer, apesar<br />

de tudo, algo meio primitivo e inacabado<br />

que o acabado do Ocidente,<br />

especialmente a França, veria de<br />

outra maneira. Por exemplo, as pedras<br />

preciosas inteiramente lapidadas<br />

não ficariam bem na joia bizantina;<br />

mas sim o cabochon, com suas<br />

formas especiais de luzes.<br />

A cultura bizantina conservaria<br />

à vista simplicidades maiores, para<br />

fazer entender a glória que ela possuía<br />

por ser nascida diretamente do<br />

Estado patriarcal, primitivo, com<br />

o qual não tinha perdido ligações.<br />

Por exemplo, os calçados: os sapatos<br />

franceses de verniz, com fivelas<br />

de ouro, brilhantes, com salto vermelho<br />

— todos sabem como eu gosto<br />

disso —; o calçado bizantino tinha<br />

qualquer coisa de mais elementar,<br />

semelhante à sandália, mais forte e<br />

um pouco mais bruto, que não poderia<br />

ter dado no precioso francês. Aliás,<br />

gosto do precioso francês, mas é<br />

necessário pôr cada coisa no seu devido<br />

lugar.<br />

Os nobres da época de Luís XIV<br />

usavam sapatos com saltos vermelhos,<br />

o que tinha o interessante de<br />

uma reconstituição, mas não o pulchrum<br />

de uma continuidade. Nas<br />

coisas bizantinas havia o sentido de<br />

continuidade. Certas continuidades<br />

gloriosas têm algo que nada pode<br />

apagar. Por exemplo, os Papas em<br />

Roma andavam de mula. Compreendo<br />

a beleza do cavalo, mas acaba<br />

sendo que para o Vigário de Cristo<br />

era melhor a mula. Depois que Nosso<br />

Senhor andou de mula, esta é o<br />

cavalo da glória para o Papa!<br />

Essas continuidades esplendorosas<br />

existem, não em virtude de uma<br />

ordem para permanecerem, mas naturalmente<br />

elas ficam. E assim elas<br />

são bonitas. Em certo momento, nos<br />

damos conta e dizemos: “Aquilo é<br />

uma continuidade. Não mexam!” v<br />

Jesus abençoando - Pórtico<br />

da Sainte Chapelle, França.<br />

Continua no próximo número…<br />

(Extraído de conferência<br />

de 8/9/1982)<br />

1) Cidades do interior do Estado de São<br />

Paulo.<br />

27


Calendário dos Santos –––––––––<br />

1. Solenidade do Sagrado Coração<br />

de Jesus.<br />

Beato João Nepomuceno Chrzan,<br />

Sacerdote da Arquidiocese de<br />

Gniezno, Polônia. Martirizado por<br />

ódio à Fé, no campo de concentração<br />

nazista de Dachau, em 1º de julho<br />

de 1942.<br />

2. Imaculado Coração de Maria.<br />

São Bernardino Realino, Presbítero<br />

(†1616). Entrou para a Companhia<br />

de Jesus aos 34 anos, em<br />

Lecce (Itália). Foi pregador, diretor<br />

espiritual e confessor. Cuidou dos<br />

pobres e enfermos.<br />

3. Solenidade de São Pedro e São<br />

Paulo, Apóstolos (transferida do<br />

dia 29 de junho).<br />

São Tomé, Apóstolo.<br />

4. Beato Bonifácio de Saboia,<br />

Bispo e Monge (†1270). De família<br />

nobre francesa, foi monge cartuxo<br />

e Bispo de Belley, na França<br />

e depois Arcebispo de Cantuária,<br />

Inglaterra.<br />

5. Santa Ciprila (ou Cirila),<br />

Mártir (†séc. IV). Libanesa de Cirene,<br />

martirizada no tempo da perseguição<br />

de Diocleciano.<br />

6. Beata Nazária de Santa Teresa<br />

March Mesa, Virgem (†1943).<br />

Nascida em Madri (Espanha), foi<br />

com sua família para o México. Tornou-se<br />

religiosa e seguiu para a Bolívia,<br />

onde fundou o Instituto das<br />

Missionárias Cruzadas da Igreja.<br />

Depois foi para a Argentina, onde<br />

deu vida a muitas instituições, falecendo<br />

em Buenos Aires.<br />

7. São Marco Ji Tianxiang, Mártir<br />

(†1900). Foi martirizado em Hebei<br />

Jixiam (China) por defender a<br />

Fé Católica.<br />

São Tiago Maior, Apóstolo - Basílica<br />

de Compostela, Espanha.<br />

8. Beato Eugênio III, Papa<br />

(†1153). Após conhecer São Bernardo<br />

de Claraval, fez-se cisterciense.<br />

Eleito Papa, defendeu a Igreja<br />

contra o ataque dos infiéis e a governou<br />

por oito anos e cinco meses.<br />

Presidiu quatro Concílios.<br />

9. Santo Agostinho Zhao Rong,<br />

Presbítero, e companheiros, Mártires<br />

(†1815). Por haver pregado<br />

o Evangelho com suas palavras e<br />

obras e confessado a Fé Católica,<br />

foram perseguidos e martirizados<br />

em distintos lugares da China.<br />

10. XV Domingo do Tempo Comum.<br />

São Canuto IV, Mártir (†1086).<br />

Rei da Dinamarca, promoveu o estado<br />

clerical e assentou solidamente<br />

as igrejas de Lund e Odense, sendo<br />

finalmente assassinado por uns<br />

revoltosos.<br />

11. São Bento, Abade (†547).<br />

12. Beata Marta do Bom Anjo<br />

(Marie Cluse) e 31 companheiras,<br />

Mártires em Orange, durante a Revolução<br />

Francesa (†1794).<br />

São Clemente Inácio Delgado<br />

Cebrián, Bispo e Mártir (†1838).<br />

Após pregar o Evangelho por 50<br />

anos em Nam Dinh,Vietnã, convertendo<br />

pagãos, ordenando sacerdotes<br />

muitos indígenas e construindo<br />

muitas casas religiosas, foi preso e<br />

morreu após muitos sofrimentos.<br />

13. Beato Tomás Tunstal, Presbítero<br />

e Mártir (†1616). Beneditino<br />

condenado à morte pelo Rei Jaime<br />

I, em Norwich, Inglaterra, simplesmente<br />

por haver entrado no país,<br />

sendo sacerdote.<br />

14. São Francisco Solano, Presbítero<br />

(†1610). Espanhol franciscano,<br />

foi escalado para missões na América<br />

Latina. Percorreu desde o Peru<br />

até a Argentina, pregando e fazendo<br />

milagres a índios e colonizadores.<br />

São Camilo de Lélis, Presbítero<br />

(†1614).<br />

15. São Boaventura, Religioso<br />

franciscano, Bispo, Cardeal e Doutor<br />

da Igreja. Chamado “Doutor<br />

Seráfico” (†1274).<br />

São José de Tessalônica, Bispo<br />

(†832). Durante sua vida de monge,<br />

compôs hinos e promoveu o episcopado.<br />

Por defender a disciplina<br />

eclesiástica e as sagradas imagens,<br />

sofreu muito. Morreu em Tesália,<br />

na Grécia.<br />

16. Nossa Senhora do Carmo.<br />

No Monte Carmelo teve o Profeta<br />

Elias a visão da nuvenzinha que<br />

simbolizava a futura Mãe de Deus.<br />

Em 16 de julho de 1251, São Simão<br />

Stock, Geral dos Carmelitas, recebeu<br />

o Escapulário das mãos da Santíssima<br />

Virgem.<br />

28


––––––––––––––––––– * Julho * ––––<br />

17. XVI Domingo do Tempo Comum.<br />

Bem-aventurado Inácio de Azevedo,<br />

Presbítero, e companheiros,<br />

Mártires (†1570).<br />

18. Beato João Batista de Bruxelas,<br />

Presbítero e Mártir (†1794).<br />

Presbítero de Limoges. Durante a<br />

Revolução Francesa foi colocado<br />

em um navio destinado ao transporte<br />

de escravos, onde morreu na<br />

miséria, atacado pela peste.<br />

19. São João Plessington, Presbítero<br />

e Mártir (†1679).<br />

Santa Macrina, a Jovem. Primogênita<br />

de uma família querida por<br />

Deus. Foram seus irmãos São Basílio<br />

Magno, São Gregório de Nissa<br />

— Padres da Igreja — e São Pedro<br />

de Sebaste. Seu lar foi um pequeno<br />

mosteiro de contemplação. Morreu<br />

assistida por São Gregório (séc. IV).<br />

20. Santo Elias, Profeta do Antigo<br />

Testamento. Padroeiro da Ordem<br />

do Carmo (séc. IX a.C).<br />

São Paulo de Córdoba, Diácono<br />

e Mártir (†851). Instruído pelas palavras<br />

e exemplos de São Sisenando,<br />

não temeu mostrar aos mouros<br />

a falsidade de seu culto e por isso<br />

foi martirizado.<br />

21. Beato Gabriel Pergaud, Presbítero<br />

e Mártir (†1794). Durante a Revolução<br />

Francesa foi tirado de sua<br />

abadia e preso num navio em condições<br />

desumanas, nas costas de Rochefort<br />

(França), onde morreu em consequência<br />

de uma doença contagiosa.<br />

22. Santa Maria Madalena.<br />

São Felipe Evans e São João<br />

Lloyd, Sacerdotes jesuítas e Mártires,<br />

em Cardiff, no País de Gales,<br />

sob a perseguição religiosa em<br />

1679.<br />

23. Santa Brígida de Suécia,<br />

Fundadora da Ordem do Santíssimo<br />

Salvador (séc. XIV).<br />

24. XVII Domingo do Tempo Comum.<br />

São Charbel Makhlouf, Presbítero<br />

(†1898).<br />

25. São Tiago Maior, Apóstolo.<br />

Beato Antônio Lucci, Bispo<br />

(†1752). Membro da Ordem dos<br />

Frades Menores Conventuais, foi<br />

Bispo de Bovino em Apúlia (Itália).<br />

O estudo, a oração, a pregação e a<br />

formação dos alunos foram os pilares<br />

de sua vida.<br />

26. São Joaquim e Sant’Ana,<br />

pais de Maria Santíssima.<br />

Beato Tito Brandsma, Presbítero<br />

(†1942). Holandês de nascimento,<br />

carmelita, martirizado no campo de<br />

concentração de Dachau (Alemanha)<br />

por não permitir propagandas<br />

nazistas nos jornais católicos de seu<br />

país.<br />

27. São Pantaleão, Mártir. Médico<br />

da Nicomédia, morreu na perseguição<br />

do Imperador Maximiniano.<br />

Todos os anos, às vésperas da sua<br />

festa, o seu sangue se liquefaz, no<br />

Mosteiro da Encarnação, de Madri<br />

(†séc. IV).<br />

28. São Jaime Hilário Barbal<br />

Cosán, Religioso e Mártir (†1937).<br />

Membro dos Irmãos das Escolas<br />

Cristãs (Lassalistas), foi martirizado<br />

em Tarragona, Espanha, por<br />

ser religioso. Suas últimas palavras:<br />

“Rapazes, morrer por Cristo é viver.”<br />

29. Santa Marta. Irmã de Lázaro,<br />

acolheu Nosso Senhor mais de<br />

uma vez em sua casa, em Betânia<br />

(séc. I).<br />

Beato Urbano II, Papa (†1099).<br />

Defendeu a liberdade da Igreja, lutou<br />

contra os clérigos simoníacos<br />

e indignos, e no Concílio de Clermont<br />

convocou os soldados para<br />

uma Cruzada para libertar seus irmãos<br />

cristãos da opressão dos infiéis<br />

e recuperar o Santo Sepulcro.<br />

30. São Pedro Crisólogo, Bispo<br />

de Ravenna (Itália) e Doutor da<br />

Igreja (380-450).<br />

31. XVIII Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

Santo Inácio de Loyola, Sacerdote.<br />

Fundador da Companhia de<br />

Jesus (1491-1556).<br />

São Fábio de Cesareia, Mártir<br />

(†303/304). Por recusar carregar a<br />

bandeira do governador em um desfile<br />

pagão, na Mauritânia (Argélia),<br />

foi preso e condenado à morte, permanecendo<br />

fiel à Fé Católica.<br />

São Bento, Abade - Subiaco, Itália.<br />

29


Luzes da Civilização Cristã<br />

Na encruzilhada<br />

Fotos: G. Kralj; S. Hollmann; Wikipedia; F. Lecaros.<br />

da História…<br />

O Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

fez com que, do estado de barbárie, a humanidade<br />

rumasse para um auge de esplendor. Assim, na Idade<br />

Média e no Ancien Régime surgiram edifícios simbólicos<br />

que deixaram perpetuados para a posteridade a<br />

grandeza e a magnificência daqueles períodos históricos.<br />

30


V<br />

ersailles foi construído numa<br />

situação que poderia<br />

ser, sob certo ponto de vista,<br />

denominada uma encruzilhada<br />

da História.<br />

O ponto de partida da Idade Média<br />

foi a invasão dos bárbaros no Império<br />

Romano e a mistura destes com<br />

os europeus decadentes daquele império.<br />

Mergulhados numa espécie de<br />

situação caótica, esses povos começam<br />

a sentir a influência da Igreja; assim,<br />

da podridão e selvageria misturadas,<br />

rumou-se para um efeito conjunto<br />

tão diferente desses dois fatores.<br />

Percebe-se claramente que entrou<br />

em jogo um terceiro fator: o Sangue<br />

infinitamente precioso de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, isto é, a Santa Igreja<br />

Católica Apostólica Romana.<br />

Pela influência<br />

católica, da barbárie<br />

se rumou para o<br />

auge da civilização<br />

O curso progressivo das coisas se<br />

dá no sentido de sair da decadência<br />

e da podridão, como da barbárie, e ir<br />

edificando uma nova ordem de coisas<br />

sob a influência construtiva que<br />

a orientava e impulsionava: a ascendência<br />

católica.<br />

Então, sobre situações naturais<br />

totalmente negativas há uma influência<br />

inteiramente positiva — o predomínio<br />

católico — que encontra<br />

possibilidade, pela correspondência<br />

que esses filhos de podres e de bárbaros<br />

acabaram dando à graça, de<br />

construir uma ordem nova; a partir<br />

da barbárie rumaram para o auge da<br />

civilização.<br />

Neste sentido, se compararmos a<br />

Idade Média da encantadora e magnífica<br />

Sainte Chapelle, do Louvre de<br />

São Luís ou de seu Palais de Justice,<br />

com Versailles, veremos que o caminho<br />

percorrido foi colossal. Apesar<br />

de os costumes no tempo de São Luís<br />

não terem mais nada de bárbaro,<br />

eram até quintessenciados; possuíam,<br />

porém, muito de completável,<br />

aprimorável, eram capazes de chegar<br />

a um estado de esplendor maior,<br />

digamos numa palavra: de ainda “esplendorável”.<br />

Creio que esta palavra<br />

não figura em nosso vocabulário<br />

português, mas serve muito à nossa<br />

linguagem: que poderia renascer reluzente<br />

de esplendor.<br />

Jardim de Versailles. À esquerda, fachada da Basílica Vaticana e detalhe<br />

do Santíssimo Cristo da sede (Sevilha, Espanha).<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

A partir de Luís XIV,<br />

surge misteriosa<br />

saturação do esplendor<br />

Essa caminhada desde o fundo do<br />

cadinho, onde podridão e barbárie<br />

se misturavam, deu-se até o ápice —<br />

sempre na linha da cultura, do gosto,<br />

das maneiras distintas, do espírito<br />

polido e requintado, do esplendor<br />

da vida — que foi Luís XIV. Este<br />

marcou o auge para si e para a Europa,<br />

tendo fixado um determinado<br />

padrão.<br />

A partir do momento em que se<br />

fixou esse padrão, começa uma decadência,<br />

a qual se caracterizou por<br />

uma misteriosa saturação do esplendor,<br />

da beleza, da ordenação solene<br />

e majestosa das coisas, do perpétuo<br />

convívio com a grandeza. Saturação<br />

que se acentua progressivamente<br />

com Luís XV, Luís XVI e deságua<br />

numa neobarbárie.<br />

Verifica-se, então, que no fim do<br />

Ancien Régime havia novamente uma<br />

situação em que muitos elementos<br />

apodrecidos entraram em contato<br />

ou choque com elementos demagógicos,<br />

os quais também, em muitos<br />

de seus aspectos, estavam rebarbarizados.<br />

Dá-se então outro choque,<br />

outra fusão, de bárbaros com podres<br />

que, por carência da influência católica<br />

— bem menor por uma série de<br />

circunstâncias —, acaba desaguando<br />

no que temos hoje.<br />

Esta seria uma visão muito resumida<br />

da História, dentro da qual é<br />

mais fácil situar Luís XIV, Versailles<br />

e seu mundo.<br />

O luiscatorzianismo representou<br />

algo da Idade Média que, com Luís<br />

XIV, chegou ao seu ápice.<br />

Considerações a respeito<br />

de um palácio real<br />

Antes de analisarmos Versailles,<br />

vejamos qual é o papel de um castelo<br />

ou de um palácio na vida mental<br />

de um povo.<br />

Um castelo ou palácio real tem<br />

como finalidade abrigar o soberano<br />

— ele precisa morar em algum lugar<br />

—, com o esplendor que corresponda<br />

à sua alta categoria. Ali ele recebe<br />

visitas e embaixadores com suas<br />

credenciais, oferece banquetes, dá<br />

recepções, tem seus apartamentos<br />

privados onde leva a sua vida particular.<br />

Tudo adequado ao supremo<br />

degrau por ele ocupado, em correlação<br />

à etimologia da palavra majestade:<br />

stat majus, o estado que é maior,<br />

máximo, mais que todos os outros.<br />

Mas esse é o aspecto interior do<br />

palácio. Precisamos perguntar que<br />

importância tem para a vida de um<br />

povo seu exterior. Nele mora o homem<br />

que é o rei, o número um da<br />

nação. Então, pergunta-se como é a<br />

habitação número um. Qual é o esplendor<br />

número um? Qual é a segurança<br />

número um? Qual é a beleza<br />

número um? Qual é o charme número<br />

um do país onde mora o homem<br />

número um? De maneira que o castelo<br />

ou palácio real — talvez valha a<br />

pena fazer uma diferença, não muito<br />

segura, entre castelo e palácio reais<br />

— é uma espécie de padrão do que<br />

há de melhor em habitação.<br />

Filósofos da arte pretendem —<br />

mas não estou inteiramente certo<br />

que tenham toda a razão, embora<br />

sinta uma forte propensão para<br />

pensar como eles<br />

32


— que a arte número um não é nem<br />

a pintura, nem a música, nem a escultura,<br />

mas a arquitetura, na qual<br />

todas as artes se inserem. Pelo fato<br />

de ser arquitetônica e reunir todos<br />

os elementos de beleza, ela é uma<br />

espécie de suprema escultura ou de<br />

suprema pintura, um quadro máximo,<br />

uma realização máxima de um<br />

ideal de beleza máximo e de um estado<br />

de espírito número um.<br />

Nesse sentido, um palácio é um<br />

compêndio de moral, porque deve<br />

ensinar o mais alto grau de virtude,<br />

que compete ao supremo magistrado<br />

de um país. Então, como é a força<br />

do rei? Como é sua sabedoria, sua<br />

paciência, ou sua impaciência? Como<br />

é seu charme, sua gravidade e seriedade,<br />

sua cólera? As mais altas dimensões<br />

do espírito humano, atribuídas<br />

ao monarca, se exprimem na fisionomia<br />

do seu palácio.<br />

Palácio e castelo<br />

Nunca encontrei uma definição<br />

inteiramente demarcatória entre os<br />

conceitos de palácio e castelo. Mas,<br />

de um modo muito geral, já tenho<br />

ouvido de aqui, lá e acolá, que o palácio<br />

é a residência de grande porte<br />

de um rei ou de uma pessoa que participa<br />

de algum modo da casa real:<br />

um príncipe de uma casa real; ou um<br />

príncipe tão elevado que, não sendo<br />

da casa real, toca nela; ou, então, um<br />

alto dignitário da Igreja, Cardeal,<br />

Bispo; ou de um alto poder do Estado:<br />

o Palácio da Justiça, o Palácio do<br />

Legislativo; são palácios porque se<br />

erguem na cidade.<br />

No campo, se ergueria o castelo,<br />

de origem medieval, preparado para<br />

a guerra, e que, antes de tudo, é uma<br />

fortaleza, mas onde mora o rei ou,<br />

pelo menos, é a sua residência fortificada.<br />

Tudo isto é sujeito a contradições,<br />

porque em muitos lugares se construíram<br />

castelos, em torno dos quais<br />

se formaram as cidades. O castelo<br />

ficou uma construção urbana<br />

pela força das circunstâncias,<br />

e continuou a ser chamado<br />

castelo. Assim, as coisas<br />

se misturaram… Mas,<br />

enfim, falamos do palácio<br />

ou castelo real, que é, deste<br />

modo, um monumento.<br />

Diversos aspectos<br />

de Versailles.<br />

Se compararmos a Idade<br />

Média da encantadora e<br />

magnífica Sainte Chapelle,<br />

do Louvre de São Luís<br />

ou de seu Palais de<br />

Justice, com Versailles,<br />

veremos que o caminho<br />

percorrido foi colossal.<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

Grandes prédios<br />

Os antigos tinham a ideia de que,<br />

sempre que se construía um prédio<br />

grande, esse devia ser um grande<br />

prédio. Um prédio não tinha o direito<br />

de ser grande sem, ao mesmo<br />

tempo, ser um grande prédio.<br />

Os caixotões da Quinta Avenida<br />

1 ainda procuravam ser enfeitados;<br />

mas com o advento do miserabilismo<br />

aparecem os prédios de cimento<br />

aparente, que é a decadência,<br />

um passo para a volta à barbárie. Cimento<br />

aparente é uma sepultura vista<br />

por dentro. Não é ambiente humano,<br />

não tem propósito nenhum!<br />

A ideia, então, era a de que todo<br />

prédio grande deveria ser um grande<br />

prédio. Certa vez, Monsenhor<br />

Gastão Liberal Pinto, Vigário-Geral<br />

Os antigos tinham a<br />

ideia de que, um prédio<br />

não tinha o direito<br />

de ser grande sem,<br />

ao mesmo tempo, ser<br />

um grande prédio.<br />

da Arquidiocese de São Paulo, com<br />

quem tive durante algum tempo relações<br />

muito próximas, mostrou-me<br />

uma planta ou uma fotografia de<br />

um estabelecimento que foi levantado,<br />

se não me engano, em frente<br />

aos fundos do Jardim da Luz. Destinava-se<br />

a uma obra de caridade, que<br />

ele não confessou, por humildade,<br />

mas desconfio que era inteiramente<br />

mantida por sua família, a qual era<br />

bem rica. Distribuía leite e realizava<br />

outras ajudas às criancinhas na primeira<br />

idade. Uma obra católica boa,<br />

louvável.<br />

Disse-me ele:<br />

— Olhe aqui, eu vou mostrar a<br />

planta do lactário.<br />

— Pois não!<br />

Vi que havia uma preocupação decorativa<br />

muito grande. Tiveram o intuito<br />

de fazer um prédio bonito. Manifestei<br />

certa surpresa, afirmando:<br />

— Um prédio tão bonito para um<br />

estabelecimento de caridade, num<br />

bairro tão proletarizado?!<br />

— Mas, é assim. Se o prédio é<br />

grande, tem que ser bonito!<br />

Percebi que era um respingo de<br />

tradição que estava ali. Tinha razão:<br />

nada tem o direito de chamar muito<br />

a atenção, sem ao mesmo tempo fazer<br />

bem para a alma.<br />

Não se tem, por exemplo, o direito<br />

de se erguer uma torre feia. E<br />

nem mesmo uma torre que não seja<br />

bonita e, tanto quanto possível,<br />

uma obra de arte, maior ou menor,<br />

de acordo com as possibilidades do<br />

lugar.<br />

Então, vem daí a ideia de que a<br />

casa do rei deve ser de beleza máxima.<br />

Quarenta ou cinquenta anos depois,<br />

eu ainda me lembro do que me<br />

disse esse Monsenhor meu amigo,<br />

em determinado momento da vida, e<br />

me serve de instrumento de comunicação<br />

e de pensamento com este auditório<br />

cheio.<br />

Luís XIV e o absolutismo<br />

No fim da Idade Média, em que<br />

certas virtualidades andaram debandadas,<br />

produziu-se uma situação de<br />

caos na qual os grandes senhores<br />

feudais, em geral príncipes da casa<br />

reinante, governando terras com<br />

certa autonomia em relação ao rei,<br />

tenderam a se revoltar contra os monarcas.<br />

Não para proclamar uma república<br />

aristocrática, mas a fim de<br />

reduzir o poder real.<br />

Os reis trataram de resistir. E os<br />

nobres — muitos situados no píncaro<br />

da nobreza —, culposamente, se<br />

levantaram contra aquele em relação<br />

ao qual deviam fidelidade,<br />

vassalagem e obediência.<br />

Pátio interno de Versailles;<br />

em destaque, estátua<br />

equestre de Luís XIV.<br />

34


Não tiveram remédio senão apoiar-<br />

-se na plebe, na classe mais poderosa<br />

desta, que era a burguesia, para<br />

resistir e não serem submersos.<br />

E, sobretudo na época de Luís<br />

XIV, houve uma espécie de horror<br />

da volta ao feudalismo; e um mau<br />

horror, porque, infundadamente,<br />

identificava feudalismo com caos;<br />

por isso, queriam absolutismo com<br />

ordem.<br />

O erro de Luís XIV foi confundir<br />

absolutismo com ordem. Ele visualizava<br />

o problema assim: se esses nobres<br />

não precisam do rei para viver<br />

em seus feudos, têm direitos próprios<br />

que o monarca não pode eliminar,<br />

são hereditários, e podem transmitir<br />

seus feudos para os filhos, não há nenhuma<br />

força que os obrigue à obediência.<br />

E para obrigá-los à obediência,<br />

sem os destruir completamente, essa<br />

força precisa ser hercúlea. Caminharemos,<br />

ou para a monarquia hercúlea<br />

ou para a raquítica.<br />

Ora, como a unidade da nação<br />

provém da força do monarca, ou ela<br />

se desagrega ou seu unum tem que<br />

ser fortíssimo. Por causa disso precisa<br />

ser hercúleo, ou, no caso, absoluto:<br />

pode tudo, onipotente.<br />

Um precursor da<br />

Revolução Francesa<br />

Luís XIV pensava em estabelecer<br />

a ordem no reino<br />

por onde a ordem não estava:<br />

uma nobreza toda intoxicada<br />

pelos princípios de<br />

uma Cristandade decadente.<br />

De uma nobreza<br />

nessas condições, não podia deixar<br />

de sair toda espécie de mal. Porque<br />

não estava presente ali, na totalidade<br />

de seu poder, Cristo-Rei, fazendo<br />

o nobre amar seu dever de lealdade,<br />

sua submissão ao rei, como tinham<br />

sido tantos e tantos senhores feudais<br />

no passado. Sem um vínculo moral,<br />

o poder não resolve nada.<br />

Acontece que o poder, assim, para<br />

manter a ordem se transforma<br />

em tirânico. E, à força de ser tirânico,<br />

ele acaba explodindo. Explica-se,<br />

dessa forma, a Revolução Francesa.<br />

Por causa disso, Luís XIV, que,<br />

sob certos aspectos, simboliza o contrário<br />

da Revolução Francesa, e ao<br />

qual esta odiou com todo o seu ódio,<br />

foi ele próprio um precursor dessa<br />

Revolução.<br />

O rei-sol não tinha uma<br />

concepção sacral da vida<br />

Ele foi o Rei Católico, cometeu<br />

pecados muito grandes, teve também<br />

lados muito bons em seu reinado,<br />

mas que não vêm ao caso porque<br />

ele não tinha uma concepção sacral<br />

da vida. Não sabia ver os problemas<br />

temporais embebidos da problemática<br />

espiritual. De qualquer maneira,<br />

ele deveria ter prestigiado os elementos<br />

da Igreja que reagiam contra<br />

os erros, para, a partir da Igreja, ter<br />

mudado essa situação.<br />

Nas memórias que deixou a seu<br />

filho, ele reconhece que, nas querelas<br />

religiosas de seu tempo, não interveio<br />

porque ignorava inteiramente<br />

os problemas de caráter religioso.<br />

Não era apto a ser rei.<br />

Com Luís XIV, a arte, a cultura, a<br />

civilização chegam ao seu auge. Ele<br />

procura construir o palácio esplendoroso<br />

do rei absoluto, que representa<br />

a glória da nação, seu luxo, seu<br />

fausto, seu poder. É o monarca absoluto<br />

que brilha como um sol, e na<br />

presença do qual as estrelas desaparecem.<br />

Não é o rei feudal que ilumina<br />

as estrelas, mas não as devora.<br />

Pelo que se diz, Luís XIV era baixo.<br />

Uma grande estatura, hercúlea<br />

ou leonina, o teria avantajado muito.<br />

Entretanto, com essa estatura não<br />

alta impunha uma distância, sabendo<br />

serrar de cima com tal majestade<br />

que, dizem os entusiastas dele — ou,<br />

segundo outros, seus bajuladores;<br />

em regime de monarquia absoluta<br />

essas coisas se confundem —, começaram<br />

a chamá-lo de Apolo. Apolo<br />

era o deus do Sol. Ele era “le roi<br />

Apolon”, o Sol no meio dos homens:<br />

“le roi Soleil”. E Versailles, o palácio-Soleil,<br />

o palácio-Sol; ele é todo<br />

ensolarado, magnífico, brilhante. É<br />

dentro desse palácio que brilha a figura<br />

de Luís XIV.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

14/4/1989)<br />

1) A Quinta Avenida (Fifth Avenue) é<br />

uma das mais movimentadas de Manhattan,<br />

Nova Iorque, Estados Unidos.<br />

Devido às históricas mansões nela<br />

edificadas, ela tornou-se um símbolo<br />

de riqueza de Nova Iorque.<br />

35


A poderosa<br />

intercessão<br />

de Maria<br />

N<br />

ossa Senhora nos quer tão bem<br />

que tudo quanto Lhe peçamos,<br />

certamente obteremos. Por pouco que<br />

valham nossas orações, Maria Santíssima recolhe<br />

nossas preces e, com os méritos d’Ela, torna-as<br />

magníficas.<br />

São Luís Grignion de Montfort faz uma<br />

comparação muito bonita. Ele fala de um<br />

camponês que queria oferecer uma homenagem a<br />

um rei, mas a única coisa que ele possuía era uma<br />

maçã. Então, ele procurou a mãe do rei e lhe disse:<br />

— Senhora, esta maçã não vale nada, mas se vós<br />

a oferecerdes ao rei, ele sorrirá e a comerá. Eu vos<br />

peço, oferecei ao rei esta pobre maçã. Apresentada<br />

por vós, ele lhe dará valor e a aceitará.<br />

A rainha o fez, e o rei ficou muito contente:<br />

comeu a maçã porque sua mãe lhe havia dado.<br />

Assim são nossas orações; entretanto, devemos<br />

oferecê-las a Nossa Senhora, dizendo:<br />

— Mãe nossa, nossas orações valem muito pouco,<br />

mas, por favor, oferecei-as a Deus, porque por vosso<br />

intermédio elas serão muito bem recebidas.<br />

Por causa disso, deveremos sempre rezar com<br />

muita confiança de que seremos atendidos. A Mãe<br />

de Deus nos tirará de nossos erros, de nossas faltas<br />

e obterá perdão para nossas culpas.<br />

(Extraído de conferência de 1/2/1991)<br />

A Virgem e o<br />

Menino - Sainte<br />

Chapelle, Paris.<br />

G. Kralj

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