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Revista Dr Plinio 162

Setembro de 2011

Setembro de 2011

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Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>162</strong> Setembro de 2011<br />

É livre<br />

quem obedece!


Intérprete incomparável<br />

da Santa Igreja<br />

Q<br />

uando comecei a abrir os olhos para a<br />

Igreja Católica, vi que ela era divina;<br />

aceitei-a como tal e como infalível.<br />

Dona Lucilia teve um valoroso papel nessa<br />

compreensão, pois eu percebia inúmeras<br />

afinidades entre a alma dela e o espírito da<br />

Igreja.<br />

Naturalmente, desde logo se tornou claro<br />

em meu espírito que o padrão da verdade não<br />

era Mamãe, mas sim a Igreja; porém, muitas<br />

das explicações sobre a Doutrina Católica<br />

eu entendia porque interpretava à luz do que<br />

eu via em Dona Lucilia e aprendia dela.<br />

Quer dizer, ela foi uma intérprete incomparável<br />

da Igreja para mim.<br />

(Extraído de Conferência de 29/11/1981)<br />

Fotos: J. Dias; V. Toniolo.<br />

Em destaque, Dona Lucilia, poucos<br />

meses antes de sua morte; ao fundo,<br />

Basílica de São Pedro - Vaticano.<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>162</strong> Setembro de 2011<br />

Ano XIV - Nº <strong>162</strong> Setembro de 2011<br />

É livre<br />

quem obedece!<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

no ano de 1993.<br />

Foto: S. Miyazaki.<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 101,00<br />

Colaborador .......... R$ 130,00<br />

Propulsor ............. R$ 260,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 430,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 13,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

Editorial<br />

4 A tirania do igualitarismo e a liberdade da obediência<br />

Datas na vida de um cruzado<br />

5 Setembro de 1928<br />

Encontro com a mocidade católica<br />

Dona Lucilia<br />

6 A confiança de Dona Lucilia<br />

Gesta marial de um varão católico<br />

10 Recordações de um mundo sem<br />

reivindicação, sem inveja, sem ódio…<br />

Hagiografia<br />

14 São Vicente de Paulo,<br />

perfeita harmonia de espírito<br />

Calendário dos Santos<br />

18 Santos de Setembro<br />

“Revolução e Contra-Revolução”<br />

20 Obediência e Contra-Revolução<br />

O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

26 Uma conversa de Jesus…<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

32 A Idade Média em todo o seu esplendor<br />

3


Editorial<br />

A tirania do igualitarismo<br />

e a liberdade da obediência<br />

Ohomem nunca viverá sem “dogmas”.<br />

Por mais que nos últimos séculos todas as verdades — mesmo das mais sacrossantas —<br />

afirmadas sem medo e sem jaça pareçam ser retrógradas e antipáticas, ainda é verdade que<br />

nossos contemporâneos não sabem viver sem elas.<br />

Dogmas não eclesiásticos, mas sim sociais, cujo domínio é aceito por tácita imposição e velada<br />

ameaça por toda a opinião pública mundial. Ai daquele que queira desses “dogmas” discordar... Logo<br />

é excomungado pelo vento da moda, queimado na fogueira do convívio social, perseguido pela inquisição<br />

do isolamento.<br />

Dentre os “dogmas” não eclesiásticos que subjugam os homens iludidos pela atual liberdade de<br />

pensamento, o igualitarismo parece ser o mais tirano. Sim. Hoje, a liberdade e a fraternidade só parecem<br />

verdadeiras se encerram em si o princípio fundamental da igualdade.<br />

Ser superior, estar acima dos outros a qualquer título que seja, significa subjugar, sorver do próximo<br />

algo de sua dignidade, qualificar o inferior com a tara de inepto. Em consequência, estar submisso<br />

significa carecer de personalidade, opinião e liberdade. Significa ser alienado. Dado a outro, de tal<br />

forma, que se abandona o que se tem de mais íntimo e de mais nobre do próprio ser: a inteligência e<br />

a vontade humana.<br />

Há ainda quem diga que esta opinião em nada nega os princípios do Catolicismo. Como argumentos<br />

utilizam eles os princípios mais inefáveis. Afinal, o Apóstolo não aconselhou aos senhores de Colossos<br />

tratarem seus servos “com justiça e igualdade” (Cl 4,1)? E as pessoas da Santíssima Trindade<br />

não são idênticas (iguais) apesar de distintas?<br />

O conceito de igualdade é assim paulatinamente baldeado para o sinônimo de dignidade. Só é<br />

possível respeitar a natureza humana ao se afirmar a igualdade entre patrão e empregado, pais e filhos,<br />

varão e mulher, homem e animal. Será isto o ideal da humanidade ou simples utopia ensinada<br />

por alguns?<br />

Mas há Mestre que leciona de modo diverso. São Paulo afirma que “Cristo Jesus sendo de condição<br />

divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a<br />

condição de escravo e assemelhando-se aos homens” (Fl 2,5-7). Neste passo, o Divino Mestre abandonou<br />

a mais sublime das igualdades para ensinar a beleza da obediência.<br />

Seria demasiado superficial afirmar que o Salvador negou-se em ser igual ao Pai para em última<br />

análise deixar os arcanos da divindade a fim de gozar do igualitarismo completo para com os homens.<br />

Cristo sim abandonou a igualdade para “assumir a condição de escravo” de Deus Pai, entregando<br />

sua vida em benefício daqueles que por nenhum mérito mereceriam a dádiva infinita de seu<br />

Sangue adorável: “Jesus se fez obediente, até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,8).<br />

Desde o momento da Encarnação até sua Paixão, Deus Filho ensinou através da obediência a beleza<br />

da hierarquia e a origem divina do princípio de autoridade (Cf. Jo 19,11). O Redentor assim o<br />

fez para que sejamos homens livres pela obediência e não nos submetamos outra vez à tirania do<br />

igualitarismo (Cf. Gl 5,1).<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de <strong>162</strong>5 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Datas na vida de um cruzado<br />

Setembro de 1928<br />

Encontro com a<br />

mocidade católica<br />

Qual não foi o meu espanto quando,<br />

passando de bonde pela Praça do Patriarca,<br />

no centro de São Paulo, reparei<br />

numa larga faixa estendida à frente da Igreja<br />

de Santo Antônio, cujos dizeres eram: “Congresso<br />

da Mocidade Católica, de 9 a 16 de setembro.<br />

Inscrições nesta praça, prédio tal, número<br />

tal.” Pela natureza do anúncio, percebi<br />

tratar-se de um congresso de juventude masculina.<br />

Fiquei encantadíssimo!<br />

A notícia daquele congresso abria para mim<br />

um tão imenso horizonte, que meu primeiro<br />

movimento foi de descer e já fazer minha inscrição.<br />

Porém, era início de noite e todos os escritórios<br />

estavam fechados. Restava-me apenas esperar<br />

o dia seguinte, quando então me apresentei<br />

no local indicado, inscrevi-me e recebi uma<br />

medalha para ser usada durante o evento.<br />

Tal era meu entusiasmo que, na manhã do<br />

primeiro dia de reuniões, ao tomar o bonde em<br />

direção à Igreja de São Bento, local do congresso,<br />

logo que me sentei coloquei a medalha, ostentando-a<br />

com ufania por todo o trajeto. Ao<br />

entrar na igreja dos beneditinos fiquei verdadeiramente<br />

espantado com o número de moços católicos<br />

ali reunidos, muito superior ao que eu tinha<br />

imaginado. De fato, acabei descobrindo que<br />

num setor de São Paulo, estranho aos meus círculos<br />

sociais, havia em formação um grande movimento<br />

de jovens católicos, praticantes, castos,<br />

direitos, sinceros devotos de Nossa Senhora. E<br />

eram algumas centenas.<br />

Na presidência do congresso estava o Arcebispo<br />

de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e<br />

Silva, homem bastante cônscio de sua condição<br />

de Príncipe da Igreja. Ao lado dele, todos os<br />

Bispos do Estado de São Paulo, com seus trajes<br />

eclesiásticos de gala, cercados do grande respeito<br />

devido à sua alta dignidade. Um coral de vo-<br />

zes masculinas entoava canções de ótimo cunho<br />

religioso, como, por exemplo, esta de que ainda<br />

me recordo: Mocidade brilhante e sadia, Sai da<br />

inércia em que estás. Renuncia à inação criminosa.<br />

De pé! De pé! Deu a voz de comando Pio XI,<br />

Carrilhonam os sinos de bronze E descem do alto<br />

seus brados de fé!<br />

Este hino, utilizado pelas Congregações Marianas,<br />

era cantado com um ardor que bem exprimia<br />

o voo do espírito e do entusiasmo da mocidade<br />

católica por todo o território brasileiro.<br />

Compreendi, então, que dali podia sair um movimento<br />

católico conforme ao meu ideal.<br />

Resultado de tudo isso: no domingo seguinte<br />

ao congresso eu me alistava como membro da<br />

Congregação Mariana de Santa Cecília. Tinha<br />

início minha dedicação mais efetiva e completa<br />

ao serviço da Santa Igreja.<br />

Como costuma acontecer em movimentos<br />

desse tipo, os mais fervorosos se destacam e passam<br />

a ocupar posições de liderança. Assim sucedeu<br />

que, tendo eu me tornado congregado mariano<br />

com todo o ardor de minha alma, a generosidade<br />

dos que comigo lutavam impeliu-me<br />

para situações de realce — sem que nenhuma<br />

vez eu as tenha procurado ou disputado. Ademais,<br />

tinha eu certa facilidade de me exprimir<br />

em público, fazer discursos, etc., e isso trazia como<br />

consequência reiterados convites para falar.<br />

Rapidamente, tornei-me muito conhecido nos<br />

meios religiosos, e passei a ser visto e tomado<br />

como um líder católico.<br />

Foi uma ascensão rápida e profícua, sem dúvida<br />

por misericórdia e amparo especiais da<br />

Santíssima Virgem.<br />

(Extraído de entrevista à Rádio Uruguaiana,<br />

de 21/6/1990; e de conferência de 1/9/1980)<br />

5


Dona Lucilia<br />

A confiança de<br />

Dona Lucilia<br />

Como boa mãe, o principal anelo de Dona Lucilia era guiar seus filhos<br />

pelas sendas da virtude. Assim, transbordante de afeto, em diversas<br />

ocasiões demonstrou ela o quanto a fidelidade de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lhe<br />

importava…<br />

T. Ring<br />

Os desígnios da Providência<br />

para com Dona Lucilia e para<br />

comigo foram diferentes.<br />

Ela foi suscitada para ter paciência<br />

com um filho, educá-lo e entregá-lo<br />

a Nossa Senhora. Esse filho foi suscitado<br />

para entrar na batalha de êxito<br />

mais improvável no mundo, tendo,<br />

entretanto, a certeza de que a vitória<br />

chegaria de modo surpreendente.<br />

Dona Lucilia tinha diante de si a<br />

tarefa de fazer com que esse filho<br />

chegasse a bom porto na prática da<br />

Religião Católica, que é a finalidade<br />

de sua vida; ele depois deveria lutar<br />

pela Igreja Católica. A confiança dela<br />

consistia em esperar com firmeza<br />

e tranquilidade — diante de dados<br />

muito improváveis, mas que não a<br />

abalavam, não a punham em dúvida<br />

— que essa obra educativa religiosa<br />

dela chegasse ao bom termo.<br />

O Menino Jesus<br />

discutindo com os<br />

doutores da Lei<br />

O Menino Jesus discute com os fariseus - conjunto de imagens diante<br />

do qual Dona Lucilia rezava após a Missa<br />

(Igreja do Sagrado Coração de Jesus, São Paulo).<br />

Lembro-me perfeitamente que<br />

aos domingos, quando íamos à Igreja<br />

do Coração de Jesus, ela ficava<br />

muito tempo rezando, depois da<br />

Missa, diante das imagens do Sagrado<br />

Coração de Jesus, de Nossa Senhora<br />

Auxiliadora, e depois frente a<br />

um grupo de imagens que representa<br />

o Menino Jesus no Templo, discutindo<br />

com os doutores.<br />

Embora muito jovem, eu conhecia<br />

o fato de que o Menino Jesus discutiu<br />

com os doutores, mas não compreendia<br />

bem que relação Dona Lucilia<br />

poderia estabelecer entre esse<br />

episódio e o filho dela. Eu ia com ela<br />

até esse conjunto de imagens e notava<br />

que mamãe rezava uma oração<br />

com os olhos semicerrados, que não<br />

sei se era sempre a mesma ou se ela<br />

simplesmente pronunciava palavras<br />

que mudavam de cada vez. Ela fazia<br />

um movimento de lábios pelo que<br />

se percebia que estava pedindo com<br />

muito empenho alguma coisa, mas<br />

não se ouvia nada do que dizia.<br />

Certo dia, por uma palavra que<br />

ela soltou, percebi que as graças pedidas<br />

por ela diante daquele oratório<br />

eram para mim. Então compreendi,<br />

pois eu estava em oposição constante<br />

a pessoas de uma orientação anticatólica,<br />

e mamãe queria que eu recebesse<br />

do Menino Jesus a força, a<br />

insistência, a coragem, comparáveis<br />

em ponto pequeno com a infinitude<br />

perfeitíssima e abismática de tudo<br />

quanto há em Nosso Senhor, a fim<br />

6


Dona Lucilia em visita à sede do<br />

“Legionário”, órgão oficioso da<br />

Arquidiocese de São Paulo, do<br />

qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era o diretor.<br />

de que eu imitasse o Divino<br />

Mestre e discutisse com os<br />

fariseus do meu tempo. Ela<br />

rezava muito nesse sentido.<br />

“Você é sempre<br />

o mesmo”<br />

Em várias ocasiões, eu<br />

notava que ela prestava<br />

muita atenção em mim e<br />

procurava olhar dentro do<br />

meu olhar para ver se eu<br />

continuava fiel. Ela orava<br />

muito para que eu mantivesse<br />

essa fidelidade.<br />

Não posso me esquecer<br />

da primeira vez que, quando<br />

já adulto, fiz uma viagem<br />

à Europa 1 . Mandei avisar<br />

que eu estaria de volta no<br />

dia tanto. De fato, de manhã,<br />

quando regressei, fui<br />

do aeroporto diretamente<br />

para casa, imaginando que<br />

a encontraria na cama, deitada,<br />

porque o avião chegou<br />

muito cedo; eu falaria um<br />

pouco com ela e depois iria<br />

tomar lanche e dormir.<br />

Encontrei-a, pelo contrário,<br />

toda vestidinha como se<br />

fosse receber visita, e sentada<br />

num sofá que há em casa,<br />

em frente à porta de entrada;<br />

ela estava me esperando<br />

chegar.<br />

Quando entrei — lembro-me<br />

do lugar do sofá<br />

em que ela estava sentada<br />

—, ela voou em minha direção<br />

e me abraçou; sendo<br />

consideravelmente mais<br />

baixa que eu, mamãe pôs-se<br />

na ponta dos pés, e eu me<br />

inclinei para que ela conseguisse<br />

me circundar com os<br />

seus braços, abracei-a também<br />

e nos beijamos várias<br />

vezes.<br />

Mas durante esse longo<br />

amplexo ela, de repente,<br />

parou, me olhou e disse: “Não, você<br />

é sempre o mesmo!”<br />

Compreendemos o que havia por<br />

detrás disso. Ir à Europa representava<br />

sempre uma ocasião de perigo:<br />

“Todo homem pode pecar. Ele terá<br />

resistido? Voltará para meus braços<br />

do mesmo modo como ele era quando<br />

partiu? Eu quero ver. Vou fixar o<br />

olhar dele.”<br />

Ela o fez afetuosamente, é claro.<br />

Não entendi bem o que estava<br />

acontecendo; olhei para o fundo<br />

dos olhos dela e achei tão agradável<br />

aquele olhar, tão bonito, que só me<br />

preocupei em me deliciar com aquilo.<br />

Nós nos osculamos outras vezes,<br />

depois fomos para o lanche e o dia<br />

começou.<br />

“Meu filho, eu só<br />

tenho você...”<br />

Entendemos assim a preocupação<br />

constante, as longas orações que ela<br />

fazia até às três horas da manhã. Já<br />

idosa, com noventa e dois anos, ela<br />

ainda fazia essas preces.<br />

Tenho certeza de que a oração<br />

que ela fazia junto à imagem do<br />

Sagrado Coração de Jesus era em<br />

muito larga medida dirigida em<br />

meu favor, confiando que o Sagrado<br />

Coração de Jesus e o Coração<br />

Imaculado de Maria me dariam as<br />

forças para aquilo que ela percebia<br />

ser uma missão muito difícil para<br />

mim. Então, a bem dizer, ela me<br />

conduzia pela mão para o caminho<br />

do dever.<br />

Dona Lucilia percebia que eu era<br />

profundamente agradecido a essa<br />

atitude dela, pelas minhas numerosas<br />

manifestações de afeto para com<br />

ela; eram incontáveis, e ela notava<br />

quanto eu lhe queria bem.<br />

Determinado dia, no vai e vem<br />

comum da casa, eu estava no meu<br />

escritório; levantei-me para sair e,<br />

no corredor, ela vinha num sentido e<br />

eu no outro, e nos encontramos. Eu<br />

sorri, ela pôs a mão no meu ombro e<br />

7


Dona Lucilia<br />

disse: “Meu filho, eu só tenho você,<br />

mas você eu tenho por inteiro.”<br />

Vemos assim a análise que ela fazia.<br />

Quer dizer: “Você continua fiel?<br />

Continua unido a mim porque eu<br />

sou católica como devo ser? E você<br />

por causa disto continua unido a<br />

mim? Você é verdadeiramente meu<br />

filho como eu quero que seja?” E<br />

depois a resposta: “Olhando você,<br />

eu vejo que é.”<br />

Primeira viagem de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à Europa<br />

Eu também fazia coisas com ela<br />

que nunca ouvi dizer que alguém fizesse<br />

com outra pessoa.<br />

Por exemplo, nessa primeira viagem<br />

que fiz à Europa eu não quis<br />

que ela soubesse. Por uma razão<br />

muito simples: naquele tempo, a<br />

aviação estava muito mais atrasada<br />

do que hoje e, portanto, o risco de<br />

um acidente era muito mais provável<br />

do que é atualmente. Dona Lucilia<br />

ficava com muito medo de que o<br />

avião caísse, razão pela qual eu nunca<br />

ia ao Rio de avião. Eu achava melhor<br />

fazer a longuíssima viagem ao<br />

Rio de Janeiro de ônibus ou de trem<br />

— e eu preferia trem, embora fosse<br />

horrível — do que tomar avião, para<br />

ela ficar sossegadinha em casa<br />

e não ter problemas de nenhuma<br />

espécie.<br />

Mas dessa vez, não; embora a<br />

aviação fosse ainda imperfeita,<br />

para ir à Europa eu viajaria de<br />

avião. E eu não queria que ela<br />

soubesse disso.<br />

Então falei com uma irmã<br />

de mamãe e a minha irmã, as<br />

quais frequentavam muito a minha<br />

casa, explicando-lhes que eu<br />

ia para a Europa, e combinei com<br />

elas: “Vocês duas, no dia da minha<br />

viagem, venham visitar Dona Lucilia<br />

para animá-la um pouco, e durante a<br />

minha ausência estejam aqui muito<br />

mais do que costumam vir, para ela<br />

ter companhia, não ficar isolada.”<br />

Deu-se esse fato: durante o jantar<br />

falou-se a respeito de uma viagem<br />

que eu ia fazer ao Rio de Janeiro.<br />

Era verdade, porque para ir<br />

à Europa tinha que se passar pelo<br />

Rio. Mas eu não ia só para o Rio; o<br />

Rio era um ponto de passagem no<br />

caminho.<br />

Eu havia dito a mamãe que ia<br />

para o Rio e combinei com ela pa-<br />

A oração de Dona<br />

Lucilia junto à<br />

imagem do Sagrado<br />

Coração de Jesus<br />

era em muito larga<br />

medida dirigida em<br />

meu favor, confiando<br />

que Ele me daria<br />

forças para aquilo que<br />

ela percebia ser uma<br />

missão muito difícil<br />

para mim.<br />

Detalhe de uma fotografia de<br />

Dona Lucilia tirada em 1929.<br />

ra preparar roupa. Enquanto estávamos<br />

combinando, durante o jantar,<br />

notei que os olhos dela se encheram<br />

de lágrimas, mas logo depois ela<br />

se dominou e mudou de jeito. Fiquei<br />

na dúvida: “O que seria isso, por que<br />

essas lágrimas?”<br />

“Procuro o <strong>Plinio</strong><br />

em vários lugares e<br />

não o encontro...”<br />

Na manhã seguinte, me despedi e<br />

fui para o aeroporto. Algum tempo<br />

depois ela telefona para sua irmã e<br />

lhe pergunta:<br />

— Diga-me uma coisa: onde é<br />

que está <strong>Plinio</strong>?<br />

Minha tia, que sabia que eu estava<br />

no avião, ficou espantada com<br />

aquela indagação e disse:<br />

— Oh! Lucilia. Ele está viajando.<br />

— Não. Eu já tenho — essa frase<br />

é característica — procurado <strong>Plinio</strong><br />

em vários lugares e não o encontro.<br />

Procuro-o no Rio, para onde <strong>Plinio</strong><br />

disse que iria, mas lá ele não está.<br />

<strong>Plinio</strong> está em algum lugar aonde ele<br />

nunca vai. O que o <strong>Plinio</strong> está fazendo?<br />

— Olhe, isto está muito complicado.<br />

Eu vou tomar um automóvel,<br />

chego aí e converso com você.<br />

Ela foi e encontrou mamãe deitada<br />

e rezando. Minha tia — o<br />

apelido dela era Zili — entrou<br />

no quarto e Dona Lucilia lhe<br />

perguntou:<br />

— Zili, onde é que está<br />

<strong>Plinio</strong>?<br />

Minha tia deu risada para<br />

alegrá-la um pouco e disse:<br />

— Você não sabe onde está<br />

<strong>Plinio</strong>?<br />

— Não, não sei. Diga-me onde<br />

é que está <strong>Plinio</strong>.<br />

— Lance um lugar qualquer.<br />

— Eu não sei. Já tentei tudo e<br />

não descobri <strong>Plinio</strong>.<br />

— Está bom, então vou lhe dizer.<br />

O <strong>Plinio</strong> está num avião a caminho<br />

para a Europa.<br />

8


R. Solera<br />

— Ah! Mas o <strong>Plinio</strong> tomou<br />

o avião para ir à Europa?!<br />

— Sim. Hoje todo mundo<br />

viaja para a Europa de avião.<br />

Ele tem que levar a vida de<br />

uma pessoa do tempo dele,<br />

não pode viajar como Pedro<br />

Álvares Cabral, de caravela.<br />

Por que ele não haveria de<br />

viajar assim? Só por ser seu<br />

filho? — brincando com ela.<br />

Ela chorou e depois minha<br />

tia lhe disse:<br />

— Você deve ficar muito<br />

contente, porque essa viagem<br />

enriquecerá sua cultura.<br />

Ele verá várias coisas da<br />

Europa e, ademais, servirá à<br />

Religião.<br />

Então mamãe ficou mais<br />

animada.<br />

Logo depois, toca a campainha:<br />

uma enorme cesta<br />

de flores, muito bonita, que<br />

eu mandava para ela com um<br />

cartãozinho, explicando por<br />

que não lhe havia dito que eu<br />

ia para a Europa, e lhe mandava<br />

beijos.<br />

Naturalmente, toda mãe<br />

se comove com isso, e ela ficou muito<br />

comovida. Guardou o cartão e<br />

mandou pôr as flores num vaso.<br />

Algum tempo antes do jantar, outro<br />

toque de campainha: era a segunda<br />

cesta de flores que eu mandava<br />

naquele dia, com outro cartão,<br />

outra manifestação de afeto, que ela<br />

recebeu muito enternecidamente.<br />

Precisando residir em<br />

outra casa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

telefonava todas as<br />

noites para Dona Lucilia<br />

Nossa Senhora de Fátima - imagem<br />

venerada em uma das sedes do<br />

Movimento fundado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Tudo era fruto da<br />

confiança que mamãe<br />

possuía de que Nossa<br />

Senhora lhe daria<br />

as coisas necessárias<br />

para afetivamente<br />

sustentar-se bem na<br />

vida.<br />

Conto mais um fato para mostrar<br />

como era nosso relacionamento.<br />

Durante algum tempo nós tínhamos<br />

uma casa de aluguel; e para<br />

retirar um inquilino que não tinha<br />

mais direito de ficar nesse imóvel,<br />

era preciso que eu fosse morar<br />

nessa casa, a qual não estava à altura<br />

de Dona Lucilia. Ela estava habituada,<br />

pelo tipo de vida dos seus<br />

pais, a casas muito boas, distintas, e<br />

aquilo era uma casinhola. Então, eu<br />

fui morar naquela casa.<br />

Quando residia com mamãe,<br />

todas as noites antes de<br />

me deitar eu ia falar com ela.<br />

E nessa casa, onde precisei residir<br />

talvez uns cinco ou seis<br />

meses, não havia telefone — o<br />

Brasil estava em guerra e era<br />

muito difícil obter um telefone<br />

novo. Então eu ia a uma garagem<br />

existente em frente, pedia<br />

licença ao dono e telefonava<br />

para ela a fim de dizer boa<br />

noite.<br />

Meu pai me dizia que toda<br />

noite, quando chegava<br />

mais ou menos a hora em que<br />

eu devia telefonar, ela ficava<br />

sentadinha junto ao aparelho<br />

numa poltrona, à espera<br />

de meu telefonema e rezando.<br />

Não fazia nada enquanto<br />

eu não telefonasse. Quando<br />

eu ligava, contava-lhe alguma<br />

novidade do dia, dizia-lhe boa<br />

noite e depois ela e eu íamos<br />

nos deitar.<br />

Acostumada a carinhos dessa<br />

natureza, explica-se que,<br />

com o auxílio de Nossa Senhora,<br />

ela tenha vivido até noventa<br />

e dois anos.<br />

Uma parenta minha, estando certa<br />

vez em casa, me viu conversar na<br />

intimidade com mamãe e me disse<br />

baixinho: “Se eu tivesse um filho que<br />

tratasse a mim como você trata a ela,<br />

eu quereria viver quatrocentos anos<br />

nesta terra.”<br />

Mas tudo isto era fruto da confiança<br />

que mamãe possuía de que<br />

Nossa Senhora lhe daria as coisas<br />

necessárias para afetivamente sustentar-se<br />

bem na vida. v<br />

1) No ano de 1950.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 4/9/1993)<br />

9


Gesta Marial de um Varão Católico<br />

Recordações de um mundo<br />

reivindicação, sem inveja,<br />

M. Shinoda<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1990.<br />

10


sem<br />

sem ódio…<br />

Durante uma exposição para jovens membros<br />

do seu Movimento, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez uma<br />

saborosa descrição do ambiente da casa de<br />

Dona Gabriela e Dona Lucilia, que acolhiam<br />

com bondade os pobres e ex-empregadas.<br />

As pessoas de antigamente,<br />

à medida que iam crescendo,<br />

estabeleciam uma espécie<br />

de distância, que — usando<br />

uma expressão muito exagerada —<br />

eu tenderia a chamar de monumental,<br />

entre elas e os outros, à maneira<br />

de um monumento colocado em<br />

algum lugar. O monumento e o lugar<br />

em volta dele formam um só todo,<br />

mas há uma distância ponderável<br />

entre ambos. Por exemplo, o Arco<br />

do Triunfo, em Paris, que teoricamente<br />

foi feito para ser atravessado<br />

por exércitos vitoriosos. Em volta<br />

dele construíram um canteiro de<br />

flores — aliás, é preciso dizer, com<br />

flores lindíssimas —, isolando-o do<br />

resto da praça.<br />

Pode-se até objetar que não é possível<br />

passar pelo Arco sem esmagar<br />

a grama; mas o canteiro define a distância<br />

monumental entre o Arco e a<br />

praça.<br />

Uma pessoa, por exemplo, da idade<br />

de minha avó, estava habitualmente<br />

posta em cogitações que não<br />

se sabia muito bem quais eram, mas<br />

que tinham uma estatura maior do<br />

que as cogitações das outras pessoas<br />

que a circunvizinhavam. O que não<br />

lhe permitia dar uma atenção inteira<br />

ao concreto, ao miúdo, ao circunstancial.<br />

Às vezes, davam essa atenção<br />

a uma coisa que caía debaixo de<br />

sua vista. Mas, normalmente ela deixava<br />

aquilo correr, com certa monumentalidade;<br />

as pessoas mais moças<br />

deveriam cuidar daquilo.<br />

Acho que a dignidade da idade<br />

mais avançada realmente é compatível,<br />

fica bem com isso.<br />

Uma espécie de “Pátio<br />

dos Milagres” em<br />

ponto minúsculo<br />

A casa em que eu residia quando<br />

menino 1 era alta e no andar térreo<br />

havia um local com alguns arcos,<br />

onde ficavam um cego, a Serafina,<br />

a Benedícite; uma espécie<br />

de “Pátio dos Milagres” 2 , em ponto<br />

minúsculo.<br />

Assim que ali entrávamos, a Benedícite<br />

nos via — apesar de velha,<br />

ela possuía uma boa vista — e saía<br />

de um daqueles arcos e começava:<br />

“Babá, babá, babá...”; parecia um<br />

muezim muçulmano no alto de um<br />

minarete.<br />

Ela percebia que eram meninos<br />

da família e, querendo assegurar o<br />

prato de comida, contava uma história<br />

que não terminava mais; depois<br />

fazia uma inclinação com o braço,<br />

dizendo “benedicite, benedicite”,<br />

uma bênção que ela, como velha, dava<br />

para nós, crianças.<br />

E nós, não sabendo como responder,<br />

mas sentindo o pitoresco<br />

do personagem, parávamos para<br />

olhar um pouquinho e em geral jogávamos,<br />

mas de um modo afável,<br />

11


Gesta Marial de um Varão Católico<br />

duas ou três moedas para ela, que<br />

as recebia com uma gentileza de<br />

primeira ordem e ficava muito contente.<br />

Dizíamos-lhe, então:<br />

— Até logo, Benedícite!<br />

— Até logo!<br />

Margarida,<br />

ex-empregada da casa<br />

de Dona Gabriela<br />

Dona Gabriela em 1912.<br />

tura, alguma maldade que contra<br />

ela haviam feito; mas ela declamava,<br />

discursava. Eu percebia que, ao<br />

cabo de algum tempo, estava todo<br />

mundo informado do que ela queria.<br />

E eu — por causa de mamãe,<br />

que não tomaria a bem se quisesse<br />

pôr fora a Margarida — ficava quieto.<br />

E ela continuava falando, interrompendo<br />

a conversa que antes de<br />

sua chegada estávamos tendo sobre<br />

algum assunto que podia interessar.<br />

Após certo tempo a Margarida<br />

dizia: “Porque entonces me voy”, e<br />

Havia também uma espanhola<br />

chamada Margarida, a qual, em<br />

tempos idos e vividos, muito anteriores<br />

ao meu nascimento, tinha sido<br />

empregada de casa. Mas ela depois<br />

se casou com um homem que,<br />

se não me engano, era vendeiro;<br />

possuía um armazém perto de nossa<br />

residência. Às vezes, Margarida ia à<br />

nossa casa para saber como estava<br />

o pessoal. Ela não tinha interesse,<br />

e fazia isso conforme aquelas fidelidades<br />

antigas. Acho que seu marido<br />

aprovava que ela assim agisse.<br />

Margarida era magra, tinha um<br />

pescoção com uma cabeça pequena<br />

em cima, cabelos de um louro inexpressivo,<br />

com uns cachinhos, e muito<br />

feia. Quando ela se irritava, seu<br />

pescoço ficava meio vermelho, meio<br />

azul, como o pescoço de peru.<br />

Eu que, graças a Nossa Senhora,<br />

fui chamado a ouvir falar tanto<br />

espanhol em minha vida, quando<br />

era menino e mocinho tinha dificuldade<br />

para compreender — era<br />

uma dificuldade auditiva — o espanhol,<br />

o português falado por um espanhol;<br />

e até mesmo o português<br />

falado por um português eu muitas<br />

vezes tinha dificuldade em acompanhar.<br />

Assim, eu não entendia o que<br />

a Margarida dizia.<br />

A Margarida era muito respeitosa.<br />

Quando ela chegava à nossa casa,<br />

se dirigia à porta dos fundos e<br />

mandava perguntar à minha avó e<br />

minha mãe se lhe davam licença para<br />

entrar. Se não havia visita, concediam.<br />

Ela entrava e começava falar.<br />

Creio que contava alguma desvenchegava<br />

perto da porta; às vezes até<br />

atravessava a porta, e depois voltava,<br />

recomeçando tudo de novo.<br />

Mamãe ouvia com paciência e<br />

eu percebia que não havia campo<br />

nem para insinuar que seria bom<br />

que a Margarida fosse embora. Ela<br />

ficava o tempo que queria e depois<br />

saía.<br />

A ex-escrava Honorata<br />

conversando com<br />

Dona Gabriela sobre<br />

os antigos tempos<br />

Havia também duas ex-escravas.<br />

Uma delas tinha sido escrava da família<br />

de um médico, muito amigo de<br />

meus avós e minha mãe, o qual possuía<br />

uma fazenda. Devido a essa íntima<br />

relação de amizade, ela ia muitas<br />

vezes conversar com os criados<br />

de casa. Depois se habituou a subir<br />

ao andar superior para dizer bom<br />

dia a Dona Gabriela e Dona Lucilia,<br />

e contava muitas coisas.<br />

Ela era uma negra vinda da África.<br />

Não sei se seu cabelo não crescia<br />

ou se ela mandava cortar à la homem,<br />

mas era uma carapinha com a<br />

altura de um centímetro. Bem velha,<br />

seu cabelo era todo branco.<br />

Vestia-se com uma espécie de<br />

poncho, um cobertor muito ensebado,<br />

marrom, horrendo. Não me lembro<br />

bem, mas parece-me que esse<br />

cobertor era vestido através de uma<br />

abertura para passar primeiro a cabeça,<br />

como poncho gaúcho. Usava<br />

umas saias indefinidas, com as cores<br />

de todos os usos. Suas orelhas<br />

eram um pouco de abano. Quase<br />

não tinha sobrancelhas, mas via-se<br />

bem o arco por onde as sobrancelhas<br />

deveriam correr. E sua cara era<br />

de drama...<br />

Ela entrava dizendo:<br />

— Bom dia, Dona Gabriela!<br />

Bom dia, Dona Lucilia!<br />

— Bom dia, Honorata, como vai<br />

você?<br />

12


O “bom dia” mais amável era de<br />

mamãe.<br />

Duas ou três vezes, numa hora em<br />

que mamãe estava fora da sala, vi minha<br />

avó sentada numa cadeira, que<br />

está hoje no meu escritório; junto dela<br />

a Honorata que, por licença de minha<br />

avó, estava sentada numa cadeira.<br />

Ambas contando coisas dos antigos<br />

tempos, as quais minha avó presenciara,<br />

mas não comunicava muito<br />

para o outros; eu não sabia bem<br />

de que assuntos tratavam, mas faziam<br />

parte daquele mundo no qual tinham<br />

vivido.<br />

G. Kralj<br />

A criada Silvéria e o<br />

susto que teve <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Convento da Luz no século XIX.<br />

Havia outra — creio ter sido<br />

também escrava — que foi criada<br />

de minha mãe quando possuía casa<br />

própria, e meu avô não havia morrido<br />

3 . Essa empregada, que morava<br />

em sua casa, habituou-se a ir sempre<br />

à residência de minha mãe e<br />

causou-me um dos sustos mais extraordinários<br />

da minha vida.<br />

Eu confundia o nome dessa criada<br />

com a outra. Certo dia disseram-<br />

-me: “Morreu fulana.” Para um menino<br />

que vai se formando, os horizontes<br />

da vida são outros. E nisso<br />

eu prestava um centésimo de atenção.<br />

Numa manhã — minha família<br />

estava em Santos —, eu estava sozinho<br />

tomando café na sala de jantar<br />

da casa. E, remexendo o café com<br />

leite na xícara, ouço uma tosse característica,<br />

e a criada, colocando a<br />

cabeça na porta entreaberta, diz:<br />

— Bom dia, seu <strong>Plinio</strong>, como vai<br />

passando?<br />

Pensei: “Mas uma morta!!! Como<br />

vou sair dessa? A primeira coisa<br />

é não mudar de conduta, para<br />

não espantar a mulher. Se respondo,<br />

começa uma conversa, ela chega<br />

mais perto...” Não respondi e continuei<br />

a mexer o café; houve então<br />

um clic na memória: “Ah! Não é essa!”<br />

Então eu disse: “Bom dia, Silvéria!<br />

Como vai você?” Ufa!<br />

Toda essa gente chegava a nossa<br />

casa e, na copa, comiam, bebiam,<br />

conversavam; depois desciam até o<br />

quintal e lá se sentavam. Quando<br />

precisavam, pediam o que necessitavam<br />

e Dona Lucilia sempre arranjava<br />

um meio de atendê-las. Pediam,<br />

por exemplo, uma apresentação<br />

para a Santa Casa, a fim de<br />

internar um filho doente; era uma<br />

verdadeira clientela mantida desinteressadamente,<br />

por bondade.<br />

Na Igreja da Luz,<br />

encontro com duas<br />

filhas de Margarida<br />

Tive uma recordação muito viva<br />

disso, há poucos dias, na Igreja da<br />

Luz, onde fui rezar. Vi duas senhoras<br />

um tanto mais moças do que eu:<br />

eram filhas da Margarida, mas não<br />

as havia reconhecido. Elas foram esperar-me<br />

na porta da igreja e me disseram:<br />

— Bom dia, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>! O senhor<br />

não está se lembrando de nós? Somos<br />

filhas da Margarida.<br />

Dei-lhes a mão, perguntando:<br />

— Como vão vocês? Estão bem?<br />

Elas, muito modestas, direitas,<br />

acrescentaram:<br />

— Queríamos dizer para o senhor<br />

que nós admiramos muito todas<br />

as obras do senhor. Pela revista<br />

que assinamos, acompanhamos toda<br />

a vida do senhor e rezamos muito<br />

pelo senhor.<br />

Perguntei:<br />

— Como vai a Margarida?<br />

— Ah! Margarida morreu...<br />

Fiquei surpreso de ter encontrado<br />

no fundo de minha mente essas<br />

recordações, que exprimem todo<br />

um mundo de antigamente, incalculavelmente<br />

diferente do de hoje.<br />

Aquelas pessoas não tinham reivindicações,<br />

nem inveja, nem ódio. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 30/6/1981)<br />

1) Situada na Alameda Barão de Limeira,<br />

bairro dos Campos Elíseos,<br />

em São Paulo.<br />

2) Cfr. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nº 32, p. 27.<br />

3) <strong>Dr</strong>. Antônio Ribeiro dos Santos, avô<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, faleceu em 1909. Depois<br />

do falecimento de seu pai, Dona<br />

Lucilia com sua família passou a<br />

habitar no Palacete Ribeiro dos Santos,<br />

residência de sua mãe.<br />

13


Hagiografia<br />

São Vicente de Paulo,<br />

perfeita harmonia de espírito<br />

Fundador de Obras de Caridade, Diretor de uma Ordem Religiosa; por<br />

outro lado, insigne lutador contra o jansenismo e inspirador de<br />

uma cruzada contra Túnis. Homem ao mesmo tempo capaz de tratar<br />

com a rainha e com galerianos; de cuidar de doentes e de armar um<br />

exército contra os inimigos da Fé. Dotado de tal amplitude de espírito,<br />

São Vicente de Paulo representou a própria harmonia do<br />

espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

São Vicente de Paulo<br />

- Basílica de São<br />

Pedro, Vaticano.<br />

Pediram-me que comentasse<br />

uma ficha biográfica de São<br />

Vicente de Paulo, extraída<br />

do Breviário Romano.<br />

Vicente nasceu de pais pobres em<br />

Pay, na Landae, França, no dia 24 de<br />

abril de 1581.<br />

Desde criança guardou os rebanhos<br />

de seu pai. Mas sua viva inteligência<br />

fez com que sua família o<br />

mandasse estudar entre os cordelliers<br />

de Dax.<br />

Foi depois para Toulouse a fim de<br />

conseguir grau de Doutor e, em 1600,<br />

ordenou-se sacerdote. Após ter sido<br />

cativo em Tunis, em 1616 foi incluído<br />

no corpo de capelães da Rainha Margarida<br />

de Valois. Durante algum tempo,<br />

foi cura de Clichy e de Chatillon-<br />

-les-Dombes.<br />

Nomeado grão-capelão das galeras<br />

da França pelo rei, com um zelo<br />

maravilhoso, trabalhou pela salvação<br />

dos oficiais e dos remadores.<br />

Indicado por São Francisco de Sales<br />

para o governo das religiosas da<br />

Visitação, cumpriu essa missão durante<br />

40 anos com tal prudência que<br />

justificou plenamente o julgamento<br />

do santo prelado, o qual declarou não<br />

conhecer padre mais digno do que Vicente.<br />

Mas sua carreira fez-se quase que<br />

inteira ao serviço da poderosa família<br />

dos Gondi. Ele evangelizou as nove<br />

mil almas que viviam em suas terras,<br />

e diminuiu a extensão das ruínas<br />

e das misérias produzidas pelas guerras<br />

civis ou com estrangeiros.<br />

Até uma idade bem avançada, Vicente<br />

dedicou-se a evangelizar os pobres<br />

e sobretudo os camponeses. Para<br />

isto fez um especial voto, aprovado<br />

pela Santa Sé. Preocupou-se em estabelecer<br />

a disciplina eclesiástica, dirigindo<br />

seminários para o Clero, e tendo<br />

o cuidado de multiplicar as conferências<br />

espirituais entre os padres.<br />

Enviou evangelizadores não só<br />

através das províncias da França,<br />

mas também para Itália, Polônia, Escócia,<br />

Irlanda e Índia.<br />

Protegido pelos reis da França,<br />

assistiu Luís XIII nos seus últimos<br />

momentos e foi chamado por Ana<br />

d’Áustria, mãe de Luís XIV, para fazer<br />

parte do Conselho de Consciência.<br />

Lançou os fundamentos de uma<br />

nova Congregação, a dos Lazaristas,<br />

e com Santa Luísa de Marillac criou<br />

14


Fotos: G. Kralj; S. Hollmann.<br />

Corpo incorrupto de São Vicente de Paulo - Paróquia São Vicente de Paulo, Paris.<br />

a Instituição das Filhas da Caridade,<br />

ou Irmãs de São Vicente de Paulo.<br />

Acabado de fadiga, o chamado<br />

Apóstolo da Caridade veio a falecer<br />

em 1660. Afirma-se não ter havido<br />

miséria que ele não houvesse socorrido.<br />

Cristãos aprisionados pelos turcos,<br />

crianças abandonadas, jovens indisciplinados,<br />

moças em risco de cair<br />

no pecado, religiosas displicentes, pecadoras<br />

públicas, condenados às galés,<br />

estrangeiros enfermos, artesãos<br />

sem trabalho, os loucos e os mendigos,<br />

todos foram lembrados pelo<br />

grande Monsieur Vincent, como era<br />

conhecido naquela época.<br />

Membro da Mesa de<br />

Consciência e Ordens<br />

Quero chamar a atenção para<br />

dois aspectos de sua vida.<br />

O primeiro é a quase incrível fecundidade<br />

dessa existência, tomando<br />

em consideração as várias situações<br />

pelas quais ele transitou.<br />

Nascido de uma família pobre de<br />

camponeses, provavelmente analfabetos<br />

ou semianalfabetos, ele teve<br />

uma ascensão: dada a sua excepcional<br />

inteligência, foi estudar e ordenou-se<br />

sacerdote. Depois, caiu como<br />

cativo dos berberes, piratas que<br />

percorriam o Mediterrâneo e às vezes<br />

até faziam incursões pelos territórios<br />

da Europa, levando católicos<br />

como escravos, os quais eram vendidos<br />

nos países do Oriente.<br />

Após haver tratado<br />

com cortesãos no<br />

palácio real da<br />

França, São Vicente<br />

foi capelão-geral das<br />

galés, tendo que fazer<br />

apostolado junto a<br />

criminosos, os quais<br />

eram atarraxados nos<br />

navios e passavam a<br />

vida remando.<br />

Maravilhosamente resgatado da<br />

condição de simples escravo, ele é<br />

logo contratado para ser capelão de<br />

uma rainha e entra numa corte. Deste<br />

alto cargo ele passa a ser vigário<br />

de duas aldeias; entra sob serviço<br />

de uma casa nobre poderosa, a dos<br />

Gondi, e parece cifrar o seu trabalho<br />

às nove mil almas que constituíam a<br />

população dos feudos ou das terras<br />

em que a família Gondi tinha restos<br />

de poderes feudais.<br />

Mas, depois disto, ele novamente<br />

se aproxima da corte e é elevado<br />

a um dos mais altos cargos: membro<br />

da Mesa de Consciência.<br />

A Mesa de Consciência e Ordens<br />

era uma instituição que existia em<br />

quase todas as monarquias católicas<br />

daquele tempo, e tinha uma função<br />

muito delicada. Naquela época<br />

o Estado era sempre unido à Igreja<br />

nos países católicos, e os Bispos tinham<br />

muitas vezes poderes temporais.<br />

A diocese era senhora feudal<br />

com poderes mais amplos, ou menos,<br />

destas ou daquelas terras; dessa<br />

forma o provimento das dioceses<br />

que se vagassem cabia ao Papa por<br />

princípio, porque só o Sumo Pontífice<br />

pode nomear e demitir livremente<br />

Bispos, mas mediante indicação<br />

do rei. Este propunha em geral<br />

três nomes, dos quais o Papa escolhia<br />

um.<br />

15


Hagiografia<br />

Dotado de um espírito<br />

amplíssimo, com uma<br />

personalidade rica sob<br />

diversos aspectos, São<br />

Vicente impressionava<br />

profundamente<br />

os homens mais<br />

variados.<br />

Naturalmente, quando um nome<br />

não era adequado, o Sumo Pontífice<br />

exigia outro nome. Ele não ficava<br />

manietado, circunscrito àqueles três,<br />

mas era o rei que os indicava.<br />

A Mesa de Consciência não era<br />

uma mesa no sentido material da palavra.<br />

Tinha esse título porque seus<br />

membros se reuniam em torno de<br />

uma mesa, e era um Conselho das pessoas<br />

de maior confiança e virtude do<br />

reino, mais perspicazes e inteligentes,<br />

para estudar quais os padres que, por<br />

sua vida e doutrina ortodoxa, cultura e<br />

atividade, saúde e influência pessoal,<br />

eram capazes de serem Bispos.<br />

Como é sabido, toda a vida de uma<br />

diocese gira em torno do Bispo, e<br />

uma das coisas mais importantes para<br />

a vida interna da Igreja é a designação<br />

de bons Bispos. Podemos assim<br />

compreender quanto um país deve<br />

ter empenho em que seja escolhido o<br />

creme dos sacerdotes para ser Bispo.<br />

Ele foi escolhido por Ana<br />

d’Áustria, a Rainha-Mãe, regente da<br />

minoridade de Luís XIV, para esta<br />

Mesa de Consciência e Ordens e ali<br />

exerceu grande influência para a designação<br />

dos Bispos.<br />

Esse homem que subiu a tão alto<br />

cargo, tratando com cortesãos no palácio<br />

real da França, entretanto foi<br />

capelão-geral das galés, tendo que<br />

fazer apostolado junto a criminosos,<br />

os quais eram atarraxados nos navios<br />

e passavam a vida remando. Entre<br />

um príncipe e um guerreiro há uma<br />

distância enorme; porém tal distância<br />

é menor do que a existente entre<br />

o sacerdote e o escravo. Tudo isso<br />

constituiu os vaivéns de sua existência.<br />

Multiplicidade<br />

de atividades<br />

Outro aspecto é a multiplicidade<br />

das atividades que ele exerceu:<br />

Obras de Caridade, Diretor de uma<br />

Ordem Religiosa que então estava<br />

apenas saindo das mãos de seu grande<br />

fundador, São Francisco de Sales;<br />

por outro lado, lutador insigne<br />

contra o jansenismo. Ele foi um dos<br />

homens que mais trabalhou contra<br />

o jansenismo na França, impedindo<br />

que essa forma péssima de protestantismo<br />

larvado penetrasse nos<br />

meios católicos. Além disso, São Vicente<br />

levantou uma cruzada contra a<br />

Tunísia; foi, portanto, chefe de cruzados.<br />

Vemos assim a diferença de aspectos<br />

dessa personalidade. Um homem<br />

capaz de tratar com a rainha,<br />

mas também com galerianos. De<br />

atrair a confiança da soberana e de<br />

encontrar palavras que pusessem à<br />

vontade o indivíduo que estava remando<br />

nas galés. Um homem capaz<br />

de tratar de um doente e de armar<br />

um exército; de dirigir uma Congregação<br />

Religiosa de freiras reclusas,<br />

que passavam a sua vida em oração,<br />

mas ao mesmo tempo capaz de<br />

orientar almas de uma corte, passando<br />

todo o tempo sujeito às tentações<br />

do mundanismo.<br />

Tinha ele um espírito amplíssimo,<br />

uma personalidade vastíssima, rica<br />

dos maiores aspectos, com a possibilidade<br />

de impressionar a fundo os<br />

Diversos fatos da vida de São Vicente de Paulo - Capela de São Vicente, Paris.<br />

16


homens mais variados. Ou seja, com<br />

uma faculdade de adaptação aos vários<br />

meios que de si dariam origem a<br />

um verdadeiro romance.<br />

Há pessoas que leem com entusiasmo<br />

a vida de Laurence of Arabia,<br />

porque sendo inglês esteve na<br />

Arábia e se adaptou às condições de<br />

vida lá existentes. O que é isto<br />

em comparação com todas as<br />

pluralidades de papéis que<br />

São Vicente de Paulo desempenhou<br />

de um modo<br />

tão profundamente<br />

brilhante?<br />

Se houvesse um<br />

grande biógrafo que<br />

soubesse apresentar<br />

a vida de São Vicente<br />

de Paulo com ardor,<br />

sem se distanciar em<br />

nada da realidade histórica,<br />

mas realçando os aspectos<br />

que verdadeiramente<br />

dão a chama de sua existência,<br />

tenho certeza que esta seria<br />

uma das biografias mais famosas.<br />

São Vicente de Paulo - Paris, França.<br />

Uma das figuras<br />

mais deformadas pela<br />

“heresia branca”<br />

Parece-me que até a consumação<br />

dos séculos uma tentação para os que<br />

escrevem vida de santos vai ser de redigi-la<br />

de modo “heresia branca” 1 . E<br />

a figura de São Vicente de Paulo é<br />

exatamente a que tem sido mais deformada<br />

pela “heresia branca”.<br />

Em que sentido? A “heresia branca”<br />

gosta de apresentar este santo<br />

sempre sorrindo e com uma criancinha<br />

ao seu lado. Que ele seja apresentado<br />

sorrindo, ótimo! E com uma<br />

criancinha ao lado — se não quiserem<br />

economizar bronze, podem até<br />

pôr cinquenta criancinhas, não tenho<br />

nada a objetar contra isto —, está<br />

esplêndido. Quem pode objetar<br />

contra o apostolado junto às crianças<br />

de quem Nosso Senhor disse:<br />

“Deixai vir a Mim os pequeninos”?<br />

Mas que se queira ver neste homem<br />

só isto! Este é o lado verdadeiramente<br />

absurdo. Por que não se faz, numa igre-<br />

ja ereta em louvor de São Vicente de<br />

Paulo, um quadro deste varão de Deus,<br />

na presença de Luís XIII, obtendo deste<br />

a assinatura de um edito que ordenava<br />

uma cruzada contra Túnis?<br />

Não devemos procurar corrigir<br />

uma unilateralidade com a outra,<br />

escondendo São Vicente de Paulo<br />

caridoso, para manifestar apenas<br />

São Vicente de Paulo guerreiro,<br />

porque a beleza consiste exatamente<br />

na coexistência dos dois aspectos.<br />

Aí está a perfeição, a harmonia<br />

do espírito de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 19/7/1971)<br />

1) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />

sentimental que se manifesta na piedade,<br />

na cultura, na arte, etc. As pessoas<br />

por ela afetadas se tornam moles,<br />

medíocres, pouco propensas à<br />

fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />

esplendor.<br />

17


Calendário dos Santos –––––––––<br />

1. Santa Beatriz da Silva e Menezes,<br />

Virgem (†Toledo, 1490).<br />

2. São Guilherme, Bispo e Confessor<br />

(†Dinamarca, 1070). Sensibilizado<br />

pela situação de abandono<br />

em que viviam os pagãos dinamarqueses,<br />

dedicou-se a evangelizá-los.<br />

Foi Bispo de Roskilde.<br />

3. São Gregório Magno, Papa,<br />

Confessor e Doutor da Igreja (†Roma,<br />

604). Considerado o último dos<br />

Papas do antigo Império Romano e<br />

o primeiro dos Papas medievais. Enfrentou<br />

a peste e a fome em Roma,<br />

bem como a devastação produzida<br />

pelos invasores Lombardos, que<br />

chegaram a assediar a cidade e só<br />

foram contidos graças à diplomacia<br />

do Pontífice. Apesar dessas dificuldades,<br />

seu Pontificado é tido a justo<br />

título como um dos mais fecundos e<br />

grandiosos da História da Igreja.<br />

4. XXIII Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Rosália, Virgem (†Palermo,<br />

séc. XII).<br />

5. São Bertino, Confessor<br />

(†França, 700). Recebeu formação<br />

monástica no célebre Mosteiro de<br />

Luxeuil. Fundou o Mosteiro de São<br />

Pedro, na Ilha de Sithiu, no Artois,<br />

o qual teve vinte e dois monges elevados<br />

às honras dos altares.<br />

6. Santo Eleutério, Abade e Confessor<br />

(†Roma, séc. VI). Abade do<br />

Mosteiro de São Marcos Evangelista,<br />

em Espoleto, com suas orações curou<br />

doentes e até ressuscitou um morto.<br />

7. São Clodoaldo, Confessor<br />

(†França, séc. VI). Filho do Rei<br />

Clodomiro e neto do Rei Clóvis e<br />

da Rainha Santa Clotilde, São Clodoaldo<br />

abandonou o mundo para<br />

servir somente a Deus, na solidão<br />

da vida contemplativa.<br />

F. Lecaros<br />

São Mateus - Museu Diocesano<br />

de Valladolid, Espanha.<br />

8. Natividade de Nossa Senhora.<br />

Precisamente nove meses depois de<br />

comemorar a Imaculada Conceição<br />

da Virgem, a Igreja celebra a festividade<br />

do seu Nascimento.<br />

9. São Pedro Claver, Confessor<br />

(†Cartagena, 1654). Natural da Catalunha,<br />

ingressou aos 22 anos na<br />

Companhia de Jesus. Partiu como<br />

missionário para a América espanhola,<br />

sendo ordenado sacerdote<br />

em Bogotá. Consagrou sua vida ao<br />

apostolado com escravos trazidos<br />

da África.<br />

10. São Nicolau de Tolentino,<br />

Confessor (†Itália, 1305). Pertenceu<br />

à Ordem dos Eremitas de Santo<br />

Agostinho e passou a maior parte<br />

da vida num convento, entregue<br />

a práticas austeras e à oração, na<br />

mais alta contemplação.<br />

11. XXIV Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

São João-Gabriel Perboyre,<br />

Mártir (†China, 1840).<br />

12. São Guido, Confessor (†Brabante,<br />

Bélgica, 1012). Nascido numa<br />

família de camponeses, distribuiu<br />

seus poucos bens aos pobres e<br />

se consagrou inteiramente ao serviço<br />

de Deus. Peregrinou durante sete<br />

anos, visitando os principais santuários<br />

da Europa, Roma e a Terra<br />

Santa. Depois retornou à sua região<br />

de origem e se santificou no<br />

humilde ofício de sacristão de uma<br />

igreja. Depois de morto, milagres e<br />

prodígios ocorreram em sua sepultura,<br />

e somente então foi glorificado<br />

aquele que, durante toda a vida,<br />

permanecera oculto e apagado.<br />

13. São João Crisóstomo, Bispo,<br />

Confessor e Doutor da Igreja (†Ponto,<br />

Ásia Menor, 407). Após alguns<br />

anos de solidão no deserto, foi ordenado<br />

sacerdote em Antioquia. Nomeado<br />

Bispo e Patriarca de Constantinopla,<br />

esforçou-se para moralizar<br />

o Clero. Denunciou também, corajosamente,<br />

abusos de autoridades<br />

civis. Foi, em consequência, duas vezes<br />

desterrado e morreu no exílio.<br />

14. Exaltação da Santa Cruz. A<br />

Cruz de Cristo é o troféu de sua vitória<br />

pascal sobre a morte. A tradição<br />

vê nela também o sinal do Filho<br />

do Homem, que aparecerá no céu<br />

para anunciar sua volta (Mt 24,30).<br />

São Materno, Bispo (†Trèves,<br />

séc. IV).<br />

15. Nossa Senhora das Dores.<br />

16. São Cornélio, Papa, e São Cipriano,<br />

Bispo, Mártires (†séc. III).<br />

São Cornélio condenou os erros<br />

dos hereges novacianos, que promoveram<br />

um cisma na Igreja e procuraram<br />

depô-lo. Nessa emergência,<br />

foi apoiado e encorajado por<br />

São Cipriano, Bispo de Cartago<br />

(Norte da África). São Cornélio foi<br />

18


––––––––––––––– * Setembro * ––––<br />

martirizado durante a perseguição<br />

de Galiano, no ano 252, e São Cipriano<br />

sofreu o martírio em 258.<br />

17. São Roberto Belarmino, Bispo,<br />

Confessor e Doutor da Igreja<br />

(†Roma, <strong>162</strong>1).<br />

18. XXV Domingo do Tempo Comum.<br />

São José de Cupertino, Confessor<br />

(†Itália, 1663).<br />

19. São Januário (Bispo) e Companheiros,<br />

Mártires (†Pozzuoli, Itália,<br />

305). São Januário (também conhecido<br />

como San Gennaro), Bispo<br />

de Benevento, foi martirizado durante<br />

a perseguição de Diocleciano,<br />

juntamente com seis clérigos de sua<br />

diocese: Santos Sósio, Próculo, Festo,<br />

Desidério, Eutíquio e Acúrcio. O<br />

sangue de São Januário, conservado<br />

até hoje em uma ampola, liquefaz-se<br />

milagrosamente três vezes por ano,<br />

em datas certas dos meses de maio,<br />

setembro e dezembro.<br />

20. Santos André Kim Taegón,<br />

Presbítero, Paulo Chong Hasang e<br />

Companheiros, Mártires (†Coreia,<br />

1839-1866).<br />

21. São Mateus Evangelista,<br />

Apóstolo e Mártir (†séc. I). Segundo<br />

antiga tradição, pregou na Palestina<br />

e depois na Etiópia.<br />

22. Santos Maurício e Companheiros,<br />

Mártires (†séc. III). São Maurício<br />

comandava a célebre Legião Tebana,<br />

constituída por cristãos do Egito.<br />

Por volta do ano 286, enquanto<br />

reinava Diocleciano, essa divisão estava<br />

servindo em território da atual<br />

Suíça, quando o comandante supremo,<br />

Maximiano, ordenou que todos<br />

os soldados oferecessem sacrifícios<br />

aos deuses pagãos. Os membros<br />

F. Lecaros<br />

da Legião Tebana se recusaram e, por<br />

isso, foram mortos.<br />

23. São Lino, Papa e Mártir<br />

(†Roma, séc. I). Foi o segundo Papa,<br />

escolhido pelo próprio São Pedro<br />

para sucedê-lo. Sofreu o martírio<br />

por volta do ano 77, sendo sepultado<br />

ao lado de São Pedro.<br />

24. São Vicente Maria Strambi,<br />

Bispo e Confessor (†Roma, 1824).<br />

Após ingressar na Congregação Passionista,<br />

que acabava de ser fundada,<br />

dedicou-se com grande sucesso<br />

às pregações populares, até que foi<br />

feito Bispo de Macerata e Tolentino.<br />

Recusou prestar juramento de fidelidade<br />

a Napoleão Bonaparte, que<br />

invadira e usurpara os Estados Pontifícios<br />

e, em consequência, foi desterrado<br />

durante 7 anos. Ofereceu<br />

sua vida a Deus para que o Papa,<br />

gravemente enfermo, não morresse,<br />

e foi atendido: São Vicente Maria<br />

morreu e o Papa recuperou a saúde.<br />

São Gregório Magno - Museu<br />

Regional de Messina, Itália.<br />

25. XXVI Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

São Firmino, Bispo e Mártir<br />

(†Amiens, séc. IV).<br />

26. São Cosme e São Damião,<br />

Mártires (†Cilícia, Ásia Menor, séc.<br />

I). Sofreram o martírio durante a<br />

perseguição de Diocleciano (284-<br />

305).<br />

27. São Vicente de Paulo, Confessor<br />

(†Paris, 1660). (Ver página 13)<br />

28. São Venceslau, Mártir (†Boêmia,<br />

929).<br />

São Lourenço Ruiz e Companheiros,<br />

Mártires (†Nagasaki, 1633-1637).<br />

No século XVII, entre os anos de<br />

1633 e 1637, dezesseis mártires, Lourenço<br />

Ruiz e seus Companheiros,<br />

derramaram seu sangue por amor de<br />

Cristo, em Nagasaki, no Japão. .<br />

29. São Miguel, São Gabriel e<br />

São Rafael, Arcanjos.<br />

30. São Jerônimo, Confessor e<br />

Doutor da Igreja (†Palestina, 419).<br />

Natural da Dalmácia, recebeu formação<br />

católica, mas só foi batizado<br />

aos 20 anos. Possuidor de uma cultura<br />

clássica das maiores do tempo,<br />

é considerado um dos mestres da língua<br />

latina. Aproveitou integralmente<br />

sua imensa cultura no serviço da<br />

Igreja, lutando contra as heresias e<br />

defendendo a Fé católica. Foi secretário<br />

do Papa São Dâmaso, e recebeu<br />

deste o encargo de traduzir para<br />

o latim os Livros Sagrados, de modo<br />

a haver uma única versão oficial das<br />

Escrituras, para que não fossem estas<br />

deturpadas pelos hereges dos séculos<br />

futuros. Essa foi a origem da “Vulgata”.<br />

Na fase final de sua vida, permaneceu<br />

em Belém, na Palestina, onde<br />

dirigiu um mosteiro de monges e deu<br />

assistência a um mosteiro feminino.<br />

19


Revolução e Contra-Revolução<br />

Obediên<br />

A propósito de<br />

alguns pensamentos<br />

de Santo Inácio de<br />

Loyola relacionados<br />

com a obediência,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tece<br />

substanciosos<br />

comentários a este<br />

tema que marca<br />

profundamente a<br />

diferença entre o<br />

revolucionário e o<br />

contrarrevolucionário.<br />

S. Hollmann<br />

Santo Inácio de Loyola<br />

- Barcelona, Espanha.<br />

Como todos sabem, Santo Inácio<br />

de Loyola concebeu a Ordem<br />

Religiosa que ele fundou,<br />

à maneira de um exército; por<br />

isso, deu-lhe o nome de Companhia<br />

de Jesus. Companhia naquele tempo<br />

queria dizer batalhão, regimento<br />

ou exército. Era, portanto, Exército<br />

de Jesus. E para que os sacerdotes da<br />

Companhia de Jesus tivessem toda a<br />

eficácia na sua luta contra os restos<br />

do Renascimento e a explosão protestante,<br />

ele quis que fossem marcados<br />

com todas as notas do espírito<br />

militar, entre as quais um eminente<br />

espírito de obediência.<br />

A condição militar supõe a obediência,<br />

e um exército sem obediência é um<br />

exército aniquilado. De maneira que<br />

faz parte da honra militar a disciplina.<br />

Portanto, uma das notas de esplendor<br />

da condição militar, aos olhos de todo<br />

mundo, é a compenetração e a varonilidade<br />

com que o militar obedece.<br />

20


cia e Contra-Revolução<br />

S. Miyazaki<br />

Para o revolucionário<br />

a obediência é<br />

uma vergonha<br />

Falo de compenetração e varonilidade<br />

e já temos aqui um dos pontos<br />

de atrito entre o espírito da Revolução<br />

e o da Contra-Revolução.<br />

De acordo com o espírito revolucionário,<br />

obedecer é uma vergonha,<br />

mandar também não é uma beleza.<br />

O bonito é não obedecer nem mandar,<br />

mas ser igual a todo mundo. Isto<br />

porque o revolucionário procede<br />

da ideia de que todo homem é inteiramente<br />

capaz de conhecer todas as<br />

verdades de que seu espírito precisa<br />

para se orientar; e de governar as suas<br />

paixões desordenadas, de maneira<br />

a praticar o bem e evitar o mal. Em<br />

consequência, todos os homens são<br />

perfeitamente iguais. Não há nenhuma<br />

razão para um homem dar conselho<br />

ou uma ordem a outro, nem<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em dezembro de 1994.<br />

sofrer a vigilância, a fiscalização de<br />

outro. Portanto, não há motivo para<br />

haver disciplina.<br />

Então, o revolucionário interpreta<br />

a obediência como uma atitude<br />

de alma vergonhosa do indivíduo<br />

indolente e mole, que tem preguiça<br />

de escolher o seu próprio caminho,<br />

de encontrar as verdades necessárias<br />

para se orientar na vida. É, então,<br />

por moleza que um homem defere<br />

essa atribuição a outros e se deixa<br />

guiar.<br />

Seria mais ou menos como um<br />

indivíduo que, por preguiça de<br />

abrir os olhos e olhar em torno de<br />

si, os fecha, dá a mão para um outro<br />

e diz: “Guie-me, porque ao menos<br />

assim eu vou babando pelo caminho.”<br />

Se um homem tem olhos e<br />

meios de caminhar, ele vai se conduzir<br />

por si.<br />

Então, para o espírito revolucionário<br />

a obediência é uma vergonha.<br />

Para o<br />

contrarrevolucionário é<br />

um ato de bom senso,<br />

de fidelidade e de força<br />

O militar considera o contrário.<br />

Ele sabe que a unidade de ação só<br />

pode resultar de uma unidade de<br />

mando; e para que uma grande ação<br />

de conjunto se desenvolva é preciso<br />

uma grande capacidade. Ora, os homens<br />

não têm a mesma capacidade,<br />

e um exército bem constituído deve<br />

destilar os seus valores. De maneira<br />

que os de mais altas qualidades cheguem<br />

à cúpula e sejam capazes de<br />

encontrar e de indicar o caminho para<br />

aqueles que estão numa categoria<br />

intermediária; e estes por sua vez<br />

orientem os menos graduados. Dessa<br />

forma, no topo da hierarquia militar<br />

há aqueles que são mais competentes,<br />

ou se presume que o sejam,<br />

pelos estudos que fizeram. Nos países<br />

que realizam operações militares,<br />

existe uma hierarquia de competências,<br />

de idades, de experiência,<br />

que vai distribuindo os conhecimentos<br />

e a capacidade de impulso<br />

da cúpula, sucessivamente, aos vários<br />

graus da escala militar até a base.<br />

E com isso se forma a ordenação<br />

de um exército.<br />

Conforme essa interpretação, a<br />

obediência é uma virtude. Ela é antes<br />

de tudo um grande ato de lucidez<br />

pelo qual uma pessoa reconhece<br />

que pode não ter tanta capacidade<br />

quanto uma outra; e algo que mais<br />

comprova ser cretino um indivíduo,<br />

se este imagina que ninguém possa<br />

ser mais capaz do que ele. Porque isto<br />

indica que ele não vê dois dedos<br />

diante do nariz; é incapaz de olhar<br />

para cima. Ora, a mais nobre das po-<br />

21


Revolução e Contra-Revolução<br />

D. Iallorenzi<br />

sições da cabeça do homem é olhar<br />

para cima.<br />

É um ato de bom senso, de lucidez,<br />

reconhecer que outros, por serem<br />

mais inteligentes, terem mais<br />

competência ou mais experiência,<br />

são mais capazes do que nós para<br />

encontrar o caminho.<br />

Fazer o que o outro quer é um<br />

ato de ascese. Porque somos sempre<br />

tendentes a conceder demais para<br />

nós mesmos, a arranjarmos pequenos<br />

confortos, pequenas regalias,<br />

pequenas exceções, pequenos prazos,<br />

pequenas traições por onde não<br />

cumprimos o nosso dever. E cumprir<br />

a vontade de um outro é muitas<br />

vezes dolorido, porque temos a impressão<br />

de que uma coisa é de um<br />

jeito, e o outro nos diz que é de um<br />

jeito diferente. Dolorido porque renunciamos<br />

a uma porção de vantagens<br />

pessoais para fazer o que o outro<br />

está mandando. Então, é preciso<br />

ter varonilidade, decisão, capacidade<br />

de enfrentar o sofrimento, a<br />

dor, de fazer o que deve ser feito; isto<br />

caracteriza o verdadeiro espírito<br />

militar.<br />

Exatamente ao contrário do que<br />

pensa a Revolução, para a Contra-<br />

-Revolução a obediência é um ato de<br />

bom senso, de fidelidade e de força.<br />

Portanto é uma honra.<br />

Cristo morto - Salta, Argentina.<br />

Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, paradigma da<br />

virtude da obediência<br />

Entre as Ordens Religiosas, aquela<br />

que, por sua analogia com o espírito<br />

militar, mais ensina a grande virtude<br />

da obediência é a Companhia<br />

de Jesus. Virtude essa cujo paradigma<br />

foi Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

a respeito do Qual diz a Escritura:<br />

“Ele se fez obediente até a morte,<br />

e morte de cruz” 1 . É belo vermos<br />

como Ele não se deixou vergar por<br />

nenhum poder da Terra, falou com a<br />

cabeça erguida e com divina e vigorosa<br />

altaneria contra todos os grandes<br />

da sinagoga e os grandes que representavam<br />

o Império Romano em<br />

Israel. É pulcro contemplar Jesus falando<br />

Àquele que era verdadeiramente<br />

superior a Ele, o Padre Eterno,<br />

nas orações que fazia.<br />

A meu ver — naturalmente é uma<br />

impressão pessoal —, os mais belos<br />

trechos do Evangelho são as orações<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

quando Ele se dirige ao Padre Eterno.<br />

Sendo a Segunda Pessoa da Santíssima<br />

Trindade, perfeitissimamente<br />

igual ao Padre Eterno — inferior,<br />

é verdade, na sua natureza humana<br />

—, Ele se dirige a Deus Pai com<br />

um respeito, um afeto, uma submissão,<br />

uma naturalidade, uma união,<br />

que, segundo me parece, constituem<br />

as páginas mais sublimes do Evangelho.<br />

O que não é dizer pouco, porque<br />

no Evangelho tudo é sublimíssimo;<br />

o Evangelho é uma concatenação<br />

de sublimidades, umas depois<br />

das outras. Tais orações mostram<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo obedecendo,<br />

no ato de prestar a reverência<br />

à autoridade devida.<br />

Ninguém poderá jamais exprimir o<br />

que foi o modo pelo qual Nosso Senhor<br />

obedeceu a Nossa Senhora e a<br />

São José. Não se tem ideia do respeito,<br />

da exatidão, da prontidão com que<br />

Ele fazia esses atos de obediência. Tocamos<br />

aqui em mistérios divinos da<br />

Alma de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

e percebemos a fímbria de uma obediência<br />

transcendente, glorificando e<br />

santificando todas as obediências que<br />

depois d’Ele se prestariam, ao longo<br />

dos séculos, a todas as autoridades<br />

legítimas das quais o Redentor era a<br />

mais alta expressão e ao mesmo tempo<br />

o fundamento.<br />

Obedecer sempre, exceto<br />

se a ordem colidir com<br />

a Doutrina Católica<br />

Na obediência há uma coisa particularmente<br />

dura. Em princípio, aquele<br />

que obedece pratica o ato de obediência<br />

porque reconhece em quem<br />

manda maior inteligência e capacidade;<br />

paradoxalmente, o resultado desse<br />

princípio é obedecer a quem tem<br />

menos inteligência e menos capacidade.<br />

Porque nesta Terra nem sempre<br />

a relação se faz de maneira que<br />

os mais inteligentes, os mais capazes,<br />

nem mesmo os melhores subam mais.<br />

Embora seja o normal, nem sempre<br />

isso ocorre.<br />

Mas, em atenção ao princípio de<br />

que o homem não deve discutir os<br />

seus superiores, a não ser quando se<br />

trata de uma colisão contra a Doutrina<br />

Católica e a Lei de Deus — neste<br />

caso é preciso não obedecer, por-<br />

22


que a Doutrina Católica e a Lei<br />

de Deus estão acima de tudo —,<br />

ele precisa submeter-se e obedecer,<br />

mesmo vendo que aquele<br />

que manda é menos, sabe menos.<br />

Porque se cada um começar<br />

a discutir o superior, tudo se desagrega.<br />

Ao menos atendendo ao<br />

superior, ainda que menos capaz,<br />

uma obra comum se realiza.<br />

É uma espécie de requinte,<br />

uma sublimidade da obediência.<br />

E até lá, em inúmeros episódios,<br />

os jesuítas da época áurea manifestaram<br />

o seu espírito de obediência.<br />

Maravilhoso fato<br />

ocorrido com Santa<br />

Teresa de Ávila<br />

S. Hollmann<br />

Compreende-se assim que<br />

membros de nosso Movimento,<br />

especialmente filhos da obediência<br />

— a expressão é de Santa<br />

Teresa de Jesus, que era filha da<br />

obediência —, gostem de um trecho<br />

de Santo Inácio de Loyola que passarei<br />

a comentar. São as normas que<br />

ele deixou para um jesuíta e que estão<br />

no testamento do Santo.<br />

Desde que um jesuíta entra na Ordem,<br />

seu primeiro cuidado será abandonar-se<br />

plenamente ao governo de<br />

seu superior.<br />

Quer dizer, não discutir, não analisar,<br />

seguir inteiramente o que o superior<br />

mandar. O superior é uma necessidade;<br />

pela ordem natural das<br />

coisas ele ali está representando<br />

Deus. A única coisa aonde a obediência<br />

não chega é aceitar a heterodoxia<br />

ou o mal.<br />

Segundo: se um jesuíta caísse nas<br />

mãos de um superior que dominasse<br />

seu juízo, seria desejável que ele estivesse<br />

inteiramente disposto a isso.<br />

Quer dizer, se um jesuíta estiver<br />

nas mãos de um superior menos<br />

competente, o qual lhe fizesse pensar<br />

uma determinada coisa, ele deve<br />

obedecer.<br />

Santa Teresa - Zurbarán, Catedral<br />

de Sevilha (Espanha).<br />

Ele não se deixou<br />

vergar por nenhum<br />

poder da Terra,<br />

falou com a cabeça<br />

erguida e com divina<br />

e vigorosa altaneria<br />

contra todos os<br />

grandes da Sinagoga<br />

e do Império<br />

Romano.<br />

Conhecemos esse fato maravilhoso,<br />

na vida de Santa Teresa de Jesus:<br />

inverno rigoroso, nada se planta; sua<br />

superiora lhe diz: “Irmã Teresa, vá<br />

ao jardim e plante esses aspargos de<br />

cabeça para baixo.”<br />

Era uma asnice, mas não um pecado.<br />

Tratava-se de uma ação de si<br />

indiferente. Ela vai ao jardim e planta<br />

os aspargos de modo errado, e no<br />

prazo adequado, apesar do inverno,<br />

os aspargos vicejam maravilhosamente.<br />

A bênção de Deus tinha<br />

caído sobre a obediência. E<br />

houve um milagre para provar<br />

quanto Deus gosta daqueles que<br />

sacrificam sua opinião ao modo<br />

de pensar dos superiores.<br />

É o oposto do durão que tem<br />

quinze objeções e, depois de<br />

vencidas essas objeções, vem<br />

com mais três ou quatro ininteligíveis,<br />

as quais são o último recurso<br />

que ele emprega para recalcitrar<br />

de todo jeito. E quando<br />

obedece resmunga, e executa<br />

o serviço ordenado de modo<br />

malfeito.<br />

Aqui é o contrário. Deve haver<br />

inteira placidez nas mãos do<br />

superior, que manda aquilo que<br />

o jesuíta deve fazer.<br />

Terceiro ponto: em todas as<br />

coisas onde não há pecado, é preciso<br />

que eu siga o juízo do superior<br />

e não o meu.<br />

É o mesmo princípio.<br />

Três modos de obedecer<br />

Quarto ponto: há três maneiras de<br />

obedecer. A primeira quando fazemos o<br />

que nos é mandado em virtude da obediência.<br />

E essa maneira é boa. A segunda,<br />

que é melhor, quando obedecemos<br />

a simples ordens. A terceira e a mais<br />

perfeita de todas, quando não esperamos<br />

a ordem do superior, mas a prevemos<br />

e adivinhamos a sua vontade.<br />

Numa Ordem Religiosa, na era<br />

clássica, quando um superior, em nome<br />

da santa obediência, mandava um<br />

religioso fazer alguma coisa dizia-lhe:<br />

“Ajoelhe-se porque o senhor vai receber<br />

uma ordem em nome da santa<br />

obediência.” Parece que na Companhia<br />

de Jesus a fórmula, lindíssima,<br />

era esta: “Pela graça e pelo amor de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.” Isso significava<br />

que o inferior ia receber uma<br />

ordem em nome da santa obediência.<br />

Ajoelhava-se e o superior dava uma<br />

ordem. Se esta fosse negligenciada,<br />

23


Revolução e Contra-Revolução<br />

S. Hollmann<br />

cometia um pecado mortal. Portanto<br />

tinha que ser cumprida, custasse o<br />

que custasse. Esse tipo de ordem se<br />

fazia de modo relativamente raro, somente<br />

quando o inferior se encontrava<br />

em estado de revolta.<br />

Mas há um outro modo mais corrente,<br />

conforme o qual o superior<br />

simplesmente afirma: “Padre Fulano,<br />

o senhor agora vai fazer tal coisa.”<br />

A violação de uma ordem assim<br />

não implica em pecado mortal, mas<br />

em pecado venial, às vezes em simples<br />

falta, mas era uma atitude contra<br />

a obediência.<br />

Existe um terceiro modo de obediência,<br />

pelo qual o súdito adivinha<br />

o que o superior quer e vai fazer antes<br />

de ser mandado. Então, conforme<br />

Santo Inácio de Loyola, é bom obedecer<br />

acuado entre a espada e a parede;<br />

Santa Teresinha - Catedral<br />

de Baiona, França.<br />

melhor é obedecer apenas com uma<br />

ordem que não é tão imperativa; mas<br />

o ideal é ter o espírito feito de tal maneira<br />

que, antes mesmo de o superior<br />

dizer o que quer, o religioso obedece.<br />

Santa Teresinha obedecia<br />

a uma superiora<br />

cheia de caprichos<br />

Para entendermos o pleno sentido<br />

de tudo isso, devemos imaginar a época<br />

de Santo Inácio, São Francisco Xavier,<br />

São Francisco de Borja, o qual<br />

foi Geral da Companhia de Jesus.<br />

Suponhamos Santo Inácio, em<br />

seu convento, rezando, pensando,<br />

dando ordens, tudo em virtude de<br />

uma doutrina altíssima, sublimíssima,<br />

bem como de visões e revelações<br />

que ele recebia de Deus Nosso<br />

Senhor. É sabido que os “Exercícios<br />

Espirituais” lhe foram ditados por<br />

Nossa Senhora, na gruta de Manresa.<br />

Ele era um homem que difundia<br />

em torno de si o sobrenatural. O<br />

que devia fazer o bom súdito? Compreender<br />

o espírito, a mentalidade, a<br />

doutrina de Santo Inácio, de maneira<br />

que antes mesmo de este falar já<br />

entendia o que ele queria, e executava<br />

a vontade do Santo. O súdito se<br />

tornava, assim, um outro Santo Inácio.<br />

E o espírito de Santo Inácio se<br />

transmitia para ele, mais ou menos<br />

como o espírito de Elias passou para<br />

Eliseu.<br />

Consideremos, por exemplo, Santa<br />

Teresinha tendo que prestar obediência<br />

a uma superiora que deixava<br />

muito a desejar, como era a sua.<br />

São duas situações em que se obedece<br />

em condições completamente<br />

diferentes. Qual é a obediência<br />

mais bonita? A de um súdito de Santo<br />

Inácio que, olhando enlevado para<br />

o Santo e procurando haurir seu<br />

espírito, ser outro ele mesmo, procura<br />

adivinhar o que Santo Inácio<br />

quer? Ou a de uma Santa Teresinha<br />

do Menino Jesus diante da superiora,<br />

como Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

no Pretório de Pilatos, e carregando<br />

de forma invisível, por cima do véu<br />

de religiosa, uma verdadeira coroa<br />

de espinhos?<br />

Realmente não sabemos, mas vemos<br />

a beleza dos dois estilos, dos<br />

dois modos de obediência, e como<br />

em todas as circunstâncias a obediência<br />

é uma verdadeira maravilha.<br />

Obedecer não apenas<br />

ao superior, mas aos<br />

que ocupam escalões<br />

intermediários<br />

São maravilhas da obediência que<br />

o mundo revolucionário não conhece,<br />

e sobre as quais é construído o mundo<br />

contrarrevolucionário. Isto arrepia<br />

um revolucionário e ao mesmo tempo<br />

o acachapa, porque com sua independenciazinha,<br />

sua liberdadezinha,<br />

ele fica tão pequeno como uma pulga<br />

insignificante e suja. E nós, diante da<br />

grandeza dessas duas situações extremas,<br />

compreendemos bem o esplendor<br />

da Contra-Revolução.<br />

Quinto ponto: deve obedecer indiferentemente<br />

a toda espécie de superiores,<br />

sem distinguir o primeiro do segundo,<br />

nem do último, mas considerar<br />

em todos igualmente a Nosso Senhor,<br />

de que eles ocupam o lugar, e<br />

lembrar-se de que a autoridade se comunica<br />

ao último por aqueles que estão<br />

acima dele.<br />

O pensamento contido nesse princípio<br />

é o seguinte: no alto da pirâmide<br />

está Santo Inácio de Loyola; numa<br />

porção de escalões inferiores há menos<br />

santos e menos Inácios. É fatal. E<br />

no nível mais baixo estaria aquele que<br />

corresponderia ao sargento dentro de<br />

uma instituição militar. Mas é preciso<br />

obedecer, porque, diz ele, a autoridade<br />

que está acima se comunica pelos<br />

inferiores. Nada de querer obedecer<br />

somente àquele que está no mais alto,<br />

mas, pelo contrário, sempre fazer<br />

tudo de acordo com as demais autoridades<br />

que estão abaixo. O único mo-<br />

24


do de fazer a vontade dos superiores<br />

é obedecer aos que estão<br />

em baixo.<br />

São Charbel<br />

Mackhluf e o caso<br />

da lamparina<br />

R. Cordón.<br />

Lembro-me de um fato<br />

que faz parte da obediência,<br />

no sentido de que o súdito<br />

não somente deve cumprir<br />

o que manda o superior, mas<br />

também receber sem protesto<br />

as punições por ele impostas,<br />

mesmo quando essas punições<br />

são injustas ou pitos insultantes<br />

que, em tese, o inferior não<br />

tem a obrigação de aceitar. É<br />

uma das formas de obediência:<br />

a paz e a serenidade diante da<br />

repreensão injusta.<br />

Li a biografia, que é uma<br />

verdadeira maravilha, de São<br />

Charbel Mackhluf, monge<br />

oriental do rito maronita. Ele<br />

vivia em um convento situado<br />

num dos montes do Líbano,<br />

cujos religiosos se dedicavam<br />

à oração e a algum trabalho manual,<br />

como fazer cestinhas e objetos<br />

análogos, no silêncio mais completo.<br />

Ele era um homem tão obediente<br />

que pedia licença para tudo. E nessa<br />

tebaida santíssima seu superior tinha<br />

raiva de São Charbel. Às vezes, este<br />

ia pedir uma ordem para o superior,<br />

que lhe dizia o seguinte: “Será possível<br />

que o senhor seja tão imbecil que<br />

não saiba resolver isso por si? E precisa<br />

vir me pedir uma ordem?”<br />

Imaginemos São Charbel de capuz,<br />

alto, de barba grande, fisionomia<br />

tranquila e recolhida, e com<br />

a cabeça baixa. Depois de receber<br />

uma descompostura, ele olhava para<br />

o superior, à espera da ordem, porque<br />

o regulamento assim o exigia. O<br />

superior afinal dava uma ordem, e<br />

São Charbel saía para cumpri-la.<br />

Era um homem indomável. Pois<br />

homens que sabem obedecer são<br />

São Charbel Mackhluf.<br />

indomáveis. No primeiro convento<br />

onde ele havia ingressado, nunca<br />

era permitido a entrada de mulher.<br />

Certo dia, por uma razão qualquer,<br />

entraram algumas mulheres<br />

lá. O fato se repetiu duas ou três vezes.<br />

Sem dar satisfação a ninguém,<br />

São Charbel mudou-se para outro<br />

convento. Era um direito natural<br />

que ele exercia: “Eu vim aqui para<br />

me santificar; a regra foi infringida<br />

e minha salvação eterna está comprometida<br />

com esse fato. Aqui está<br />

meu direito: saio deste convento e<br />

vou para outro.”<br />

Indomável! Mas de outro lado,<br />

era o mais domável dos homens. Depois<br />

de passar anos debaixo das descomposturas<br />

desse superior, uma<br />

noite ele se lembrou de que lhe faltava<br />

uma parte do Breviário para rezar.<br />

Evidentemente não era meia-<br />

-noite ainda.<br />

Ele se dirigiu à capela para<br />

rezar e depois foi à sua cela para<br />

terminar as orações, levando<br />

um pouco de fogo. Chegando<br />

lá, viu que não tinha azeite<br />

na lamparina, mas apesar disso<br />

acendeu-a e continuou a rezar.<br />

Era tarde da noite, todos já<br />

recolhidos, e o superior, vendo<br />

a luz acesa na cela de São<br />

Charbel, foi para lá rugindo<br />

de raiva. Porque pessoas assim<br />

são a favor de todas as liberdades,<br />

exceto da liberdade de alguém<br />

rezar mais ou fazer mais<br />

penitência. Bateu na porta e<br />

entrou.<br />

— Que é isto? Luz acesa a<br />

esta hora, onde é que se viu?<br />

O Santo quieto.<br />

— Explique-me qual a razão,<br />

porque nesta hora todos<br />

já devem estar recolhidos.<br />

— Padre, eu vos peço desculpas,<br />

mas o dia inteiro, pela<br />

ordem de Vossa Paternidade,<br />

eu estive trabalhando e só agora<br />

encontrei tempo para rezar<br />

o Breviário.<br />

— Rezar o Breviário?! E como<br />

conseguiu azeite para a sua lamparina?<br />

De onde o retirou?<br />

Respondeu São Charbel:<br />

— Padre, a lamparina não tem<br />

azeite, está cheia de água.<br />

O superior viu a mecha da lamparina<br />

ardendo na água e apenas disse<br />

o seguinte: “Reze por mim.” Saiu e<br />

fechou a porta.<br />

Aquela era a chama da obediência,<br />

ardendo até na água. São os milagres<br />

da obediência.<br />

Temos assim a explicação profunda<br />

a respeito desta obediência que<br />

nós, como contrarrevolucionários,<br />

devemos amar tanto. v<br />

1) Fl 2,8.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 13/11/1971)<br />

25


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Uma conversa de Jesus…<br />

Imaginando a vida quotidiana de Jesus, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> realiza<br />

como a Alma de Nosso Senhor se elevava<br />

às mais altas cogitações, sem entretanto abandonar<br />

a proporção normal de um homem.<br />

S. Miyazaki<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1991.<br />

Suponhamos que o Redentor<br />

estivesse descansando em<br />

casa de Lázaro; Ele comia<br />

e mantinha uma conversa normal,<br />

quer dizer, propriamente conversa à<br />

bâton rompu.<br />

Nosso Senhor deveria dar um discreto<br />

valor à comida. Então, nesta<br />

perspectiva, como seria o trato com<br />

Ele, que impressão causaria?<br />

Parece-me que todas as suas expressões<br />

seriam sumamente coerentes<br />

umas com as outras, em que o<br />

olhar, a voz, os gestos, o porte, a atitude<br />

da cabeça e o modo de se dirigir<br />

às pessoas, ou de ouvir o que elas Lhe<br />

falavam, tudo isto deveria apresentar<br />

um unum perfeito, dando a ideia de<br />

uma harmonia completa. De maneira<br />

que Jesus devia causar aquela impressão<br />

vitorina de emoção estética<br />

total, porém ainda mais alta porque<br />

não era só a estética física, mas através<br />

desta, a estética psicológica, moral.<br />

Quer dizer, com uma proporção,<br />

uma beleza perfeita, e a Alma que se<br />

via por detrás era incomparável, causando<br />

a impressão de se tocar no divino,<br />

no inefável, embora não fosse<br />

a visão beatífica. Era propriamente a<br />

ética estética total.<br />

Figuremos Nosso Senhor à mesa,<br />

comendo um cordeiro que Lhe<br />

tivessem preparado. Ele faz um comentário<br />

qualquer: “Este cordeiro<br />

foi alimentado com tal coisa assim,<br />

na perspectiva de nosso encontro.”<br />

E alguém diz: “Aliás, foi difícil laçá-<br />

-lo, o cordeiro saltava muito”, e conta<br />

que o cordeiro pulou do colo de<br />

um escravo para fugir. E o Redentor,<br />

na sua natureza humana, ouve entretido<br />

a narração desse fato.<br />

E no entretenimento veríamos<br />

aquela espécie de bondade, do enormemente<br />

maior que sente coesão e<br />

continuidade com o tema pequeno, e<br />

não julga que este seja indigno d’Ele.<br />

Pelo contrário, Nosso Senhor, tomando<br />

conhecimento do fato, compreenderia.<br />

Durante a conversa se perceberia<br />

que ora sua humanidade santíssima<br />

transparecia mais, quer dizer, subia<br />

em considerações comunicadas pela<br />

natureza divina, ora transparecia menos,<br />

mantendo, entretanto, uma proporção<br />

com a conversa. De maneira<br />

que no ambiente havia um fundo discreto,<br />

que não convidava a fazer Teologia,<br />

mas a sentir o tema concreto do<br />

cordeirinho, túmido de outras coisas<br />

nas quais o Redentor não entrava, mas<br />

apenas — para usar uma expressão<br />

que não indica bem o que eu quero dizer<br />

— aromatizava. Ele punha molho<br />

naquilo, mas não deslocava o assunto,<br />

e a conversa continuava caseira.<br />

26


S. Hollmann<br />

Noção divina das<br />

correlações<br />

Jesus pregando a seus discípulos - Lisieux, França.<br />

Notar-se-ia a transição suave,<br />

harmônica da Alma do Divino Mestre<br />

para o mais elevado, com lampejo<br />

do mais alto, e depois voltar ao<br />

comum, a propósito das várias coisas<br />

tratadas na conversação. Uma flexibilidade<br />

de alma e uma noção divina<br />

das correlações: o modo pelo qual<br />

um tema encaixa, imbrica com outro;<br />

o valor simbólico das coisas; tudo<br />

posto tão bem, e correlacionado<br />

com tanta suavidade, harmonia, facilidade<br />

— todas as palavras são impróprias<br />

para falar d’Ele, por causa<br />

da excelsitude —, com tanto dégagé,<br />

que nossa alma ficaria simplesmente<br />

encantada de sentir os espaços interplanetários<br />

que separam um assunto<br />

do outro, transpostos por Nosso Senhor<br />

com tanta facilidade e conduzidos<br />

de um lado para outro com uma<br />

naturalidade, sem deixar as pessoas<br />

propriamente — note-se bem — extasiadas<br />

e fora do teor da conversa<br />

privada.<br />

O êxtase viria pouco depois que o<br />

Redentor tivesse ido embora, quando<br />

as pessoas se sentissem sem Ele<br />

e percebessem o diferente de tudo.<br />

Teriam vontade de dizer: “Por que<br />

Há quem julgue que<br />

as pequenas coisas<br />

da vida de Nosso<br />

Senhor são impróprias<br />

de serem contadas,<br />

porque toldam<br />

a atmosfera dos<br />

grandes momentos.<br />

Pelo contrário,<br />

elas constituem<br />

uma espécie de<br />

continuidade com os<br />

grandes momentos.<br />

fiquei aqui e não fui atrás de Jesus,<br />

uma vez que viver é estar ao lado<br />

d’Ele?” E se alguém levanta um assunto<br />

prático, nem se interessam.<br />

Todo mundo está discretamente<br />

deliciado, mas é uma autêntica conversa<br />

doméstica, na superfície.<br />

As várias teclas<br />

através das quais Jesus<br />

tratava os assuntos<br />

O melhor dessa conversa seria os<br />

momentos nos quais se percebia que<br />

a Alma de Nosso Senhor tocava nas<br />

mais altas cogitações. Era um olhar,<br />

um timbre de voz, talvez um comentário<br />

ligeiro, deixando entrever outras<br />

ideias, mas sem nada da indireta<br />

de salão, que é trabalhosa, porque<br />

nada disto deve ser imaginado trabalhoso.<br />

Tudo normal, magnífico e facílimo,<br />

que é o próprio d’Ele, evidentemente.<br />

E as pessoas ficavam verdadeiramente<br />

maravilhadas pelo seguinte<br />

aspecto, entre mil outros: sentir como<br />

Jesus tomava o tamanho das várias<br />

teclas por onde fosse tratando<br />

os assuntos; quando falava de um tema<br />

comum, Ele tinha uma proporção<br />

do auge da beleza daquilo, deixando<br />

apenas entrever muito vagamente<br />

outros auges, que na Alma de<br />

Nosso Senhor residiam.<br />

Quando Ele falava apenas de raspão<br />

do maior dos assuntos, sentiriam<br />

que tratava aquilo de igual a igual. De<br />

27


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Em qualquer dos estágios se notaria<br />

a tristeza, a seriedade, a promaneira<br />

que aquele Homem, há pouco<br />

tempo tão igual aos outros, de repente<br />

aparecia como num píncaro de<br />

uma montanha, mas por instantes, e<br />

logo depois estava de novo misturado<br />

com as pessoas. Em seguida, tratando<br />

de alguma coisinha, o Divino Mestre<br />

ficava de tal maneira comprazido,<br />

condescendido, que se diria que Ele<br />

descia até a coisa e esta se elevava até<br />

Ele. Por exemplo, se enquanto Nosso<br />

Senhor falava entrasse um passarinho<br />

na sala — aquelas salas eram muito<br />

abertas — e pousasse perto d’Ele,<br />

sem milagres, cena comum, o Redentor<br />

acharia graça em ver o passarinho<br />

comer uma migalha de pão.<br />

Ele sorriria com isto, de tal modo<br />

que tudo aquilo que simboliza o passarinho<br />

comer a migalha de pão se perceberia<br />

que Ele relaciona com o mais<br />

alto, mas achava interessante ver o<br />

mais elevado enquanto simbolizado no<br />

menor. Não é de nenhum modo, portanto,<br />

efetuar uma abstração, e passar<br />

a fazer Filosofia ou Teologia, mas comprazer-se<br />

em ver o mais alto simbolizado,<br />

alojado, se quiserem, dentro do<br />

menor e como que um com o menor.<br />

Então, Jesus diria uma palavra<br />

encantadora qualquer, mas também<br />

não de arrebentar.<br />

Insinuando que era<br />

o Cordeiro de Deus<br />

De repente, a respeito do cordeiro,<br />

tema da conversa, Nosso Senhor<br />

faz uma insinuação de que Ele era o<br />

Cordeiro de Deus, um dia seria morto,<br />

e que todos se preparassem. Mas,<br />

digamos, durante a conversa, talvez<br />

falasse disso uma só vez.<br />

Os Evangelhos não fazem referência<br />

a uma conversa assim. Acho<br />

que cinco quintilhões de livros não<br />

dariam para registrar uma conversa<br />

com Ele, porque tudo era memorável,<br />

com o ar mais natural do mundo.<br />

Tenho a impressão de que isto é<br />

muito mais reconstituível pela piedade<br />

do que escrevível e legível.<br />

Então, quando Jesus fizesse tal<br />

afirmação, haveria um frêmito, mas<br />

não à maneira de uma cena renascentista:<br />

uma pessoa se levanta, outra<br />

faz não sei o quê. Não. Todo<br />

mundo continua a conversar. Penetrou-se<br />

até ao fundo, ao extremo de<br />

Nosso Senhor; depois aquilo passa e<br />

fica uma tinta depositada nas almas.<br />

Alegria, seriedade,<br />

tristeza<br />

Jesus dava assim uma noção conjunta<br />

de sua divindade — a conaturalidade<br />

d’Ele com o divino — e a relação<br />

de todas as coisas com Ele, como<br />

se tudo existisse apenas para ser relacionado<br />

com Nosso Senhor. Aqui<br />

está o que eu quereria exprimir, mas<br />

não sei se conseguirei fazê-lo.<br />

Se na sala onde<br />

Nosso Senhor<br />

estivesse comendo<br />

entrasse uma brisa<br />

refrigerante, Ele faria<br />

um comentário, com<br />

um gáudio apenas<br />

insinuado; aquele<br />

zéfiro era apenas<br />

um símbolo de uma<br />

alegria fulgurante: a<br />

visão beatífica.<br />

Tal era seu modo de ser que se notaria<br />

uma hierarquia de valores harmônica<br />

e sumamente bem encaixada,<br />

procedente do mais alto, com uma<br />

gravidade extraordinária e uma luminosidade<br />

impossível de ser qualificada;<br />

e descendo depois degrau por degrau,<br />

de maneira que em cada degrau<br />

por onde passasse, a Alma d’Ele deitasse<br />

outro reflexo de si mesma, mas<br />

não se sentisse esgotada; manifestando-se<br />

nos mais altos e deitando um<br />

reflexo novo e adequado em cada<br />

degrau menor até o último, formando<br />

propriamente no contraste entre<br />

o maior e o menor e todos os pontos<br />

intermediários, certa forma de imbricamento<br />

e de harmonia que fosse<br />

no mais alto cheia de gravidade e,<br />

ao mesmo tempo, de uma felicidade<br />

transbordante. Jesus não devia irradiar<br />

só tristeza; de vez em quando Ele<br />

transluzia um fulgor de felicidade.<br />

Se, por exemplo, na sala onde Nosso<br />

Senhor estivesse comendo entrasse<br />

uma brisa refrigerante, Ele faria<br />

um comentário, com um gáudio apenas<br />

insinuado; aquele zéfiro era apenas<br />

um símbolo de uma alegria fulgurante:<br />

a visão beatífica. Mas tudo nas<br />

proporções de uma conversa comum;<br />

não são de nenhum modo os grandes<br />

momentos do Evangelho, mas os momentos<br />

normais da vida d’Ele.<br />

Então haveria esse entrelaçamento<br />

de alto a baixo. No alto, a alegria<br />

esplendorosa e seriedade enorme,<br />

acompanhada de uma tristeza noturna,<br />

que era uma espécie de prenúncio<br />

do Calvário.<br />

Nos graus intermediários, a conaturalidade<br />

com o homem: a seriedade,<br />

as alegrias e as tristezas proporcionais<br />

a nós. E nos graus menores,<br />

a alegria de todas as coisas pequenas<br />

e graciosas com aquela forma de dor<br />

e de sofrimento própria da inocência<br />

da criança.<br />

E notar isto passando de um lado<br />

para outro daria uma espécie de<br />

noção de hierarquia, como nenhuma<br />

ordem social, nem política, nem estética,<br />

ou qualquer outra pode dar.<br />

Tal noção seria transmitida pela voz,<br />

pelo olhar, pelo modo de ser de Nosso<br />

Senhor, com uma espécie de plenitude<br />

do que o homem deve sentir a<br />

cada momento.<br />

Após a saída de Nosso<br />

Senhor, recordar as<br />

diversas cenas<br />

28


F. Lecaros<br />

porcionalidade e também a alegria,<br />

que a tudo acompanhava. E quando<br />

Jesus saísse, uma pessoa que tivesse<br />

critério se destacaria cuidadosamente<br />

da roda e, andando sozinha<br />

pelo jardim, se sentaria no beiral de<br />

um poço; não faria nenhuma reflexão,<br />

mas deixaria aquelas cenas voltarem<br />

ao seu espírito e, à tardinha,<br />

depois de esgotados os últimos reflexos,<br />

ela começaria a pensar. Ou seja,<br />

muito depois de degustar é que viria<br />

a reflexão.<br />

E no final da reflexão, esta ideia:<br />

“Eu vou deixar tudo e segui-Lo. Não<br />

quero mais saber daquele plano de<br />

passar uma quinzena em Jerusalém<br />

na minha bonita casa. É verdade que<br />

estou precisando comprar uma túnica<br />

nova, mas deixarei isto para depois.<br />

Onde é que Ele está?” E possivelmente<br />

o indivíduo não esperaria a aurora<br />

para ir ao encalço de Nosso Senhor.<br />

Continuidade entre<br />

os pequenos e os<br />

grandes momentos<br />

da vida de Jesus<br />

Embora não escrito, algo disso ficou<br />

transmitido e permanecerá até o<br />

fim do mundo. Sempre que um católico<br />

verdadeiro, um bom professor<br />

de catecismo, um bom sacerdote,<br />

bons pais pronunciam a palavra<br />

“Jesus” ou “Jesus Cristo”, todos esses<br />

imponderáveis, por uma tradição<br />

meio avivada por carismas, continuam<br />

e caminham nesta linha.<br />

Falando a respeito de Jesus, o<br />

protestantismo toca com o piano<br />

quebrado, faltam sempre algumas<br />

notas. O calvinismo faz hipertrofia<br />

da seriedade e o luteranismo da bonomia<br />

d’Ele, não um simples exagero,<br />

mas uma hipertrofia leprosa.<br />

A “heresia branca 1 ” julga que essas<br />

pequenas coisas da vida de Nosso<br />

Senhor são impróprias de serem<br />

contadas, porque toldam a atmosfera<br />

dos grandes momentos. Pelo contrário,<br />

tudo isto está numa espécie<br />

de continuidade com os grandes momentos.<br />

Se de repente Nossa<br />

Senhora entrasse<br />

na sala...<br />

E a cena que eu não ousaria imaginar:<br />

Nossa Senhora entrando de<br />

repente na sala. Quando Ela se dirigia<br />

ao local, Jesus em sua humanidade<br />

acutíssima, capacíssima,<br />

sem revelação dos Anjos nem<br />

manifestação do sobrenatural,<br />

sentiria de longe que Maria Santíssima<br />

para lá caminhava.<br />

Nosso Senhor vai Se iluminando<br />

para a chegada d’Ela, tomando<br />

um ar de quem entra em contato<br />

com a companhia das companhias;<br />

é o mundo inteiro para<br />

Ele. Em certo momento, Ele se<br />

levanta e vai de encontro a Ela.<br />

Também Nossa Senhora já<br />

O pressentiu e, quando Ela se<br />

aproxima, os dois Se olham e Se<br />

saúdam. Mas acho impossível<br />

descrever, eu ao menos não consigo.<br />

Todos os encontros de Jesus<br />

com sua Mãe não são descritíveis.<br />

Ora, só em função da descrição<br />

desses encontros, digamos<br />

comuns, é que se compreende o<br />

relacionamento d’Ele com Ela<br />

durante a Paixão, quando se en-<br />

Durante o jantar na casa<br />

de um fariseu, a pecadora<br />

arrependida chora aos pés de<br />

Jesus - Basílica Santa Catarina<br />

de Alexandria, Galatina (Itália).<br />

29


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

S. Miyazaki<br />

contraram, e até a morte de Nosso<br />

Senhor.<br />

Tenho a impressão de que as sete<br />

palavras d’Ele na Cruz, exceto as<br />

últimas, foram de um sofredor nesta<br />

clave. Mesmo quando Jesus disse:<br />

“Mãe, eis aí teu filho; filho eis<br />

tua Mãe”, o fez com a tal naturalidade<br />

que acabo de referir. Apenas<br />

o último grande brado d’Ele e depois<br />

o ato pontifical — “Meu Pai,<br />

em tuas mãos entrego o meu espírito”<br />

— devem ter sido ditos com<br />

uma solenidade, uma grandeza dentro<br />

do gemido. Aqui seria preciso<br />

mais se tocar música ou pintar do<br />

que falar.<br />

Também a atitude de Nossa Senhora,<br />

creio que se deduz adequadamente<br />

a partir da imaginada conversa<br />

comum.<br />

Nesta Terra, não<br />

devemos querer viver<br />

apenas de apogeus<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1991.<br />

Repito: o convívio quotidiano<br />

com Nosso Senhor era proporcionado<br />

à capacidade receptiva da natureza<br />

humana, como será no Céu.<br />

Digo mais. Acho que há algo de enfermiço<br />

no fato de uma pessoa só se<br />

sentir bem nos apogeus. Na realidade,<br />

devemos ter fome e sede<br />

dos apogeus, mas não<br />

de viver em apogeus,<br />

porque não é de acordo com a<br />

nossa natureza; e estas situações intermediárias<br />

precisam suceder-se<br />

aos apogeus e precedê-los, numa sucessão<br />

que só Deus mede adequadamente.<br />

A Providência gradua através<br />

dos fatos.<br />

Mesmo os encontros<br />

comuns de Jesus<br />

com sua Mãe são<br />

indescritíveis; e é<br />

em função deles<br />

que se compreende<br />

o relacionamento<br />

de ambos durante a<br />

Paixão.<br />

Suponho que no Céu, pela ação<br />

da graça, a alma está elevada a tal<br />

estado que é conatural com ela o pináculo<br />

permanente. Isso se fará de<br />

um modo que não podemos entender,<br />

porque o Paraíso celeste vai ser<br />

infinitamente repousante.<br />

Voltemos ao tema da vida quotidiana<br />

de Nosso Senhor. Se uma pessoa<br />

que tivesse assistido à refeição<br />

de Betânia desta maneira e depois<br />

pensou em Jesus, vendo alguém que<br />

lançasse contra o Divino Salvador<br />

uma ironia ou chacota, sua reação<br />

normal seria a bofetada. Isso só se<br />

compreende devido ao efeito que o<br />

Redentor causou a uma pessoa que<br />

O viu. E a reação dela foi à maneira<br />

da desintegração do átomo.<br />

As perfeições de Nosso<br />

Senhor na mais eleita<br />

das criaturas<br />

Toda criatura, individualmente,<br />

é incapaz<br />

de refletir adequadamente<br />

todas<br />

as perfeições<br />

de Deus. Daí a necessidade de haver<br />

várias criaturas, como sabemos.<br />

E a recíproca disto é que Deus<br />

não pode, nesta Terra e nesta ordem,<br />

fazer aparecer todas as suas perfeições<br />

aos homens num grau que<br />

vá além do que a natureza humana<br />

comporte, porque, por assim dizer,<br />

lota demais as pupilas dos olhos.<br />

Por causa disto, há certas perfeições<br />

em Nosso Senhor que, sem dúvida,<br />

se notam n’Ele, mas com a seguinte<br />

circunstância: se o Redentor<br />

fizesse perceber mais ainda, o<br />

olhar humano como que estalaria.<br />

Então, Ele faz notar estas perfeições<br />

na mais eleita de suas criaturas.<br />

E esta criatura é como que um<br />

desmembramento — como que, entenda-se<br />

bem, porque é uma criatura,<br />

não o Criador —, um suplemento<br />

de Nosso Senhor, fazendo notar algo<br />

que no texto principal não caberia<br />

pela diminuição de olho do indivíduo<br />

que lê.<br />

Então, tudo quanto se diz de maravilhoso<br />

sobre a bondade de Nossa<br />

Senhora, seu amor materno, seu<br />

ódio ao mal — entretanto não é a<br />

principal missão d’Ela, ao longo da<br />

História, exprimir este ódio, mas a<br />

bondade materna, a afetividade —<br />

e cem outras coisas, tudo isto Maria<br />

Santíssima, como que, exprime<br />

em separado de Nosso Senhor,<br />

num grau menor do que Ele, forçosamente,<br />

mas insondável para nosso<br />

olhar, para termos uma ideia ainda<br />

mais global do que é Jesus. Tudo<br />

quanto estou dizendo aqui fica naturalmente<br />

sujeito ao julgamento da<br />

Teologia.<br />

Parece-me que, de algum modo,<br />

olhando-se para Ela, veem-se excelências<br />

que não se percebem tão claramente<br />

n’Ele.<br />

Entretanto, como pintá-las? Em<br />

que grau? De que modo? Sob que<br />

formas? No momento eu quase não<br />

teria o que dizer, porque são de algum<br />

modo coisas quintessenciadas<br />

de Nosso Senhor, as quais, não per-<br />

G. Kralj<br />

30


mitindo que apareçam tão claramente,<br />

Ele as exprime por meio de um<br />

ser inferior, o qual, por mais alto que<br />

seja, é uma criatura.<br />

Correlação entre<br />

a Cristologia e a<br />

Mariologia<br />

Seria preciso tomar uma clave<br />

em extremo delicada para considerar<br />

a relação exatamente em<br />

sua nota, pois na verdade nenhuma<br />

meditação cristológica poderia<br />

ser feita em completo sem uma<br />

espécie de superposição de Nossa<br />

Senhora; sobretudo nenhuma meditação<br />

mariológica seria adequadamente<br />

feita sem ter a Ele como<br />

fundo de tudo quanto se dissesse.<br />

E à falta de estabelecer essa correlação,<br />

tornam-se muitas vezes pobres<br />

a Cristologia e a Mariologia<br />

na piedade popular,<br />

A Santíssima Virgem é, sob certo<br />

ponto de vista, o lago no qual se<br />

mira o castelo. Toda a beleza que o<br />

lago mostra, de fato reside no castelo,<br />

mas a pulcritude da água se soma<br />

para embelezar a figura do castelo.<br />

Pode-se dizer também que, de<br />

certo modo, a pulcritude da criatura<br />

se soma à do Criador, mas a desproporção<br />

é muito maior, evidentemente.<br />

Aqui está a imagem da piedade<br />

como nós a entendemos. Quer dizer,<br />

densa de reflexão e inteiramente<br />

equilibrada, em que o homem<br />

não precisa se espremer para<br />

adquirir piedade, mas ele se põe na<br />

boa natureza que Deus lhe deu, na<br />

tranquilidade e no bem-estar de<br />

sua alma.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 2/5/1978)<br />

Jesus é descido da Cruz - Paróquia Santa<br />

Maria Madalena, Sevilha (Espanha).<br />

1) Ver nota 1 no artigo “São Vicente de<br />

Paulo, perfeita harmonia de espírito”,<br />

página 17.<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

A Idade Média em todo<br />

Ávila, em Espanha, onde<br />

nasceu a grande Santa Teresa<br />

de Jesus, é uma maravilhosa<br />

cidade medieval.<br />

É muito agradável, ao contemplar<br />

a cidade durante a noite, notar<br />

o contraste entre a cidade que dorme<br />

— lembrando uma vida calma,<br />

tranquila, pacata, sem as excitações<br />

da vida contemporânea, séria, mas<br />

ao mesmo tempo cheia de bonomia<br />

— e a muralha magnificamente iluminada,<br />

onde se nota a beleza do gótico<br />

e do medieval.<br />

A iluminação faz sentir muito a<br />

força da muralha e qualquer coisa<br />

de épico, de heroico que nela existe.<br />

Imaginamos de bom grado essa muralha<br />

e os muros que ligam as torres<br />

guarnecidos de guerreiros, com couraças,<br />

elmos, estandartes, instrumentos<br />

de música e que ali estão postados<br />

para homenagear algum personagem<br />

ilustre que chega, ou para receber<br />

na ponta da lança adversários<br />

que podem querer tomar Ávila. Essas<br />

muralhas falam de toda a beleza<br />

da firmeza de alma, da coerência, da<br />

seriedade e da sacralidade. Está tudo<br />

representado aí, de um modo verdadeiramente<br />

magnífico. Em suma,<br />

é a Idade Média.<br />

Em ambos os aspectos há muita<br />

harmonia. Temos a guerra e o direito,<br />

a legítima defesa de uma população<br />

que na guerra é protegida,<br />

a quem suas muralhas amparam, e<br />

por isso pode tranquilamente dormir.<br />

A muralha garante o sono, como<br />

o guerreiro garante a ordem, o<br />

direito e a paz. É verdadeiramente<br />

esplendoroso.<br />

32


o seu esplendor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> contempla a cidade de Ávila durante sua viagem à Europa, em 1988.<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

Nessa síntese entre a guerra e a<br />

paz, o direito e a luta, o repouso e<br />

a batalha, há algo de síntese celeste<br />

que nos deixa verdadeiramente maravilhados.<br />

É a Idade Média em todo<br />

o seu esplendor.<br />

Devemos notar que suas muralhas<br />

foram construídas com preocupação<br />

exclusivamente estratégica.<br />

Quer dizer, o intervalo entre as torres<br />

não foi feito com o objetivo de ficarem<br />

bonitas, mas calculado para<br />

que o adversário atacante pudesse<br />

ser atingido de vários lados. Primeiro,<br />

pela reação que vem dos defensores<br />

do muro. Depois, dos defensores<br />

das torres, de maneira que se torna<br />

difícil tomar as muralhas.<br />

A torre é muito mais forte do que<br />

o muro. Ela se defende por si mesma.<br />

E pelo seu feitio redondo, ela<br />

de certo modo dispersa o adversário.<br />

Por outro lado, o muro, que é<br />

mais fraco, fica defendido pela muralha.<br />

Tudo foi estritamente calculado<br />

de acordo com o necessário e ficou<br />

lindo. Ao contrário do que se faria<br />

hoje, a forma da muralha é meio<br />

indecisa, não retilínea, e abrange como<br />

uma cintura o povoado que está<br />

dentro.<br />

Tem-se a impressão de que cada<br />

torre é uma garra que segura o monte<br />

e domina a terra; é uma verdadeira<br />

beleza.<br />

Com a solidez de suas portas, a<br />

entrada da cidade estava bem protegida.<br />

E com que robustez! Tratava-se<br />

de duas portas, uma frente à<br />

outra, que protegiam a passagem.<br />

Quem conseguisse entrar — debaixo<br />

de uma saraivada de pedras, de azeite<br />

fervente, etc. — esbarrava com a<br />

outra porta, onde havia outro passadiço<br />

para jogar pedras e flechas sobre<br />

os atacantes.<br />

Muitas vezes, quando o adversário<br />

passava pela primeira porta, des-<br />

cia uma grade e ele ficava encurralado,<br />

porque não podia mais voltar<br />

para trás. E aí era pancadaria grossa.<br />

Compreendemos o senso de defesa<br />

que isso traduzia.<br />

No topo da muralha estão as<br />

ameias, tão bonitas! Tudo estritamente<br />

técnico. Um homem lançava<br />

uma flecha e, quando o assaltante<br />

respondia com outra flecha, ele ficava<br />

escondido. Percebendo que o inimigo<br />

estava mais ou menos desprotegido,<br />

dava nova flechada.<br />

Compreende-se o quanto era duro<br />

invadir uma cidade assim. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 2/5/1972)<br />

34


Tem-se a impressão de<br />

que cada torre é uma<br />

garra que segura o monte<br />

e domina a terra; é uma<br />

verdadeira beleza.<br />

Diversos aspectos<br />

de Ávila<br />

35


Imaculada Conceição -<br />

Yaguaron, Paraguai.<br />

N<br />

este exílio, em meio à<br />

humanidade corrompida,<br />

aparece uma criatura<br />

concebida sem pecado original, um<br />

lírio de incomparável formosura que<br />

deveria alegrar os coros angélicos e a<br />

Terra inteira.<br />

Nossa Senhora trazia consigo<br />

todas as perfeições naturais que<br />

dentro de uma mulher possam caber:<br />

uma personalidade riquíssima,<br />

preciosíssima, valiosíssima. Se a<br />

isso tudo juntarmos os tesouros das<br />

graças que vinham com Ela — as<br />

maiores que Deus Nosso Senhor<br />

tenha concedido a alguém, graças<br />

verdadeiramente incomensuráveis<br />

—, compreenderemos então o que<br />

representa o advento de Maria<br />

Santíssima ao mundo.<br />

O nascer do Sol é uma realidade<br />

pálida em relação à entrada de<br />

Nossa Senhora nesta Terra. Os mais<br />

grandiosos fenômenos da natureza,<br />

mesmo os que representem algo de<br />

precioso e inestimável, nada são em<br />

comparação com isso; a entrada mais<br />

solene que se possa imaginar de um<br />

rei ou de uma rainha em seu reino,<br />

ainda é nada em confronto com esse<br />

advento.<br />

(Extraído de conferência de<br />

8/9/1963)<br />

D. Iallorenzi

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