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Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>162</strong> Setembro de 2011<br />
É livre<br />
quem obedece!
Intérprete incomparável<br />
da Santa Igreja<br />
Q<br />
uando comecei a abrir os olhos para a<br />
Igreja Católica, vi que ela era divina;<br />
aceitei-a como tal e como infalível.<br />
Dona Lucilia teve um valoroso papel nessa<br />
compreensão, pois eu percebia inúmeras<br />
afinidades entre a alma dela e o espírito da<br />
Igreja.<br />
Naturalmente, desde logo se tornou claro<br />
em meu espírito que o padrão da verdade não<br />
era Mamãe, mas sim a Igreja; porém, muitas<br />
das explicações sobre a Doutrina Católica<br />
eu entendia porque interpretava à luz do que<br />
eu via em Dona Lucilia e aprendia dela.<br />
Quer dizer, ela foi uma intérprete incomparável<br />
da Igreja para mim.<br />
(Extraído de Conferência de 29/11/1981)<br />
Fotos: J. Dias; V. Toniolo.<br />
Em destaque, Dona Lucilia, poucos<br />
meses antes de sua morte; ao fundo,<br />
Basílica de São Pedro - Vaticano.<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>162</strong> Setembro de 2011<br />
Ano XIV - Nº <strong>162</strong> Setembro de 2011<br />
É livre<br />
quem obedece!<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
no ano de 1993.<br />
Foto: S. Miyazaki.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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ao Assinante<br />
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Editorial<br />
4 A tirania do igualitarismo e a liberdade da obediência<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 Setembro de 1928<br />
Encontro com a mocidade católica<br />
Dona Lucilia<br />
6 A confiança de Dona Lucilia<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
10 Recordações de um mundo sem<br />
reivindicação, sem inveja, sem ódio…<br />
Hagiografia<br />
14 São Vicente de Paulo,<br />
perfeita harmonia de espírito<br />
Calendário dos Santos<br />
18 Santos de Setembro<br />
“Revolução e Contra-Revolução”<br />
20 Obediência e Contra-Revolução<br />
O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
26 Uma conversa de Jesus…<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 A Idade Média em todo o seu esplendor<br />
3
Editorial<br />
A tirania do igualitarismo<br />
e a liberdade da obediência<br />
Ohomem nunca viverá sem “dogmas”.<br />
Por mais que nos últimos séculos todas as verdades — mesmo das mais sacrossantas —<br />
afirmadas sem medo e sem jaça pareçam ser retrógradas e antipáticas, ainda é verdade que<br />
nossos contemporâneos não sabem viver sem elas.<br />
Dogmas não eclesiásticos, mas sim sociais, cujo domínio é aceito por tácita imposição e velada<br />
ameaça por toda a opinião pública mundial. Ai daquele que queira desses “dogmas” discordar... Logo<br />
é excomungado pelo vento da moda, queimado na fogueira do convívio social, perseguido pela inquisição<br />
do isolamento.<br />
Dentre os “dogmas” não eclesiásticos que subjugam os homens iludidos pela atual liberdade de<br />
pensamento, o igualitarismo parece ser o mais tirano. Sim. Hoje, a liberdade e a fraternidade só parecem<br />
verdadeiras se encerram em si o princípio fundamental da igualdade.<br />
Ser superior, estar acima dos outros a qualquer título que seja, significa subjugar, sorver do próximo<br />
algo de sua dignidade, qualificar o inferior com a tara de inepto. Em consequência, estar submisso<br />
significa carecer de personalidade, opinião e liberdade. Significa ser alienado. Dado a outro, de tal<br />
forma, que se abandona o que se tem de mais íntimo e de mais nobre do próprio ser: a inteligência e<br />
a vontade humana.<br />
Há ainda quem diga que esta opinião em nada nega os princípios do Catolicismo. Como argumentos<br />
utilizam eles os princípios mais inefáveis. Afinal, o Apóstolo não aconselhou aos senhores de Colossos<br />
tratarem seus servos “com justiça e igualdade” (Cl 4,1)? E as pessoas da Santíssima Trindade<br />
não são idênticas (iguais) apesar de distintas?<br />
O conceito de igualdade é assim paulatinamente baldeado para o sinônimo de dignidade. Só é<br />
possível respeitar a natureza humana ao se afirmar a igualdade entre patrão e empregado, pais e filhos,<br />
varão e mulher, homem e animal. Será isto o ideal da humanidade ou simples utopia ensinada<br />
por alguns?<br />
Mas há Mestre que leciona de modo diverso. São Paulo afirma que “Cristo Jesus sendo de condição<br />
divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a<br />
condição de escravo e assemelhando-se aos homens” (Fl 2,5-7). Neste passo, o Divino Mestre abandonou<br />
a mais sublime das igualdades para ensinar a beleza da obediência.<br />
Seria demasiado superficial afirmar que o Salvador negou-se em ser igual ao Pai para em última<br />
análise deixar os arcanos da divindade a fim de gozar do igualitarismo completo para com os homens.<br />
Cristo sim abandonou a igualdade para “assumir a condição de escravo” de Deus Pai, entregando<br />
sua vida em benefício daqueles que por nenhum mérito mereceriam a dádiva infinita de seu<br />
Sangue adorável: “Jesus se fez obediente, até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,8).<br />
Desde o momento da Encarnação até sua Paixão, Deus Filho ensinou através da obediência a beleza<br />
da hierarquia e a origem divina do princípio de autoridade (Cf. Jo 19,11). O Redentor assim o<br />
fez para que sejamos homens livres pela obediência e não nos submetamos outra vez à tirania do<br />
igualitarismo (Cf. Gl 5,1).<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de <strong>162</strong>5 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
Setembro de 1928<br />
Encontro com a<br />
mocidade católica<br />
Qual não foi o meu espanto quando,<br />
passando de bonde pela Praça do Patriarca,<br />
no centro de São Paulo, reparei<br />
numa larga faixa estendida à frente da Igreja<br />
de Santo Antônio, cujos dizeres eram: “Congresso<br />
da Mocidade Católica, de 9 a 16 de setembro.<br />
Inscrições nesta praça, prédio tal, número<br />
tal.” Pela natureza do anúncio, percebi<br />
tratar-se de um congresso de juventude masculina.<br />
Fiquei encantadíssimo!<br />
A notícia daquele congresso abria para mim<br />
um tão imenso horizonte, que meu primeiro<br />
movimento foi de descer e já fazer minha inscrição.<br />
Porém, era início de noite e todos os escritórios<br />
estavam fechados. Restava-me apenas esperar<br />
o dia seguinte, quando então me apresentei<br />
no local indicado, inscrevi-me e recebi uma<br />
medalha para ser usada durante o evento.<br />
Tal era meu entusiasmo que, na manhã do<br />
primeiro dia de reuniões, ao tomar o bonde em<br />
direção à Igreja de São Bento, local do congresso,<br />
logo que me sentei coloquei a medalha, ostentando-a<br />
com ufania por todo o trajeto. Ao<br />
entrar na igreja dos beneditinos fiquei verdadeiramente<br />
espantado com o número de moços católicos<br />
ali reunidos, muito superior ao que eu tinha<br />
imaginado. De fato, acabei descobrindo que<br />
num setor de São Paulo, estranho aos meus círculos<br />
sociais, havia em formação um grande movimento<br />
de jovens católicos, praticantes, castos,<br />
direitos, sinceros devotos de Nossa Senhora. E<br />
eram algumas centenas.<br />
Na presidência do congresso estava o Arcebispo<br />
de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e<br />
Silva, homem bastante cônscio de sua condição<br />
de Príncipe da Igreja. Ao lado dele, todos os<br />
Bispos do Estado de São Paulo, com seus trajes<br />
eclesiásticos de gala, cercados do grande respeito<br />
devido à sua alta dignidade. Um coral de vo-<br />
zes masculinas entoava canções de ótimo cunho<br />
religioso, como, por exemplo, esta de que ainda<br />
me recordo: Mocidade brilhante e sadia, Sai da<br />
inércia em que estás. Renuncia à inação criminosa.<br />
De pé! De pé! Deu a voz de comando Pio XI,<br />
Carrilhonam os sinos de bronze E descem do alto<br />
seus brados de fé!<br />
Este hino, utilizado pelas Congregações Marianas,<br />
era cantado com um ardor que bem exprimia<br />
o voo do espírito e do entusiasmo da mocidade<br />
católica por todo o território brasileiro.<br />
Compreendi, então, que dali podia sair um movimento<br />
católico conforme ao meu ideal.<br />
Resultado de tudo isso: no domingo seguinte<br />
ao congresso eu me alistava como membro da<br />
Congregação Mariana de Santa Cecília. Tinha<br />
início minha dedicação mais efetiva e completa<br />
ao serviço da Santa Igreja.<br />
Como costuma acontecer em movimentos<br />
desse tipo, os mais fervorosos se destacam e passam<br />
a ocupar posições de liderança. Assim sucedeu<br />
que, tendo eu me tornado congregado mariano<br />
com todo o ardor de minha alma, a generosidade<br />
dos que comigo lutavam impeliu-me<br />
para situações de realce — sem que nenhuma<br />
vez eu as tenha procurado ou disputado. Ademais,<br />
tinha eu certa facilidade de me exprimir<br />
em público, fazer discursos, etc., e isso trazia como<br />
consequência reiterados convites para falar.<br />
Rapidamente, tornei-me muito conhecido nos<br />
meios religiosos, e passei a ser visto e tomado<br />
como um líder católico.<br />
Foi uma ascensão rápida e profícua, sem dúvida<br />
por misericórdia e amparo especiais da<br />
Santíssima Virgem.<br />
(Extraído de entrevista à Rádio Uruguaiana,<br />
de 21/6/1990; e de conferência de 1/9/1980)<br />
5
Dona Lucilia<br />
A confiança de<br />
Dona Lucilia<br />
Como boa mãe, o principal anelo de Dona Lucilia era guiar seus filhos<br />
pelas sendas da virtude. Assim, transbordante de afeto, em diversas<br />
ocasiões demonstrou ela o quanto a fidelidade de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lhe<br />
importava…<br />
T. Ring<br />
Os desígnios da Providência<br />
para com Dona Lucilia e para<br />
comigo foram diferentes.<br />
Ela foi suscitada para ter paciência<br />
com um filho, educá-lo e entregá-lo<br />
a Nossa Senhora. Esse filho foi suscitado<br />
para entrar na batalha de êxito<br />
mais improvável no mundo, tendo,<br />
entretanto, a certeza de que a vitória<br />
chegaria de modo surpreendente.<br />
Dona Lucilia tinha diante de si a<br />
tarefa de fazer com que esse filho<br />
chegasse a bom porto na prática da<br />
Religião Católica, que é a finalidade<br />
de sua vida; ele depois deveria lutar<br />
pela Igreja Católica. A confiança dela<br />
consistia em esperar com firmeza<br />
e tranquilidade — diante de dados<br />
muito improváveis, mas que não a<br />
abalavam, não a punham em dúvida<br />
— que essa obra educativa religiosa<br />
dela chegasse ao bom termo.<br />
O Menino Jesus<br />
discutindo com os<br />
doutores da Lei<br />
O Menino Jesus discute com os fariseus - conjunto de imagens diante<br />
do qual Dona Lucilia rezava após a Missa<br />
(Igreja do Sagrado Coração de Jesus, São Paulo).<br />
Lembro-me perfeitamente que<br />
aos domingos, quando íamos à Igreja<br />
do Coração de Jesus, ela ficava<br />
muito tempo rezando, depois da<br />
Missa, diante das imagens do Sagrado<br />
Coração de Jesus, de Nossa Senhora<br />
Auxiliadora, e depois frente a<br />
um grupo de imagens que representa<br />
o Menino Jesus no Templo, discutindo<br />
com os doutores.<br />
Embora muito jovem, eu conhecia<br />
o fato de que o Menino Jesus discutiu<br />
com os doutores, mas não compreendia<br />
bem que relação Dona Lucilia<br />
poderia estabelecer entre esse<br />
episódio e o filho dela. Eu ia com ela<br />
até esse conjunto de imagens e notava<br />
que mamãe rezava uma oração<br />
com os olhos semicerrados, que não<br />
sei se era sempre a mesma ou se ela<br />
simplesmente pronunciava palavras<br />
que mudavam de cada vez. Ela fazia<br />
um movimento de lábios pelo que<br />
se percebia que estava pedindo com<br />
muito empenho alguma coisa, mas<br />
não se ouvia nada do que dizia.<br />
Certo dia, por uma palavra que<br />
ela soltou, percebi que as graças pedidas<br />
por ela diante daquele oratório<br />
eram para mim. Então compreendi,<br />
pois eu estava em oposição constante<br />
a pessoas de uma orientação anticatólica,<br />
e mamãe queria que eu recebesse<br />
do Menino Jesus a força, a<br />
insistência, a coragem, comparáveis<br />
em ponto pequeno com a infinitude<br />
perfeitíssima e abismática de tudo<br />
quanto há em Nosso Senhor, a fim<br />
6
Dona Lucilia em visita à sede do<br />
“Legionário”, órgão oficioso da<br />
Arquidiocese de São Paulo, do<br />
qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era o diretor.<br />
de que eu imitasse o Divino<br />
Mestre e discutisse com os<br />
fariseus do meu tempo. Ela<br />
rezava muito nesse sentido.<br />
“Você é sempre<br />
o mesmo”<br />
Em várias ocasiões, eu<br />
notava que ela prestava<br />
muita atenção em mim e<br />
procurava olhar dentro do<br />
meu olhar para ver se eu<br />
continuava fiel. Ela orava<br />
muito para que eu mantivesse<br />
essa fidelidade.<br />
Não posso me esquecer<br />
da primeira vez que, quando<br />
já adulto, fiz uma viagem<br />
à Europa 1 . Mandei avisar<br />
que eu estaria de volta no<br />
dia tanto. De fato, de manhã,<br />
quando regressei, fui<br />
do aeroporto diretamente<br />
para casa, imaginando que<br />
a encontraria na cama, deitada,<br />
porque o avião chegou<br />
muito cedo; eu falaria um<br />
pouco com ela e depois iria<br />
tomar lanche e dormir.<br />
Encontrei-a, pelo contrário,<br />
toda vestidinha como se<br />
fosse receber visita, e sentada<br />
num sofá que há em casa,<br />
em frente à porta de entrada;<br />
ela estava me esperando<br />
chegar.<br />
Quando entrei — lembro-me<br />
do lugar do sofá<br />
em que ela estava sentada<br />
—, ela voou em minha direção<br />
e me abraçou; sendo<br />
consideravelmente mais<br />
baixa que eu, mamãe pôs-se<br />
na ponta dos pés, e eu me<br />
inclinei para que ela conseguisse<br />
me circundar com os<br />
seus braços, abracei-a também<br />
e nos beijamos várias<br />
vezes.<br />
Mas durante esse longo<br />
amplexo ela, de repente,<br />
parou, me olhou e disse: “Não, você<br />
é sempre o mesmo!”<br />
Compreendemos o que havia por<br />
detrás disso. Ir à Europa representava<br />
sempre uma ocasião de perigo:<br />
“Todo homem pode pecar. Ele terá<br />
resistido? Voltará para meus braços<br />
do mesmo modo como ele era quando<br />
partiu? Eu quero ver. Vou fixar o<br />
olhar dele.”<br />
Ela o fez afetuosamente, é claro.<br />
Não entendi bem o que estava<br />
acontecendo; olhei para o fundo<br />
dos olhos dela e achei tão agradável<br />
aquele olhar, tão bonito, que só me<br />
preocupei em me deliciar com aquilo.<br />
Nós nos osculamos outras vezes,<br />
depois fomos para o lanche e o dia<br />
começou.<br />
“Meu filho, eu só<br />
tenho você...”<br />
Entendemos assim a preocupação<br />
constante, as longas orações que ela<br />
fazia até às três horas da manhã. Já<br />
idosa, com noventa e dois anos, ela<br />
ainda fazia essas preces.<br />
Tenho certeza de que a oração<br />
que ela fazia junto à imagem do<br />
Sagrado Coração de Jesus era em<br />
muito larga medida dirigida em<br />
meu favor, confiando que o Sagrado<br />
Coração de Jesus e o Coração<br />
Imaculado de Maria me dariam as<br />
forças para aquilo que ela percebia<br />
ser uma missão muito difícil para<br />
mim. Então, a bem dizer, ela me<br />
conduzia pela mão para o caminho<br />
do dever.<br />
Dona Lucilia percebia que eu era<br />
profundamente agradecido a essa<br />
atitude dela, pelas minhas numerosas<br />
manifestações de afeto para com<br />
ela; eram incontáveis, e ela notava<br />
quanto eu lhe queria bem.<br />
Determinado dia, no vai e vem<br />
comum da casa, eu estava no meu<br />
escritório; levantei-me para sair e,<br />
no corredor, ela vinha num sentido e<br />
eu no outro, e nos encontramos. Eu<br />
sorri, ela pôs a mão no meu ombro e<br />
7
Dona Lucilia<br />
disse: “Meu filho, eu só tenho você,<br />
mas você eu tenho por inteiro.”<br />
Vemos assim a análise que ela fazia.<br />
Quer dizer: “Você continua fiel?<br />
Continua unido a mim porque eu<br />
sou católica como devo ser? E você<br />
por causa disto continua unido a<br />
mim? Você é verdadeiramente meu<br />
filho como eu quero que seja?” E<br />
depois a resposta: “Olhando você,<br />
eu vejo que é.”<br />
Primeira viagem de<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à Europa<br />
Eu também fazia coisas com ela<br />
que nunca ouvi dizer que alguém fizesse<br />
com outra pessoa.<br />
Por exemplo, nessa primeira viagem<br />
que fiz à Europa eu não quis<br />
que ela soubesse. Por uma razão<br />
muito simples: naquele tempo, a<br />
aviação estava muito mais atrasada<br />
do que hoje e, portanto, o risco de<br />
um acidente era muito mais provável<br />
do que é atualmente. Dona Lucilia<br />
ficava com muito medo de que o<br />
avião caísse, razão pela qual eu nunca<br />
ia ao Rio de avião. Eu achava melhor<br />
fazer a longuíssima viagem ao<br />
Rio de Janeiro de ônibus ou de trem<br />
— e eu preferia trem, embora fosse<br />
horrível — do que tomar avião, para<br />
ela ficar sossegadinha em casa<br />
e não ter problemas de nenhuma<br />
espécie.<br />
Mas dessa vez, não; embora a<br />
aviação fosse ainda imperfeita,<br />
para ir à Europa eu viajaria de<br />
avião. E eu não queria que ela<br />
soubesse disso.<br />
Então falei com uma irmã<br />
de mamãe e a minha irmã, as<br />
quais frequentavam muito a minha<br />
casa, explicando-lhes que eu<br />
ia para a Europa, e combinei com<br />
elas: “Vocês duas, no dia da minha<br />
viagem, venham visitar Dona Lucilia<br />
para animá-la um pouco, e durante a<br />
minha ausência estejam aqui muito<br />
mais do que costumam vir, para ela<br />
ter companhia, não ficar isolada.”<br />
Deu-se esse fato: durante o jantar<br />
falou-se a respeito de uma viagem<br />
que eu ia fazer ao Rio de Janeiro.<br />
Era verdade, porque para ir<br />
à Europa tinha que se passar pelo<br />
Rio. Mas eu não ia só para o Rio; o<br />
Rio era um ponto de passagem no<br />
caminho.<br />
Eu havia dito a mamãe que ia<br />
para o Rio e combinei com ela pa-<br />
A oração de Dona<br />
Lucilia junto à<br />
imagem do Sagrado<br />
Coração de Jesus<br />
era em muito larga<br />
medida dirigida em<br />
meu favor, confiando<br />
que Ele me daria<br />
forças para aquilo que<br />
ela percebia ser uma<br />
missão muito difícil<br />
para mim.<br />
Detalhe de uma fotografia de<br />
Dona Lucilia tirada em 1929.<br />
ra preparar roupa. Enquanto estávamos<br />
combinando, durante o jantar,<br />
notei que os olhos dela se encheram<br />
de lágrimas, mas logo depois ela<br />
se dominou e mudou de jeito. Fiquei<br />
na dúvida: “O que seria isso, por que<br />
essas lágrimas?”<br />
“Procuro o <strong>Plinio</strong><br />
em vários lugares e<br />
não o encontro...”<br />
Na manhã seguinte, me despedi e<br />
fui para o aeroporto. Algum tempo<br />
depois ela telefona para sua irmã e<br />
lhe pergunta:<br />
— Diga-me uma coisa: onde é<br />
que está <strong>Plinio</strong>?<br />
Minha tia, que sabia que eu estava<br />
no avião, ficou espantada com<br />
aquela indagação e disse:<br />
— Oh! Lucilia. Ele está viajando.<br />
— Não. Eu já tenho — essa frase<br />
é característica — procurado <strong>Plinio</strong><br />
em vários lugares e não o encontro.<br />
Procuro-o no Rio, para onde <strong>Plinio</strong><br />
disse que iria, mas lá ele não está.<br />
<strong>Plinio</strong> está em algum lugar aonde ele<br />
nunca vai. O que o <strong>Plinio</strong> está fazendo?<br />
— Olhe, isto está muito complicado.<br />
Eu vou tomar um automóvel,<br />
chego aí e converso com você.<br />
Ela foi e encontrou mamãe deitada<br />
e rezando. Minha tia — o<br />
apelido dela era Zili — entrou<br />
no quarto e Dona Lucilia lhe<br />
perguntou:<br />
— Zili, onde é que está<br />
<strong>Plinio</strong>?<br />
Minha tia deu risada para<br />
alegrá-la um pouco e disse:<br />
— Você não sabe onde está<br />
<strong>Plinio</strong>?<br />
— Não, não sei. Diga-me onde<br />
é que está <strong>Plinio</strong>.<br />
— Lance um lugar qualquer.<br />
— Eu não sei. Já tentei tudo e<br />
não descobri <strong>Plinio</strong>.<br />
— Está bom, então vou lhe dizer.<br />
O <strong>Plinio</strong> está num avião a caminho<br />
para a Europa.<br />
8
R. Solera<br />
— Ah! Mas o <strong>Plinio</strong> tomou<br />
o avião para ir à Europa?!<br />
— Sim. Hoje todo mundo<br />
viaja para a Europa de avião.<br />
Ele tem que levar a vida de<br />
uma pessoa do tempo dele,<br />
não pode viajar como Pedro<br />
Álvares Cabral, de caravela.<br />
Por que ele não haveria de<br />
viajar assim? Só por ser seu<br />
filho? — brincando com ela.<br />
Ela chorou e depois minha<br />
tia lhe disse:<br />
— Você deve ficar muito<br />
contente, porque essa viagem<br />
enriquecerá sua cultura.<br />
Ele verá várias coisas da<br />
Europa e, ademais, servirá à<br />
Religião.<br />
Então mamãe ficou mais<br />
animada.<br />
Logo depois, toca a campainha:<br />
uma enorme cesta<br />
de flores, muito bonita, que<br />
eu mandava para ela com um<br />
cartãozinho, explicando por<br />
que não lhe havia dito que eu<br />
ia para a Europa, e lhe mandava<br />
beijos.<br />
Naturalmente, toda mãe<br />
se comove com isso, e ela ficou muito<br />
comovida. Guardou o cartão e<br />
mandou pôr as flores num vaso.<br />
Algum tempo antes do jantar, outro<br />
toque de campainha: era a segunda<br />
cesta de flores que eu mandava<br />
naquele dia, com outro cartão,<br />
outra manifestação de afeto, que ela<br />
recebeu muito enternecidamente.<br />
Precisando residir em<br />
outra casa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
telefonava todas as<br />
noites para Dona Lucilia<br />
Nossa Senhora de Fátima - imagem<br />
venerada em uma das sedes do<br />
Movimento fundado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Tudo era fruto da<br />
confiança que mamãe<br />
possuía de que Nossa<br />
Senhora lhe daria<br />
as coisas necessárias<br />
para afetivamente<br />
sustentar-se bem na<br />
vida.<br />
Conto mais um fato para mostrar<br />
como era nosso relacionamento.<br />
Durante algum tempo nós tínhamos<br />
uma casa de aluguel; e para<br />
retirar um inquilino que não tinha<br />
mais direito de ficar nesse imóvel,<br />
era preciso que eu fosse morar<br />
nessa casa, a qual não estava à altura<br />
de Dona Lucilia. Ela estava habituada,<br />
pelo tipo de vida dos seus<br />
pais, a casas muito boas, distintas, e<br />
aquilo era uma casinhola. Então, eu<br />
fui morar naquela casa.<br />
Quando residia com mamãe,<br />
todas as noites antes de<br />
me deitar eu ia falar com ela.<br />
E nessa casa, onde precisei residir<br />
talvez uns cinco ou seis<br />
meses, não havia telefone — o<br />
Brasil estava em guerra e era<br />
muito difícil obter um telefone<br />
novo. Então eu ia a uma garagem<br />
existente em frente, pedia<br />
licença ao dono e telefonava<br />
para ela a fim de dizer boa<br />
noite.<br />
Meu pai me dizia que toda<br />
noite, quando chegava<br />
mais ou menos a hora em que<br />
eu devia telefonar, ela ficava<br />
sentadinha junto ao aparelho<br />
numa poltrona, à espera<br />
de meu telefonema e rezando.<br />
Não fazia nada enquanto<br />
eu não telefonasse. Quando<br />
eu ligava, contava-lhe alguma<br />
novidade do dia, dizia-lhe boa<br />
noite e depois ela e eu íamos<br />
nos deitar.<br />
Acostumada a carinhos dessa<br />
natureza, explica-se que,<br />
com o auxílio de Nossa Senhora,<br />
ela tenha vivido até noventa<br />
e dois anos.<br />
Uma parenta minha, estando certa<br />
vez em casa, me viu conversar na<br />
intimidade com mamãe e me disse<br />
baixinho: “Se eu tivesse um filho que<br />
tratasse a mim como você trata a ela,<br />
eu quereria viver quatrocentos anos<br />
nesta terra.”<br />
Mas tudo isto era fruto da confiança<br />
que mamãe possuía de que<br />
Nossa Senhora lhe daria as coisas<br />
necessárias para afetivamente sustentar-se<br />
bem na vida. v<br />
1) No ano de 1950.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 4/9/1993)<br />
9
Gesta Marial de um Varão Católico<br />
Recordações de um mundo<br />
reivindicação, sem inveja,<br />
M. Shinoda<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1990.<br />
10
sem<br />
sem ódio…<br />
Durante uma exposição para jovens membros<br />
do seu Movimento, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez uma<br />
saborosa descrição do ambiente da casa de<br />
Dona Gabriela e Dona Lucilia, que acolhiam<br />
com bondade os pobres e ex-empregadas.<br />
As pessoas de antigamente,<br />
à medida que iam crescendo,<br />
estabeleciam uma espécie<br />
de distância, que — usando<br />
uma expressão muito exagerada —<br />
eu tenderia a chamar de monumental,<br />
entre elas e os outros, à maneira<br />
de um monumento colocado em<br />
algum lugar. O monumento e o lugar<br />
em volta dele formam um só todo,<br />
mas há uma distância ponderável<br />
entre ambos. Por exemplo, o Arco<br />
do Triunfo, em Paris, que teoricamente<br />
foi feito para ser atravessado<br />
por exércitos vitoriosos. Em volta<br />
dele construíram um canteiro de<br />
flores — aliás, é preciso dizer, com<br />
flores lindíssimas —, isolando-o do<br />
resto da praça.<br />
Pode-se até objetar que não é possível<br />
passar pelo Arco sem esmagar<br />
a grama; mas o canteiro define a distância<br />
monumental entre o Arco e a<br />
praça.<br />
Uma pessoa, por exemplo, da idade<br />
de minha avó, estava habitualmente<br />
posta em cogitações que não<br />
se sabia muito bem quais eram, mas<br />
que tinham uma estatura maior do<br />
que as cogitações das outras pessoas<br />
que a circunvizinhavam. O que não<br />
lhe permitia dar uma atenção inteira<br />
ao concreto, ao miúdo, ao circunstancial.<br />
Às vezes, davam essa atenção<br />
a uma coisa que caía debaixo de<br />
sua vista. Mas, normalmente ela deixava<br />
aquilo correr, com certa monumentalidade;<br />
as pessoas mais moças<br />
deveriam cuidar daquilo.<br />
Acho que a dignidade da idade<br />
mais avançada realmente é compatível,<br />
fica bem com isso.<br />
Uma espécie de “Pátio<br />
dos Milagres” em<br />
ponto minúsculo<br />
A casa em que eu residia quando<br />
menino 1 era alta e no andar térreo<br />
havia um local com alguns arcos,<br />
onde ficavam um cego, a Serafina,<br />
a Benedícite; uma espécie<br />
de “Pátio dos Milagres” 2 , em ponto<br />
minúsculo.<br />
Assim que ali entrávamos, a Benedícite<br />
nos via — apesar de velha,<br />
ela possuía uma boa vista — e saía<br />
de um daqueles arcos e começava:<br />
“Babá, babá, babá...”; parecia um<br />
muezim muçulmano no alto de um<br />
minarete.<br />
Ela percebia que eram meninos<br />
da família e, querendo assegurar o<br />
prato de comida, contava uma história<br />
que não terminava mais; depois<br />
fazia uma inclinação com o braço,<br />
dizendo “benedicite, benedicite”,<br />
uma bênção que ela, como velha, dava<br />
para nós, crianças.<br />
E nós, não sabendo como responder,<br />
mas sentindo o pitoresco<br />
do personagem, parávamos para<br />
olhar um pouquinho e em geral jogávamos,<br />
mas de um modo afável,<br />
11
Gesta Marial de um Varão Católico<br />
duas ou três moedas para ela, que<br />
as recebia com uma gentileza de<br />
primeira ordem e ficava muito contente.<br />
Dizíamos-lhe, então:<br />
— Até logo, Benedícite!<br />
— Até logo!<br />
Margarida,<br />
ex-empregada da casa<br />
de Dona Gabriela<br />
Dona Gabriela em 1912.<br />
tura, alguma maldade que contra<br />
ela haviam feito; mas ela declamava,<br />
discursava. Eu percebia que, ao<br />
cabo de algum tempo, estava todo<br />
mundo informado do que ela queria.<br />
E eu — por causa de mamãe,<br />
que não tomaria a bem se quisesse<br />
pôr fora a Margarida — ficava quieto.<br />
E ela continuava falando, interrompendo<br />
a conversa que antes de<br />
sua chegada estávamos tendo sobre<br />
algum assunto que podia interessar.<br />
Após certo tempo a Margarida<br />
dizia: “Porque entonces me voy”, e<br />
Havia também uma espanhola<br />
chamada Margarida, a qual, em<br />
tempos idos e vividos, muito anteriores<br />
ao meu nascimento, tinha sido<br />
empregada de casa. Mas ela depois<br />
se casou com um homem que,<br />
se não me engano, era vendeiro;<br />
possuía um armazém perto de nossa<br />
residência. Às vezes, Margarida ia à<br />
nossa casa para saber como estava<br />
o pessoal. Ela não tinha interesse,<br />
e fazia isso conforme aquelas fidelidades<br />
antigas. Acho que seu marido<br />
aprovava que ela assim agisse.<br />
Margarida era magra, tinha um<br />
pescoção com uma cabeça pequena<br />
em cima, cabelos de um louro inexpressivo,<br />
com uns cachinhos, e muito<br />
feia. Quando ela se irritava, seu<br />
pescoço ficava meio vermelho, meio<br />
azul, como o pescoço de peru.<br />
Eu que, graças a Nossa Senhora,<br />
fui chamado a ouvir falar tanto<br />
espanhol em minha vida, quando<br />
era menino e mocinho tinha dificuldade<br />
para compreender — era<br />
uma dificuldade auditiva — o espanhol,<br />
o português falado por um espanhol;<br />
e até mesmo o português<br />
falado por um português eu muitas<br />
vezes tinha dificuldade em acompanhar.<br />
Assim, eu não entendia o que<br />
a Margarida dizia.<br />
A Margarida era muito respeitosa.<br />
Quando ela chegava à nossa casa,<br />
se dirigia à porta dos fundos e<br />
mandava perguntar à minha avó e<br />
minha mãe se lhe davam licença para<br />
entrar. Se não havia visita, concediam.<br />
Ela entrava e começava falar.<br />
Creio que contava alguma desvenchegava<br />
perto da porta; às vezes até<br />
atravessava a porta, e depois voltava,<br />
recomeçando tudo de novo.<br />
Mamãe ouvia com paciência e<br />
eu percebia que não havia campo<br />
nem para insinuar que seria bom<br />
que a Margarida fosse embora. Ela<br />
ficava o tempo que queria e depois<br />
saía.<br />
A ex-escrava Honorata<br />
conversando com<br />
Dona Gabriela sobre<br />
os antigos tempos<br />
Havia também duas ex-escravas.<br />
Uma delas tinha sido escrava da família<br />
de um médico, muito amigo de<br />
meus avós e minha mãe, o qual possuía<br />
uma fazenda. Devido a essa íntima<br />
relação de amizade, ela ia muitas<br />
vezes conversar com os criados<br />
de casa. Depois se habituou a subir<br />
ao andar superior para dizer bom<br />
dia a Dona Gabriela e Dona Lucilia,<br />
e contava muitas coisas.<br />
Ela era uma negra vinda da África.<br />
Não sei se seu cabelo não crescia<br />
ou se ela mandava cortar à la homem,<br />
mas era uma carapinha com a<br />
altura de um centímetro. Bem velha,<br />
seu cabelo era todo branco.<br />
Vestia-se com uma espécie de<br />
poncho, um cobertor muito ensebado,<br />
marrom, horrendo. Não me lembro<br />
bem, mas parece-me que esse<br />
cobertor era vestido através de uma<br />
abertura para passar primeiro a cabeça,<br />
como poncho gaúcho. Usava<br />
umas saias indefinidas, com as cores<br />
de todos os usos. Suas orelhas<br />
eram um pouco de abano. Quase<br />
não tinha sobrancelhas, mas via-se<br />
bem o arco por onde as sobrancelhas<br />
deveriam correr. E sua cara era<br />
de drama...<br />
Ela entrava dizendo:<br />
— Bom dia, Dona Gabriela!<br />
Bom dia, Dona Lucilia!<br />
— Bom dia, Honorata, como vai<br />
você?<br />
12
O “bom dia” mais amável era de<br />
mamãe.<br />
Duas ou três vezes, numa hora em<br />
que mamãe estava fora da sala, vi minha<br />
avó sentada numa cadeira, que<br />
está hoje no meu escritório; junto dela<br />
a Honorata que, por licença de minha<br />
avó, estava sentada numa cadeira.<br />
Ambas contando coisas dos antigos<br />
tempos, as quais minha avó presenciara,<br />
mas não comunicava muito<br />
para o outros; eu não sabia bem<br />
de que assuntos tratavam, mas faziam<br />
parte daquele mundo no qual tinham<br />
vivido.<br />
G. Kralj<br />
A criada Silvéria e o<br />
susto que teve <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Convento da Luz no século XIX.<br />
Havia outra — creio ter sido<br />
também escrava — que foi criada<br />
de minha mãe quando possuía casa<br />
própria, e meu avô não havia morrido<br />
3 . Essa empregada, que morava<br />
em sua casa, habituou-se a ir sempre<br />
à residência de minha mãe e<br />
causou-me um dos sustos mais extraordinários<br />
da minha vida.<br />
Eu confundia o nome dessa criada<br />
com a outra. Certo dia disseram-<br />
-me: “Morreu fulana.” Para um menino<br />
que vai se formando, os horizontes<br />
da vida são outros. E nisso<br />
eu prestava um centésimo de atenção.<br />
Numa manhã — minha família<br />
estava em Santos —, eu estava sozinho<br />
tomando café na sala de jantar<br />
da casa. E, remexendo o café com<br />
leite na xícara, ouço uma tosse característica,<br />
e a criada, colocando a<br />
cabeça na porta entreaberta, diz:<br />
— Bom dia, seu <strong>Plinio</strong>, como vai<br />
passando?<br />
Pensei: “Mas uma morta!!! Como<br />
vou sair dessa? A primeira coisa<br />
é não mudar de conduta, para<br />
não espantar a mulher. Se respondo,<br />
começa uma conversa, ela chega<br />
mais perto...” Não respondi e continuei<br />
a mexer o café; houve então<br />
um clic na memória: “Ah! Não é essa!”<br />
Então eu disse: “Bom dia, Silvéria!<br />
Como vai você?” Ufa!<br />
Toda essa gente chegava a nossa<br />
casa e, na copa, comiam, bebiam,<br />
conversavam; depois desciam até o<br />
quintal e lá se sentavam. Quando<br />
precisavam, pediam o que necessitavam<br />
e Dona Lucilia sempre arranjava<br />
um meio de atendê-las. Pediam,<br />
por exemplo, uma apresentação<br />
para a Santa Casa, a fim de<br />
internar um filho doente; era uma<br />
verdadeira clientela mantida desinteressadamente,<br />
por bondade.<br />
Na Igreja da Luz,<br />
encontro com duas<br />
filhas de Margarida<br />
Tive uma recordação muito viva<br />
disso, há poucos dias, na Igreja da<br />
Luz, onde fui rezar. Vi duas senhoras<br />
um tanto mais moças do que eu:<br />
eram filhas da Margarida, mas não<br />
as havia reconhecido. Elas foram esperar-me<br />
na porta da igreja e me disseram:<br />
— Bom dia, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>! O senhor<br />
não está se lembrando de nós? Somos<br />
filhas da Margarida.<br />
Dei-lhes a mão, perguntando:<br />
— Como vão vocês? Estão bem?<br />
Elas, muito modestas, direitas,<br />
acrescentaram:<br />
— Queríamos dizer para o senhor<br />
que nós admiramos muito todas<br />
as obras do senhor. Pela revista<br />
que assinamos, acompanhamos toda<br />
a vida do senhor e rezamos muito<br />
pelo senhor.<br />
Perguntei:<br />
— Como vai a Margarida?<br />
— Ah! Margarida morreu...<br />
Fiquei surpreso de ter encontrado<br />
no fundo de minha mente essas<br />
recordações, que exprimem todo<br />
um mundo de antigamente, incalculavelmente<br />
diferente do de hoje.<br />
Aquelas pessoas não tinham reivindicações,<br />
nem inveja, nem ódio. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 30/6/1981)<br />
1) Situada na Alameda Barão de Limeira,<br />
bairro dos Campos Elíseos,<br />
em São Paulo.<br />
2) Cfr. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nº 32, p. 27.<br />
3) <strong>Dr</strong>. Antônio Ribeiro dos Santos, avô<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, faleceu em 1909. Depois<br />
do falecimento de seu pai, Dona<br />
Lucilia com sua família passou a<br />
habitar no Palacete Ribeiro dos Santos,<br />
residência de sua mãe.<br />
13
Hagiografia<br />
São Vicente de Paulo,<br />
perfeita harmonia de espírito<br />
Fundador de Obras de Caridade, Diretor de uma Ordem Religiosa; por<br />
outro lado, insigne lutador contra o jansenismo e inspirador de<br />
uma cruzada contra Túnis. Homem ao mesmo tempo capaz de tratar<br />
com a rainha e com galerianos; de cuidar de doentes e de armar um<br />
exército contra os inimigos da Fé. Dotado de tal amplitude de espírito,<br />
São Vicente de Paulo representou a própria harmonia do<br />
espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
São Vicente de Paulo<br />
- Basílica de São<br />
Pedro, Vaticano.<br />
Pediram-me que comentasse<br />
uma ficha biográfica de São<br />
Vicente de Paulo, extraída<br />
do Breviário Romano.<br />
Vicente nasceu de pais pobres em<br />
Pay, na Landae, França, no dia 24 de<br />
abril de 1581.<br />
Desde criança guardou os rebanhos<br />
de seu pai. Mas sua viva inteligência<br />
fez com que sua família o<br />
mandasse estudar entre os cordelliers<br />
de Dax.<br />
Foi depois para Toulouse a fim de<br />
conseguir grau de Doutor e, em 1600,<br />
ordenou-se sacerdote. Após ter sido<br />
cativo em Tunis, em 1616 foi incluído<br />
no corpo de capelães da Rainha Margarida<br />
de Valois. Durante algum tempo,<br />
foi cura de Clichy e de Chatillon-<br />
-les-Dombes.<br />
Nomeado grão-capelão das galeras<br />
da França pelo rei, com um zelo<br />
maravilhoso, trabalhou pela salvação<br />
dos oficiais e dos remadores.<br />
Indicado por São Francisco de Sales<br />
para o governo das religiosas da<br />
Visitação, cumpriu essa missão durante<br />
40 anos com tal prudência que<br />
justificou plenamente o julgamento<br />
do santo prelado, o qual declarou não<br />
conhecer padre mais digno do que Vicente.<br />
Mas sua carreira fez-se quase que<br />
inteira ao serviço da poderosa família<br />
dos Gondi. Ele evangelizou as nove<br />
mil almas que viviam em suas terras,<br />
e diminuiu a extensão das ruínas<br />
e das misérias produzidas pelas guerras<br />
civis ou com estrangeiros.<br />
Até uma idade bem avançada, Vicente<br />
dedicou-se a evangelizar os pobres<br />
e sobretudo os camponeses. Para<br />
isto fez um especial voto, aprovado<br />
pela Santa Sé. Preocupou-se em estabelecer<br />
a disciplina eclesiástica, dirigindo<br />
seminários para o Clero, e tendo<br />
o cuidado de multiplicar as conferências<br />
espirituais entre os padres.<br />
Enviou evangelizadores não só<br />
através das províncias da França,<br />
mas também para Itália, Polônia, Escócia,<br />
Irlanda e Índia.<br />
Protegido pelos reis da França,<br />
assistiu Luís XIII nos seus últimos<br />
momentos e foi chamado por Ana<br />
d’Áustria, mãe de Luís XIV, para fazer<br />
parte do Conselho de Consciência.<br />
Lançou os fundamentos de uma<br />
nova Congregação, a dos Lazaristas,<br />
e com Santa Luísa de Marillac criou<br />
14
Fotos: G. Kralj; S. Hollmann.<br />
Corpo incorrupto de São Vicente de Paulo - Paróquia São Vicente de Paulo, Paris.<br />
a Instituição das Filhas da Caridade,<br />
ou Irmãs de São Vicente de Paulo.<br />
Acabado de fadiga, o chamado<br />
Apóstolo da Caridade veio a falecer<br />
em 1660. Afirma-se não ter havido<br />
miséria que ele não houvesse socorrido.<br />
Cristãos aprisionados pelos turcos,<br />
crianças abandonadas, jovens indisciplinados,<br />
moças em risco de cair<br />
no pecado, religiosas displicentes, pecadoras<br />
públicas, condenados às galés,<br />
estrangeiros enfermos, artesãos<br />
sem trabalho, os loucos e os mendigos,<br />
todos foram lembrados pelo<br />
grande Monsieur Vincent, como era<br />
conhecido naquela época.<br />
Membro da Mesa de<br />
Consciência e Ordens<br />
Quero chamar a atenção para<br />
dois aspectos de sua vida.<br />
O primeiro é a quase incrível fecundidade<br />
dessa existência, tomando<br />
em consideração as várias situações<br />
pelas quais ele transitou.<br />
Nascido de uma família pobre de<br />
camponeses, provavelmente analfabetos<br />
ou semianalfabetos, ele teve<br />
uma ascensão: dada a sua excepcional<br />
inteligência, foi estudar e ordenou-se<br />
sacerdote. Depois, caiu como<br />
cativo dos berberes, piratas que<br />
percorriam o Mediterrâneo e às vezes<br />
até faziam incursões pelos territórios<br />
da Europa, levando católicos<br />
como escravos, os quais eram vendidos<br />
nos países do Oriente.<br />
Após haver tratado<br />
com cortesãos no<br />
palácio real da<br />
França, São Vicente<br />
foi capelão-geral das<br />
galés, tendo que fazer<br />
apostolado junto a<br />
criminosos, os quais<br />
eram atarraxados nos<br />
navios e passavam a<br />
vida remando.<br />
Maravilhosamente resgatado da<br />
condição de simples escravo, ele é<br />
logo contratado para ser capelão de<br />
uma rainha e entra numa corte. Deste<br />
alto cargo ele passa a ser vigário<br />
de duas aldeias; entra sob serviço<br />
de uma casa nobre poderosa, a dos<br />
Gondi, e parece cifrar o seu trabalho<br />
às nove mil almas que constituíam a<br />
população dos feudos ou das terras<br />
em que a família Gondi tinha restos<br />
de poderes feudais.<br />
Mas, depois disto, ele novamente<br />
se aproxima da corte e é elevado<br />
a um dos mais altos cargos: membro<br />
da Mesa de Consciência.<br />
A Mesa de Consciência e Ordens<br />
era uma instituição que existia em<br />
quase todas as monarquias católicas<br />
daquele tempo, e tinha uma função<br />
muito delicada. Naquela época<br />
o Estado era sempre unido à Igreja<br />
nos países católicos, e os Bispos tinham<br />
muitas vezes poderes temporais.<br />
A diocese era senhora feudal<br />
com poderes mais amplos, ou menos,<br />
destas ou daquelas terras; dessa<br />
forma o provimento das dioceses<br />
que se vagassem cabia ao Papa por<br />
princípio, porque só o Sumo Pontífice<br />
pode nomear e demitir livremente<br />
Bispos, mas mediante indicação<br />
do rei. Este propunha em geral<br />
três nomes, dos quais o Papa escolhia<br />
um.<br />
15
Hagiografia<br />
Dotado de um espírito<br />
amplíssimo, com uma<br />
personalidade rica sob<br />
diversos aspectos, São<br />
Vicente impressionava<br />
profundamente<br />
os homens mais<br />
variados.<br />
Naturalmente, quando um nome<br />
não era adequado, o Sumo Pontífice<br />
exigia outro nome. Ele não ficava<br />
manietado, circunscrito àqueles três,<br />
mas era o rei que os indicava.<br />
A Mesa de Consciência não era<br />
uma mesa no sentido material da palavra.<br />
Tinha esse título porque seus<br />
membros se reuniam em torno de<br />
uma mesa, e era um Conselho das pessoas<br />
de maior confiança e virtude do<br />
reino, mais perspicazes e inteligentes,<br />
para estudar quais os padres que, por<br />
sua vida e doutrina ortodoxa, cultura e<br />
atividade, saúde e influência pessoal,<br />
eram capazes de serem Bispos.<br />
Como é sabido, toda a vida de uma<br />
diocese gira em torno do Bispo, e<br />
uma das coisas mais importantes para<br />
a vida interna da Igreja é a designação<br />
de bons Bispos. Podemos assim<br />
compreender quanto um país deve<br />
ter empenho em que seja escolhido o<br />
creme dos sacerdotes para ser Bispo.<br />
Ele foi escolhido por Ana<br />
d’Áustria, a Rainha-Mãe, regente da<br />
minoridade de Luís XIV, para esta<br />
Mesa de Consciência e Ordens e ali<br />
exerceu grande influência para a designação<br />
dos Bispos.<br />
Esse homem que subiu a tão alto<br />
cargo, tratando com cortesãos no palácio<br />
real da França, entretanto foi<br />
capelão-geral das galés, tendo que<br />
fazer apostolado junto a criminosos,<br />
os quais eram atarraxados nos navios<br />
e passavam a vida remando. Entre<br />
um príncipe e um guerreiro há uma<br />
distância enorme; porém tal distância<br />
é menor do que a existente entre<br />
o sacerdote e o escravo. Tudo isso<br />
constituiu os vaivéns de sua existência.<br />
Multiplicidade<br />
de atividades<br />
Outro aspecto é a multiplicidade<br />
das atividades que ele exerceu:<br />
Obras de Caridade, Diretor de uma<br />
Ordem Religiosa que então estava<br />
apenas saindo das mãos de seu grande<br />
fundador, São Francisco de Sales;<br />
por outro lado, lutador insigne<br />
contra o jansenismo. Ele foi um dos<br />
homens que mais trabalhou contra<br />
o jansenismo na França, impedindo<br />
que essa forma péssima de protestantismo<br />
larvado penetrasse nos<br />
meios católicos. Além disso, São Vicente<br />
levantou uma cruzada contra a<br />
Tunísia; foi, portanto, chefe de cruzados.<br />
Vemos assim a diferença de aspectos<br />
dessa personalidade. Um homem<br />
capaz de tratar com a rainha,<br />
mas também com galerianos. De<br />
atrair a confiança da soberana e de<br />
encontrar palavras que pusessem à<br />
vontade o indivíduo que estava remando<br />
nas galés. Um homem capaz<br />
de tratar de um doente e de armar<br />
um exército; de dirigir uma Congregação<br />
Religiosa de freiras reclusas,<br />
que passavam a sua vida em oração,<br />
mas ao mesmo tempo capaz de<br />
orientar almas de uma corte, passando<br />
todo o tempo sujeito às tentações<br />
do mundanismo.<br />
Tinha ele um espírito amplíssimo,<br />
uma personalidade vastíssima, rica<br />
dos maiores aspectos, com a possibilidade<br />
de impressionar a fundo os<br />
Diversos fatos da vida de São Vicente de Paulo - Capela de São Vicente, Paris.<br />
16
homens mais variados. Ou seja, com<br />
uma faculdade de adaptação aos vários<br />
meios que de si dariam origem a<br />
um verdadeiro romance.<br />
Há pessoas que leem com entusiasmo<br />
a vida de Laurence of Arabia,<br />
porque sendo inglês esteve na<br />
Arábia e se adaptou às condições de<br />
vida lá existentes. O que é isto<br />
em comparação com todas as<br />
pluralidades de papéis que<br />
São Vicente de Paulo desempenhou<br />
de um modo<br />
tão profundamente<br />
brilhante?<br />
Se houvesse um<br />
grande biógrafo que<br />
soubesse apresentar<br />
a vida de São Vicente<br />
de Paulo com ardor,<br />
sem se distanciar em<br />
nada da realidade histórica,<br />
mas realçando os aspectos<br />
que verdadeiramente<br />
dão a chama de sua existência,<br />
tenho certeza que esta seria<br />
uma das biografias mais famosas.<br />
São Vicente de Paulo - Paris, França.<br />
Uma das figuras<br />
mais deformadas pela<br />
“heresia branca”<br />
Parece-me que até a consumação<br />
dos séculos uma tentação para os que<br />
escrevem vida de santos vai ser de redigi-la<br />
de modo “heresia branca” 1 . E<br />
a figura de São Vicente de Paulo é<br />
exatamente a que tem sido mais deformada<br />
pela “heresia branca”.<br />
Em que sentido? A “heresia branca”<br />
gosta de apresentar este santo<br />
sempre sorrindo e com uma criancinha<br />
ao seu lado. Que ele seja apresentado<br />
sorrindo, ótimo! E com uma<br />
criancinha ao lado — se não quiserem<br />
economizar bronze, podem até<br />
pôr cinquenta criancinhas, não tenho<br />
nada a objetar contra isto —, está<br />
esplêndido. Quem pode objetar<br />
contra o apostolado junto às crianças<br />
de quem Nosso Senhor disse:<br />
“Deixai vir a Mim os pequeninos”?<br />
Mas que se queira ver neste homem<br />
só isto! Este é o lado verdadeiramente<br />
absurdo. Por que não se faz, numa igre-<br />
ja ereta em louvor de São Vicente de<br />
Paulo, um quadro deste varão de Deus,<br />
na presença de Luís XIII, obtendo deste<br />
a assinatura de um edito que ordenava<br />
uma cruzada contra Túnis?<br />
Não devemos procurar corrigir<br />
uma unilateralidade com a outra,<br />
escondendo São Vicente de Paulo<br />
caridoso, para manifestar apenas<br />
São Vicente de Paulo guerreiro,<br />
porque a beleza consiste exatamente<br />
na coexistência dos dois aspectos.<br />
Aí está a perfeição, a harmonia<br />
do espírito de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 19/7/1971)<br />
1) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />
sentimental que se manifesta na piedade,<br />
na cultura, na arte, etc. As pessoas<br />
por ela afetadas se tornam moles,<br />
medíocres, pouco propensas à<br />
fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />
esplendor.<br />
17
Calendário dos Santos –––––––––<br />
1. Santa Beatriz da Silva e Menezes,<br />
Virgem (†Toledo, 1490).<br />
2. São Guilherme, Bispo e Confessor<br />
(†Dinamarca, 1070). Sensibilizado<br />
pela situação de abandono<br />
em que viviam os pagãos dinamarqueses,<br />
dedicou-se a evangelizá-los.<br />
Foi Bispo de Roskilde.<br />
3. São Gregório Magno, Papa,<br />
Confessor e Doutor da Igreja (†Roma,<br />
604). Considerado o último dos<br />
Papas do antigo Império Romano e<br />
o primeiro dos Papas medievais. Enfrentou<br />
a peste e a fome em Roma,<br />
bem como a devastação produzida<br />
pelos invasores Lombardos, que<br />
chegaram a assediar a cidade e só<br />
foram contidos graças à diplomacia<br />
do Pontífice. Apesar dessas dificuldades,<br />
seu Pontificado é tido a justo<br />
título como um dos mais fecundos e<br />
grandiosos da História da Igreja.<br />
4. XXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Rosália, Virgem (†Palermo,<br />
séc. XII).<br />
5. São Bertino, Confessor<br />
(†França, 700). Recebeu formação<br />
monástica no célebre Mosteiro de<br />
Luxeuil. Fundou o Mosteiro de São<br />
Pedro, na Ilha de Sithiu, no Artois,<br />
o qual teve vinte e dois monges elevados<br />
às honras dos altares.<br />
6. Santo Eleutério, Abade e Confessor<br />
(†Roma, séc. VI). Abade do<br />
Mosteiro de São Marcos Evangelista,<br />
em Espoleto, com suas orações curou<br />
doentes e até ressuscitou um morto.<br />
7. São Clodoaldo, Confessor<br />
(†França, séc. VI). Filho do Rei<br />
Clodomiro e neto do Rei Clóvis e<br />
da Rainha Santa Clotilde, São Clodoaldo<br />
abandonou o mundo para<br />
servir somente a Deus, na solidão<br />
da vida contemplativa.<br />
F. Lecaros<br />
São Mateus - Museu Diocesano<br />
de Valladolid, Espanha.<br />
8. Natividade de Nossa Senhora.<br />
Precisamente nove meses depois de<br />
comemorar a Imaculada Conceição<br />
da Virgem, a Igreja celebra a festividade<br />
do seu Nascimento.<br />
9. São Pedro Claver, Confessor<br />
(†Cartagena, 1654). Natural da Catalunha,<br />
ingressou aos 22 anos na<br />
Companhia de Jesus. Partiu como<br />
missionário para a América espanhola,<br />
sendo ordenado sacerdote<br />
em Bogotá. Consagrou sua vida ao<br />
apostolado com escravos trazidos<br />
da África.<br />
10. São Nicolau de Tolentino,<br />
Confessor (†Itália, 1305). Pertenceu<br />
à Ordem dos Eremitas de Santo<br />
Agostinho e passou a maior parte<br />
da vida num convento, entregue<br />
a práticas austeras e à oração, na<br />
mais alta contemplação.<br />
11. XXIV Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
São João-Gabriel Perboyre,<br />
Mártir (†China, 1840).<br />
12. São Guido, Confessor (†Brabante,<br />
Bélgica, 1012). Nascido numa<br />
família de camponeses, distribuiu<br />
seus poucos bens aos pobres e<br />
se consagrou inteiramente ao serviço<br />
de Deus. Peregrinou durante sete<br />
anos, visitando os principais santuários<br />
da Europa, Roma e a Terra<br />
Santa. Depois retornou à sua região<br />
de origem e se santificou no<br />
humilde ofício de sacristão de uma<br />
igreja. Depois de morto, milagres e<br />
prodígios ocorreram em sua sepultura,<br />
e somente então foi glorificado<br />
aquele que, durante toda a vida,<br />
permanecera oculto e apagado.<br />
13. São João Crisóstomo, Bispo,<br />
Confessor e Doutor da Igreja (†Ponto,<br />
Ásia Menor, 407). Após alguns<br />
anos de solidão no deserto, foi ordenado<br />
sacerdote em Antioquia. Nomeado<br />
Bispo e Patriarca de Constantinopla,<br />
esforçou-se para moralizar<br />
o Clero. Denunciou também, corajosamente,<br />
abusos de autoridades<br />
civis. Foi, em consequência, duas vezes<br />
desterrado e morreu no exílio.<br />
14. Exaltação da Santa Cruz. A<br />
Cruz de Cristo é o troféu de sua vitória<br />
pascal sobre a morte. A tradição<br />
vê nela também o sinal do Filho<br />
do Homem, que aparecerá no céu<br />
para anunciar sua volta (Mt 24,30).<br />
São Materno, Bispo (†Trèves,<br />
séc. IV).<br />
15. Nossa Senhora das Dores.<br />
16. São Cornélio, Papa, e São Cipriano,<br />
Bispo, Mártires (†séc. III).<br />
São Cornélio condenou os erros<br />
dos hereges novacianos, que promoveram<br />
um cisma na Igreja e procuraram<br />
depô-lo. Nessa emergência,<br />
foi apoiado e encorajado por<br />
São Cipriano, Bispo de Cartago<br />
(Norte da África). São Cornélio foi<br />
18
––––––––––––––– * Setembro * ––––<br />
martirizado durante a perseguição<br />
de Galiano, no ano 252, e São Cipriano<br />
sofreu o martírio em 258.<br />
17. São Roberto Belarmino, Bispo,<br />
Confessor e Doutor da Igreja<br />
(†Roma, <strong>162</strong>1).<br />
18. XXV Domingo do Tempo Comum.<br />
São José de Cupertino, Confessor<br />
(†Itália, 1663).<br />
19. São Januário (Bispo) e Companheiros,<br />
Mártires (†Pozzuoli, Itália,<br />
305). São Januário (também conhecido<br />
como San Gennaro), Bispo<br />
de Benevento, foi martirizado durante<br />
a perseguição de Diocleciano,<br />
juntamente com seis clérigos de sua<br />
diocese: Santos Sósio, Próculo, Festo,<br />
Desidério, Eutíquio e Acúrcio. O<br />
sangue de São Januário, conservado<br />
até hoje em uma ampola, liquefaz-se<br />
milagrosamente três vezes por ano,<br />
em datas certas dos meses de maio,<br />
setembro e dezembro.<br />
20. Santos André Kim Taegón,<br />
Presbítero, Paulo Chong Hasang e<br />
Companheiros, Mártires (†Coreia,<br />
1839-1866).<br />
21. São Mateus Evangelista,<br />
Apóstolo e Mártir (†séc. I). Segundo<br />
antiga tradição, pregou na Palestina<br />
e depois na Etiópia.<br />
22. Santos Maurício e Companheiros,<br />
Mártires (†séc. III). São Maurício<br />
comandava a célebre Legião Tebana,<br />
constituída por cristãos do Egito.<br />
Por volta do ano 286, enquanto<br />
reinava Diocleciano, essa divisão estava<br />
servindo em território da atual<br />
Suíça, quando o comandante supremo,<br />
Maximiano, ordenou que todos<br />
os soldados oferecessem sacrifícios<br />
aos deuses pagãos. Os membros<br />
F. Lecaros<br />
da Legião Tebana se recusaram e, por<br />
isso, foram mortos.<br />
23. São Lino, Papa e Mártir<br />
(†Roma, séc. I). Foi o segundo Papa,<br />
escolhido pelo próprio São Pedro<br />
para sucedê-lo. Sofreu o martírio<br />
por volta do ano 77, sendo sepultado<br />
ao lado de São Pedro.<br />
24. São Vicente Maria Strambi,<br />
Bispo e Confessor (†Roma, 1824).<br />
Após ingressar na Congregação Passionista,<br />
que acabava de ser fundada,<br />
dedicou-se com grande sucesso<br />
às pregações populares, até que foi<br />
feito Bispo de Macerata e Tolentino.<br />
Recusou prestar juramento de fidelidade<br />
a Napoleão Bonaparte, que<br />
invadira e usurpara os Estados Pontifícios<br />
e, em consequência, foi desterrado<br />
durante 7 anos. Ofereceu<br />
sua vida a Deus para que o Papa,<br />
gravemente enfermo, não morresse,<br />
e foi atendido: São Vicente Maria<br />
morreu e o Papa recuperou a saúde.<br />
São Gregório Magno - Museu<br />
Regional de Messina, Itália.<br />
25. XXVI Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
São Firmino, Bispo e Mártir<br />
(†Amiens, séc. IV).<br />
26. São Cosme e São Damião,<br />
Mártires (†Cilícia, Ásia Menor, séc.<br />
I). Sofreram o martírio durante a<br />
perseguição de Diocleciano (284-<br />
305).<br />
27. São Vicente de Paulo, Confessor<br />
(†Paris, 1660). (Ver página 13)<br />
28. São Venceslau, Mártir (†Boêmia,<br />
929).<br />
São Lourenço Ruiz e Companheiros,<br />
Mártires (†Nagasaki, 1633-1637).<br />
No século XVII, entre os anos de<br />
1633 e 1637, dezesseis mártires, Lourenço<br />
Ruiz e seus Companheiros,<br />
derramaram seu sangue por amor de<br />
Cristo, em Nagasaki, no Japão. .<br />
29. São Miguel, São Gabriel e<br />
São Rafael, Arcanjos.<br />
30. São Jerônimo, Confessor e<br />
Doutor da Igreja (†Palestina, 419).<br />
Natural da Dalmácia, recebeu formação<br />
católica, mas só foi batizado<br />
aos 20 anos. Possuidor de uma cultura<br />
clássica das maiores do tempo,<br />
é considerado um dos mestres da língua<br />
latina. Aproveitou integralmente<br />
sua imensa cultura no serviço da<br />
Igreja, lutando contra as heresias e<br />
defendendo a Fé católica. Foi secretário<br />
do Papa São Dâmaso, e recebeu<br />
deste o encargo de traduzir para<br />
o latim os Livros Sagrados, de modo<br />
a haver uma única versão oficial das<br />
Escrituras, para que não fossem estas<br />
deturpadas pelos hereges dos séculos<br />
futuros. Essa foi a origem da “Vulgata”.<br />
Na fase final de sua vida, permaneceu<br />
em Belém, na Palestina, onde<br />
dirigiu um mosteiro de monges e deu<br />
assistência a um mosteiro feminino.<br />
19
Revolução e Contra-Revolução<br />
Obediên<br />
A propósito de<br />
alguns pensamentos<br />
de Santo Inácio de<br />
Loyola relacionados<br />
com a obediência,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tece<br />
substanciosos<br />
comentários a este<br />
tema que marca<br />
profundamente a<br />
diferença entre o<br />
revolucionário e o<br />
contrarrevolucionário.<br />
S. Hollmann<br />
Santo Inácio de Loyola<br />
- Barcelona, Espanha.<br />
Como todos sabem, Santo Inácio<br />
de Loyola concebeu a Ordem<br />
Religiosa que ele fundou,<br />
à maneira de um exército; por<br />
isso, deu-lhe o nome de Companhia<br />
de Jesus. Companhia naquele tempo<br />
queria dizer batalhão, regimento<br />
ou exército. Era, portanto, Exército<br />
de Jesus. E para que os sacerdotes da<br />
Companhia de Jesus tivessem toda a<br />
eficácia na sua luta contra os restos<br />
do Renascimento e a explosão protestante,<br />
ele quis que fossem marcados<br />
com todas as notas do espírito<br />
militar, entre as quais um eminente<br />
espírito de obediência.<br />
A condição militar supõe a obediência,<br />
e um exército sem obediência é um<br />
exército aniquilado. De maneira que<br />
faz parte da honra militar a disciplina.<br />
Portanto, uma das notas de esplendor<br />
da condição militar, aos olhos de todo<br />
mundo, é a compenetração e a varonilidade<br />
com que o militar obedece.<br />
20
cia e Contra-Revolução<br />
S. Miyazaki<br />
Para o revolucionário<br />
a obediência é<br />
uma vergonha<br />
Falo de compenetração e varonilidade<br />
e já temos aqui um dos pontos<br />
de atrito entre o espírito da Revolução<br />
e o da Contra-Revolução.<br />
De acordo com o espírito revolucionário,<br />
obedecer é uma vergonha,<br />
mandar também não é uma beleza.<br />
O bonito é não obedecer nem mandar,<br />
mas ser igual a todo mundo. Isto<br />
porque o revolucionário procede<br />
da ideia de que todo homem é inteiramente<br />
capaz de conhecer todas as<br />
verdades de que seu espírito precisa<br />
para se orientar; e de governar as suas<br />
paixões desordenadas, de maneira<br />
a praticar o bem e evitar o mal. Em<br />
consequência, todos os homens são<br />
perfeitamente iguais. Não há nenhuma<br />
razão para um homem dar conselho<br />
ou uma ordem a outro, nem<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em dezembro de 1994.<br />
sofrer a vigilância, a fiscalização de<br />
outro. Portanto, não há motivo para<br />
haver disciplina.<br />
Então, o revolucionário interpreta<br />
a obediência como uma atitude<br />
de alma vergonhosa do indivíduo<br />
indolente e mole, que tem preguiça<br />
de escolher o seu próprio caminho,<br />
de encontrar as verdades necessárias<br />
para se orientar na vida. É, então,<br />
por moleza que um homem defere<br />
essa atribuição a outros e se deixa<br />
guiar.<br />
Seria mais ou menos como um<br />
indivíduo que, por preguiça de<br />
abrir os olhos e olhar em torno de<br />
si, os fecha, dá a mão para um outro<br />
e diz: “Guie-me, porque ao menos<br />
assim eu vou babando pelo caminho.”<br />
Se um homem tem olhos e<br />
meios de caminhar, ele vai se conduzir<br />
por si.<br />
Então, para o espírito revolucionário<br />
a obediência é uma vergonha.<br />
Para o<br />
contrarrevolucionário é<br />
um ato de bom senso,<br />
de fidelidade e de força<br />
O militar considera o contrário.<br />
Ele sabe que a unidade de ação só<br />
pode resultar de uma unidade de<br />
mando; e para que uma grande ação<br />
de conjunto se desenvolva é preciso<br />
uma grande capacidade. Ora, os homens<br />
não têm a mesma capacidade,<br />
e um exército bem constituído deve<br />
destilar os seus valores. De maneira<br />
que os de mais altas qualidades cheguem<br />
à cúpula e sejam capazes de<br />
encontrar e de indicar o caminho para<br />
aqueles que estão numa categoria<br />
intermediária; e estes por sua vez<br />
orientem os menos graduados. Dessa<br />
forma, no topo da hierarquia militar<br />
há aqueles que são mais competentes,<br />
ou se presume que o sejam,<br />
pelos estudos que fizeram. Nos países<br />
que realizam operações militares,<br />
existe uma hierarquia de competências,<br />
de idades, de experiência,<br />
que vai distribuindo os conhecimentos<br />
e a capacidade de impulso<br />
da cúpula, sucessivamente, aos vários<br />
graus da escala militar até a base.<br />
E com isso se forma a ordenação<br />
de um exército.<br />
Conforme essa interpretação, a<br />
obediência é uma virtude. Ela é antes<br />
de tudo um grande ato de lucidez<br />
pelo qual uma pessoa reconhece<br />
que pode não ter tanta capacidade<br />
quanto uma outra; e algo que mais<br />
comprova ser cretino um indivíduo,<br />
se este imagina que ninguém possa<br />
ser mais capaz do que ele. Porque isto<br />
indica que ele não vê dois dedos<br />
diante do nariz; é incapaz de olhar<br />
para cima. Ora, a mais nobre das po-<br />
21
Revolução e Contra-Revolução<br />
D. Iallorenzi<br />
sições da cabeça do homem é olhar<br />
para cima.<br />
É um ato de bom senso, de lucidez,<br />
reconhecer que outros, por serem<br />
mais inteligentes, terem mais<br />
competência ou mais experiência,<br />
são mais capazes do que nós para<br />
encontrar o caminho.<br />
Fazer o que o outro quer é um<br />
ato de ascese. Porque somos sempre<br />
tendentes a conceder demais para<br />
nós mesmos, a arranjarmos pequenos<br />
confortos, pequenas regalias,<br />
pequenas exceções, pequenos prazos,<br />
pequenas traições por onde não<br />
cumprimos o nosso dever. E cumprir<br />
a vontade de um outro é muitas<br />
vezes dolorido, porque temos a impressão<br />
de que uma coisa é de um<br />
jeito, e o outro nos diz que é de um<br />
jeito diferente. Dolorido porque renunciamos<br />
a uma porção de vantagens<br />
pessoais para fazer o que o outro<br />
está mandando. Então, é preciso<br />
ter varonilidade, decisão, capacidade<br />
de enfrentar o sofrimento, a<br />
dor, de fazer o que deve ser feito; isto<br />
caracteriza o verdadeiro espírito<br />
militar.<br />
Exatamente ao contrário do que<br />
pensa a Revolução, para a Contra-<br />
-Revolução a obediência é um ato de<br />
bom senso, de fidelidade e de força.<br />
Portanto é uma honra.<br />
Cristo morto - Salta, Argentina.<br />
Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, paradigma da<br />
virtude da obediência<br />
Entre as Ordens Religiosas, aquela<br />
que, por sua analogia com o espírito<br />
militar, mais ensina a grande virtude<br />
da obediência é a Companhia<br />
de Jesus. Virtude essa cujo paradigma<br />
foi Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
a respeito do Qual diz a Escritura:<br />
“Ele se fez obediente até a morte,<br />
e morte de cruz” 1 . É belo vermos<br />
como Ele não se deixou vergar por<br />
nenhum poder da Terra, falou com a<br />
cabeça erguida e com divina e vigorosa<br />
altaneria contra todos os grandes<br />
da sinagoga e os grandes que representavam<br />
o Império Romano em<br />
Israel. É pulcro contemplar Jesus falando<br />
Àquele que era verdadeiramente<br />
superior a Ele, o Padre Eterno,<br />
nas orações que fazia.<br />
A meu ver — naturalmente é uma<br />
impressão pessoal —, os mais belos<br />
trechos do Evangelho são as orações<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
quando Ele se dirige ao Padre Eterno.<br />
Sendo a Segunda Pessoa da Santíssima<br />
Trindade, perfeitissimamente<br />
igual ao Padre Eterno — inferior,<br />
é verdade, na sua natureza humana<br />
—, Ele se dirige a Deus Pai com<br />
um respeito, um afeto, uma submissão,<br />
uma naturalidade, uma união,<br />
que, segundo me parece, constituem<br />
as páginas mais sublimes do Evangelho.<br />
O que não é dizer pouco, porque<br />
no Evangelho tudo é sublimíssimo;<br />
o Evangelho é uma concatenação<br />
de sublimidades, umas depois<br />
das outras. Tais orações mostram<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo obedecendo,<br />
no ato de prestar a reverência<br />
à autoridade devida.<br />
Ninguém poderá jamais exprimir o<br />
que foi o modo pelo qual Nosso Senhor<br />
obedeceu a Nossa Senhora e a<br />
São José. Não se tem ideia do respeito,<br />
da exatidão, da prontidão com que<br />
Ele fazia esses atos de obediência. Tocamos<br />
aqui em mistérios divinos da<br />
Alma de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
e percebemos a fímbria de uma obediência<br />
transcendente, glorificando e<br />
santificando todas as obediências que<br />
depois d’Ele se prestariam, ao longo<br />
dos séculos, a todas as autoridades<br />
legítimas das quais o Redentor era a<br />
mais alta expressão e ao mesmo tempo<br />
o fundamento.<br />
Obedecer sempre, exceto<br />
se a ordem colidir com<br />
a Doutrina Católica<br />
Na obediência há uma coisa particularmente<br />
dura. Em princípio, aquele<br />
que obedece pratica o ato de obediência<br />
porque reconhece em quem<br />
manda maior inteligência e capacidade;<br />
paradoxalmente, o resultado desse<br />
princípio é obedecer a quem tem<br />
menos inteligência e menos capacidade.<br />
Porque nesta Terra nem sempre<br />
a relação se faz de maneira que<br />
os mais inteligentes, os mais capazes,<br />
nem mesmo os melhores subam mais.<br />
Embora seja o normal, nem sempre<br />
isso ocorre.<br />
Mas, em atenção ao princípio de<br />
que o homem não deve discutir os<br />
seus superiores, a não ser quando se<br />
trata de uma colisão contra a Doutrina<br />
Católica e a Lei de Deus — neste<br />
caso é preciso não obedecer, por-<br />
22
que a Doutrina Católica e a Lei<br />
de Deus estão acima de tudo —,<br />
ele precisa submeter-se e obedecer,<br />
mesmo vendo que aquele<br />
que manda é menos, sabe menos.<br />
Porque se cada um começar<br />
a discutir o superior, tudo se desagrega.<br />
Ao menos atendendo ao<br />
superior, ainda que menos capaz,<br />
uma obra comum se realiza.<br />
É uma espécie de requinte,<br />
uma sublimidade da obediência.<br />
E até lá, em inúmeros episódios,<br />
os jesuítas da época áurea manifestaram<br />
o seu espírito de obediência.<br />
Maravilhoso fato<br />
ocorrido com Santa<br />
Teresa de Ávila<br />
S. Hollmann<br />
Compreende-se assim que<br />
membros de nosso Movimento,<br />
especialmente filhos da obediência<br />
— a expressão é de Santa<br />
Teresa de Jesus, que era filha da<br />
obediência —, gostem de um trecho<br />
de Santo Inácio de Loyola que passarei<br />
a comentar. São as normas que<br />
ele deixou para um jesuíta e que estão<br />
no testamento do Santo.<br />
Desde que um jesuíta entra na Ordem,<br />
seu primeiro cuidado será abandonar-se<br />
plenamente ao governo de<br />
seu superior.<br />
Quer dizer, não discutir, não analisar,<br />
seguir inteiramente o que o superior<br />
mandar. O superior é uma necessidade;<br />
pela ordem natural das<br />
coisas ele ali está representando<br />
Deus. A única coisa aonde a obediência<br />
não chega é aceitar a heterodoxia<br />
ou o mal.<br />
Segundo: se um jesuíta caísse nas<br />
mãos de um superior que dominasse<br />
seu juízo, seria desejável que ele estivesse<br />
inteiramente disposto a isso.<br />
Quer dizer, se um jesuíta estiver<br />
nas mãos de um superior menos<br />
competente, o qual lhe fizesse pensar<br />
uma determinada coisa, ele deve<br />
obedecer.<br />
Santa Teresa - Zurbarán, Catedral<br />
de Sevilha (Espanha).<br />
Ele não se deixou<br />
vergar por nenhum<br />
poder da Terra,<br />
falou com a cabeça<br />
erguida e com divina<br />
e vigorosa altaneria<br />
contra todos os<br />
grandes da Sinagoga<br />
e do Império<br />
Romano.<br />
Conhecemos esse fato maravilhoso,<br />
na vida de Santa Teresa de Jesus:<br />
inverno rigoroso, nada se planta; sua<br />
superiora lhe diz: “Irmã Teresa, vá<br />
ao jardim e plante esses aspargos de<br />
cabeça para baixo.”<br />
Era uma asnice, mas não um pecado.<br />
Tratava-se de uma ação de si<br />
indiferente. Ela vai ao jardim e planta<br />
os aspargos de modo errado, e no<br />
prazo adequado, apesar do inverno,<br />
os aspargos vicejam maravilhosamente.<br />
A bênção de Deus tinha<br />
caído sobre a obediência. E<br />
houve um milagre para provar<br />
quanto Deus gosta daqueles que<br />
sacrificam sua opinião ao modo<br />
de pensar dos superiores.<br />
É o oposto do durão que tem<br />
quinze objeções e, depois de<br />
vencidas essas objeções, vem<br />
com mais três ou quatro ininteligíveis,<br />
as quais são o último recurso<br />
que ele emprega para recalcitrar<br />
de todo jeito. E quando<br />
obedece resmunga, e executa<br />
o serviço ordenado de modo<br />
malfeito.<br />
Aqui é o contrário. Deve haver<br />
inteira placidez nas mãos do<br />
superior, que manda aquilo que<br />
o jesuíta deve fazer.<br />
Terceiro ponto: em todas as<br />
coisas onde não há pecado, é preciso<br />
que eu siga o juízo do superior<br />
e não o meu.<br />
É o mesmo princípio.<br />
Três modos de obedecer<br />
Quarto ponto: há três maneiras de<br />
obedecer. A primeira quando fazemos o<br />
que nos é mandado em virtude da obediência.<br />
E essa maneira é boa. A segunda,<br />
que é melhor, quando obedecemos<br />
a simples ordens. A terceira e a mais<br />
perfeita de todas, quando não esperamos<br />
a ordem do superior, mas a prevemos<br />
e adivinhamos a sua vontade.<br />
Numa Ordem Religiosa, na era<br />
clássica, quando um superior, em nome<br />
da santa obediência, mandava um<br />
religioso fazer alguma coisa dizia-lhe:<br />
“Ajoelhe-se porque o senhor vai receber<br />
uma ordem em nome da santa<br />
obediência.” Parece que na Companhia<br />
de Jesus a fórmula, lindíssima,<br />
era esta: “Pela graça e pelo amor de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.” Isso significava<br />
que o inferior ia receber uma<br />
ordem em nome da santa obediência.<br />
Ajoelhava-se e o superior dava uma<br />
ordem. Se esta fosse negligenciada,<br />
23
Revolução e Contra-Revolução<br />
S. Hollmann<br />
cometia um pecado mortal. Portanto<br />
tinha que ser cumprida, custasse o<br />
que custasse. Esse tipo de ordem se<br />
fazia de modo relativamente raro, somente<br />
quando o inferior se encontrava<br />
em estado de revolta.<br />
Mas há um outro modo mais corrente,<br />
conforme o qual o superior<br />
simplesmente afirma: “Padre Fulano,<br />
o senhor agora vai fazer tal coisa.”<br />
A violação de uma ordem assim<br />
não implica em pecado mortal, mas<br />
em pecado venial, às vezes em simples<br />
falta, mas era uma atitude contra<br />
a obediência.<br />
Existe um terceiro modo de obediência,<br />
pelo qual o súdito adivinha<br />
o que o superior quer e vai fazer antes<br />
de ser mandado. Então, conforme<br />
Santo Inácio de Loyola, é bom obedecer<br />
acuado entre a espada e a parede;<br />
Santa Teresinha - Catedral<br />
de Baiona, França.<br />
melhor é obedecer apenas com uma<br />
ordem que não é tão imperativa; mas<br />
o ideal é ter o espírito feito de tal maneira<br />
que, antes mesmo de o superior<br />
dizer o que quer, o religioso obedece.<br />
Santa Teresinha obedecia<br />
a uma superiora<br />
cheia de caprichos<br />
Para entendermos o pleno sentido<br />
de tudo isso, devemos imaginar a época<br />
de Santo Inácio, São Francisco Xavier,<br />
São Francisco de Borja, o qual<br />
foi Geral da Companhia de Jesus.<br />
Suponhamos Santo Inácio, em<br />
seu convento, rezando, pensando,<br />
dando ordens, tudo em virtude de<br />
uma doutrina altíssima, sublimíssima,<br />
bem como de visões e revelações<br />
que ele recebia de Deus Nosso<br />
Senhor. É sabido que os “Exercícios<br />
Espirituais” lhe foram ditados por<br />
Nossa Senhora, na gruta de Manresa.<br />
Ele era um homem que difundia<br />
em torno de si o sobrenatural. O<br />
que devia fazer o bom súdito? Compreender<br />
o espírito, a mentalidade, a<br />
doutrina de Santo Inácio, de maneira<br />
que antes mesmo de este falar já<br />
entendia o que ele queria, e executava<br />
a vontade do Santo. O súdito se<br />
tornava, assim, um outro Santo Inácio.<br />
E o espírito de Santo Inácio se<br />
transmitia para ele, mais ou menos<br />
como o espírito de Elias passou para<br />
Eliseu.<br />
Consideremos, por exemplo, Santa<br />
Teresinha tendo que prestar obediência<br />
a uma superiora que deixava<br />
muito a desejar, como era a sua.<br />
São duas situações em que se obedece<br />
em condições completamente<br />
diferentes. Qual é a obediência<br />
mais bonita? A de um súdito de Santo<br />
Inácio que, olhando enlevado para<br />
o Santo e procurando haurir seu<br />
espírito, ser outro ele mesmo, procura<br />
adivinhar o que Santo Inácio<br />
quer? Ou a de uma Santa Teresinha<br />
do Menino Jesus diante da superiora,<br />
como Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
no Pretório de Pilatos, e carregando<br />
de forma invisível, por cima do véu<br />
de religiosa, uma verdadeira coroa<br />
de espinhos?<br />
Realmente não sabemos, mas vemos<br />
a beleza dos dois estilos, dos<br />
dois modos de obediência, e como<br />
em todas as circunstâncias a obediência<br />
é uma verdadeira maravilha.<br />
Obedecer não apenas<br />
ao superior, mas aos<br />
que ocupam escalões<br />
intermediários<br />
São maravilhas da obediência que<br />
o mundo revolucionário não conhece,<br />
e sobre as quais é construído o mundo<br />
contrarrevolucionário. Isto arrepia<br />
um revolucionário e ao mesmo tempo<br />
o acachapa, porque com sua independenciazinha,<br />
sua liberdadezinha,<br />
ele fica tão pequeno como uma pulga<br />
insignificante e suja. E nós, diante da<br />
grandeza dessas duas situações extremas,<br />
compreendemos bem o esplendor<br />
da Contra-Revolução.<br />
Quinto ponto: deve obedecer indiferentemente<br />
a toda espécie de superiores,<br />
sem distinguir o primeiro do segundo,<br />
nem do último, mas considerar<br />
em todos igualmente a Nosso Senhor,<br />
de que eles ocupam o lugar, e<br />
lembrar-se de que a autoridade se comunica<br />
ao último por aqueles que estão<br />
acima dele.<br />
O pensamento contido nesse princípio<br />
é o seguinte: no alto da pirâmide<br />
está Santo Inácio de Loyola; numa<br />
porção de escalões inferiores há menos<br />
santos e menos Inácios. É fatal. E<br />
no nível mais baixo estaria aquele que<br />
corresponderia ao sargento dentro de<br />
uma instituição militar. Mas é preciso<br />
obedecer, porque, diz ele, a autoridade<br />
que está acima se comunica pelos<br />
inferiores. Nada de querer obedecer<br />
somente àquele que está no mais alto,<br />
mas, pelo contrário, sempre fazer<br />
tudo de acordo com as demais autoridades<br />
que estão abaixo. O único mo-<br />
24
do de fazer a vontade dos superiores<br />
é obedecer aos que estão<br />
em baixo.<br />
São Charbel<br />
Mackhluf e o caso<br />
da lamparina<br />
R. Cordón.<br />
Lembro-me de um fato<br />
que faz parte da obediência,<br />
no sentido de que o súdito<br />
não somente deve cumprir<br />
o que manda o superior, mas<br />
também receber sem protesto<br />
as punições por ele impostas,<br />
mesmo quando essas punições<br />
são injustas ou pitos insultantes<br />
que, em tese, o inferior não<br />
tem a obrigação de aceitar. É<br />
uma das formas de obediência:<br />
a paz e a serenidade diante da<br />
repreensão injusta.<br />
Li a biografia, que é uma<br />
verdadeira maravilha, de São<br />
Charbel Mackhluf, monge<br />
oriental do rito maronita. Ele<br />
vivia em um convento situado<br />
num dos montes do Líbano,<br />
cujos religiosos se dedicavam<br />
à oração e a algum trabalho manual,<br />
como fazer cestinhas e objetos<br />
análogos, no silêncio mais completo.<br />
Ele era um homem tão obediente<br />
que pedia licença para tudo. E nessa<br />
tebaida santíssima seu superior tinha<br />
raiva de São Charbel. Às vezes, este<br />
ia pedir uma ordem para o superior,<br />
que lhe dizia o seguinte: “Será possível<br />
que o senhor seja tão imbecil que<br />
não saiba resolver isso por si? E precisa<br />
vir me pedir uma ordem?”<br />
Imaginemos São Charbel de capuz,<br />
alto, de barba grande, fisionomia<br />
tranquila e recolhida, e com<br />
a cabeça baixa. Depois de receber<br />
uma descompostura, ele olhava para<br />
o superior, à espera da ordem, porque<br />
o regulamento assim o exigia. O<br />
superior afinal dava uma ordem, e<br />
São Charbel saía para cumpri-la.<br />
Era um homem indomável. Pois<br />
homens que sabem obedecer são<br />
São Charbel Mackhluf.<br />
indomáveis. No primeiro convento<br />
onde ele havia ingressado, nunca<br />
era permitido a entrada de mulher.<br />
Certo dia, por uma razão qualquer,<br />
entraram algumas mulheres<br />
lá. O fato se repetiu duas ou três vezes.<br />
Sem dar satisfação a ninguém,<br />
São Charbel mudou-se para outro<br />
convento. Era um direito natural<br />
que ele exercia: “Eu vim aqui para<br />
me santificar; a regra foi infringida<br />
e minha salvação eterna está comprometida<br />
com esse fato. Aqui está<br />
meu direito: saio deste convento e<br />
vou para outro.”<br />
Indomável! Mas de outro lado,<br />
era o mais domável dos homens. Depois<br />
de passar anos debaixo das descomposturas<br />
desse superior, uma<br />
noite ele se lembrou de que lhe faltava<br />
uma parte do Breviário para rezar.<br />
Evidentemente não era meia-<br />
-noite ainda.<br />
Ele se dirigiu à capela para<br />
rezar e depois foi à sua cela para<br />
terminar as orações, levando<br />
um pouco de fogo. Chegando<br />
lá, viu que não tinha azeite<br />
na lamparina, mas apesar disso<br />
acendeu-a e continuou a rezar.<br />
Era tarde da noite, todos já<br />
recolhidos, e o superior, vendo<br />
a luz acesa na cela de São<br />
Charbel, foi para lá rugindo<br />
de raiva. Porque pessoas assim<br />
são a favor de todas as liberdades,<br />
exceto da liberdade de alguém<br />
rezar mais ou fazer mais<br />
penitência. Bateu na porta e<br />
entrou.<br />
— Que é isto? Luz acesa a<br />
esta hora, onde é que se viu?<br />
O Santo quieto.<br />
— Explique-me qual a razão,<br />
porque nesta hora todos<br />
já devem estar recolhidos.<br />
— Padre, eu vos peço desculpas,<br />
mas o dia inteiro, pela<br />
ordem de Vossa Paternidade,<br />
eu estive trabalhando e só agora<br />
encontrei tempo para rezar<br />
o Breviário.<br />
— Rezar o Breviário?! E como<br />
conseguiu azeite para a sua lamparina?<br />
De onde o retirou?<br />
Respondeu São Charbel:<br />
— Padre, a lamparina não tem<br />
azeite, está cheia de água.<br />
O superior viu a mecha da lamparina<br />
ardendo na água e apenas disse<br />
o seguinte: “Reze por mim.” Saiu e<br />
fechou a porta.<br />
Aquela era a chama da obediência,<br />
ardendo até na água. São os milagres<br />
da obediência.<br />
Temos assim a explicação profunda<br />
a respeito desta obediência que<br />
nós, como contrarrevolucionários,<br />
devemos amar tanto. v<br />
1) Fl 2,8.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 13/11/1971)<br />
25
O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Uma conversa de Jesus…<br />
Imaginando a vida quotidiana de Jesus, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> realiza<br />
como a Alma de Nosso Senhor se elevava<br />
às mais altas cogitações, sem entretanto abandonar<br />
a proporção normal de um homem.<br />
S. Miyazaki<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1991.<br />
Suponhamos que o Redentor<br />
estivesse descansando em<br />
casa de Lázaro; Ele comia<br />
e mantinha uma conversa normal,<br />
quer dizer, propriamente conversa à<br />
bâton rompu.<br />
Nosso Senhor deveria dar um discreto<br />
valor à comida. Então, nesta<br />
perspectiva, como seria o trato com<br />
Ele, que impressão causaria?<br />
Parece-me que todas as suas expressões<br />
seriam sumamente coerentes<br />
umas com as outras, em que o<br />
olhar, a voz, os gestos, o porte, a atitude<br />
da cabeça e o modo de se dirigir<br />
às pessoas, ou de ouvir o que elas Lhe<br />
falavam, tudo isto deveria apresentar<br />
um unum perfeito, dando a ideia de<br />
uma harmonia completa. De maneira<br />
que Jesus devia causar aquela impressão<br />
vitorina de emoção estética<br />
total, porém ainda mais alta porque<br />
não era só a estética física, mas através<br />
desta, a estética psicológica, moral.<br />
Quer dizer, com uma proporção,<br />
uma beleza perfeita, e a Alma que se<br />
via por detrás era incomparável, causando<br />
a impressão de se tocar no divino,<br />
no inefável, embora não fosse<br />
a visão beatífica. Era propriamente a<br />
ética estética total.<br />
Figuremos Nosso Senhor à mesa,<br />
comendo um cordeiro que Lhe<br />
tivessem preparado. Ele faz um comentário<br />
qualquer: “Este cordeiro<br />
foi alimentado com tal coisa assim,<br />
na perspectiva de nosso encontro.”<br />
E alguém diz: “Aliás, foi difícil laçá-<br />
-lo, o cordeiro saltava muito”, e conta<br />
que o cordeiro pulou do colo de<br />
um escravo para fugir. E o Redentor,<br />
na sua natureza humana, ouve entretido<br />
a narração desse fato.<br />
E no entretenimento veríamos<br />
aquela espécie de bondade, do enormemente<br />
maior que sente coesão e<br />
continuidade com o tema pequeno, e<br />
não julga que este seja indigno d’Ele.<br />
Pelo contrário, Nosso Senhor, tomando<br />
conhecimento do fato, compreenderia.<br />
Durante a conversa se perceberia<br />
que ora sua humanidade santíssima<br />
transparecia mais, quer dizer, subia<br />
em considerações comunicadas pela<br />
natureza divina, ora transparecia menos,<br />
mantendo, entretanto, uma proporção<br />
com a conversa. De maneira<br />
que no ambiente havia um fundo discreto,<br />
que não convidava a fazer Teologia,<br />
mas a sentir o tema concreto do<br />
cordeirinho, túmido de outras coisas<br />
nas quais o Redentor não entrava, mas<br />
apenas — para usar uma expressão<br />
que não indica bem o que eu quero dizer<br />
— aromatizava. Ele punha molho<br />
naquilo, mas não deslocava o assunto,<br />
e a conversa continuava caseira.<br />
26
S. Hollmann<br />
Noção divina das<br />
correlações<br />
Jesus pregando a seus discípulos - Lisieux, França.<br />
Notar-se-ia a transição suave,<br />
harmônica da Alma do Divino Mestre<br />
para o mais elevado, com lampejo<br />
do mais alto, e depois voltar ao<br />
comum, a propósito das várias coisas<br />
tratadas na conversação. Uma flexibilidade<br />
de alma e uma noção divina<br />
das correlações: o modo pelo qual<br />
um tema encaixa, imbrica com outro;<br />
o valor simbólico das coisas; tudo<br />
posto tão bem, e correlacionado<br />
com tanta suavidade, harmonia, facilidade<br />
— todas as palavras são impróprias<br />
para falar d’Ele, por causa<br />
da excelsitude —, com tanto dégagé,<br />
que nossa alma ficaria simplesmente<br />
encantada de sentir os espaços interplanetários<br />
que separam um assunto<br />
do outro, transpostos por Nosso Senhor<br />
com tanta facilidade e conduzidos<br />
de um lado para outro com uma<br />
naturalidade, sem deixar as pessoas<br />
propriamente — note-se bem — extasiadas<br />
e fora do teor da conversa<br />
privada.<br />
O êxtase viria pouco depois que o<br />
Redentor tivesse ido embora, quando<br />
as pessoas se sentissem sem Ele<br />
e percebessem o diferente de tudo.<br />
Teriam vontade de dizer: “Por que<br />
Há quem julgue que<br />
as pequenas coisas<br />
da vida de Nosso<br />
Senhor são impróprias<br />
de serem contadas,<br />
porque toldam<br />
a atmosfera dos<br />
grandes momentos.<br />
Pelo contrário,<br />
elas constituem<br />
uma espécie de<br />
continuidade com os<br />
grandes momentos.<br />
fiquei aqui e não fui atrás de Jesus,<br />
uma vez que viver é estar ao lado<br />
d’Ele?” E se alguém levanta um assunto<br />
prático, nem se interessam.<br />
Todo mundo está discretamente<br />
deliciado, mas é uma autêntica conversa<br />
doméstica, na superfície.<br />
As várias teclas<br />
através das quais Jesus<br />
tratava os assuntos<br />
O melhor dessa conversa seria os<br />
momentos nos quais se percebia que<br />
a Alma de Nosso Senhor tocava nas<br />
mais altas cogitações. Era um olhar,<br />
um timbre de voz, talvez um comentário<br />
ligeiro, deixando entrever outras<br />
ideias, mas sem nada da indireta<br />
de salão, que é trabalhosa, porque<br />
nada disto deve ser imaginado trabalhoso.<br />
Tudo normal, magnífico e facílimo,<br />
que é o próprio d’Ele, evidentemente.<br />
E as pessoas ficavam verdadeiramente<br />
maravilhadas pelo seguinte<br />
aspecto, entre mil outros: sentir como<br />
Jesus tomava o tamanho das várias<br />
teclas por onde fosse tratando<br />
os assuntos; quando falava de um tema<br />
comum, Ele tinha uma proporção<br />
do auge da beleza daquilo, deixando<br />
apenas entrever muito vagamente<br />
outros auges, que na Alma de<br />
Nosso Senhor residiam.<br />
Quando Ele falava apenas de raspão<br />
do maior dos assuntos, sentiriam<br />
que tratava aquilo de igual a igual. De<br />
27
O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Em qualquer dos estágios se notaria<br />
a tristeza, a seriedade, a promaneira<br />
que aquele Homem, há pouco<br />
tempo tão igual aos outros, de repente<br />
aparecia como num píncaro de<br />
uma montanha, mas por instantes, e<br />
logo depois estava de novo misturado<br />
com as pessoas. Em seguida, tratando<br />
de alguma coisinha, o Divino Mestre<br />
ficava de tal maneira comprazido,<br />
condescendido, que se diria que Ele<br />
descia até a coisa e esta se elevava até<br />
Ele. Por exemplo, se enquanto Nosso<br />
Senhor falava entrasse um passarinho<br />
na sala — aquelas salas eram muito<br />
abertas — e pousasse perto d’Ele,<br />
sem milagres, cena comum, o Redentor<br />
acharia graça em ver o passarinho<br />
comer uma migalha de pão.<br />
Ele sorriria com isto, de tal modo<br />
que tudo aquilo que simboliza o passarinho<br />
comer a migalha de pão se perceberia<br />
que Ele relaciona com o mais<br />
alto, mas achava interessante ver o<br />
mais elevado enquanto simbolizado no<br />
menor. Não é de nenhum modo, portanto,<br />
efetuar uma abstração, e passar<br />
a fazer Filosofia ou Teologia, mas comprazer-se<br />
em ver o mais alto simbolizado,<br />
alojado, se quiserem, dentro do<br />
menor e como que um com o menor.<br />
Então, Jesus diria uma palavra<br />
encantadora qualquer, mas também<br />
não de arrebentar.<br />
Insinuando que era<br />
o Cordeiro de Deus<br />
De repente, a respeito do cordeiro,<br />
tema da conversa, Nosso Senhor<br />
faz uma insinuação de que Ele era o<br />
Cordeiro de Deus, um dia seria morto,<br />
e que todos se preparassem. Mas,<br />
digamos, durante a conversa, talvez<br />
falasse disso uma só vez.<br />
Os Evangelhos não fazem referência<br />
a uma conversa assim. Acho<br />
que cinco quintilhões de livros não<br />
dariam para registrar uma conversa<br />
com Ele, porque tudo era memorável,<br />
com o ar mais natural do mundo.<br />
Tenho a impressão de que isto é<br />
muito mais reconstituível pela piedade<br />
do que escrevível e legível.<br />
Então, quando Jesus fizesse tal<br />
afirmação, haveria um frêmito, mas<br />
não à maneira de uma cena renascentista:<br />
uma pessoa se levanta, outra<br />
faz não sei o quê. Não. Todo<br />
mundo continua a conversar. Penetrou-se<br />
até ao fundo, ao extremo de<br />
Nosso Senhor; depois aquilo passa e<br />
fica uma tinta depositada nas almas.<br />
Alegria, seriedade,<br />
tristeza<br />
Jesus dava assim uma noção conjunta<br />
de sua divindade — a conaturalidade<br />
d’Ele com o divino — e a relação<br />
de todas as coisas com Ele, como<br />
se tudo existisse apenas para ser relacionado<br />
com Nosso Senhor. Aqui<br />
está o que eu quereria exprimir, mas<br />
não sei se conseguirei fazê-lo.<br />
Se na sala onde<br />
Nosso Senhor<br />
estivesse comendo<br />
entrasse uma brisa<br />
refrigerante, Ele faria<br />
um comentário, com<br />
um gáudio apenas<br />
insinuado; aquele<br />
zéfiro era apenas<br />
um símbolo de uma<br />
alegria fulgurante: a<br />
visão beatífica.<br />
Tal era seu modo de ser que se notaria<br />
uma hierarquia de valores harmônica<br />
e sumamente bem encaixada,<br />
procedente do mais alto, com uma<br />
gravidade extraordinária e uma luminosidade<br />
impossível de ser qualificada;<br />
e descendo depois degrau por degrau,<br />
de maneira que em cada degrau<br />
por onde passasse, a Alma d’Ele deitasse<br />
outro reflexo de si mesma, mas<br />
não se sentisse esgotada; manifestando-se<br />
nos mais altos e deitando um<br />
reflexo novo e adequado em cada<br />
degrau menor até o último, formando<br />
propriamente no contraste entre<br />
o maior e o menor e todos os pontos<br />
intermediários, certa forma de imbricamento<br />
e de harmonia que fosse<br />
no mais alto cheia de gravidade e,<br />
ao mesmo tempo, de uma felicidade<br />
transbordante. Jesus não devia irradiar<br />
só tristeza; de vez em quando Ele<br />
transluzia um fulgor de felicidade.<br />
Se, por exemplo, na sala onde Nosso<br />
Senhor estivesse comendo entrasse<br />
uma brisa refrigerante, Ele faria<br />
um comentário, com um gáudio apenas<br />
insinuado; aquele zéfiro era apenas<br />
um símbolo de uma alegria fulgurante:<br />
a visão beatífica. Mas tudo nas<br />
proporções de uma conversa comum;<br />
não são de nenhum modo os grandes<br />
momentos do Evangelho, mas os momentos<br />
normais da vida d’Ele.<br />
Então haveria esse entrelaçamento<br />
de alto a baixo. No alto, a alegria<br />
esplendorosa e seriedade enorme,<br />
acompanhada de uma tristeza noturna,<br />
que era uma espécie de prenúncio<br />
do Calvário.<br />
Nos graus intermediários, a conaturalidade<br />
com o homem: a seriedade,<br />
as alegrias e as tristezas proporcionais<br />
a nós. E nos graus menores,<br />
a alegria de todas as coisas pequenas<br />
e graciosas com aquela forma de dor<br />
e de sofrimento própria da inocência<br />
da criança.<br />
E notar isto passando de um lado<br />
para outro daria uma espécie de<br />
noção de hierarquia, como nenhuma<br />
ordem social, nem política, nem estética,<br />
ou qualquer outra pode dar.<br />
Tal noção seria transmitida pela voz,<br />
pelo olhar, pelo modo de ser de Nosso<br />
Senhor, com uma espécie de plenitude<br />
do que o homem deve sentir a<br />
cada momento.<br />
Após a saída de Nosso<br />
Senhor, recordar as<br />
diversas cenas<br />
28
F. Lecaros<br />
porcionalidade e também a alegria,<br />
que a tudo acompanhava. E quando<br />
Jesus saísse, uma pessoa que tivesse<br />
critério se destacaria cuidadosamente<br />
da roda e, andando sozinha<br />
pelo jardim, se sentaria no beiral de<br />
um poço; não faria nenhuma reflexão,<br />
mas deixaria aquelas cenas voltarem<br />
ao seu espírito e, à tardinha,<br />
depois de esgotados os últimos reflexos,<br />
ela começaria a pensar. Ou seja,<br />
muito depois de degustar é que viria<br />
a reflexão.<br />
E no final da reflexão, esta ideia:<br />
“Eu vou deixar tudo e segui-Lo. Não<br />
quero mais saber daquele plano de<br />
passar uma quinzena em Jerusalém<br />
na minha bonita casa. É verdade que<br />
estou precisando comprar uma túnica<br />
nova, mas deixarei isto para depois.<br />
Onde é que Ele está?” E possivelmente<br />
o indivíduo não esperaria a aurora<br />
para ir ao encalço de Nosso Senhor.<br />
Continuidade entre<br />
os pequenos e os<br />
grandes momentos<br />
da vida de Jesus<br />
Embora não escrito, algo disso ficou<br />
transmitido e permanecerá até o<br />
fim do mundo. Sempre que um católico<br />
verdadeiro, um bom professor<br />
de catecismo, um bom sacerdote,<br />
bons pais pronunciam a palavra<br />
“Jesus” ou “Jesus Cristo”, todos esses<br />
imponderáveis, por uma tradição<br />
meio avivada por carismas, continuam<br />
e caminham nesta linha.<br />
Falando a respeito de Jesus, o<br />
protestantismo toca com o piano<br />
quebrado, faltam sempre algumas<br />
notas. O calvinismo faz hipertrofia<br />
da seriedade e o luteranismo da bonomia<br />
d’Ele, não um simples exagero,<br />
mas uma hipertrofia leprosa.<br />
A “heresia branca 1 ” julga que essas<br />
pequenas coisas da vida de Nosso<br />
Senhor são impróprias de serem<br />
contadas, porque toldam a atmosfera<br />
dos grandes momentos. Pelo contrário,<br />
tudo isto está numa espécie<br />
de continuidade com os grandes momentos.<br />
Se de repente Nossa<br />
Senhora entrasse<br />
na sala...<br />
E a cena que eu não ousaria imaginar:<br />
Nossa Senhora entrando de<br />
repente na sala. Quando Ela se dirigia<br />
ao local, Jesus em sua humanidade<br />
acutíssima, capacíssima,<br />
sem revelação dos Anjos nem<br />
manifestação do sobrenatural,<br />
sentiria de longe que Maria Santíssima<br />
para lá caminhava.<br />
Nosso Senhor vai Se iluminando<br />
para a chegada d’Ela, tomando<br />
um ar de quem entra em contato<br />
com a companhia das companhias;<br />
é o mundo inteiro para<br />
Ele. Em certo momento, Ele se<br />
levanta e vai de encontro a Ela.<br />
Também Nossa Senhora já<br />
O pressentiu e, quando Ela se<br />
aproxima, os dois Se olham e Se<br />
saúdam. Mas acho impossível<br />
descrever, eu ao menos não consigo.<br />
Todos os encontros de Jesus<br />
com sua Mãe não são descritíveis.<br />
Ora, só em função da descrição<br />
desses encontros, digamos<br />
comuns, é que se compreende o<br />
relacionamento d’Ele com Ela<br />
durante a Paixão, quando se en-<br />
Durante o jantar na casa<br />
de um fariseu, a pecadora<br />
arrependida chora aos pés de<br />
Jesus - Basílica Santa Catarina<br />
de Alexandria, Galatina (Itália).<br />
29
O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
S. Miyazaki<br />
contraram, e até a morte de Nosso<br />
Senhor.<br />
Tenho a impressão de que as sete<br />
palavras d’Ele na Cruz, exceto as<br />
últimas, foram de um sofredor nesta<br />
clave. Mesmo quando Jesus disse:<br />
“Mãe, eis aí teu filho; filho eis<br />
tua Mãe”, o fez com a tal naturalidade<br />
que acabo de referir. Apenas<br />
o último grande brado d’Ele e depois<br />
o ato pontifical — “Meu Pai,<br />
em tuas mãos entrego o meu espírito”<br />
— devem ter sido ditos com<br />
uma solenidade, uma grandeza dentro<br />
do gemido. Aqui seria preciso<br />
mais se tocar música ou pintar do<br />
que falar.<br />
Também a atitude de Nossa Senhora,<br />
creio que se deduz adequadamente<br />
a partir da imaginada conversa<br />
comum.<br />
Nesta Terra, não<br />
devemos querer viver<br />
apenas de apogeus<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1991.<br />
Repito: o convívio quotidiano<br />
com Nosso Senhor era proporcionado<br />
à capacidade receptiva da natureza<br />
humana, como será no Céu.<br />
Digo mais. Acho que há algo de enfermiço<br />
no fato de uma pessoa só se<br />
sentir bem nos apogeus. Na realidade,<br />
devemos ter fome e sede<br />
dos apogeus, mas não<br />
de viver em apogeus,<br />
porque não é de acordo com a<br />
nossa natureza; e estas situações intermediárias<br />
precisam suceder-se<br />
aos apogeus e precedê-los, numa sucessão<br />
que só Deus mede adequadamente.<br />
A Providência gradua através<br />
dos fatos.<br />
Mesmo os encontros<br />
comuns de Jesus<br />
com sua Mãe são<br />
indescritíveis; e é<br />
em função deles<br />
que se compreende<br />
o relacionamento<br />
de ambos durante a<br />
Paixão.<br />
Suponho que no Céu, pela ação<br />
da graça, a alma está elevada a tal<br />
estado que é conatural com ela o pináculo<br />
permanente. Isso se fará de<br />
um modo que não podemos entender,<br />
porque o Paraíso celeste vai ser<br />
infinitamente repousante.<br />
Voltemos ao tema da vida quotidiana<br />
de Nosso Senhor. Se uma pessoa<br />
que tivesse assistido à refeição<br />
de Betânia desta maneira e depois<br />
pensou em Jesus, vendo alguém que<br />
lançasse contra o Divino Salvador<br />
uma ironia ou chacota, sua reação<br />
normal seria a bofetada. Isso só se<br />
compreende devido ao efeito que o<br />
Redentor causou a uma pessoa que<br />
O viu. E a reação dela foi à maneira<br />
da desintegração do átomo.<br />
As perfeições de Nosso<br />
Senhor na mais eleita<br />
das criaturas<br />
Toda criatura, individualmente,<br />
é incapaz<br />
de refletir adequadamente<br />
todas<br />
as perfeições<br />
de Deus. Daí a necessidade de haver<br />
várias criaturas, como sabemos.<br />
E a recíproca disto é que Deus<br />
não pode, nesta Terra e nesta ordem,<br />
fazer aparecer todas as suas perfeições<br />
aos homens num grau que<br />
vá além do que a natureza humana<br />
comporte, porque, por assim dizer,<br />
lota demais as pupilas dos olhos.<br />
Por causa disto, há certas perfeições<br />
em Nosso Senhor que, sem dúvida,<br />
se notam n’Ele, mas com a seguinte<br />
circunstância: se o Redentor<br />
fizesse perceber mais ainda, o<br />
olhar humano como que estalaria.<br />
Então, Ele faz notar estas perfeições<br />
na mais eleita de suas criaturas.<br />
E esta criatura é como que um<br />
desmembramento — como que, entenda-se<br />
bem, porque é uma criatura,<br />
não o Criador —, um suplemento<br />
de Nosso Senhor, fazendo notar algo<br />
que no texto principal não caberia<br />
pela diminuição de olho do indivíduo<br />
que lê.<br />
Então, tudo quanto se diz de maravilhoso<br />
sobre a bondade de Nossa<br />
Senhora, seu amor materno, seu<br />
ódio ao mal — entretanto não é a<br />
principal missão d’Ela, ao longo da<br />
História, exprimir este ódio, mas a<br />
bondade materna, a afetividade —<br />
e cem outras coisas, tudo isto Maria<br />
Santíssima, como que, exprime<br />
em separado de Nosso Senhor,<br />
num grau menor do que Ele, forçosamente,<br />
mas insondável para nosso<br />
olhar, para termos uma ideia ainda<br />
mais global do que é Jesus. Tudo<br />
quanto estou dizendo aqui fica naturalmente<br />
sujeito ao julgamento da<br />
Teologia.<br />
Parece-me que, de algum modo,<br />
olhando-se para Ela, veem-se excelências<br />
que não se percebem tão claramente<br />
n’Ele.<br />
Entretanto, como pintá-las? Em<br />
que grau? De que modo? Sob que<br />
formas? No momento eu quase não<br />
teria o que dizer, porque são de algum<br />
modo coisas quintessenciadas<br />
de Nosso Senhor, as quais, não per-<br />
G. Kralj<br />
30
mitindo que apareçam tão claramente,<br />
Ele as exprime por meio de um<br />
ser inferior, o qual, por mais alto que<br />
seja, é uma criatura.<br />
Correlação entre<br />
a Cristologia e a<br />
Mariologia<br />
Seria preciso tomar uma clave<br />
em extremo delicada para considerar<br />
a relação exatamente em<br />
sua nota, pois na verdade nenhuma<br />
meditação cristológica poderia<br />
ser feita em completo sem uma<br />
espécie de superposição de Nossa<br />
Senhora; sobretudo nenhuma meditação<br />
mariológica seria adequadamente<br />
feita sem ter a Ele como<br />
fundo de tudo quanto se dissesse.<br />
E à falta de estabelecer essa correlação,<br />
tornam-se muitas vezes pobres<br />
a Cristologia e a Mariologia<br />
na piedade popular,<br />
A Santíssima Virgem é, sob certo<br />
ponto de vista, o lago no qual se<br />
mira o castelo. Toda a beleza que o<br />
lago mostra, de fato reside no castelo,<br />
mas a pulcritude da água se soma<br />
para embelezar a figura do castelo.<br />
Pode-se dizer também que, de<br />
certo modo, a pulcritude da criatura<br />
se soma à do Criador, mas a desproporção<br />
é muito maior, evidentemente.<br />
Aqui está a imagem da piedade<br />
como nós a entendemos. Quer dizer,<br />
densa de reflexão e inteiramente<br />
equilibrada, em que o homem<br />
não precisa se espremer para<br />
adquirir piedade, mas ele se põe na<br />
boa natureza que Deus lhe deu, na<br />
tranquilidade e no bem-estar de<br />
sua alma.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/5/1978)<br />
Jesus é descido da Cruz - Paróquia Santa<br />
Maria Madalena, Sevilha (Espanha).<br />
1) Ver nota 1 no artigo “São Vicente de<br />
Paulo, perfeita harmonia de espírito”,<br />
página 17.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
A Idade Média em todo<br />
Ávila, em Espanha, onde<br />
nasceu a grande Santa Teresa<br />
de Jesus, é uma maravilhosa<br />
cidade medieval.<br />
É muito agradável, ao contemplar<br />
a cidade durante a noite, notar<br />
o contraste entre a cidade que dorme<br />
— lembrando uma vida calma,<br />
tranquila, pacata, sem as excitações<br />
da vida contemporânea, séria, mas<br />
ao mesmo tempo cheia de bonomia<br />
— e a muralha magnificamente iluminada,<br />
onde se nota a beleza do gótico<br />
e do medieval.<br />
A iluminação faz sentir muito a<br />
força da muralha e qualquer coisa<br />
de épico, de heroico que nela existe.<br />
Imaginamos de bom grado essa muralha<br />
e os muros que ligam as torres<br />
guarnecidos de guerreiros, com couraças,<br />
elmos, estandartes, instrumentos<br />
de música e que ali estão postados<br />
para homenagear algum personagem<br />
ilustre que chega, ou para receber<br />
na ponta da lança adversários<br />
que podem querer tomar Ávila. Essas<br />
muralhas falam de toda a beleza<br />
da firmeza de alma, da coerência, da<br />
seriedade e da sacralidade. Está tudo<br />
representado aí, de um modo verdadeiramente<br />
magnífico. Em suma,<br />
é a Idade Média.<br />
Em ambos os aspectos há muita<br />
harmonia. Temos a guerra e o direito,<br />
a legítima defesa de uma população<br />
que na guerra é protegida,<br />
a quem suas muralhas amparam, e<br />
por isso pode tranquilamente dormir.<br />
A muralha garante o sono, como<br />
o guerreiro garante a ordem, o<br />
direito e a paz. É verdadeiramente<br />
esplendoroso.<br />
32
o seu esplendor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> contempla a cidade de Ávila durante sua viagem à Europa, em 1988.<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Nessa síntese entre a guerra e a<br />
paz, o direito e a luta, o repouso e<br />
a batalha, há algo de síntese celeste<br />
que nos deixa verdadeiramente maravilhados.<br />
É a Idade Média em todo<br />
o seu esplendor.<br />
Devemos notar que suas muralhas<br />
foram construídas com preocupação<br />
exclusivamente estratégica.<br />
Quer dizer, o intervalo entre as torres<br />
não foi feito com o objetivo de ficarem<br />
bonitas, mas calculado para<br />
que o adversário atacante pudesse<br />
ser atingido de vários lados. Primeiro,<br />
pela reação que vem dos defensores<br />
do muro. Depois, dos defensores<br />
das torres, de maneira que se torna<br />
difícil tomar as muralhas.<br />
A torre é muito mais forte do que<br />
o muro. Ela se defende por si mesma.<br />
E pelo seu feitio redondo, ela<br />
de certo modo dispersa o adversário.<br />
Por outro lado, o muro, que é<br />
mais fraco, fica defendido pela muralha.<br />
Tudo foi estritamente calculado<br />
de acordo com o necessário e ficou<br />
lindo. Ao contrário do que se faria<br />
hoje, a forma da muralha é meio<br />
indecisa, não retilínea, e abrange como<br />
uma cintura o povoado que está<br />
dentro.<br />
Tem-se a impressão de que cada<br />
torre é uma garra que segura o monte<br />
e domina a terra; é uma verdadeira<br />
beleza.<br />
Com a solidez de suas portas, a<br />
entrada da cidade estava bem protegida.<br />
E com que robustez! Tratava-se<br />
de duas portas, uma frente à<br />
outra, que protegiam a passagem.<br />
Quem conseguisse entrar — debaixo<br />
de uma saraivada de pedras, de azeite<br />
fervente, etc. — esbarrava com a<br />
outra porta, onde havia outro passadiço<br />
para jogar pedras e flechas sobre<br />
os atacantes.<br />
Muitas vezes, quando o adversário<br />
passava pela primeira porta, des-<br />
cia uma grade e ele ficava encurralado,<br />
porque não podia mais voltar<br />
para trás. E aí era pancadaria grossa.<br />
Compreendemos o senso de defesa<br />
que isso traduzia.<br />
No topo da muralha estão as<br />
ameias, tão bonitas! Tudo estritamente<br />
técnico. Um homem lançava<br />
uma flecha e, quando o assaltante<br />
respondia com outra flecha, ele ficava<br />
escondido. Percebendo que o inimigo<br />
estava mais ou menos desprotegido,<br />
dava nova flechada.<br />
Compreende-se o quanto era duro<br />
invadir uma cidade assim. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/5/1972)<br />
34
Tem-se a impressão de<br />
que cada torre é uma<br />
garra que segura o monte<br />
e domina a terra; é uma<br />
verdadeira beleza.<br />
Diversos aspectos<br />
de Ávila<br />
35
Imaculada Conceição -<br />
Yaguaron, Paraguai.<br />
N<br />
este exílio, em meio à<br />
humanidade corrompida,<br />
aparece uma criatura<br />
concebida sem pecado original, um<br />
lírio de incomparável formosura que<br />
deveria alegrar os coros angélicos e a<br />
Terra inteira.<br />
Nossa Senhora trazia consigo<br />
todas as perfeições naturais que<br />
dentro de uma mulher possam caber:<br />
uma personalidade riquíssima,<br />
preciosíssima, valiosíssima. Se a<br />
isso tudo juntarmos os tesouros das<br />
graças que vinham com Ela — as<br />
maiores que Deus Nosso Senhor<br />
tenha concedido a alguém, graças<br />
verdadeiramente incomensuráveis<br />
—, compreenderemos então o que<br />
representa o advento de Maria<br />
Santíssima ao mundo.<br />
O nascer do Sol é uma realidade<br />
pálida em relação à entrada de<br />
Nossa Senhora nesta Terra. Os mais<br />
grandiosos fenômenos da natureza,<br />
mesmo os que representem algo de<br />
precioso e inestimável, nada são em<br />
comparação com isso; a entrada mais<br />
solene que se possa imaginar de um<br />
rei ou de uma rainha em seu reino,<br />
ainda é nada em confronto com esse<br />
advento.<br />
(Extraído de conferência de<br />
8/9/1963)<br />
D. Iallorenzi