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Revista Dr Plinio 167

Fevereiro de 2012

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Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>167</strong> Fevereiro de 2012<br />

No ápice da hierarquia,<br />

o Soberano Pontífice!


São Francisco de Sales<br />

T. Ring<br />

São Francisco de Sales:<br />

exemplo de combate aos vícios<br />

Q<br />

uando São Francisco de Sales morreu,<br />

resolveram autopsiá-lo. Para surpresa<br />

geral, encontraram seu fígado endurecido,<br />

como se fosse de pedra...<br />

De fato, embora tivesse um gênio péssimo, ele<br />

se dominou de tal maneira que ficou famoso por<br />

sua doçura: era considerado o santo da doçura.<br />

Assim devemos ser: se possuímos dificuldade de<br />

trato, procuremos ter gênio angélico; se somos inclinados<br />

à preguiça ou temos medo de lutar, procuremos<br />

ser heróis ao serviço de Nossa Senhora.<br />

A exemplo dos santos, sejamos exímios no combate<br />

aos defeitos que julgamos mais difíceis de<br />

vencer.<br />

Para isso, devemos examinar nossos atos implacavelmente,<br />

sem nunca pensarmos em atenuantes.<br />

Porque nós só os reconheceremos se formos implacáveis,<br />

analisando-os com lupa, um por um.<br />

(Extraído de conferência de 11/11/1989)


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>167</strong> Fevereiro de 2012<br />

Ano XV - Nº <strong>167</strong> Fevereiro de 2012<br />

No ápice da hierarquia,<br />

o Soberano Pontífice!<br />

Na capa: São Pedro,<br />

por Ludovico Brea -<br />

Museu Palazzo Bianco,<br />

Gênova (Itália).<br />

Foto: S. Hollmann.<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 107,00<br />

Colaborador .......... R$ 150,00<br />

Propulsor ............. R$ 350,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 550,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 14,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

Editorial<br />

4 Hierarquia e Desigualdade<br />

Datas na vida de um cruzado<br />

5 Fevereiro de 1985<br />

“Ainda que eu caminhe nas sombras da morte,<br />

não temerei os males”<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

6 Desigualdade: um bem ou um ?<br />

Dona Lucilia<br />

12 Formadora exímia<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

18 O mais belo mar! — I<br />

Calendário dos Santos<br />

24 Santos de Fevereiro<br />

Hagiografia<br />

26 São Cirilo e São Metódio<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

30 Oh, maravilha!<br />

3


Editorial<br />

Hierarquia e Desigualdade<br />

Aharmonia parece ser um dos valores mais procurados neste século XXI. O mundo anda sôfrego<br />

à busca da concórdia, do diálogo, da paz e, talvez sem perceber, traz à tona uma realidade<br />

assaz esquecida: a desigualdade natural, posta por Deus no Universo. Como ensina<br />

São Tomás, “a diversidade das criaturas e seu escalonamento hierárquico são um bem em si, pois<br />

assim melhor resplandecem na criação as perfeições do Criador” 1 . E assim, a vida humana se ordena<br />

à maneira de uma enorme sinfonia de características, temperamentos e psicologias, aptas a se harmonizarem<br />

graças às suas diferenças. Por isto, apesar de vociferada aos quatro ventos, a igualdade<br />

continua a ser uma utopia irrealizável. No seio de uma autêntica civilização, é pelo princípio admirável<br />

da hierarquia que se estrutura esse amálgama de mentalidades desiguais, constituído pelos povos<br />

que a integram.<br />

Para melhor compreender esse fenômeno, recorramos a uma interessante figura da natureza. As<br />

flores, carregadas de magníficos odores e requintada coloração, dão a esta Terra certo ar de paraíso.<br />

Mas essas pequenas preciosidades vegetais carecem de uma qualidade: tão estupenda aparência exterior<br />

comportaria sabores extraordinários! Entretanto, Deus não quis privá-las totalmente desse refinado<br />

privilégio, porque, em sua infinita sabedoria, dotou um pequenino ser, superior às flores, das<br />

capacidades necessárias para aperfeiçoá-las.<br />

Verdadeira obra de arte é a atividade desse inseto, limpo e gracioso, o qual, pousando de flor em<br />

flor, colhe o que elas têm de mais excelente, o seu néctar, e eleva-o a um patamar inatingível pelas<br />

meras capacidades da planta: eis a tarefa da abelha ao produzir o mel. De si, a flor nunca atingiria tal<br />

grau de requinte. É mister entregar o que possui de melhor a outra criatura superior, dotada das qualidades<br />

necessárias para transformá-la.<br />

Esta realidade é uma imagem feliz do que ocorre no relacionamento humano, diferenciando o espírito<br />

católico do igualitário. Este último tenta falsificar a harmonia entre os homens, acachapando-<br />

-os no mesmo status; o primeiro, pelo contrário, eleva e nobilita os inferiores por meio dos superiores,<br />

num clima de caridade: “... se um membro é honrado, todos os membros participam da sua alegria”<br />

(1 Cor 12,26).<br />

Para a salvação das almas, Nosso Senhor instituiu na Santa Igreja a Sagrada Hierarquia, encabeçada<br />

pelo Papa, com a missão de santificar, ensinar e governar: Ela colhe o néctar dos méritos, orações<br />

e sacrifícios dos fiéis, elevando-os até Deus. E no ápice dessa Hierarquia deu a um homem, ao sucessor<br />

de Pedro, o dom de infalibilidade, de modo que ele possa guiar com segurança, nas vias da verdade,<br />

seus súditos. Admirável desigualdade que eleva toda a humanidade, dando-lhe a possibilidade<br />

de participar desse dom precioso de nunca cair em erro. Basta ser submisso ao Pontífice Romano.<br />

1) Corrêa de Oliveira, <strong>Plinio</strong>. Revolução e Contra-Revolução. São Paulo: Editora Retornarei, 2002. p. 71.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Datas na vida de um cruzado<br />

Fevereiro de 1985:<br />

“Ainda que eu caminhe nas sombras<br />

da morte, não temerei os males”<br />

Ante um grupo de jovens ansiosos por<br />

mais uma conferência, em fevereiro de<br />

1985, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> relembra um período de<br />

muitas provações, no qual foi agraciado por uma<br />

inesquecível consolação.<br />

Muitas vezes somos submetidos a provações<br />

tremendas. É conhecida a história de São Pedro<br />

andando sobre as águas. Em certo momento,<br />

ele começou a olhar para a água e teve medo.<br />

O instinto de conservação aflorou e o Apóstolo<br />

começou a afundar; foi preciso o auxílio especial<br />

de Nosso Senhor para ele flutuar e caminhar<br />

com o Redentor.<br />

Em certas ocasiões, algo semelhante se passa<br />

conosco: começamos a fazer uma coisa e, de<br />

repente, aquilo parece afundar. A pessoa que se<br />

encontra nessa situação deve ajoelhar-se e dizer<br />

à Virgem: “Minha Mãe, não tomo a sério o que<br />

está se passando. Sei que estou numa situação<br />

dificílima, mas Vós permitis isso para provar minha<br />

confiança. Eu confio em Vós e vou para a<br />

frente.”<br />

E, às vezes, é preciso rezar e esperar durante<br />

anos, com uma série de fracassos pelo meio. Um<br />

Capela onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sentiu-se consolado<br />

ao encontrar os vitrais representando<br />

a Ressurreição de Nosso Senhor.<br />

dia, inesperadamente, aquilo tudo se realiza. Esta<br />

é a virtude da confiança!<br />

Uma das maiores alegrias que uma pessoa<br />

possa ter, seguindo o caminho para o qual Nossa<br />

Senhora a chamou, ocorre quando ela passa por<br />

um período onde tudo parece ir contra a confiança<br />

dela e, em certo momento, vê que seu desejo<br />

se realizou.<br />

Lembro-me do tempo em que eu lecionava<br />

numa das Faculdades da Universidade Católica,<br />

em São Paulo — era professor de História Medieval,<br />

Moderna e Contemporânea. Sempre que<br />

eu ia a essa Faculdade, ao sair, me dirigia à capela<br />

e rezava diante do Santíssimo Sacramento<br />

e de uma imagem de Nossa Senhora. Nas paredes<br />

laterais da capela havia uma galeria de vitrais,<br />

com cenas da vida de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo.<br />

Eu passava por um período de muitas provações<br />

e necessitava ter muita confiança. Certo<br />

dia, eu estava rezando nessa capela quando normalmente<br />

me levanto e olho para um dos vitrais,<br />

que representava, se não me engano, a Ressurreição<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na parte<br />

inferior desse vitral estava escrito o seguinte:<br />

“Et si ambulavero in medio umbrae<br />

mortis, non timebo mala — Ainda que eu<br />

caminhe nas sombras da morte, não temerei<br />

os males.”<br />

E no outro vitral ao lado havia a frase:<br />

“In lumine tuo videbimus lumen — Na<br />

tua luz veremos a luz.”<br />

Aquilo me encheu a alma; eu compreendi:<br />

“É preciso mais confiança! <strong>Plinio</strong><br />

anima-te! Nossa Senhora te ajudará! Dize<br />

a Ela: Minha Mãe, ainda que eu ande<br />

nas sombras da morte, não temerei<br />

os males, porque Vós me ajudareis. Minha<br />

Mãe, na luz de vosso olhar eu verei<br />

a Luz!”<br />

(Extraído de conferência de 9/2/1985)<br />

5


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Desigualdade: um<br />

Fotos: M. Shinoda; G. Kralj; S.Hollmann.<br />

bem ou um mal?<br />

Como devemos considerar as pessoas superiores a nós?<br />

Admirando-as por suas qualidades, ou invejando-as por não<br />

sermos iguais a elas? Igualdade e desigualdade, até que ponto<br />

constituem um bem para o homem?<br />

Énotória a complexidade do universo. Nele há seres<br />

inteligentes como o homem; seres dotados<br />

de vida, mas sem inteligência, como os animais<br />

e as plantas; seres sem vida nem inteligência, como os<br />

minerais.<br />

De fato, à medida que a Ciência progride e verifica<br />

quão numerosos são os seres que compõe o universo,<br />

constatamos as inter-relações e as desigualdades postas<br />

na criação.<br />

Os anjos são mais numerosos que os homens<br />

Ora, as ciências naturais nos apresentam algo muito<br />

inferior ao que alcançamos pela Fé. Sabemos existirem<br />

os anjos, puros espíritos que não podemos ver. E a Teologia<br />

nos ensina serem os anjos incomparavelmente mais<br />

numerosos do que os homens.<br />

São Tomás dá para isso uma bonita explicação, apresentando<br />

uma razão metafísica que toca no estético: a<br />

Criação é excelente; o melhor deve ser mais numeroso<br />

1 . Ora, como puros espíritos, os anjos são superiores a<br />

quem não é puro espírito.<br />

Suponhamos um tapete. O que ocupa mais espaço, a<br />

franja ou propriamente o tapete? É o tapete. Pois uma<br />

franja enorme e um tapete pequenino é uma coisa caricata.<br />

Ora, o tapete da Criação são os anjos, puros espíritos.<br />

E à medida que vai se aproximando da matéria vem<br />

a franja. Então, os anjos são mais numerosos do que os<br />

homens.<br />

Compreende-se que haja uma escala, e no alto, como<br />

qualidade e quantidade superiores, estão os anjos.<br />

A desigualdade entre os anjos é maior do que<br />

a existente entre os homens<br />

Não devemos imaginar que um anjo está para outro<br />

anjo como um homem para outro homem. Nós, homens,<br />

por mais diferentes que sejamos uns dos outros, somos<br />

da mesma espécie. Os anjos, não. Cada anjo é de uma espécie<br />

diferente da do outro 2 .<br />

E o anjo inferior foi feito para servir o superior; aquele<br />

é menos inteligente e tem uma capacidade menor de<br />

amar do que este. Por causa disso, recebe de Deus uma<br />

glória e uma graça menor do que aquele que está acima.<br />

Assim, se fôssemos fazer um gráfico do mundo angélico,<br />

traçaríamos uma espécie de fio de linha enorme, em<br />

que cada anjo seria um ponto; cada um deles está a serviço<br />

do anjo superior, e através deste conhece a Deus, mas<br />

ele mesmo também vê diretamente o Criador. Todos os<br />

anjos O veem diretamente, mas não contemplam tudo; e<br />

pelos anjos superiores cada anjo inferior conhece alguma<br />

coisa mais a respeito de Deus.<br />

Dessa forma, a desigualdade entre os anjos é enormemente<br />

maior do que a existente entre os homens. Ora, os<br />

anjos são uma porção da Criação muito mais preciosa do<br />

que os homens.<br />

Devemos agradecer a Deus<br />

por ter criado pessoas superiores a nós<br />

Vemos assim que a desigualdade é algo existente no<br />

universo, de tal maneira que em sua parte mais excelente<br />

ela ainda é maior. Podemos então fazer as se-<br />

6


Pode-se dizer que São<br />

Tomás possuía uma<br />

inteligência incomparável,<br />

fabulosa.<br />

Sabendo que São Tomás foi<br />

tão mais inteligente do<br />

que eu, se tivesse a honra<br />

imerecida de conhecê-lo, qual<br />

deveria ser a minha reação?<br />

Enquanto explicita um novo ponto da doutrina<br />

católica, São Tomás de Aquino é assistido<br />

por São Pedro, à sua direita, e por São Paulo, à sua<br />

esquerda - Catedral de Dijon, França.<br />

De acordo com a Doutrina Católica, quando vemos<br />

alguém que tem mais do que nós, possui uma perfeição<br />

por onde se parece mais com Deus, devemos nos alegrar.<br />

Qual deveria ser a reação de quem tivesse<br />

a honra de conhecer São Tomás de Aquino?<br />

guintes perguntas: Foi bom que Deus fizesse assim?<br />

Não teria sido melhor que Ele criasse todos os anjos<br />

iguais? E que desse a nós homens a natureza dos anjos?<br />

E concedido aos animais, às plantas, aos seres inanimados,<br />

inteligência e vontade como os maiores dos<br />

anjos? Ou, então, que Deus não fizesse anjos, mas só<br />

nós, homens, e todos iguais uns aos outros? Não seria<br />

mais justo? O Criador não teria desse modo revelado<br />

mais bondade?<br />

Alguém diria: Pareceria que sim, pois sempre que um<br />

homem vê um superior ele se entristece, por desejar ser<br />

igual ao outro. Sendo assim, Deus, criando a desigualdade,<br />

fez uma fonte de tristeza. Ora, não é próprio à bondade<br />

criar a tristeza. Logo, Ele não deveria ter feito a desigualdade.<br />

Primeiramente, não é verdade que cada homem, quando<br />

vê no outro um superior, fica triste. A tristeza pelo fato<br />

de ver que outro tem mais é própria do invejoso.<br />

Dou uma comparação. Eu creio não ofender a ninguém<br />

dizendo que São Tomás de Aquino era incomparavelmente<br />

mais inteligente do que qualquer um de nós.<br />

A prova disso são algumas confidências que ele fez a Frei<br />

Reginaldo, irmão leigo, uma espécie de secretário dele.<br />

São Tomás disse-lhe nunca ter feito uma leitura sem que<br />

se lembrasse com toda a facilidade, para a vida inteira,<br />

de tudo quanto tinha lido. De outro lado, ele nunca precisara<br />

reler nada, porque tinha entendido até o fundo tudo<br />

quanto lera.<br />

Algo desconcertante em sua obra é que, para resolver<br />

os problemas, ele cita de um modo triunfal trechos da Bíblia,<br />

os quais passariam despercebidos para outros. Vê-<br />

-se que ele conhecia a Bíblia perfeitamente. Pode-se dizer<br />

que possuía uma inteligência incomparável, fabulosa.<br />

Sabendo que São Tomás foi tão mais inteligente do<br />

que eu, se tivesse a honra imerecida de conhecê-lo, qual<br />

deveria ser a minha reação?<br />

Imaginemos que ele estivesse aqui ao meu lado, e eu<br />

ousando fazer esta conferência em sua presença. São Tomás<br />

era um homem alto, corpulento, com pescoço muito<br />

grosso — os colegas o chamavam de boi, porque ele tinha<br />

olhos grandes, era calmo, constantemente pensando. Eu<br />

me perguntaria: “Que coisas sublimíssimas ele está cogitando<br />

a respeito do que estou dizendo?”<br />

7


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Creio que, na hora de ele falar, os presentes neste auditório<br />

ficariam em suspense: “O que ele vai dizer eu<br />

anoto, gravo, fico ajoelhado, rezo, já que tal homem<br />

vai falar na minha presença!”<br />

O invejoso, espiritualmente descendente de<br />

Caim, diria: “Por que Deus não me fez igual<br />

a São Tomás?”<br />

E o homem reto, espiritualmente descendente<br />

de Abel, exclamaria: “Que maravilha<br />

é essa obra-prima do Criador,<br />

São Tomás de Aquino! Considerando<br />

sua grande inteligência, compreendo melhor<br />

como Deus é inteligente. Portanto,<br />

através do seu conhecimento, conheço<br />

melhor a Deus. Como agradeço ao Criador<br />

o ter-me dado São Tomás, imagem viva,<br />

criada, da infinita e incriada inteligência<br />

d’Ele! Meu Deus, eu Vos agradeço do fundo<br />

da alma; vi um pouco de Vós em São Tomás de<br />

Aquino.” Esse é um homem segundo Deus.<br />

O superior deve ser uma imagem<br />

de Deus para o inferior<br />

Conforme a Doutrina Católica, a desigualdade existe<br />

para que os seres superiores imitem melhor o Criador e<br />

O tornem mais conhecido pelos que são menos. Por causa<br />

disso, todo maior, se corresponder à sua vocação, deve<br />

ser para o menor como uma imagem de Deus.<br />

São Tomás de Aquino exemplifica com a riqueza. Ele<br />

pergunta se é bom que haja pessoas mais ricas do que<br />

outras.<br />

E responde que é bom porque os mais ricos, dando<br />

aos mais pobres, fazem que estes compreendam o que é<br />

a generosidade e, desse modo, entendam e amem a generosidade<br />

de Deus. A generosidade do rico para com o<br />

pobre é uma imagem criada da generosidade do Criador<br />

para com o homem. A desigualdade de fortuna, portanto,<br />

é um bem.<br />

Alguns seres devem velar por outros<br />

Por inveja de seu irmão, Caim mata Abel - Museu<br />

Hermitage, São Petersburgo (Rússia).<br />

Há dois princípios que regem o problema da desigualdade:<br />

o maior é uma imagem de Deus para o menor; em<br />

todo o universo, uns seres devem velar pelos outros.<br />

Embora Deus cuide diretamente das criaturas, Ele<br />

concebeu a Criação de modo que uns seres velam por<br />

outros. Assim, os anjos maiores governam os menores;<br />

os homens superiores dirigem os inferiores.<br />

Quer dizer, há uma colaboração: os maiores orientam<br />

e elevam os inferiores até Deus; estes os servem. Nesta<br />

colaboração, que não poderia existir se os seres fossem<br />

todos iguais, se afirma o plano do Criador. Por esta<br />

forma, na desigualdade, vemos realizar-se a Providência<br />

de Deus.<br />

A desigualdade é um meio<br />

para amarmos a Deus<br />

Que atitude devemos tomar diante daqueles que são<br />

mais do que nós? De respeito, reverência e de agradecimento<br />

a Deus pelos dons que lhes deu. Devemos<br />

nos alegrar pelos dons que lhes foram concedidos pelo<br />

Criador, e também porque esses dons são benéficos<br />

para nós.<br />

Por exemplo, falando sobre a inteligência de São Tomás<br />

de Aquino, estou certo de que abri os horizontes de<br />

alguns dos presentes, pois não imaginavam que houvesse<br />

homens tão inteligentes. Ao imaginá-los, em algo esclarecemos<br />

a nossa própria inteligência.<br />

São Tomás morreu, sua alma está no Céu e seu corpo<br />

se desfez em pó. Num continente que ele não sabia existir,<br />

a América; num país que não imaginava que existiria,<br />

o Brasil; numa cidade a qual não pensava que um dia<br />

haveria, São Paulo; no local onde no tempo dele talvez<br />

houvesse uma taba de índio, entretanto, no ano de 1975,<br />

a recordação de São Tomás de Aquino abre horizontes.<br />

8


É um bem para nós que ele tenha existido. Trata-se de<br />

uma desigualdade benfazeja. Assim devemos olhar aqueles<br />

que são mais do que nós.<br />

Pulcritude da hierarquia existente na Igreja<br />

Esta impostação de alma explica, em boa parte, a diferença<br />

entre os católicos e os protestantes. No ápice da<br />

Igreja existe a figura do Papa, monarca da Igreja universal,<br />

Vigário de Cristo, a quem foi dito: “Tu és Pedro, e sobre<br />

esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno<br />

não prevalecerão contra ela.” (Mt 16,18). Mais do<br />

que um Papa não se pode ser.<br />

Lendo a história dos grandes imperadores romanos,<br />

tem-se a impressão de que foram homens como depois<br />

não houve mais na Terra. Ora, qualquer Papa tem muito<br />

mais poder do que Júlio César. Um Pontífice, hoje em<br />

dia, governa seiscentos milhões de católicos 3 , mais ou<br />

menos, e não é um poder como o de César, na ponta da<br />

lança, mas espiritual, que obriga em consciência. Ele fala<br />

e os outros devem crer.<br />

Houve alguma vez na História um poder igual a este?<br />

“Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo<br />

o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt<br />

16,19). O católico se rejubila com isso. Quão belo é haver<br />

na Igreja um chefe, um rei, uma cabeça tão alta e adornada<br />

com poderes tão esplêndidos! E, logo abaixo do Soberano<br />

Pontífice, os príncipes da Igreja, os Arcebispos,<br />

os Bispos, colocados cada qual para governar uma parcela<br />

da Igreja universal, sob a autoridade do Papa! Como<br />

é pulcro ver um Bispo que entra numa igreja, de mitra,<br />

com báculo, e o coro cantando a plenos pulmões: “Tu és<br />

sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedech”;<br />

ele avança, o povo se ajoelha e o Bispo distribui<br />

as bênçãos de um lado e de outro, usando luvas bordadas<br />

a ouro e um anel de ametista. Que beleza!<br />

Alguns dizem o contrário: “Por que não eu? Seria<br />

bom aplicar o livre exame... nada de infalibilidade! Sou<br />

tão infalível quanto o Papa. Na minha cabeça sou eu que<br />

mando. Nada de Papa!” Outros afirmam: “Nada de Bispos!”<br />

E outros declaram: “Nada de padres!” Tais indivíduos<br />

são movidos pelo orgulho, portanto pela inveja.<br />

Nós somos movidos pelo Espírito Santo e, portanto, pelo<br />

espírito de abnegação, de respeito, de amor. A pessoa<br />

que compreende quem é um Papa entende muito melhor<br />

quem é Deus Nosso Senhor. O Papa e Bispos são imagens<br />

vivas de Deus.<br />

Cosmos: um conjunto de coisas ordenadas<br />

Passemos agora ao ponto terminal da conferência.<br />

A desigualdade é um bem, mas não é o único bem que<br />

existe no universo. Todos conhecem a diferença que há<br />

entre caos e cosmos.<br />

Na linguagem comum, corrente, caos é uma desordem,<br />

um amontoado de coisas que não têm<br />

relação entre si. Por exemplo, se chegássemos<br />

aqui nesta sala e encontrássemos as ca-<br />

“Tudo o que ligares na terra<br />

será ligado nos céus,<br />

e tudo o que desligares na<br />

terra será desligado<br />

nos céus.” Houve<br />

alguma vez na História<br />

um poder igual a este?<br />

São Pedro recebe as chaves do<br />

Reino dos Céus - Basílica de<br />

Paray le Monial, França.<br />

9


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

A Sagrada Hierarquia se reúne em torno do Sumo Pontífice, o Papa Bento XVI, durante a Vigília Pascal (4/4/2010).<br />

deiras em desordem, algumas delas dependuradas no<br />

teto com cordéis, os lustres no chão, perguntaríamos:<br />

“Quem fez esse caos?” Todo mundo acharia a palavra<br />

“caos” bem aplicada, pois ela se refere ao conjunto de<br />

coisas que não estão colocadas em ordem, umas em relação<br />

às outras.<br />

Cosmos é, pelo contrário, um conjunto de coisas postas<br />

em ordem entre si. Por isso dizemos que Deus criou um<br />

cosmos ou um universo. As palavras “cosmos” e “universo”<br />

querem dizer a mesma coisa, ou seja, tudo ordenado.<br />

Para que as coisas estejam ordenadas, é preciso que<br />

elas sejam, de algum modo, iguais e também desiguais.<br />

Porque se forem totalmente desiguais, não há ordem<br />

possível entre elas.<br />

Imaginemos que alguém veja um sapato, um canário,<br />

uma fotografia de Churchill e diz para um subalterno:<br />

“Ponha esses objetos em ordem nesta mesa.” Não há ordem<br />

possível, porque são coisas totalmente heterogêneas.<br />

A ordem supõe certa relação.<br />

Se fossem três fotografias de Churchill, poder-se-ia<br />

colocá-las em ordem, considerando o tamanho da foto,<br />

a idade dele etc. Ou, então, três canários ou três sapatos<br />

poderiam ser postos em ordem.<br />

A igualdade e a desigualdade<br />

devem compor-se para formar uma ordem<br />

Quer dizer, para se pôr em ordem as coisas é preciso<br />

que elas tenham algo de comum e também desigualdades<br />

fáceis de se perceber. Se uma pessoa faz três cópias<br />

de uma fotografia de Churchill e me pede para pô-las em<br />

ordem, eu respondo: “Meu caro, a olho nu, não! Se você<br />

me der uma superluneta, vou verificar que há entre as<br />

cópias alguma diferença de tamanho; mas a olho nu, sem<br />

eu perceber as desigualdades existentes entre elas, não é<br />

possível colocá-las em ordem.”<br />

A ordem supõe um misto de igualdade e desigualdade.<br />

Assim, para que houvesse cosmos eram necessários<br />

seres por algum lado iguais e por outro lado desiguais.<br />

A desigualdade não é um mal, é um bem. Ambas —<br />

a igualdade e a desigualdade — devem compor-se para<br />

formar uma ordem.<br />

Esta é a tese da Doutrina Católica, mas que nosso Movimento<br />

exprime e reproduz. Deve haver entre as coisas<br />

uma hierarquia proporcionada e harmônica. Uma hierarquia<br />

desarmônica não vale nada, porque destrói essa<br />

relação.<br />

10


Apresento mais um exemplo muito ao alcance dos que<br />

estão neste auditório, porque quanto mais eu der exemplos<br />

fáceis, tanto menos canso a mente dos presentes,<br />

que podem assim melhor acompanhar a doutrina.<br />

A lei da proporção concilia<br />

a igualdade com a desigualdade<br />

Um exército possui uma hierarquia: general, coronel,<br />

tenente-coronel, etc. Se alguém me disser: “<strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>, o exército do país X é excelente; nele há generais<br />

e tenentes-coronéis, mas não coronéis”, farei<br />

a observação: “É preciso verificar, pois, se for assim,<br />

as coisas não funcionam. Porque todo exército é uma<br />

engrenagem; em certo momento, uma ordem tem que<br />

passar pelo coronel, e, se este posto não existir, será<br />

um exército manco.”<br />

Porque na verdadeira hierarquia, entre o mais alto<br />

grau até o ínfimo, é preciso que haja vários graus intermediários,<br />

de maneira que entre o maior e o menor exista<br />

uma proporção. Trata-se da lei da proporção, que concilia<br />

a igualdade com a desigualdade.<br />

Imaginemos uma escada muito bonita, em que os degraus<br />

mais altos sejam menores e, à medida que se vai<br />

descendo, os degraus se tornam longos; a escada vai se<br />

abrindo. É uma obra-prima. Se nessa escada faltasse um<br />

degrau intermediário, ela se tornaria horrenda, uma caricatura,<br />

porque perdeu a proporção entre o degrau mais<br />

alto e o mais baixo.<br />

Então a hierarquia deve ser proporcionada, de maneira<br />

que entre o maior e o menor haja sempre um contato,<br />

uma proporção.<br />

É o que vemos na Igreja Católica. O Papa está colocado<br />

no fastígio; abaixo dele estão os Cardeais, depois os Arcebispos,<br />

os Bispos, os Monsenhores, os Cônegos e depois os<br />

simples Padres. São graus que, de alto a baixo, existem dentro<br />

da Igreja. Isso torna suave o acesso ao Papa e estabelece<br />

uma engrenagem que faz da hierarquia algo amável, afável<br />

e agradável; há um misto de igualdade e desigualdade.<br />

Assim, fica demonstrado como devemos ter espírito<br />

hierárquico.<br />

Deve-se desejar progredir para servir a Deus<br />

Tratarei finalmente da seguinte questão: Se é bom que<br />

haja desigualdade, nunca se deve procurar subir?<br />

Depende da razão pela qual a pessoa queira progredir.<br />

Se desejar subir por amor de Deus, para servi-Lo —<br />

não por orgulho —-, ela está agindo conforme a ordem<br />

do universo. A pessoa deve procurar progredir na proporção<br />

dos meios que o Criador lhe concede.<br />

Por isso um indivíduo estuda e torna maior sua ciência,<br />

outro trabalha e aumenta seu dinheiro, um terceiro<br />

faz exercícios físicos e desenvolve sua musculatura. Deus<br />

dá a cada pessoa possibilidades para se aperfeiçoar. Na<br />

medida em que procuremos a perfeição para ficarmos<br />

mais semelhantes a Deus, é bom subir.<br />

Se uma pessoa, por exemplo, quer cantar e diz: “Como<br />

o cântico harmonioso é uma bela criatura e a canção<br />

em si é bela, eu quero cantar para possuir essa beleza,<br />

que é um reflexo do Criador.” Isso é uma coisa justa,<br />

direita.<br />

Entretanto, se ela pensa: “Não tolero que tal indivíduo<br />

saiba cantar e eu não. Então vou aprender a cantar<br />

apenas para ser mais que ele.” Isso é inveja,<br />

um pecado.<br />

Também não é direito querer aprender<br />

alguma coisa, ou subir, em qualquer sentido<br />

da palavra, para ter o gosto de ver o outro<br />

em baixo. “Sou igual a meu irmão, mas<br />

vou dar uma tacada financeira e farei uma<br />

casa magnífica em frente à dele, que a<br />

transformará numa barraca.” Isso é um<br />

péssimo sentimento, vontade de oprimir os<br />

outros; não é uma coisa católica. v<br />

(Extraído de conferência de 25/1/1975)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em abril de 1992.<br />

1) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 3.<br />

2) Cfr. Suma Teológica I, q. 50, a. 4.<br />

3) Atualmente, o número de católicos excede a<br />

cifra de 1.250.000.000.<br />

11


Dona Lucilia<br />

Fotos: J. Dias; M. Shinoda; G Kralj.<br />

Formadora exímia<br />

Vendo Dona Lucilia tão meticulosa, precisa e exigente — embora<br />

bondosa e suave —, constituiu-se em <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> um essencial aspecto<br />

de sua personalidade: a combatividade contrarrevolucionária.<br />

Dona Lucilia com cerca de 50 anos.<br />

N<br />

o que Dona Lucilia concorreu para que eu fosse<br />

contrarrevolucionário?<br />

Enganar-se-ia quem supusesse que ela fez<br />

discursos, explicando que se deve ser combativo e contrarrevolucionário.<br />

Ela realizou uma coisa muito melhor,<br />

mais límpida, muito mais clara. Foi o seguinte: mamãe<br />

pôs em meu cérebro as seguintes coisas:<br />

Em primeiro lugar, que Deus é o Ser supremo, Criador<br />

de todas as coisas e, portanto, merece nosso amor<br />

primordialmente. Mais do que à mamãe, eu deveria querer<br />

bem a Deus. Isso ela me ensinou muito bem, com o<br />

talento que têm as boas mães de falar aos filhos, de maneira<br />

que estes ouvem a voz delas como ao longo da vida<br />

não ouvirão voz nenhuma.<br />

Antes de minha irmã e eu aprendermos a dizer “papai”<br />

e “mamãe”, aprendemos a dizer “Jesus”. Minha irmã<br />

era um ano e meio mais velha do que eu. Mamãe,<br />

estando de vez em quando em seu quarto, arranjando<br />

alguma coisa, colocava minha irmã nos braços e, apontando<br />

com um dedo para a imagem de Nosso Senhor,<br />

de modo que os olhos da criança acompanhassem, dizia-lhe<br />

sorrindo afetuosamente, meigamente: “Onde<br />

está Jesus? Jesus está ali. Agora repita: Jesus, Jesus.”<br />

Minha irmã, que tinha muita vivacidade, respondia:<br />

“Jesus, Jesus.”<br />

Depois ela fez a mesma coisa comigo. De maneira que<br />

mais tarde, quando chegava a hora, espontaneamente íamos<br />

aprendendo a dizer “papai”, “mamãe”, como todas<br />

as crianças.<br />

Antes e acima de tudo, precisamos<br />

cumprir os Dez Mandamentos<br />

A segunda ideia é que, em relação a Deus, nós temos<br />

deveres os quais são mais importantes do que as obrigações<br />

para com qualquer pessoa na Terra. Devemos obedecê-Lo<br />

antes e acima de tudo, cumprindo os dez Mandamentos.<br />

Já no meu tempo de criança — nasci em 1908 —, a<br />

preocupação principal de um grande número de paulistas<br />

era ficar rico. Ficou rico, acertou na vida. Não ficou<br />

rico, foi um nulo. Perdeu fortuna, tornou-se pobre,<br />

foi um elemento negativo na vida, desprezado por todo<br />

mundo.<br />

12


Dona Lucilia incutiu<br />

em <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a ideia<br />

de que Deus é<br />

o Ser supremo, criador<br />

de todas as coisas e,<br />

portanto, merece nosso<br />

amor primordialmente.<br />

Detalhe da imagem<br />

do Sagrado<br />

Coração de Jesus<br />

que pertenceu a<br />

Dona Lucilia.<br />

13


Dona Lucilia<br />

Mamãe dizia o contrário: “Eu prefiro<br />

ter um filho empobrecido, tido<br />

em conta de nada, mas que cumpra<br />

os Mandamentos da Lei de Deus, do<br />

que um filho rico, a quem todo mundo<br />

faça cortesias, mas que não pratica<br />

os Mandamentos. A primeira<br />

obrigação é fazer a vontade de Deus;<br />

as outras coisas vêm depois.”<br />

Fazer a vontade de Deus significa<br />

conhecer o que Ele ensinou e cumprir<br />

exatamente o que Ele mandou. Não<br />

se pode relaxar, dizendo: “Dou tal jeitinho.”<br />

É preciso, antes de qualquer<br />

outra coisa, cumprir inteiramente a<br />

vontade de Deus com amor.<br />

“Uma espécie de libré<br />

da Revolução”<br />

E, pelo seu modo de ser, ela era<br />

muito minuciosa nas coisas. Nos<br />

tempos de minha infância tudo era<br />

diferente de hoje. Atualmente, as<br />

senhoras compram roupas feitas em<br />

lojas. Naquela época, para tornar o<br />

trabalho mais cômodo, mandavam<br />

vir uma costureira em suas casas. Eu<br />

vi muitas vezes mamãe experimentar<br />

vestido com a costureira. Notan-<br />

Aprendi com mamãe que<br />

as coisas verdadeiramente<br />

sérias devem ser feitas<br />

até o último ponto do<br />

exato; por exemplo, a<br />

Doutrina Católica.<br />

Se um Papa ensinou<br />

uma coisa, gozando do<br />

privilégio da infalibilidade,<br />

devemos crer.<br />

Cátedra de Pedro - Basílica<br />

de São Pedro, Roma.<br />

14


do algumas dobrazinhas, mamãe dizia: “Aqui falta não<br />

sei o quê. Ali precisa fazer tal coisa”, até que o vestido ficasse<br />

na perfeição, porque o que ela fazia era perfeito.<br />

Lembro-me de que, quando se tratava de fazer roupas<br />

para nós, mamãe também mandava vir a costureira, para<br />

elaborar uma roupa de menina para minha irmã, e para<br />

mim um traje de menino.<br />

Quando chegava a minha vez de experimentar a roupa,<br />

eu tinha que ficar de pé, e Dona Lucilia dizia à costureira:<br />

— Olha aqui, as costas não estão caindo bem. Por favor,<br />

ponha um alfinete aqui no paletó do <strong>Plinio</strong> e vamos<br />

ver se assim fica melhor.<br />

A costureira objetava:<br />

— Não vai bem, Dona Lucilia, porque se prende aqui,<br />

puxa lá.<br />

E mamãe:<br />

— É verdade, então vamos pensar um pouco onde colocar<br />

esse alfinete...<br />

E isto ia de alfinete em alfinete, e eu já não aguentava<br />

mais...<br />

Para escapar das provas das roupas, certo dia eu disse<br />

a Dona Lucilia:<br />

— Olha mamãe, deixa que eu mesmo me arranje com<br />

o meu alfaiate.<br />

E comecei a ir a qualquer alfaiate no centro da cidade,<br />

que não tinha interesse em fazer uma boa roupa,<br />

nem eu dava a mínima importância aos meus trajes. Ele<br />

punha os alfinetes onde queria, eu dizia que estava muito<br />

bom. Quando eu vestia a roupa pela primeira vez, eu<br />

nem prestava muita atenção, porque achava que aquele<br />

traje era uma espécie de libré da Revolução. É claro<br />

que eu tinha razão. Aquilo não era uma roupa minha;<br />

a Revolução é que estava impondo tais trajes e eu os<br />

usava com relaxamento ostensivo, desdenhoso, fazendo<br />

pouco caso.<br />

Mas aprendi com mamãe que as coisas verdadeiramente<br />

sérias devem ser feitas até o último ponto do<br />

exato; por exemplo, a Doutrina Católica. Se um<br />

Papa ensinou uma coisa, gozando do privilégio<br />

da infalibilidade, falando ex cathedra,<br />

ou seguindo o ensino ordinário, repetindo o que<br />

outros Papas disseram, devemos crer. Mas, para acreditar,<br />

a pessoa precisa ler o que o Sumo Pontífice escreveu,<br />

para compreender bem o que ele quis dizer, e depois<br />

quais são as consequências que decorrem, embora<br />

não estejam presentes porque o Papa não pode escrever<br />

tudo; há muita coisa que é preciso saber deduzir. E deduzir<br />

por inteiro e cumprir por inteiro, brigue com quem<br />

brigar, encrenque com quem encrencar, mas é necessário<br />

fazer.<br />

Não basta isso. Deve-se servir a Deus não de modo escondido,<br />

com vergonha, mas com ufania e, portanto, ostensiva<br />

e publicamente.<br />

Por exemplo, usar o terço. No tempo de minha juventude,<br />

homem nenhum usava o terço. Eu comprei um terço<br />

e comecei a usá-lo publicamente. Era uma afronta.<br />

A alta sociedade de São Paulo era pequena, de maneira<br />

que todos se conheciam e, portanto, eu era conhecido por<br />

todo mundo. E, para fazer uma afronta maior a eles, nem<br />

comprei um terço de homem, mas um azul claro de Filha<br />

de Maria. Nas igrejas, diante de meus colegas da faculdade,<br />

eu puxava o tercinho e começava a rezar. Porque, se é<br />

preciso afrontar, vou afrontar até o fim! Assim, todos os<br />

Servir a Deus com ufania<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />

24/12/1992.<br />

15


Dona Lucilia<br />

cuidados que Dona Lucilia punha nos alfinetes e nos vestidos<br />

eu colocava na profissão da Fé Católica.<br />

Encontro com um rapaz muito rico, mas<br />

profundamente revolucionário<br />

Recordo-me de que naquele tempo havia um rapaz muito<br />

rico no colégio em que eu estudava. E na casa dele esteve<br />

hospedada a Família Imperial brasileira, no ano de 1922.<br />

Todos se lembrarão com certeza que a Independência<br />

do Brasil foi proclamada em 1822, tendo o Brasil se<br />

tornado nação separada de Portugal. Em 1922 fez cem<br />

anos em que o Brasil estava independente e se realizaram<br />

festas, comemorações etc. E entre essas comemorações<br />

houve um decreto do Presidente da República, Epitácio<br />

Pessoa, que era um homem muito inteligente, culto,<br />

nobre, revogando o banimento dos descendentes de<br />

D. Pedro I. De fato, era um absurdo que, na comemoração<br />

do centenário, os descendentes do imperador que tinha<br />

proclamado a independência, não pudessem pôr os<br />

pés no Brasil sem serem levados para a cadeia. Era um<br />

decreto feito pela liberalidade do Governo republicano.<br />

Assim, a Família Imperial veio para o Brasil.<br />

Minha avó e minha mãe eram muito monarquistas;<br />

e minha avó mantinha correspondência com a Princesa<br />

Isabel etc. Quando os membros da Família Imperial chegaram<br />

a São Paulo, foram logo visitados por minha mãe<br />

e minha avó, em casa de uma família riquíssima — creio<br />

que era a família mais rica daquele tempo —, a qual lhes<br />

ofereceu apartamentos suntuosos para se hospedarem.<br />

A senhora dona dessa casa tinha netos que eram meus<br />

colegas no Colégio São Luís, de maneira que nos conhecíamos<br />

e nos tratávamos.<br />

Um desses netos era um rapaz finíssimo, muito bem<br />

educado, com jeito de verdadeiro aristocrata, mas comunista<br />

apaixonado; depois se tornou um dos líderes comunistas<br />

mais conhecidos do Brasil.<br />

Esse rapaz, nas horas vagas, fazia um pouco de sala<br />

para Dom Pedro Henrique e um irmão deste, que<br />

morreu ainda menino, em odor de santidade: o príncipe<br />

Dom Luís Gastão. Dom Pedro Henrique jogava tênis<br />

com o futuro líder comunista ao qual me referi.<br />

Quando a Família Imperial foi embora, certa vez eu<br />

estava indo de bonde para o Colégio São Luís e, numa<br />

esquina da Avenida da Consolação, vejo entrar esse rapaz;<br />

não nos gostávamos, era natural. Ele sentou-se ao<br />

meu lado; após pequenos cumprimentos frios, ele me<br />

perguntou:<br />

— Você esteve com a Família Imperial?<br />

Respondi:<br />

— Estive, sim.<br />

— Você esteve muito com o Pedro Henrique?<br />

— Várias vezes. E você também?<br />

— Sim, eu joguei tênis com ele.<br />

Após uma pausazinha, ele disse:<br />

— Já estou vendo como você tratou a ele de Alteza,<br />

não é?<br />

Em relação a Deus,<br />

nós temos deveres mais<br />

importantes do que as<br />

obrigações para com<br />

qualquer pessoa na Terra.<br />

Devemos obedecê-Lo<br />

antes e acima de tudo.<br />

<strong>Plinio</strong> no Jardim da Luz.<br />

16


Eu estava percebendo que<br />

ele estava armando uma caçoada<br />

por cima de mim; então, voltei-me<br />

para ele e disse:<br />

— Sim, senhor. Alteza! Você<br />

como tratou?<br />

— Ah, não! Eu tratei de você,<br />

porque sou democrata.<br />

— Pois bem, é fácil ser democrata<br />

com um príncipe que<br />

perdeu o trono. Mas com príncipe<br />

que está no trono você trataria<br />

de Alteza, não é?<br />

— Não me amole!<br />

— Amolo, sim, porque essa<br />

é a lógica.<br />

Fomos até o Colégio São<br />

Luís sem conversarmos. Ele já<br />

morreu; depois desse fato, nós<br />

nunca mais nos falamos. Esse<br />

era o modo de ser combativo já<br />

para uma criança.<br />

Como o menino <strong>Plinio</strong><br />

classificava seus estudos<br />

Como expliquei, eu não me<br />

importava com a minha roupa, porque era a libré da Revolução;<br />

porém, quanto aos meus estudos minha atitude<br />

era diferente.<br />

Eu classificava meus estudos em dois grupos: aqueles<br />

que se relacionam com a Revolução e a Contra-Revolução;<br />

os que não se relacionam.<br />

Estudos que têm relações com a Revolução e a Contra-Revolução:<br />

Primeiro, a Religião: aprender o catecismo melhor do<br />

que todas as outras coisas. Em segundo lugar, o Francês,<br />

idioma que eu admirava, já conhecia e falava correntemente,<br />

e do qual gostava muito. Eu compreendia que o<br />

meio de combater a influência Hollywood do cinema era<br />

manter a cultura francesa. Então, chegando junto aos colegas<br />

eu dizia:<br />

— Que linda língua o Francês!<br />

Um deles logo me respondia:<br />

— Não, o Inglês é muito mais bonito.<br />

— Nunca! Onde é que você está com a cabeça?<br />

— Serve melhor para entender as fitas de cinema.<br />

— Mas isso não quer dizer nada, pois essas fitas não<br />

valem nada.<br />

E saía uma discussão…<br />

A grande matéria, depois de Religião: História. Analisando<br />

como tinha sido o passado, vim a compreender<br />

Uma das últimas fotografias de Dona Lucilia, um mês antes de sua morte.<br />

melhor o presente. Execrei a Revolução Francesa. E tudo<br />

quanto pode haver de ódio ao mal no coração de uma<br />

criança, havia no meu coração contrarrevolucionário.<br />

Eu gostava muito de Latim; a boçalidade do cinema<br />

era contrariada pela penetração do Latim. E apreciava<br />

também análise lógica: sujeito, verbo, objeto direto, indireto,<br />

complemento circunstancial de tal espécie... Então,<br />

tomar uma frase e desarticulá-la, entender as palavras,<br />

pôr em ordem: coisa magnífica!<br />

Tudo isto já visava a combatividade.<br />

Por fim, comecei a formar meu vocabulário. As pessoas<br />

que, segundo me parecia, falavam um Português bonito<br />

eram muito mais velhas do que eu; mas eu me colocava<br />

perto delas para ouvi-las falar e notava as palavras que<br />

não se diziam todo dia, as quais, entretanto, tinham suco,<br />

eram ricas de significado. E comecei a empregar um vocabulário<br />

antigo. Muitas pessoas ficavam indignadas porque<br />

era uma provocação; e eu sustentava a provocação.<br />

Aí está, conforme a formação dada por Dona Lucilia,<br />

a origem de minha combatividade. Dessa forma, ao que<br />

me foi perguntado, respondo com muito afeto. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 11/2/1995)<br />

17


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Fotos: A. Costantini; G. Kralj; M. Shinoda; The Yorck<br />

Project / John Clarke Ridpath; Library of Congress.<br />

O mais belo mar! - I<br />

Introduzindo-nos em considerações metafísicas sobre as mais variadas<br />

embarcações, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos convida a singrar os misteriosos,<br />

por vezes conturbados, mas sempre magníficos mares da História.<br />

Há pouco, eu estava folheando um álbum, com<br />

panoramas da ilha de Porto Rico, e vi a fotografia<br />

de um transatlântico contemporâneo<br />

ancorado no porto. Transatlântico já não é bem uma coisa<br />

contemporânea. É um contemporâneo de ontem, porque<br />

hoje quase não há mais transatlânticos.<br />

Mas o álbum deveria datar de uns dez anos atrás, quando<br />

os últimos transatlânticos brilhavam com seus últimos<br />

fogos e suas últimas luzes, sobre esses mares que vão ficando<br />

vazios de navios que transportam gente. São mares<br />

comerciais, rotas apenas de transporte de mercadorias.<br />

A fotografia mostrava a cidade de Porto Rico, iluminada<br />

durante a noite com as luzes das casas refletindo-se sobre<br />

o Mar das Antilhas; e o transatlântico fortemente, quase<br />

feericamente iluminado com as luzes do tombadilho,<br />

do convés e das várias escotilhas que dão para os camarotes,<br />

todas muito acesas, formando quase um palácio de luz,<br />

junto ao porto um pouco escuro e refletindo-se também<br />

nas águas; pelo artifício da fotografia, era apresentada uma<br />

imagem verdadeiramente feérica do transatlântico.<br />

O transatlântico: palácio de magnificência<br />

Cogitando nisso, pensa-se no mar, na beleza de uma<br />

viagem transatlântica. Olhando aquele transatlântico de<br />

fora para dentro tem-se a impressão de um verdadeiro<br />

Interior de transatlânticos do fim do século XIX - Library of Congress (Prints<br />

and Photographs Division Washington, D.C. 20540 USA).<br />

18


Transatlântico navegando pelo Gran Canale - Veneza (Itália).<br />

palácio flutuante. Se uma pessoa, fazendo o trajeto oposto<br />

ao do raio de luz, entrasse num camarote através de<br />

uma janelazinha, encontraria um ambiente de conforto,<br />

de distinção, de afago, de bem-estar, de agrado que lhe<br />

daria vontade de não sair do camarote, tão esplendoroso<br />

ele seria.<br />

Poderíamos imaginar várias formas de camarotes: espaçosos,<br />

confortáveis, altos, ou pequenos, estreitos; superluxuosos,<br />

com cama de plumas, brocados, damascos,<br />

acolchoados, tapetes. O passageiro está com o ventilador<br />

ligado e a mão posta sobre uma mesa, pensando no tempo<br />

que corre, no navio que singra, nas ondas que passam,<br />

nas estrelas que se sucedem e no transatlântico que segue<br />

a sua rota; e ouvindo o mar que, com os seus mistérios,<br />

seus perigos, do lado de fora, como que, bate inutilmente<br />

na porta do camarote enquanto que o passageiro,<br />

dentro, sente-se tão bem, meio isolado do mundo.<br />

Dentro do mundo feérico do transatlântico há a feeria da<br />

imaginação que ajuda a pensar a respeito daquilo tudo.<br />

Então se tem a impressão de que cada cabine do transatlântico<br />

é um ninho de bem-estar e de luxo dentro de<br />

um palácio de magnificência, de largueza, distensão e<br />

movimento.<br />

Suponhamos que uma pessoa caminhe pelos corredores<br />

estreitos do navio, transitando diante das portas hermeticamente<br />

fechadas para quem passa. Atrás de cada<br />

uma daquelas longas portas, todas anônimas, há um passageiro<br />

que, numa viagem de alegria ou de dor, separação<br />

ou união, esperança ou decepção, ganância ou vontade<br />

de prazer, vai rumando para um destino que não<br />

tem nada que ver com o dos seus vizinhos.<br />

Ela tem a impressão de que atravessa uma longa constelação<br />

de mistérios fechados, que se cerraram; por fim,<br />

chega aos grandes salões, tomando dois andares do transatlântico:<br />

um salão chinês de laca vermelha, um salão<br />

francês de sedas cor de água meio verde, e assim por<br />

diante, até o clássico bar alemão, com os seus pães pretos,<br />

suas linguiças, suas cervejas, seus chocolates e seus<br />

antegozos da Europa que vem chegando.<br />

Tudo isto constitui um palácio em cujo interior gostamos<br />

de pensar e de imaginar que andamos, muito mais<br />

do que nesses poleiros ou nessas gaiolas de gente, chamadas<br />

avião, nos quais se viaja a toda pressa. Nos aviões,<br />

a beleza do ar externo não tem nenhuma consonância<br />

com o homem, o qual só toma conhecimento do<br />

que se passa no ar, mais ou menos, como um produto<br />

enlatado conhece o que se passa na vida fora dele.<br />

É enlatado que o homem percorre essa coisa tão diáfana,<br />

o ar, o qual, depois de passar por tubulações viciadas<br />

e nada possuindo da sua pureza originária, só entra<br />

no avião por uns esguichos dirigíveis que assobiam em<br />

cima do passageiro.<br />

Caravela: sensação do risco e do heroísmo<br />

Podemos imaginar quantos navios percorreram os mares.<br />

E a feeria das embarcações, com as suas várias formas,<br />

começa a passar por nossos olhos.<br />

19


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Maior do que a vastidão do<br />

mar, e até mesmo a do ar,<br />

é a vastidão da alma que<br />

verdadeiramente saiba admirar.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência<br />

em abril de 1992.<br />

Se nos reportarmos não mais aos transatlânticos desta<br />

última fase — fim e apogeu dos transatlânticos de metal<br />

— mas, recuando no tempo, às caravelas: oh! que beleza!<br />

Entretanto, que desconforto para o corpo! Não há<br />

a cabine maravilhosa! Nem o salão chinês de laca vermelha,<br />

o substancioso bar alemão, e nem um pouco o charme<br />

do salão francês!<br />

Mas há outro charme! O porão do navio realmente é<br />

rude, duro, inóspito, porém que tombadilho! Este possui<br />

magníficas chaises longues, com forma anatômica, onde<br />

a pessoa se deita, de maneira a ter a impressão de que<br />

não possui corpo? Nem um pouco! Nele há um serviço<br />

de restaurante estupendo, oferecendo whisky, gins-tônicas,<br />

sorvetes? Não!<br />

No tombadilho da caravela existe outro jogo de belezas<br />

e encantos! O transatlântico moderno levava o homem<br />

a não prestar atenção no mar, no ar, a esquecer-se<br />

de que estava navegando. Era um palácio ambulante tão<br />

deslumbrante, que só se dava atenção ao palácio. O resto<br />

era quase acessório.<br />

Pelo contrário, o velho veleiro, na sua rudeza, oferecia<br />

coisas simples. Mas que coisas! Antes de tudo, velas estupendas,<br />

em castelo, em ponta, umas com a Cruz de Cristo<br />

ou as quinas de Portugal, outras com armas da Espanha,<br />

da França, do Sacro Império, de algum reino da Itália<br />

ou da Inglaterra. Ele oferecia os ventos desencadeados<br />

e furiosos das tempestades, o odor salino das ondas<br />

que inundavam às vezes o tombadilho e voltavam deixando<br />

suas madeiras embebidas de água; mas o homem, com<br />

a sensação do risco e do heroísmo, ia cortando o vento e<br />

fendendo a natureza; ou as noites doces, estreladas, tépidas,<br />

nas quais se tinha a impressão de que cada estrela<br />

sorria para cada passageiro e estavam tão próximas que<br />

se poderia brincar com cada uma delas, como se alguém<br />

acendesse uma maravilhosa luz e surgisse um céu recamado<br />

de lâmpadas de Aladim!<br />

Então, havia a doçura das brisas que bailavam em torno<br />

do rosto, afagavam, faziam promessas do feliz destino<br />

da viagem. Ou, nas noites escuras, misteriosas, o deleite<br />

da incerteza. Ao avançar, o veleiro produzia a sensação<br />

de uma conquista no escuro, de uma conquista, por isso<br />

mesmo, bela. Cada pessoa se sentia dignificada.<br />

Que riqueza existe na alma do homem e no universo<br />

feito por Deus para haver todo um conjunto de jogos de<br />

deleites diferentes! E como os deleites do veleiro antigo<br />

são superiores aos deleites do transatlântico moderno!<br />

Espírito admirativo<br />

Quando falei do transatlântico, referi-me à cabine recamada<br />

de damasco – eu gosto de damasco. Em nossa sede<br />

principal há uma sala recamada de damasco; chama-<br />

-se Sala da Tradição. Aquele damasco foi comprado em<br />

Buenos Aires e eu quis que ali ele fosse colocado para a<br />

glória de nosso Movimento, o qual somente visa a glória<br />

de Nossa Senhora.<br />

Aprecio muito tudo isso. Gosto de ter uma alma tal<br />

que saiba admirar os brocados de uma cabine de um<br />

transatlântico, e também as tempestades com as quais se<br />

defronta um veleiro. Admirar esses diversos jogos de coi-<br />

20


sas, compreendê-las e ter a alma bastante flexível para<br />

se embeber de todas elas até o fim, e perceber que ainda<br />

possui outras disposições de espírito para admirar outras<br />

coisas: aí está, verdadeiramente, uma vastidão maior do<br />

que a do mar. Eu não hesito em dizer, maior do que a do<br />

ar; essa é a vastidão de qualquer alma humana que verdadeiramente<br />

saiba admirar!<br />

Basta sabermos admirar e termos a alma com todas as<br />

elasticidades da admiração, para sermos capazes de gostar<br />

das coisas. Por causa disso, depois de passarmos pelo<br />

veleiro magnífico da era dos descobrimentos, rumando<br />

para trás, chegaremos a uma época em que o Oceano<br />

Atlântico quase não era navegado.<br />

Então, sair do Estreito de Gibraltar, dar a volta pela<br />

Península Ibérica e chegar ao Canal da Mancha era<br />

um verdadeiro risco, uma temeridade. E o aventureiro<br />

que chegasse até os Açores ou as Canárias era tido quase<br />

como um Cristóvão Colombo, de tal maneira o homem<br />

pouco conhecia o mar. A brutalidade do Oceano Atlântico,<br />

tão menor que a do Pacífico, deixava aterrados os<br />

nossos remotos antepassados europeus.<br />

A epopeia da conquista dos Lugares Santos<br />

Na Idade Média, os homens, em navios pequenos, tinham<br />

a audácia de atravessar o Mediterrâneo, hoje quase<br />

considerado um lago. Naviozinhos sem grande beleza,<br />

com pequenas velas triangulares, nos quais iam homens<br />

magníficos: os cruzados! Neles poderíamos admirar Godofredo<br />

de Bouillon, São Luís e tantos outros que iam<br />

aos grupos para a Terra Santa. As navezinhas, sem beleza<br />

no seu aspecto material, conduziam homens com almas<br />

cheias de beleza.<br />

Nas cruzadas de São Luís, podiam-se ouvir à noite<br />

os guerreiros cantarem o “Salve Regina, Mater Misericórdiæ”,<br />

que um monge de Cister, chamado Bernardo<br />

de Claraval, acabava de compor e que, como um frêmito,<br />

atravessara a Cristandade inteira. E depois, chegando<br />

ao Oriente, São Luís, com sua armadura de ouro, saltava<br />

dentro da água com pressa de pisar em terras do Egito,<br />

para atacar o adversário e começar a epopeia da conquista<br />

dos Lugares Santos.<br />

Aí se percebia outra forma de beleza, não do navio, da<br />

vela ou do Mediterrâneo com o seu azul magnífico, mas<br />

da alma humana, mais bela que o mar. Bonito é o Sepulcro<br />

de Cristo que se trata de libertar. Mais belo ainda é<br />

Cristo Ressurrecto de dentro do Sepulcro, que se trata<br />

de glorificar.<br />

Os vikings<br />

E, indo mais para trás, somos transportados pela imaginação<br />

para outro tipo de navegação.<br />

Na Europa nórdica, encontramos o Mar do Norte com<br />

suas brumas. Nas porcelanas dinamarquesas essas brumas<br />

são magnificamente representadas: um azul que se<br />

desfaz numa neblina prateada; uma neblina prateada<br />

que se desfaz em azul. Não se percebe bem o que é água<br />

e o que é neblina em toda aquela massa indefinida, dentro<br />

da qual os dinamarqueses de hoje gostam de representar<br />

algum peixe ou outra coisa viva, mas no interior<br />

dela eu gosto de imaginar a presença dos vikings.<br />

Os vikings se aventuravam em<br />

frotas de barcos magníficos,<br />

com aquela quilha parecida<br />

com o pescoço do cisne, que<br />

vem para trás e se joga para<br />

frente. Tinham ao mesmo<br />

tempo a elegância do pescoço<br />

do cisne e a agressividade<br />

do bico de uma águia.<br />

21


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Dos vikings dos antigos tempos, daquelas tribos com<br />

duzentos, quinhentos homens no máximo, que se aventuravam<br />

em frotas de barcos magníficos, com aquela quilha<br />

parecida com o pescoço do cisne, que vem para trás<br />

e se joga para frente. Tinham ao mesmo tempo a elegância<br />

do pescoço do cisne e a agressividade do bico de uma<br />

águia.<br />

Quinhentos homens utilizavam aproximadamente<br />

cem barquinhos. Eles se chamavam reis do mar, porque<br />

era o reino inteiro que viajava. Enquanto as mulheres<br />

ficavam numa ilha ou num lugar qualquer onde<br />

não pudessem ser atacadas, os homens singravam os<br />

mares para descobrir terras novas a fim de levar as famílias;<br />

ou iam simplesmente à pesca de baleias, arenques<br />

e outros bichos para se alimentarem durante o<br />

inverno.<br />

Podemos imaginar como eles viajavam. Nas horas<br />

de perigo, todos com escudos encostados uns nos outros,<br />

fazendo um paredão de um lado e do outro, com<br />

a mão esquerda seguravam o escudo e com a direita a<br />

lança em ponta, e cantando canções “pré-wagnerianas”.<br />

Depois de uma navegação arriscada, entravam por um<br />

fiorde escarpado da Noruega ou um porto brumoso da<br />

Inglaterra ou, indo mais além, chegavam até a Islândia,<br />

a qual representava já algo do mundo novo que se tratava<br />

de atingir.<br />

Que série de embarcações maravilhosas! Entretanto,<br />

quanta outra coisa se poderia dizer sobre navios!<br />

Veneza, a feérica, perdeu o império<br />

comercial dos mares...<br />

Minha imaginação se reporta a outro quadro completamente<br />

diferente.<br />

Ancien Régime 1 : delicadezas, reverências, elegâncias.<br />

Uma cidade à beira-mar. De noite, brilham luzes e fogos;<br />

de vez em quando, cravados no fundo do mar, uns espetos<br />

com lanternas. É Veneza, a feérica!<br />

Na cidade há uma expectativa geral. De longe, ao<br />

mar, ouve-se uma música de Vivaldi; depois se veem<br />

as luzes e se percebem as flores, das quais se sentem<br />

os perfumes; escutam-se as batidas suaves dos remos: é<br />

uma nau toda dourada, com as elegâncias do estilo do<br />

Ancien Régime; na frente, uma figura alta, com um barrete<br />

frígio, com aquela parte voltada para a frente, e todo<br />

vestido com um traje de cor bordô profundo e que<br />

olha como um rei.<br />

É o Doge de Veneza, que volta na sua famosa nau de<br />

gala, o Bucentauro, da festa dos desponsórios de Veneza<br />

com o mar. Para realizar esses desponsórios, à tarde<br />

miríades de gôndolas saem, cujos gondoleiros tocam violinos<br />

e cantam festivamente; e o Bucentauro com o famoso<br />

conselho dos dez, tendo o Doge, à frente, homens<br />

e damas de sua corte, ao som de músicas. Vão até alto-<br />

-mar do Adriático e, no momento solene, todos param,<br />

os remos se levantam. Expectativa geral. O Doge toma,<br />

de um escrínio precioso, um precioso anel e o joga no<br />

fundo do mar: é o casamento, os desponsórios de Veneza<br />

com o mar!<br />

Isso afirmava outrora o poder de Veneza sobre o Adriático<br />

e o Mediterrâneo; posteriormente houve a Veneza<br />

de Marco Polo, que mandava homens ir a pé até a China<br />

e, quando voltavam, contavam o que viram.<br />

Mas depois uma nação espalhou em Veneza a desolação.<br />

Barcos dessa nação atracaram em Veneza e deles<br />

desceram homens altos e bem largos, robustos, olhos<br />

e cabelos pretos, pele clara, passo firme, decidido, falar<br />

cantante e franco. Mostravam especiarias, dizendo: “Todas<br />

essas coisas procedem do Oriente. Nós as trouxemos<br />

por mar! Demos a volta à África, pelo Cabo da Boa Esperança!”<br />

Contam os historiadores que os nossos ancestrais<br />

portugueses puseram à venda as mercadorias que eles<br />

traziam – pimenta, cravo, canela, açúcar, baunilha – a<br />

preço de arrebentar o varejo veneziano. Era a prova<br />

de que o domínio das especiarias pertencia a Portugal.<br />

Não se vinha mais por terra, mas por água. Portugal tinha<br />

rasgado o monopólio veneziano e, como também a<br />

Espanha faria depois, inundou a Europa com as especiarias.<br />

Houve, então, dias inteiros de pranto e consternação<br />

em Veneza.<br />

...mas ganhou o império da beleza<br />

Não conheço a História de Veneza nos seus pormenores,<br />

mas foi com certeza nessa circunstância que se deu<br />

uma revelação para Veneza; ela perdeu o império comercial<br />

dos mares, mas não tinha percebido que ganhara<br />

um império muito mais precioso: o da beleza.<br />

Veneza aproveitara o tempo de sua riqueza para se<br />

encher de palácios, de obras-primas imortais e para tornar-se<br />

umas das cidades mais belas e talvez a mais original<br />

de todo o universo. E quando ela começou a decair<br />

comercialmente, as nações, inconsoláveis pela sua decadência,<br />

começaram a visitar a feérica moribunda que<br />

ia expirando. E todos lhe traziam a sua contribuição, o<br />

tributo de sua admiração: o ouro do turismo que começava.<br />

Veneza foi, talvez, o primeiro centro internacional<br />

de verdadeiro turismo. O mundo inteiro se encantava<br />

e lá gastava dinheiro, pois não queria que Veneza<br />

morresse!<br />

Então Veneza compreendeu que, continuando a vida<br />

de luxo, de festa, de arte, prolongava sua própria vida; e<br />

que ela estava casada com o pulchrum, possuía uma be-<br />

22


Uma cidade à beira-mar.<br />

De noite, brilham luzes e<br />

fogos; de vez em quando,<br />

cravados no fundo do mar,<br />

uns espetos com lanternas.<br />

É Veneza, a feérica!<br />

Acima, Veneza; à esquerda, partida do<br />

Bucentauro, por Francesco Guardi.<br />

leza imortal. Somente nessa ocasião ela se deu conta, pela<br />

admiração dos homens da terra firme, de que cada um<br />

de seus quarteirões é como um transatlântico, e de que<br />

Veneza se assemelha a uma esquadra maravilhosa, fixa<br />

no fundo da laguna: em cada ilha, cada bloco de casas é<br />

admirável. Veneza é muito mais do que o transatlântico<br />

que, no começo desta exposição, eu fiz figurar diante de<br />

vossos olhos.<br />

Vós ficastes encantados quando falei do transatlântico<br />

de Porto Rico. Ao ver a fotografia dele, encantei-me<br />

também; mas quando terminamos nossa viagem em Veneza,<br />

que baixa de nível esse transatlântico! Nosso espírito<br />

foge espavorido e não tem vontade de pensar nas magníficas<br />

caravelas portuguesas, nem nas naus vikings. Chegou<br />

a Veneza, parou! Ali existe qualquer coisa de feito,<br />

de acabado, de definitivo.<br />

Percorremos mentalmente vários tipos de navios. E<br />

em cada um deles as cordas de nossa admiração, como<br />

o alaúde chinês — que aqui foi tocado no início de nossa<br />

reunião —, vibraram de um determinado modo. E fomos<br />

transportados, assim, da vida quotidiana, da terra firme,<br />

para outros horizontes. Acabamos de velejar pelos mares<br />

da História, e compreendemos que esta é um mar mais<br />

bonito do que todos os mares.<br />

Continua no próximo número...<br />

(Extraído de conferência<br />

de 10/11/1979)<br />

1) Período da História da França que precede a Revolução<br />

Francesa.<br />

23


Fotos: S. Hollmann; F. Lecaros<br />

C<br />

alendário<br />

dos Santos – ––––––<br />

1. Santa Veridiana, Virgem (†Toscana, Itália, 1242).<br />

Nascida na Toscana, consagrou desde muito jovem sua virgindade<br />

a Deus. Peregrinou a Santiago de Compostela e a<br />

Roma, retornando depois à terra natal, onde voluntariamente<br />

viveu murada numa cela, durante 34 anos, favorecida<br />

por elevados dons místicos, em meio a rigorosas penitências.<br />

2. Apresentação do Menino Jesus no Templo e Purificação<br />

de Nossa Senhora. O Evangelho de São Lucas narra<br />

que decorrido o prazo estabelecido pela Lei mosaica para<br />

a purificação das mulheres que davam à luz, Nossa Senhora<br />

e São José levaram o Menino Jesus ao Templo para O<br />

apresentarem a Deus.<br />

3. Santo Oscar, Bispo (†865). Nasceu na França no princípio<br />

do século IX e foi educado no mosteiro de Córbia<br />

(Alemanha). Em 826 partiu para a Dinamarca a fim de<br />

pregar a Fé cristã, não obtendo, porém, muito resultado;<br />

no entanto, teve melhor êxito na Suécia. Foi eleito Bispo<br />

de Hamburgo. O Papa Gregório IV nomeou-o legado pontifício<br />

para a Dinamarca e a Suécia. Encontrou muitas dificuldades<br />

no seu ministério de evangelização, mas superou-<br />

-as com grande fortaleza de ânimo.<br />

4. São João de Brito, Mártir. Filho<br />

de Salvador Pereira de Brito,<br />

Governador-Geral do Brasil,<br />

São João de Brito ingressou na<br />

Companhia de Jesus e foi enviado<br />

como missionário às Índias,<br />

onde, após muitos anos de trabalhos<br />

apostólicos, sofreu o<br />

martírio.<br />

5. V Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

6. Santos Paulo Miki e<br />

Companheiros, Mártires<br />

(†Nagazaki, Japão, 1597).<br />

São Paulo Miki era jesuíta e<br />

se dedicava ao ensino do catecismo<br />

com muito zelo, obtendo<br />

nesse apostolado conversões surpreendentes. Foi crucificado<br />

em Nagazaki, por ordem do imperador pagão, juntamente<br />

com outros dois jesuítas, seis franciscanos e dezessete<br />

leigos. Foram canonizados pelo Papa Pio IX, em<br />

1862. A elevação sobre a qual receberam o martírio ficou<br />

conhecida como Monte dos Mártires.<br />

7. Bem-aventurado Papa Pio IX. Governou a Igreja entre<br />

1846 e 1878.<br />

8. São Jerônimo Emiliani, Confessor (†Somasca, Itália,<br />

1537). Nasceu em 1486, numa família nobre de Veneza, fez<br />

rápida carreira como militar e como político. Aprisionado pelos<br />

franceses, durante o cativeiro resolveu renunciar ao mundo<br />

e consagrar-se por inteiro a Deus. Foi libertado prodigiosamente<br />

por Nossa Senhora e retornou à sua cidade natal,<br />

onde foi ordenado sacerdote e se dedicou ao cuidado dos órfãos<br />

pobres. Fundou a Ordem dos Clérigos Regulares de Somasca,<br />

destinada a socorrer as crianças órfãs e os pobres.<br />

9. São Miguel Febres Cordero, Religioso (†1910). Nascido<br />

em Cuenca, enfrentou grande oposição da família para<br />

cumprir sua vocação de Irmão das Escolas Cristãs (Lassalista).<br />

Apesar das dificuldades, ingressou na vida religiosa<br />

e se destacou como educador da juventude, afirmando-<br />

-se também como escritor, gramático e filólogo. Chegou a<br />

ser eleito membro da Academia Equatoriana da Língua. A<br />

fama de santidade eminente o acompanhou durante toda<br />

a vida e perdurou depois do falecimento. Foi canonizado<br />

por João Paulo II em 1984.<br />

10. Santa Escolástica, Virgem (†Itália, 547). Irmã gêmea<br />

e filha espiritual do grande São Bento, nascida em<br />

Núrsia, Itália, cerca do ano 480. Juntamente com seu irmão,<br />

consagrou-se a Deus e seguiu-o para Cassino. Fundou<br />

o ramo feminino da Ordem beneditina. Quando faleceu,<br />

seu irmão viu sua alma sendo conduzida ao Céu.<br />

Santo Hilário - Capela da<br />

Sabedoria (Saint Laurent<br />

sur Sèvre, França).<br />

11. Nossa Senhora de Lourdes. Em Lourdes, na gruta<br />

de Massabielle, Nossa Senhora apareceu dezoito vezes a<br />

Santa Bernadete, então menina de 14 anos. Na última das<br />

aparições, a Virgem Se identificou: “Eu sou a Imaculada<br />

Conceição.” Com essas palavras, confirmava o ato solene<br />

pelo qual o Papa Pio IX, quatro anos antes, proclamara a<br />

Conceição Imaculada da Santa Mãe de Deus.<br />

12. VI Domingo do Tempo Comum.<br />

13. Santo Estêvão, Bispo (†Lyon , 515).<br />

24


––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />

14. São Cirilo, Monge (†869) e São Metódio, Bispo<br />

(†885). Ver página 20.<br />

15. São Cláudio de la Colombière, Presbítero (†1682).<br />

Sacerdote jesuíta e Superior do Colégio de Paray-le-Monial,<br />

São Cláudio foi grande apóstolo da devoção ao Sagrado<br />

Coração de Jesus.<br />

16. Beato José Allamano, Presbítero (†1926). Aluno de<br />

São João Bosco e sobrinho de São José Cafasso, Beato José<br />

fundou a Congregação de Missionários da Consolata.<br />

17. Sete Santos Fundadores dos Servitas (†Florença,<br />

Séc. XIII). Levaram vida eremítica no monte Senário, venerando<br />

de modo particular a Santíssima Virgem Maria.<br />

Depois se dedicaram à pregação por toda a Toscana e,<br />

convocados pela própria Mãe de Deus, fundaram a Ordem<br />

dos Servos de Maria (Servitas), destinada a promover<br />

a devoção a suas dores. A Ordem, que foi aprovada<br />

em 1304 pela Sé Apostólica, rapidamente se expandiu.<br />

Tão unidos eram os sete fundadores que foram sepultados<br />

num mesmo sepulcro, tendo-se misturado até mesmo<br />

suas cinzas.<br />

18. Santo Heládio, Bispo (†632). Abandonou o cargo<br />

de administrador da corte visigótica para se tornar monge;<br />

foi eleito abade do mosteiro, e depois Arcebispo de Toledo<br />

(Espanha).<br />

19. VII Domingo do Tempo Comum.<br />

20. Santo Euquério, Bispo (†Orléans, França, 137).<br />

Destacou-se desde jovem pela sabedoria, pela santidade e<br />

pela devoção a Maria Santíssima. Fez-se monge, e algum<br />

tempo depois foi eleito Bispo de Orléans. Durante 15 anos<br />

cumpriu eximiamente os deveres até que, devido a intrigas<br />

na Corte, foi exilado por Carlos Martel para Hasbain, próximo<br />

a Liège. Ali, num mosteiro, viveu ainda seis anos de<br />

vida recolhida, até que o Senhor o chamou para Si.<br />

21. São Germano, Abade (†667). Foi assassinado por ladrões,<br />

ao tentar defender, com palavras pacíficas, os habitantes<br />

vizinhos do mosteiro de Grandfelt, Suíça.<br />

22. Cátedra de São Pedro.<br />

23. São Policarpo, Bispo e Mártir (†Esmirna, Séc. II).<br />

Discípulo de São João Evangelista, foi nomeado, ainda no<br />

tempo dos Apóstolos, Bispo de Esmirna, na atual Turquia.<br />

Teve como discípulo e continuador o grande Santo Ireneu,<br />

Bispo de Lyon. São Policarpo foi martirizado aos 86 anos<br />

de idade, por ter increpado sacerdotes pagãos.<br />

24. Beato Tomás Maria Fusco, Presbítero (†1891). Tomado<br />

de grande amor pelos pobres e doentes, fundou em<br />

Nocera, Itália, o Instituto das Filhas da Caridade do Preciosíssimo<br />

Sangue.<br />

25. São Toríbio Romo, Presbítero, (†México, 1928).<br />

Martirizado durante a perseguição religiosa que houve em<br />

seu país no século XX.<br />

26. I Domingo da Quaresma.<br />

Santa Paula de São José de Calasanz, Virgem (†Espanha,<br />

1889). Dotada de extraordinário carisma de educadora,<br />

tinha como lema: Piedade e letras. Fundou a Congregação<br />

das Filhas de Maria das Escolas Pias.<br />

27. São Gabriel da Virgem Dolorosa, Confessor (†Ancona,<br />

Itália, 1862). Religioso da Congregação passionista,<br />

viveu discretamente, sem chamar a atenção sobre si, e faleceu<br />

com apenas 24 anos, vitimado pela tuberculose. Sua<br />

fama de santidade, confirmada por numerosos<br />

milagres, rapidamente se espalhou.<br />

Foi canonizado em 1920.<br />

28. Santo Hilário, Papa (†468).<br />

Eleito Sumo Pontífice em 462,<br />

confirmou os concílios de Niceia,<br />

Éfeso e Calcedônia, defendendo<br />

a primazia da Sede Romana.<br />

29. Santa Catarina<br />

de Siena, Virgem<br />

e Doutora da Igreja<br />

(†1830). Terciária dominicana,<br />

foi grande mística<br />

e contemplativa. Teve<br />

numerosos discípulos<br />

e exerceu muita influência<br />

na vida social e<br />

política de seu tempo.<br />

São João de Brito -<br />

Paróquia dos jesuítas<br />

(Barcelona, Espanha).<br />

25


Hagiografia<br />

São Cirilo e<br />

Fotos: S. Hollmann; D. Domingues; V. Toniolo; M. Mañas.<br />

São Metódio<br />

A vocação dos irmãos Cirilo e<br />

Metódio estava intimamente<br />

ligada à evangelização e<br />

conversão do povo eslavo. Para<br />

isso dedicaram inteiramente<br />

suas vidas, obtendo assim a<br />

glória dos altares.<br />

Arespeito de São Cirilo e São Metódio, tenho em<br />

mãos o seguinte trecho extraído do “Ano litúrgico”,<br />

de Dom Gueranger 1 :<br />

Cirilo e Metódio eram filhos de um alto funcionário de<br />

Tessalônica.<br />

Metódio obteve o governo de uma colônia eslava, na<br />

Macedônia.<br />

Cirilo, depois de ter estudado e ensinado, recebeu as ordens,<br />

e se fez monge na Bitínia; posteriormente foi encarregado<br />

da missão junto aos cazares, que eram os bárbaros da<br />

Rússia meridional, e nessa região ele deveria exercer com<br />

seu irmão uma missão político religiosa, em 862.<br />

Tendo o Príncipe da Morávia pedido a Bizâncio missionários<br />

que falassem a língua do país, Fócio lhe enviou, em<br />

863, os dois irmãos. Eles compuseram um alfabeto novo,<br />

chamado ciríaco — que ainda se usa entre os russos —, e<br />

ensinaram os morávios a escrever. Depois traduziram a Bíblia<br />

e a Liturgia para o eslavônio, que era a forma de língua<br />

eslava falada por aqueles povos, e organizaram numerosas<br />

cristandades na Boêmia e na Hungria.<br />

Em 869, chegaram eles a Roma, onde Adriano II os<br />

tratou com honra, permitiu que celebrassem a Missa em<br />

Santos Cirilo e Metódio -<br />

Roma, Itália.<br />

26


eslavônio e ordenou-os Bispos. Mas Cirilo morreu logo<br />

depois, com a idade de 42 anos.<br />

Metódio voltou à Morávia e foi nomeado Arcebispo<br />

de Cirinium, na Sérvia, onde ele encontrou uma situação<br />

muito perturbada, contrária a ele. Seus inimigos mandaram<br />

encarcerá-lo, e o Papa interveio várias vezes em seu<br />

favor, tendo São Metódio finalmente triunfado sobre seus<br />

adversários. Morreu em 877, com pesar de todos. Seus<br />

magníficos funerais foram celebrados em grego, latim e<br />

eslavônio. Pio IX autorizou, em 1863, o culto aos Santos<br />

Cirilo e Metódio.<br />

Ponto de partida para verdadeiros<br />

baluartes católicos<br />

Nessa síntese biográfica, há várias notas muito curiosas.<br />

Em primeiro lugar, São Cirilo e São Metódio, como<br />

irmãos, fizeram uma obra da Providência que glorifica a<br />

instituição familiar. Deus não realiza isto habitualmente,<br />

mas, às vezes, escolhe dois irmãos, ou toda uma família,<br />

para fazer determinada obra pia. Esses dois foram<br />

enviados para uma obra extraordinária: a conversão<br />

dos povos de língua eslava, dos Bálcãs, que haveriam<br />

de irradiar a Fé, preparando a futura conversão<br />

da Rússia.<br />

Por isso a Divina Providência escolheu dois irmãos de<br />

certa categoria; um deles foi governador de Província e o<br />

outro se tornou monge.<br />

Outra nota curiosa é a seguinte: quem mandou estes<br />

dois irmãos fazerem esta evangelização tão extraordinária<br />

foi Fócio, precisamente um dos responsáveis pelo<br />

Cisma do Oriente; antes de cair em heresia, ele ainda<br />

deu esse impulso. O apostolado deles haveria de ser, nos<br />

Bálcãs, o ponto de partida de verdadeiros baluartes católicos<br />

no Oriente.<br />

Se até hoje há católicos nos Bálcãs, isso se deve exatamente<br />

a este “erro” estratégico de Fócio.<br />

Dando expressão escrita<br />

à mentalidade de um povo<br />

É interessante acompanharmos o papel desses Santos<br />

fundadores de povos, que é uma coisa tão extraordinária.<br />

Deus envia homens de sua destra para fazerem obras<br />

que constituem um povo. Ou seja, tomam pessoas que<br />

são como uma nebulosa, alguma coisa completamente<br />

anorgânica, sem vida própria, e as transformam num povo<br />

com todos os seus elementos.<br />

Vejamos o que eles fizeram para que nascesse o povo.<br />

Primeiro ensinaram os morávios a escrever, compondo<br />

para eles um alfabeto novo, chamado ciríaco. Quer dizer,<br />

o povo era tão analfabeto que nem tinha formas de<br />

27


Hagiografia<br />

Ao fundo, igreja de São Cirilo<br />

e São Metódio - Roma, Itália.<br />

28


caracteres próprios para exprimir a língua que falava. Os<br />

dois Santos inventaram os caracteres adequados, e o dialeto<br />

se radicou de tal maneira que até o tempo em que<br />

foi escrita a ficha lida há pouco era usado na Rússia. Portanto,<br />

durante aproximadamente mil anos, mais ou menos,<br />

o ciríaco esteve em vigor.<br />

Eles deram a expressão escrita do pensamento de um<br />

povo. A nota de fundador vai mais longe: São Cirilo e<br />

São Metódio traduziram a Bíblia e a Liturgia para o eslavônio;<br />

foi uma grandíssima obra literária, que fez com<br />

que aquela língua de um povo tão hostil adquirisse toda<br />

a dignidade de um idioma.<br />

Fundadores da Liturgia eslava<br />

Além disso, eles organizaram numerosas cristandades<br />

na Boêmia e na Hungria, ou seja, núcleos<br />

de povos vivendo como cristãos, que depois haveriam<br />

de se irradiar e cristianizar aquelas regiões.<br />

Ora, quando se trata de povos semibárbaros,<br />

cristianizar equivale a civilizar. Eles estavam<br />

dando os fundamentos da civilização<br />

— e, já de uma vez, uma civilização<br />

cristã — a povos que não ficavam<br />

apenas nos Bálcãs, mas entravam<br />

pela Europa Central, a Hungria.<br />

Vemos, portanto, a graça<br />

triunfante da Fé.<br />

Depois eles se dirigiram a<br />

Roma para apresentar a sua<br />

inteira submissão a Adriano<br />

II, o que, naquele tempo de<br />

São Cirilo e São Metódio<br />

não eram sociólogos,<br />

economistas, nem<br />

psicólogos, porém eram<br />

incomparavelmente mais<br />

do que isto: Santos da<br />

destra de Deus. Eles<br />

surgiram e tudo nasceu.<br />

luta entre o Oriente e o Ocidente, era muito significativo.<br />

Foram os fundadores da Liturgia eslava, porque obtiveram<br />

do Papa a licença para rezar a Missa em eslavônio.<br />

São Cirilo morreu em 869; São Metódio voltou ao<br />

Oriente, foi nomeado Arcebispo — é a Hierarquia eclesiástica<br />

que começava a nascer — e tornou-se objeto de<br />

uma oposição violenta. Vemos isso na vida de quase todos<br />

os fundadores: fundam a obra, têm triunfos e de repente<br />

estala uma tremenda revolta contra eles. A obra<br />

muitas vezes cai, outras vezes não, como sucedeu a São<br />

Metódio: ele venceu e morreu cercado de honra.<br />

Emitte Spiritum tuum…<br />

Para a glória de sua Igreja, ao longo da História, Nosso<br />

Senhor suscitou Santos que agiram nos campos mais<br />

variados. Porém, depois que a Revolução começou a<br />

triunfar, houve uma retração das bênçãos de Deus, e a<br />

civilização católica não prosperou. Toda a ordem temporal<br />

ficou afetada por uma espécie de raquitismo religioso;<br />

foi um castigo decorrente da Revolução.<br />

Isso continuará até que a Revolução produza os seus<br />

últimos e amargos frutos, e a Humanidade tenha comido<br />

as bolotas dos porcos. A Providência então restaurará<br />

a Humanidade.<br />

Nesta ocasião aparecerão os Santos fundadores que<br />

vão fundar o Reino de Maria. E na aurora desse Reino<br />

convém lembrar-nos de São Cirilo e São Metódio. Pode<br />

nos parecer muito difícil organizar o Reino de Maria;<br />

não pensemos nisso, mas procuremos compreender esse<br />

ensinamento.<br />

Os varões da destra de Deus podem fazer tudo. São<br />

Cirilo e São Metódio não eram sociólogos, economistas,<br />

nem psicólogos, porém eram incomparavelmente<br />

mais do que isto: Santos da destra de Deus. Eles surgiram<br />

e tudo nasceu. Lembremo-nos, então, daquela oração<br />

feita ao Divino Espírito Santo “Emitte Spiritum<br />

tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae — Enviai o<br />

vosso Espírito e renovareis a face da Terra.” Poderíamos<br />

dizer: “Enviai o vosso Espírito, presente nos homens<br />

de vossa destra, e todas as coisas serão novamente<br />

criadas e se renovará a face da Terra.” É isto que devemos<br />

pedir.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 7/7/1965)<br />

Santos Cirilo e Metódio -<br />

Igreja Santa Maria de Týn,<br />

Praga (República Checa).<br />

1) Cfr. http://www.abbaye-saint-benoit.ch/gueranger/anneliturgique/pentecote/pentecote03/040.htm<br />

29


Apóstolo do pulchrum<br />

Oh, maravilha!<br />

A formosura posta pelo Criador em suas<br />

criaturas constitui um meio através do qual<br />

podemos chegar até Deus, Espírito puro e<br />

infinitamente perfeito. Desta maneira, as<br />

regras da estética são para nós elementos<br />

de consideração para compreendermos a<br />

verdadeira beleza da santidade.<br />

Fotos: G. Krailj; S. Hollmann; T. Alarcón; M. Shinoda;<br />

A. Manda; R. Achel; M. Zinkova.<br />

Há um conjunto de regras de estética que nos<br />

podem facilitar o conhecimento da beleza que<br />

Deus pôs no universo, como ponto de partida<br />

para subirmos à consideração de sua beleza incriada. A<br />

mais fundamental dessas regras é a coexistência harmônica<br />

da unidade e da variedade. Em vez de nos atermos,<br />

entretanto, a uma enumeração e uma definição fria desses<br />

princípios, seria mais interessante que os considerássemos<br />

enquanto realizados em alguns dos seres que mais<br />

facilmente nos caem debaixo dos olhos. Comecemos pelo<br />

mar.<br />

A imensidão do mar…<br />

Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente<br />

a unidade. Todos os mares da Terra comunicam-se<br />

entre si e constituem uma imensa massa de água<br />

que cinge o globo terrestre. Assim, postos em qualquer<br />

ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis<br />

que nos é dado fazer é lembrar que a imensa massa líquida<br />

que se estende diante de nós, até as fímbrias do horizonte,<br />

não se encerra ali, mas tem atrás de si imensidades<br />

sucessivas formando a grande e única imensidade do<br />

mar que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície<br />

da Terra.<br />

Mas, ao mesmo tempo em que o mar nos apresenta<br />

essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade<br />

que nele podemos observar.<br />

Variedade, em primeiro lugar, quanto ao movimento.<br />

Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo<br />

satisfazer todos os desejos de paz, de tranquilidade e de<br />

quietude de nossa alma. Ora ele se move discreta e suavemente,<br />

formando em sua superfície pequenas ondas<br />

que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e<br />

distender nosso espírito como se tivesse diante de si as<br />

realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim,<br />

ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos<br />

sublimes, arremetendo furiosamente contra ro-<br />

30


chedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas<br />

de água insondáveis para submergir ilhas e invadir continentes.<br />

Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria<br />

avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza<br />

todo um poder existente no mais profundo dele e<br />

que não se suspeitava, nem um pouco, nos seus momentos<br />

de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances<br />

mais empolgantes e heroicos da História.<br />

Beleza da unidade na variedade<br />

Também há variedades estéticas do mar.<br />

Às vezes é ele extremamente claro através de uma<br />

grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras<br />

vezes ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso.<br />

Se em certos panoramas o mar se apresenta em<br />

superfícies imensas e quase sem limites, em outros ele<br />

está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos<br />

golfos onde, por assim dizer, ele se compraz em<br />

estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para<br />

melhor se deixar ver e amar.<br />

O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora<br />

seu murmúrio dá a impressão de uma carícia, que embala<br />

e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo semelhante<br />

à prosa de um velho amigo que já muitas vezes<br />

se ouviu. Mas pouco depois ele nos fala como o bramido<br />

dominador de um rei que quer impor a sua vontade a todos<br />

os elementos.<br />

O modo pelo qual ele se “comporta” na praia é igualmente<br />

variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante;<br />

outras vezes, caminha para ela tardio e preguiçoso,<br />

em ondas que se movem languidamente. E outras vezes,<br />

por fim, parece tão completamente parado que se diria<br />

quase contentar-se ele em ver a terra sem tocá-la.<br />

Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para<br />

nós concatenação nem encanto se não se apresentassem sobre<br />

o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa.<br />

Esta é a beleza da unidade na variedade do mar.<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

Variedades harmônicas<br />

A variedade do mar é um<br />

tão poderoso elemento<br />

de beleza por oferecer em<br />

alto grau os caracteres<br />

específicos da verdadeira<br />

variedade harmônica.<br />

Devemos, entretanto, reconhecer que a variedade do<br />

mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser<br />

uma variedade qualquer, mas, sim, oferecer em alto grau os<br />

caracteres específicos da verdadeira variedade harmônica.<br />

Essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão<br />

grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos<br />

opostos e como que contraditórios entre si. Esta variedade,<br />

pelo próprio fato de que reúne em uma só gama<br />

extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia,<br />

uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos<br />

tanta beleza no mar se ele não “soubesse” ser, por exemplo,<br />

tão extremamente manso e tão extremamente furioso,<br />

tão extremamente majestoso e tão extremamente<br />

gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e<br />

no extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição<br />

da variedade do mar.<br />

Tal variedade de oposição deve comportar uma certa<br />

simetria, quer dizer, é necessário que quando uma coisa<br />

tem um caráter e leva a um extremo, o lado oposto chegue<br />

a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse<br />

extremamente furioso em certos movimentos e apenas<br />

um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande.<br />

Para que a oposição seja perfeita, cumpre que o mar possa<br />

ser tão grande quanto furioso em umas horas, quanto<br />

é profundamente manso em outras. E só com esta simetria<br />

é ele inteiramente belo.<br />

32


Harmonia das gamas intermediárias<br />

Mas, ao mesmo tempo, as variedades harmônicas<br />

das gamas intermediárias também concorrem notavelmente<br />

para a beleza do mar. Essas situações de transição<br />

são tão harmônicas que nós, em determinados momentos,<br />

nem podemos dizer bem como o mar nos parece.<br />

Estará bravo? Estará manso? Estará claro? Estará<br />

escuro? Não o sabemos dizer porque o mar vai passando<br />

de um extremo para outro com várias fases intermediárias<br />

tão esplendidamente matizadas e harmônicas<br />

que a linguagem humana não é suficiente para<br />

as descrever, e o único processo para tal é o da comparação.<br />

Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está<br />

ficando manso pode dizer que ele está manso, mas quanto<br />

se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera<br />

nesse momento de transição, tem ainda a impressão<br />

do mar furioso. Por esta espécie de contradição de<br />

aspectos opostos existentes no mesmo meio-termo, tem-<br />

-se bem a ideia de toda a riquíssima gama de estados intermediários<br />

que o mar atravessa.<br />

Mas a relação entre esses próprios estados intermediários<br />

deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um<br />

extremo a outro o mar não salta, mas passa sempre com rapidez<br />

maior ou menor por todos os estados intermediários.<br />

Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão,<br />

como matizes que se substituem uns aos outros. Mas<br />

quando a sucessão dos matizes é muito perfeita, dá por vezes<br />

a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco<br />

tempo e sem saber como, o observador está diante de um<br />

quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas<br />

e tão imperceptíveis que excederam a precisão de nossos<br />

sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.<br />

Variedade do progresso<br />

Há por outro lado uma forma de variedade que não é<br />

tão nítida no mar, mas é muito relevante no céu: a variedade<br />

do progresso.<br />

Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem<br />

desde a aurora até a noite, de maneira tal que oferece um<br />

quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

vem ganhando em colorido, em força e em majestade, até<br />

chegar à gloriosa plenitude do meio-dia. Em seguida ele se<br />

vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo<br />

e, por fim, ele toma o seu aspecto noturno. Este se conserva<br />

mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões<br />

da aurora. Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa<br />

sucessão de aparências que vão dos primórdios ao apogeu,<br />

e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso,<br />

ciclo de aspectos variados que o céu percorre.<br />

Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma<br />

beleza peculiar, é o princípio monárquico: a ordenação<br />

das múltiplas formas e variedades em torno de um elemento<br />

ou ponto central, em função do qual elas se harmonizam<br />

e reciprocamente se explicam. É o papel do Sol<br />

no firmamento. Em função dele, no céu, todas as variedades<br />

não são senão fundos de quadro que cooperam para<br />

realçá-lo de mil modos em toda a sua beleza.<br />

Reflexo da santidade de Deus<br />

Assim temos os vários princípios da beleza realizados no<br />

mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constante-<br />

As regras de estética<br />

são meios para nós<br />

considerarmos a<br />

verdadeira beleza da<br />

santidade em Nossa<br />

Senhora, que, com<br />

tanta e tão esplêndida<br />

propriedade, é comparada<br />

ao céu e ao mar.<br />

Santíssima Virgem de Autun -<br />

Museu Rolin, Autun (França).<br />

34


mente sob os nossos olhos e que são esplêndidos vestígios<br />

da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.<br />

Sabemos pela Doutrina Católica que a formosura de<br />

todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente<br />

perfeito. Assim também, tendo o homem sido<br />

feito à imagem e semelhança de Deus, elas são também<br />

suas imagens: o céu e o mar, em seus vários estados, fazem<br />

lembrar a alma humana em suas várias disposições, o jogo<br />

complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana<br />

quando esta realmente reflete a santidade de Deus.<br />

Desta maneira, essas regras de estética são para nós<br />

meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade<br />

em Nossa Senhora — a mais alta de todas as meras<br />

criaturas —, que, com tanta e tão esplêndida propriedade,<br />

tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar.<br />

Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas<br />

as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição<br />

supereminente, da qual nenhum de nós pode ter<br />

uma ideia exata, Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele<br />

céu de virtudes diante do qual o homem deve ficar estarrecido<br />

e enlevado, e que com todas as suas forças deve<br />

procurar amar e imitar.<br />

Unidade na variedade dos dons de Deus<br />

Em Nossa Senhora se encontra também a mesma unidade<br />

na variedade dos dons de Deus. Ela é Nossa Senhora<br />

da Paz; Ela é Nossa Senhora das Dores; Ela é Nossa<br />

Senhora da Boa Morte.<br />

N’Ela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo<br />

tempo “Auxílio dos Cristãos”, mas “Refúgio dos Pecadores”;<br />

Maria é glorificada por sua humildade incomparável,<br />

mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A<br />

contemplar comentam a sua soberana majestade; Ela se<br />

apresenta a nós “ut castrorum acies ordinata”, mas ao mesmo<br />

tempo como “Mater clementiae et misericordiae”.<br />

N’Ela há a perfeita harmonia entre contrastes aparentemente<br />

irreconciliáveis: Virgem e Mãe! Ninguém mais<br />

plenamente mãe do que Nossa Senhora, Ela é Mãe por<br />

excelência; mas também, ninguém mais plenamente virgem<br />

do que a Virgem por excelência!<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

15/11/1958)<br />

35


Quando estiver<br />

tardando muito para<br />

recebermos uma<br />

graça pedida por intermédio<br />

de Nossa Senhora, não<br />

devemos considerar isto como<br />

uma recusa, mas como uma<br />

promessa de que, se pedirmos<br />

muito, aquela graça nos será<br />

dada com uma abundância<br />

extraordinária.<br />

Há certos retardamentos<br />

de Nossa Senhora, enquanto<br />

Auxílio dos Cristãos, onde<br />

Ela dá mais tardando do<br />

que concedendo logo. E isso<br />

em parte porque, se Maria<br />

Santíssima atendesse todos os<br />

nossos pedidos imediatamente,<br />

a Terra se transformaria<br />

num paraíso e os sofrimentos<br />

desapareceriam.<br />

Ora, umas das maiores<br />

graças que Nossa Senhora<br />

nos dá são as cruzes e os<br />

sofrimentos: muitas vezes Ela<br />

tarda em nos atender a fim<br />

de recebermos o mérito do<br />

sofrimento. Assim crescemos na<br />

Fé e na Confiança.<br />

T. Ring<br />

(Extraído de conferência<br />

de 21/5/1964)<br />

Nossa Senhora Auxiliadora dos<br />

Cristãos - São Paulo, Brasil.

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