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Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>168</strong> Março de 2012<br />
Os frutos da retidão
Increpado pelo Profeta<br />
Natã, David reconhece<br />
sua culpa - Catedral de<br />
Vigevano, Pavia (Itália).<br />
Feliz o homem a quem o Senhor não olha mais como sendo<br />
culpado e em cuja alma não há falsidade! Eu confessei<br />
afinal meu pecado e minha falta vos fiz conhecer. Disse:<br />
“Eu irei confessar meu pecado!” E perdoastes, Senhor, minha<br />
falta. Regozijai-vos, ó justos, em Deus, e no Senhor exultai de<br />
alegria! Corações retos, cantai jubilosos!<br />
(Cfr. Sl 31. )
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>168</strong> Março de 2012<br />
Ano XV - Nº <strong>168</strong> Março de 2012<br />
Os frutos da retidão<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
durante uma entrevista<br />
concedida à BBC de<br />
Londres, em 8/6/1993.<br />
Foto: M. Shinoda.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Editorial<br />
4 Retidão, limpeza e paisagens alpinas<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 Março de 1913<br />
Partida para a Itália<br />
Hagiografia<br />
6 São Leandro, Bispo de Sevilha<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-010 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
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Tel: (11) 2606-2409<br />
Calendário dos Santos<br />
10 Santos de Março<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
12 Um reto caminho para a santidade…<br />
As metáforas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
18 Retidão: limpa como uma paisagem alpina!<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
20 O caminho da dor - I<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 107,00<br />
Colaborador .......... R$ 150,00<br />
Propulsor ............. R$ 350,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 550,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 14,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
26 O mais belo mar! - II<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 A civilização da admiração<br />
Última página<br />
36 Oração da alma reta<br />
3
Editorial<br />
Retidão, limpeza<br />
e paisagens alpinas<br />
Q<br />
uando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era muito menino, encantava-lhe sentir a limpeza dos lençóis que, no começo<br />
de cada semana, encontrava estendidos de maneira ordenada e convidativa sobre<br />
sua cama. Ademais, no dia em que ficava pronta a roupa lavada, agradava-lhe visitar o cômodo<br />
para onde era trazida, a fim de observar o brilho da limpeza. Isto lhe marcara tanto a infância<br />
que, até o fim da vida, lembrar-se-ia do armário alto, de mogno bem torneado, onde era colocada essa<br />
roupa, muito bem passada e arranjada pela cuidadosa lavadeira.<br />
— Que importância pode ter uma recordação de infância tão corriqueira na vida de um homem da<br />
estatura de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>? — poderá pensar alguém. — Tem-se a impressão de que puerilidades dessas<br />
não merecem constar na biografia de um homem adulto.<br />
Uma objeção desse tipo demonstraria falta de profundidade da parte de quem a formulasse. Com<br />
efeito, a atitude do pequeno <strong>Plinio</strong> diante da roupa limpa não constituía um mero capricho infantil,<br />
mas era uma plataforma para altos voos espirituais. Pequenas circunstâncias e fatos da vida estavam,<br />
para ele, carregados de simbologia.<br />
Desse modo, ele correlacionava a limpeza da roupa com a limpeza de alma; para ele, a roupa limpa<br />
estava como que nimbada de pureza. Na mesma linha, sentir os carinhos castos da fronha a lhe roçar<br />
no rosto, cheirar o odor do anil que naquele tempo se usava para acentuar a alvura da roupa, revolver-se<br />
entre os lençóis frescos de sua cama — tudo isso lhe recordava o movimentar de uma consciência<br />
livre de sentimentos de culpa; no caso concreto, de alguém inundado de felicidade por se sentir<br />
um bom menino. Percebia uma inteira consonância entre a pureza da roupa de cama e a pureza de<br />
sua alma, num tipo de relacionamento que, em linguagem filosófica, São Tomás de Aquino chama de<br />
conhecimento por conaturalidade.<br />
Passado o tempo da infância, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> desenvolveria sempre mais seu pendor para fazer correlações<br />
quando tratava de explicar todo tipo de assunto, utilizando seu agudo senso das reversibilidades.<br />
Esse era, aliás, um dos ingredientes para tornar atrativas e densas suas conferências, aulas e conversas,<br />
nunca limitadas apenas a considerações abstratas, a meros jogos silogísticos, mas sempre coladas<br />
na realidade e repletas de lições, como, aliás, é fácil comprovar a cada número da revista “<strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>”.<br />
No exemplar que vem a lume este mês, podemos ver como ele, ao tratar da retidão — qualidade<br />
de alma própria de quem deseja trilhar o caminho da santidade —, relaciona-a com a limpeza, e esta,<br />
por sua vez, lhe fará recordar as paisagens alpinas.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
Março de 1913<br />
Partida para a Itália<br />
Acometida por penosa enfermidade, em<br />
virtude da formação de cálculos na visícula<br />
biliar, Dona Lucilia viu-se obrigada<br />
a partir para a Europa a fim de ser operada<br />
pelo médico particular do Kaiser, <strong>Dr</strong>. August Karl<br />
Bier. Entre os que a acompanhavam não estavam<br />
incluídos apenas seu esposo e filhos, mas também<br />
irmãos, cunhados, sobrinhos, e sua mãe.<br />
Antes de retornar ao Brasil, como ponto de<br />
honra para todo católico, figurava ainda nos horizontes<br />
da família a passagem por Roma e a esperança<br />
de um encontro com o Sumo Pontífice.<br />
Assim, o jovem <strong>Plinio</strong> partiu da Gare de Lyon,<br />
Paris, em companhia de sua mãe num trem com<br />
destino a Gênova.<br />
“Mamãe me contava que quando saímos da<br />
capital francesa, rumo à Itália, o trem atravessava<br />
os bairros e ela ia sentada, chorando, pois<br />
sentia que nunca mais voltaria a Paris. Isso dá<br />
uma ideia de quanto ela admirava a ‘Cidade-<br />
-Luz’.<br />
“Chegamos a Gênova. Lembro-me de nosso<br />
hotel e das conversas na família a respeito do<br />
cemitério dessa cidade, o qual é muito famoso.<br />
Creio que fomos visitá-lo, mas dele nada me recordo.<br />
“Entretanto, aconteceu um episódio muito<br />
corriqueiro nessa cidade: minha irmã sofreu<br />
uma dor de dentes e fomos ao dentista com ela.<br />
Guardo lembrança do consultório, muito simples,<br />
sem nada digno de nota.<br />
“A impressão mais forte que tive na Itália foi<br />
causada pelo extraordinário sabor do macarrão<br />
que comi no hotel. Uns regatoni deliciosos!<br />
Lembro-me da Fräulein Mathilde ordenando:<br />
“— Du must dieser Nudeln essen! [Você tem<br />
de comer esse macarrão!]<br />
“Eu impliquei com aquele alimento de formato<br />
singular, mas como ela obrigou, comi. Entretanto,<br />
quando o pus na boca, achei-o fenomenal!<br />
Até hoje me recordo do gosto que tive, sobretudo<br />
pela manteiga derretida que vinha em<br />
cima... E exclamei:<br />
“— Oooh!<br />
“Não conhecia ainda a palavra ‘arquetípico’,<br />
mas fiz uma reflexão: ‘Este é o macarrão dos macarrões!<br />
E qualquer macarrão que se preze tem<br />
de se parecer com este ou não serve para nada...’.<br />
“O embaixador brasileiro na Santa Sé, um<br />
gaúcho chamado Bruno Chaves, era muito amigo<br />
de um dos meus tios e havia convidado vovó<br />
e todos nós para a audiência geral numa sala<br />
do Vaticano; mas, nessa época, grassava uma<br />
epidemia de gripe muito forte na Cidade Eterna<br />
e mamãe temia que Rosée e eu fôssemos atingidos.<br />
Por outro lado, estando ela ainda convalescente,<br />
os familiares tiveram receio de continuar<br />
a viagem. Além do mais, o Pontífice estava doente<br />
e não dava audiência nesses dias. Decidiram,<br />
então, partir logo para o Brasil.”<br />
(Extraído da obra “Notas Autobiográficas”<br />
de <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira)<br />
5
Hagiografia<br />
Catedral de Sevilha,<br />
Espanha; na página<br />
da direita, imagem de<br />
São Leandro venerada<br />
na mesma Catedral.<br />
Fotos: C. Galvez; S. Hollmann.<br />
6
São Leandro, Bispo<br />
de Sevilha<br />
Sem o auxílio da graça, o homem é incapaz de obter êxito em seu<br />
apostolado; porém, amparado por ela, consegue o inimaginável. Disto<br />
nos dá um belo exemplo São Leandro de Sevilha, o qual extirpou a<br />
heresia que havia quase dois séculos grassava na Espanha.<br />
Os grandes movimentos da História, em geral,<br />
são impulsionados por homens a quem Deus<br />
concede uma grandiosa missão, comunicando-lhes<br />
seu espírito e sua força. Um destes homens foi<br />
São Leandro de Sevilha. Convertendo os godos e salvando<br />
uma nação inteira do jugo dos arianos, ele bem<br />
pode ser considerado um dos fundadores da Idade Média.<br />
Acompanhemos com especial veneração sua ficha<br />
biográfica 1 :<br />
São Leandro nasceu em Cartagena, Espanha. Seus<br />
pais pertenciam à alta nobreza, e sua família estava repleta<br />
de santos. Um de seus irmãos, Santo Isidoro, sucedeu-o<br />
no trono episcopal de Sevilha; o outro, São Fulgêncio,<br />
foi Bispo de Cartagena. Sua irmã, Santa Florentina,<br />
tornou-se religiosa.<br />
Quando era jovem ainda, São Leandro retirou-se para<br />
um mosteiro, tornando-se perfeito modelo de ciência e<br />
piedade. Seus méritos o levaram à Sé Episcopal de Sevilha,<br />
onde não diminuíram em nada as austeridades que<br />
praticava.<br />
Quando Leandro foi nomeado bispo, parte do território<br />
espanhol estava dominada pelos visigodos arianos havia<br />
cento e setenta anos. Entregando-se imediatamente ao<br />
combate da heresia, o novo Bispo rezava e implorava o<br />
auxílio de Deus. O sucesso coroou seu zelo, e em pouco<br />
tempo a heresia já contava com menos adeptos.<br />
Entretanto, Leovigildo, então rei dos visigodos, e também<br />
ariano, irritado com a atividade de São Leandro, e<br />
principalmente com a conversão de seu filho primogênito,<br />
condenou o santo ao exílio e o filho à morte.<br />
7
Hagiografia<br />
Seu segundo filho, Recaredo, que vindo a ser um fervoroso<br />
católico, ao herdar o trono conseguiu a conversão de<br />
todos os seus súditos.<br />
São Leandro dedicou-se a manter o fervor dos fiéis e foi<br />
a alma de dois grandes concílios: o de Sevilha e o de Toledo,<br />
os quais condenaram o arianismo.<br />
Homem de ação, Leandro a todos inspirava o amor à<br />
prece, especialmente aos religiosos. Escreveu instruções admiráveis<br />
à sua irmã sobre o exercício da oração e o desprezo<br />
do mundo. Reformou a liturgia na Espanha.<br />
Afligido por numerosas enfermidades, o apóstolo dos visigodos<br />
faleceu em 596.<br />
A ação do Espírito Santo e a<br />
pujança da santidade<br />
A ficha é riquíssima de aspectos passíveis de comentário.<br />
O primeiro deles é o florescimento de santos numa<br />
mesma família da alta nobreza espanhola: Santo Isidoro<br />
de Sevilha — um dos maiores santos da história da Espanha<br />
—, São Fulgêncio, Santa Florentina e São Leandro.<br />
Vemos que beleza há na conjunção de tantos santos<br />
numa mesma estirpe. Com isso, Deus faz sentir a importância<br />
do fenômeno “estirpe” na formação dos santos e<br />
na realização dos planos da Providência.<br />
Pelo apostolado de São Leandro<br />
começa a história católica da Espanha<br />
E<br />
m 567 subiu ao trono de Toledo um homem de grande<br />
energia: Leovigildo. Tratava-se de um soberano<br />
faustoso, que em matéria de religião mantinha-se ariano<br />
fanático.<br />
No ano de 580, Leovigildo, ingenuamente, convida os<br />
seus súditos católicos a aderir à fé ariana, e enfeita a sua<br />
proposta com tantas promessas vantajosas e aparentemente<br />
substanciais que alguns se deixam iludir. Mas esta<br />
política encontrou pela frente a clarividência de um<br />
monge notável: São Leandro, o futuro Arcebispo de Sevilha.<br />
Sob a influência de São Leandro, Hermenegildo, filho<br />
primogênito de Rei, abjurara o arianismo, o que lhe valeu<br />
as maiores violências por parte de seu pai. Mas, num<br />
abrir e fechar de olhos, agrupou-se em torno de Hermenegildo<br />
um verdadeiro partido, constituído por todos os<br />
católicos que estavam cansados das perseguições arianas,<br />
pelos Bispos e, sobretudo, por São Leandro. Não demorou<br />
a formar-se uma autêntica coligação contra Leovigildo.<br />
O Rei intimou o filho a regressar à fé ariana e, perante<br />
a sua recusa, rebentou a guerra.<br />
Refugiado na Andaluzia, o jovem chefe católico organiza<br />
a resistência, enquanto São Leandro embarca para<br />
o Oriente a fim de pedir o auxílio do Imperador. Mas<br />
Hermenegildo, embora plenamente consciente do direito<br />
que lhe assiste, sofre por ter de lutar contra o próprio<br />
pai. Então, a pedido de seu irmão Recaredo, aceita encontrar-se<br />
com o Rei para entrar em negociações. Leovigildo<br />
abraça-o e declara que está tudo perdoado. Mas, de<br />
repente, a um sinal do Rei, os guardas prendem o Príncipe,<br />
despojam-no das suas vestes e lançam-no na masmorra.<br />
Começa então uma “paixão” digna dos antigos mártires.<br />
Em vão, enviam ao Príncipe bispos e teólogos arianos<br />
para convencê-lo a voltar ao credo de seu pai; nada<br />
o faz ceder. Durante longos meses sofre o cativeiro, os<br />
maus tratos e — ainda mais — a privação da Sagrada Eucaristia.<br />
Por fim, louco de cólera, Leovigildo dá a ordem<br />
fatal para decapitar Hermenegildo na prisão.<br />
Mas é verdadeiramente o caso de repetir a célebre frase<br />
de Tertuliano: “O sangue dos mártires é semente de<br />
cristãos”. Não se passara ainda um ano da morte de Santo<br />
Hermenegildo, e já em maio de 586 Leovigildo morria<br />
no seu palácio de Toledo, sucedendo-lhe o seu filho Recaredo.<br />
O novo Rei deu uma reviravolta completa em toda a<br />
política: os Bispos católicos foram chamados do exílio e<br />
São Leandro, nomeado Arcebispo de Sevilha, foi recebido<br />
na corte com as mais delicadas atenções. Começava a<br />
história católica da Espanha.<br />
(Rops, Daniel. A Igreja dos tempos bárbaros.<br />
Cap. IV. São Paulo: Quadrante, 1991. p. 211-212.)<br />
8
Por outro lado, observamos a pujança<br />
de santidade existente naquela época.<br />
Trata-se de um dos mais belos fenômenos<br />
da História, onde inúmeros santos<br />
inauguraram o Reino de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo durante a Idade Média;<br />
fenômeno não atribuível a nenhum<br />
homem, a nenhuma Ordem religiosa,<br />
mas diretamente oriundo da ação do Espírito<br />
Santo.<br />
De fato, a não ser por um verdadeiro<br />
sopro universal do Divino Espírito Santo,<br />
não seria possível o surgimento de tantas<br />
almas santas ao mesmo tempo.<br />
Em pleno domínio<br />
dos bárbaros arianos…<br />
Ao ser eleito Bispo de Sevilha, São<br />
Leandro encontrou-se diante do seguinte<br />
problema: havia cento e setenta anos,<br />
bárbaros hereges exerciam uma função<br />
dominadora na Espanha.<br />
Ao contrário do que muitos pensam,<br />
a maior parte dos bárbaros não era pagã,<br />
mas sim ariana. Quando invadiram o<br />
Império Romano, muitas tribos bárbaras<br />
já haviam sido visitadas, em suas respectivas<br />
regiões, por um Bispo ariano chamado<br />
Úlfilas 2 , o qual as perverteu para<br />
o arianismo.<br />
Desta maneira, enquanto descendentes<br />
dos antigos cidadãos do Império Romano,<br />
os católicos eram os vencidos, os pobres,<br />
estavam por baixo e gemiam sob o jugo<br />
dos arianos, os quais, por sua vez, constituíam<br />
o povo novo, forte e vencedor.<br />
…a Providência<br />
suscita São Leandro de Sevilha<br />
São Leandro recebeu, então, da parte de Deus, a missão<br />
de derrubar o domínio ariano. De que maneira ele o fez?<br />
Em primeiro lugar, chorando diante de Deus e pedindo,<br />
por meio de Nossa Senhora, os auxílios necessários<br />
para a tarefa que deveria realizar de modo admirável.<br />
Cônscio da incapacidade humana perante as tarefas<br />
apostólicas, São Leandro sabia que o homem não é senão<br />
um instrumento de Deus e de Nossa Senhora, os verdadeiros<br />
realizadores do apostolado. Assim, as conversões<br />
deram-se em número colossal e o poder ariano foi<br />
diminuindo graças às suas pregações.<br />
São Leandro, Bispo -<br />
Museu da Catedral de<br />
Sevilha, Espanha.<br />
Aspectos fugazes, porém importantes, se desvendam<br />
na vida de São Leandro, uma das maiores figuras da hagiografia<br />
e da história espanhola.<br />
v<br />
(Extraído de conferências de 26/2/1964 e 27/2/1967)<br />
1) Butler, Alban. Lives of the Saints - With Reflections for<br />
Every Day in the Year.<br />
2) Educado no Catolicismo, Úlfilas aderiu ao arianismo por<br />
ocasião de uma viagem a Constantinopla, onde Eusébio o<br />
sagrou bispo. Tendo voltado para o grêmio dos godos, dedicou-se<br />
à conversão de seus irmãos de raça à fé ariana.<br />
9
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. Santa Inês Cao Kuiying, Mártir (†1856). Após a morte<br />
do marido, dedicou-se ao ensino da Doutrina Católica,<br />
por mandato do Bispo, em Xilinxian, China. Por esse motivo<br />
foi presa e torturada até a morte.<br />
Santo Albino, Bispo de Angers, França (†496-550).<br />
2. Beato Carlos, o Bom, Mártir (†1127). Foi Príncipe da<br />
Dinamarca, Conde de Flandres e de Amiens. Por defender<br />
a justiça e dos pobres, o assassinaram enquanto rezava<br />
diante de um altar de Nossa Senhora.<br />
3. Santa Catarina <strong>Dr</strong>exel, Virgem e Fundadora (†1955).<br />
Fundou a Congregação das Irmãs do Santíssimo Sacramento,<br />
na Filadélfia, Estados Unidos, e utilizou com generosidade<br />
os bens de sua herança para formar os nativos.<br />
4. II Domingo da Quaresma.<br />
Beata Plácida Viel, Virgem (†1877). Dirigiu a Congregação<br />
das Escolas Cristãs da Misericórdia, na Normandia,<br />
França. Sucedeu a Santa Maria Madalena Postel no cargo<br />
de Superiora Geral por 30 anos.<br />
5. Santo Adriano de Cesareia,<br />
Mártir (†309). Em Cesareia, na<br />
Palestina, durante a perseguição<br />
do Imperador Diocleciano, foi<br />
morto a espada.<br />
6. Santo Olegário, Bispo de<br />
Tarragona e Barcelona, na Espanha<br />
(1059-1137).<br />
7. Beato Leônidas Fëdorov,<br />
Bispo e Mártir (†1935). Nascido<br />
em São Petersburgo (Rússia),<br />
de família greco-sismática,<br />
converteu-se ao Catolicismo. Foi<br />
nomeado Exarca Apostólico dos<br />
católicos russos de rito bizantino,<br />
sendo depois enviado aos<br />
campos de Kirov, onde foi martirizado.<br />
8. São Pôncio de Cartago, Diácono<br />
(†séc. III). Foi diácono de<br />
São Cipriano, acompanhando-o<br />
no exílio até sua morte, deixando<br />
um valioso volume sobre sua vida<br />
e seu martírio.<br />
Fotos: T. Ring.<br />
São José - Catedral de Assunção, Paraguai.<br />
9. São Domingos Sávio, Confessor (†Riva de Chieri,<br />
Itália, 1857). Aluno e filho espiritual de São João Bosco,<br />
morreu com apenas 15 anos de idade. Seu lema de vida era<br />
“antes morrer que pecar”. É um dos patronos da juventude<br />
católica.<br />
10. São Macário, Bispo de Jerusalém, contemporâneo<br />
da Imperatriz Santa Helena. Construiu a Igreja do Santo<br />
Sepulcro (†335).<br />
São Simplício, Papa (†483). Governou a Igreja no tempo<br />
da invasão dos bárbaros à Itália. Nesta época confortou<br />
os aflitos, encorajou a unidade da Igreja e lutou contra a<br />
heresia monofisista.<br />
11. III Domingo da Quaresma.<br />
Beato João Kearney, Presbítero e Mártir (†1653). Franciscano<br />
irlandês, foi condenado à morte em Londres por<br />
exercer o ministério sacerdotal, mas conseguiu fugir. No<br />
governo de Oliver Cromwell foi novamente preso e enforcado.<br />
12. São Rodrigo de Córdoba,<br />
Mártir (†857).<br />
13. Santa Catarina da Pérsia,<br />
Mártir (†559). Recebeu a coroa<br />
do martírio no tempo de Cosroes<br />
I, rei dos persas, após ser<br />
açoitada.<br />
São Leandro de Sevilha, Bispo<br />
(† cerca de 600). Ver página<br />
6.<br />
14. Beato Jacó Cusmano,<br />
Presbítero e Fundador (†1888).<br />
Fundou o Instituto de Missionários<br />
Servos e Servas dos Pobres,<br />
na Itália. Destacou-se por<br />
sua caridade com os enfermos,<br />
abandonados e carentes.<br />
15. Santa Luísa de Marillac,<br />
Fundadora, junto com São Vicente<br />
de Paula, das Filhas da<br />
Caridade (Vicentinas) (1591-<br />
1660).<br />
16. Santo Heriberto de Colônia,<br />
Bispo (†1021). Chanceler<br />
10
––––––––––––––––– * Março * ––––<br />
do Imperador Oton III, da Alemanha,<br />
serviu também o Imperador<br />
Santo Henrique. Foi Arcebispo de<br />
Colônia e fundador da abadia beneditina<br />
de Deutz.<br />
17. São João Sarkander, Presbítero<br />
e Mártir (†1620). Jesuíta,<br />
foi pároco de Holesov, na Morávia<br />
(República Tcheca). Por negar-<br />
-se a revelar um segredo de confissão,<br />
foi submetido ao suplício da<br />
roda, falecendo um mês mais tarde<br />
na prisão.<br />
18. IV Domingo da Quaresma.<br />
Santo Alessandro de Cesareia,<br />
Bispo e Mártir (†cerca de 250).<br />
Indo da Capadócia a Jerusalém,<br />
aceitou ser Bispo da Cidade Santa,<br />
onde fundou uma preciosa biblioteca<br />
e abriu uma escola. Foi<br />
martirizado em Cesareia com<br />
avançada idade.<br />
19. Solenidade de São José, Esposo<br />
de Maria Santíssima e Pai legal<br />
do Menino Jesus.<br />
20. Beato Francisco de Jesús<br />
María José Palau y Quer, Presbítero (†1872). Religioso espanhol<br />
da Ordem dos Carmelitas Descalços. Em seu ministério<br />
sofreu graves perseguições e, acusado falsamente,<br />
foi relegado à ilha de Ibiza, abandonado por todos. Foi favorecido<br />
com dons e visões extraordinárias.<br />
21. São Lupicino, Abade (†480). Junto com seu irmão<br />
São Romano, deu impulso à vida monástica no Jura francês<br />
e fundou um convento de religiosas, em Lyon, França,<br />
dirigido por sua irmã.<br />
22. São Basílio de Ancira, Presbítero e Mártir (†362).<br />
Formado pelo Bispo São Marcelo, não cessou de exortar o<br />
povo da Galícia a permanecer fiel à Fé Católica. Resistiu<br />
energicamente aos arianos até ser martirizado pelo Imperador<br />
Juliano.<br />
23. São Turíbio de Mongrovejo, Arcebispo de Lima, Peru<br />
(1538-1606). Pertenceu à Ordem Dominicana.<br />
São Turíbio de Mongrovejo -<br />
Catedral de Lima, Peru.<br />
Beata Anunciata Colcchetti,<br />
Virgem (†1882). Em Cemmo, Itália,<br />
governou o Instituto das Irmãs<br />
de Santa Doroteia com fortaleza<br />
e humildade, falecendo aos<br />
82 anos.<br />
24. Beato João do Báculo, Monge<br />
e Presbítero (†1290). Havendo<br />
terminado seus estudos em Fabriano,<br />
Itália, seguiu São Silvestre, abade,<br />
em uma vida monástica segundo<br />
as regras beneditinas.<br />
25. V Domingo da Quaresma.<br />
Anunciação do Anjo e Encarnação<br />
do Verbo.<br />
26. São Ludgero de Münster,<br />
Bispo (†809). Discípulo de Alcuíno,<br />
pregou o Evangelho na Frísia,<br />
Dinamarca e Saxônia, estabelecendo<br />
a sede episcopal em Münster,<br />
Alemanha, e fundando vários mosteiros,<br />
convertidos em centros de<br />
propagação da Fé.<br />
27. São Ruperto, Bispo e Confessor<br />
(†708). Pregou o Evangelho<br />
no vale do Danúbio. Foi o<br />
fundador da cidade de Salzburg, na Áustria, e seu primeiro<br />
bispo.<br />
28. Santo Estevão Harding, Abade (†1134). Junto com<br />
São Roberto de Molesmes, foi fundador da Ordem Cisterciense.<br />
Recebeu São Bernardo de Claraval com mais 30<br />
companheiros e fundou 12 mosteiros, que uniu com o vínculo<br />
da Carta da Caridade, sem discórdias e com fidelidade<br />
à regra.<br />
29. São Ludolfo, Bispo e Mártir (séc. XIII).<br />
30. São Júlio Álvarez Mendoza, Presbítero e Mártir<br />
(†1927). Durante a perseguição contra a Religião Católica<br />
em Guadalajara, México, testemunhou com seu<br />
sangue sua fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo e<br />
sua Igreja.<br />
31. São Benjamin, Diácono e Mártir (†421).<br />
11
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Um reto caminho<br />
Fotos: T. Ring; G. Kralj; S. Hollmann; M. Shinoda.<br />
para a santidade…<br />
A retidão está no âmago de todas as outras virtudes; sem ela,<br />
pequenos defeitos tornam-se monstros gigantescos.<br />
P<br />
ara entendermos o que é a retidão, comecemos<br />
tratando a respeito do contrário dela: a falsidade.<br />
A falsidade do homem para consigo mesmo,<br />
para com os outros e para com Deus, de si, é repelente.<br />
Por falta de retidão, um pequeno problema<br />
pode tornar-se gigante<br />
Quando uma alma recebe graças de Nossa Senhora,<br />
ela é muitas vezes tocada tão a fundo que o demônio fica<br />
impossibilitado de agir sobre ela. Quando este percebe<br />
tal impossibilidade, ele propõe, então, a falta de retidão.<br />
Quer dizer, um compromisso, um arranjo, um meio-<br />
-termo, em função do qual a alma, sem abandonar aquilo<br />
que amou, passa a amar aquilo que abandonou. Não há<br />
aí um jogo de palavras; vou dar um exemplo, para que o<br />
tema seja bem entendido.<br />
Uma pessoa tem um problema que não quer ver nem<br />
explicitar para si mesma; e isto lhe dá um misto de prazer<br />
e sofrimento, no qual ela se deixa refocilar, pelo gosto de<br />
ter uma encrenca, pela satisfação da coisa mal explicada<br />
dentro da alma. E, por falta de retidão, o micróbio que<br />
ela possui na própria alma se transforma numa cobra, a<br />
qual pode vir a ser uma sucuri. Ao cabo de um, dois, cinco<br />
anos ela está numa crise, e numa crise enorme. Qual<br />
foi a origem dessa crise?<br />
Quem desvia os passos do caminho reto<br />
é levado para onde não quer ir…<br />
O ponto inicial foi um problema para o qual a pessoa<br />
não quis abrir os olhos; a respeito do qual ela não quis<br />
abrir-se para alguém, nem ouvir um conselho ou receber<br />
uma refutação. Ela desviou seus passos do caminho reto,<br />
o qual seria o seguinte:<br />
Primeiro, reconhecer: “Tal ponto constitui em mim<br />
uma dificuldade.” Segundo: “Não posso continuar assim.<br />
Tenho que me abrir com alguém, e rezar a Nossa Senhora<br />
para ver claro.” Terceiro: “Ainda que eu não veja claro,<br />
minha fidelidade em nada se abala, porque quanto mais<br />
demorar, tanto mais claramente eu verei um dia. Debaixo<br />
deste cupim colocado no chão, onde eu não consigo ver<br />
nada, um sol está nascendo para me iluminar no futuro.”<br />
Mas se a pessoa sai da verdadeira via, ela começa a<br />
andar no oblíquo, e do oblíquo ela derrapa para longe.<br />
Se o demônio a tivesse tentado num ponto onde ela adere<br />
muito, a pessoa teria rejeitado; entretanto, ele a tenta<br />
num ponto pequeno e inicia-se assim o caminho oblíquo.<br />
Não é o caminho para baixo, direto para o inferno, mas<br />
oblíquo intencionalmente: cada passo a afasta mais um<br />
pouco; ao cabo de algum tempo, a pessoa foi levada longe,<br />
aonde não queria. Por que ela foi levada longe? Porque<br />
lhe faltou a retidão.<br />
Assim somos nós com quase todos os nossos defeitos.<br />
Para dizer pouco, não gostamos de olhá-los de frente e,<br />
quando os analisamos, só reconhecemos os que saltam aos<br />
olhos e não podem ser negados. Entretanto, não abrimos<br />
inteiramente o mapa de nossa mentalidade; não temos a<br />
coragem de nos censurar de frente e totalmente, procurando<br />
as agravantes, ponto por ponto, implacavelmente.<br />
A retidão de uma alma<br />
que reconheceu suas faltas<br />
Um famoso escritor francês do século XIX, Louis Veuillot,<br />
escreveu um livro com o título “Le parfum de Rome<br />
— O perfume de Roma”. Referia-se à Roma pré-garibaldina,<br />
anterior aos Saboias; a Roma magnífica do tempo<br />
em que os Papas eram reis da Cidade Eterna e de uma<br />
província vizinha que formavam os Estados Pontifícios.<br />
Conta Veuillot que, em Roma, ele visitou uma velha<br />
basílica a qual o encantou; percorreu-a por dentro e por<br />
fora. Passando detrás do templo, numa pedra que fazia<br />
parte do fundamento de seu muro externo, ele notou que<br />
alguma coisa estava escrita. Então ele se agachou para<br />
olhar e verificou que estava escrito o seguinte: “No dia<br />
12
Nossa Senhora<br />
das Graças - São<br />
Paulo, Brasil.<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
tal de tal ano pequei! Meu Deus, tenha pena de mim! No<br />
dia tal pequei de novo! Meu Deus, tenha pena de mim!<br />
Dia tal não pequei, graças a Deus!” Assim, caindo em<br />
pecado ou se mantendo em estado de graça, essa alma<br />
tinha escrito o seu diário espiritual. E, um belo dia, ela<br />
anotou o seguinte: “Meu Deus, há tanto tempo — digamos<br />
seis meses, um ano — eu não peco! Gloria in excelsis<br />
Deo — Glória a Deus no mais alto dos Céus!”<br />
Louis Veuillot fez, a este propósito, um comentário<br />
magnífico, dizendo que se ele tivesse encontrado sangue<br />
de mártires naquela pedra, não a teria venerado mais do<br />
que o fez ao ver esse itinerário que exprimia o sacrifício<br />
de uma alma para se libertar de um pecado e readquirir<br />
o estado de graça.<br />
Humildade e admiração: frutos da retidão<br />
Isso nos mostra exatamente o que é a retidão. Trata-se<br />
de uma alma que o tempo inteiro analisou-se como era e<br />
se increpou como merecia. E teve humildade: “Como eu<br />
sou torto e errado! Minha Mãe, que estais no mais alto<br />
dos Céus, bem junto a Deus, como Vós sois diferente de<br />
mim!” Nesse abismo de diferença, ergue-se uma coluna<br />
de incenso, de encanto e de admiração.<br />
Quando sabemos increpar os nossos próprios defeitos,<br />
nos tornamos capazes de admirar. Porque, quando vemos<br />
o mal que há em nós, podemos admirar o bem que não<br />
há em nós; assim nós temos admiração sem inveja. Então,<br />
do fundo da nossa miséria, sobe aquela coluna de incenso:<br />
“Minha Mãe, eu me dobro diante de Vós, não só por<br />
execração aos meus defeitos, mas por um corolário necessário<br />
dessa execração: a admiração de vossas qualidades.”<br />
Mas quando uma pessoa não tem a coragem de olhar<br />
de frente para seu próprio defeito, ela não é capaz de admirar.<br />
E o defeito pelo qual não se olha bem a própria<br />
alma chama-se falta de retidão. A virtude pela qual nós<br />
nos vemos como somos, e admiramos quem não é como<br />
nós, chama-se retidão.<br />
A retidão do Imaculado Coração de Maria<br />
A retidão é a integridade por onde a alma realiza tudo<br />
quanto deve, e como deve, sem delongas, sem tapeação,<br />
sem protelação; e o faz total e inteiramente, ainda que,<br />
devido à fraqueza humana, caindo, mas pedindo perdão<br />
e se levantando, dizendo a verdade para si mesma. Desta<br />
virtude da retidão nascem as famílias de alma retas,<br />
das quais surgem as grandes correntes de retidão dentro<br />
da História; tudo isso é um reflexo do Sapiencial e Imaculado<br />
Coração de Maria, eu diria, do Retíssimo Coração<br />
de Maria.<br />
Alguém perguntará: “Mas haverá um símbolo que fale<br />
da retidão do Imaculado Coração de Maria?” Sim. É<br />
o Coração da Virgem transpassado por sete espadas, representando<br />
suas sete dores, que poderiam ser chamadas<br />
as sete retidões.<br />
Quando sabemos increpar<br />
os nossos próprios defeitos,<br />
nos tornamos capazes de<br />
admirar. Porque, quando<br />
vemos o mal que há em<br />
nós, podemos admirar o<br />
bem que não há em nós.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma<br />
entrevista concedida à BBC<br />
de Londres, em 8/6/1993.<br />
14
Sete é um número simbólico na Escritura, que indica<br />
totalidade. “As Sete Dores de Nossa Senhora” simbolizam<br />
as principais, não as únicas.<br />
Assim também podemos dizer que cada espada retilínea<br />
foi uma posição firme e reta que Ela tomou diante<br />
de tudo. De todas as suas “retilinidades” veio toda a sua<br />
dor. E toda a sua dor Lhe veio porque tinha retidão. Maria<br />
Santíssima olhou tudo de frente, sofreu e foi até o fim!<br />
Para sermos retos, não devemos olhar<br />
para nossas qualidades<br />
O que se passa com os nossos defeitos que não queremos<br />
ver de frente, ocorre também com os nossos sofrimentos.<br />
Poucas pessoas têm a coragem de pôr diante de si a<br />
ideia seguinte: a vida é um vale de lágrimas, para usar<br />
uma expressão mais rigorosa, um campo de batalha. Portanto,<br />
só vive uma vida digna de ser vivida quem luta<br />
contra o mal, a favor do bem, e se expõe a todos os sofrimentos<br />
inerentes à luta! E, então, observa as coisas como<br />
o guerreiro dirige seu olhar para o adversário: olha de<br />
frente e desfere o golpe.<br />
Outra condição para possuir a virtude da retidão é<br />
não olhar para as próprias qualidades. Olhando-as, a<br />
pessoa as perde. O melhor meio de perder uma qualidade<br />
é olhar para ela. O melhor meio de perder um defeito<br />
é olhar para ele.<br />
Por falta de retidão, as pessoas<br />
formam uma ideia falsa a seu próprio respeito<br />
A maior parte das pessoas tem preguiça de pensar, e,<br />
por causa disso, não prestam real atenção em si mesmas.<br />
Fazem, então, uma análise incompleta de si. E a análise<br />
incompleta de si própria tem dois aspectos: a pessoa não<br />
olha inteiramente seus defeitos e, por causa disso, cai<br />
num outro erro, também por falta de retidão: ela começa<br />
a imaginar que tem qualidades que não possui. Porque<br />
quem não quer ver os defeitos que tem, imagina possuir<br />
qualidades que não tem. É forçoso.<br />
A partir desse momento, ela forma uma ideia falsa a<br />
seu próprio respeito. Formando uma ideia falsa de sua<br />
pessoa, segue um itinerário errado na vida. Quem, por<br />
exemplo, está andando de bicicleta e imagina-se num automóvel,<br />
não pode chegar ao termo da viagem. Quem<br />
tem automóvel e pensa que este é um tanque de guerra,<br />
dirige-o de tal maneira que ele se espandonga inteiramente.<br />
Nós somos o veículo de nós mesmos ao longo da<br />
vida, e se cada um não sabe que tipo de veículo é, como<br />
pode bem dirigir-se a si próprio, de maneira a chegar até<br />
ao fim da vida?<br />
Imaculado Coração de Maria - Catedral de Barcelona, Espanha.<br />
As frustrações de quem vive um sonho<br />
Por causa disso o indivíduo cai num erro pior do que<br />
os outros: começa a viver uma vida que não era para ele.<br />
Então dá tudo errado. O indivíduo sonha ter uma vida<br />
que não é para ele; e vive a vida que ele não sonhou, porque<br />
nessa situação ninguém realiza o próprio sonho. Nota<br />
que está tudo torto dentro de si, porque percebe que<br />
ele é outro. E tem frustrações horrorosas.<br />
Lembro-me de um velho senhor que conheci, o qual<br />
era muito distinto de maneiras e agradável de trato. Eu<br />
o vi, num dia de calor, sentado junto a uma mesa, com<br />
o aspecto mais emburrado e desagradado que possa haver.<br />
De vez em quando, ele retirava seu relógio do bolso,<br />
o olhava e o guardava novamente. Eu francamente fiquei<br />
com medo de que ele quisesse se suicidar. Então, com o<br />
desejo de ser-lhe útil e para aliviar um pouco sua vida,<br />
me aproximei dele e perguntei:<br />
— O senhor precisaria de alguma coisa?<br />
Ele levantou a cabeça e me disse:<br />
— Você não sabe o que é a vida.<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Eu era muito mais moço que ele; tinha<br />
uns vinte e dois anos.<br />
— Você pensa que sabe o que é a<br />
vida, mas você não sabe. Cada vez<br />
que eu tiro o relógio, não consigo ver<br />
o quadrante dele, porque aos meus<br />
olhos se apresenta a figura de algo de<br />
irreal que sonhei. E quando eu vou verificar<br />
a hora, consulto as velhas reminiscências<br />
dos meus sonhos que não se<br />
realizaram, e por causa disso me desespero<br />
dessa maneira.<br />
Achei aquilo uma coisa terrível. Era<br />
o horror da falta de retidão.<br />
Duas reações diante<br />
de tal problema<br />
Diante do que estou dizendo, alguém<br />
poderia ter a seguinte reação:<br />
“Isto mexe tanto com os fundos de<br />
minha moleza e do meu amor-próprio,<br />
que eu não tenho nenhuma coragem<br />
de fazer o que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> está<br />
recomendando. Portanto, eu ouço<br />
o que ele diz, não contesto, mas, sobretudo,<br />
não adiro; e saio daqui como<br />
entrei.”<br />
Essa pessoa, máxime depois do<br />
que estou explicando, compreende que se pede pouco<br />
para ela. É que ela acuse a si mesma, eventualmente em<br />
Confissão — mas não se trata aqui de questão de Confissão<br />
—, acuse a si mesma o defeito que vê, com todas<br />
as agravantes. Não estou pedindo que ela olhe desde<br />
logo até o fundo de sua alma, mas observe o que está<br />
ao alcance de seu olhar, e o descreva para si mesma<br />
com clareza. De camada em camada, de defeito em defeito<br />
ela chegará até a profundidade e acabará vendo-<br />
-se totalmente.<br />
A Providência se serve de modos variados para fazer<br />
cessar os nossos defeitos. Às vezes, eles cessam como não<br />
imaginávamos. Desde que peçamos, conseguimos, por<br />
assim dizer, o absurdo. E se não corrigimos os nossos defeitos<br />
é porque, no fundo, não temos retidão.<br />
Para reparar seus pecados,<br />
Santo Agostinho escreve as “Confissões”<br />
Sagração Episcopal de Santo<br />
Agostinho - Metropolitan<br />
Museum of Art, Nova York.<br />
Em suas “Confissões”, Santo Agostinho narra que,<br />
em certa ocasião, estava sozinho e angustiado. Ele era<br />
gnóstico, corrupto, tinha um filho ilegítimo. Era, portanto,<br />
herege e impuro. De repente, ele ouve uma voz interior<br />
que lhe diz: “Tolle lege! tolle lege!<br />
— Toma e lê! Toma e lê!” Era a voz<br />
de Deus mandando que ele lesse, se<br />
não me engano, um livro da Escritura.<br />
Ele faz a leitura e encontra um trecho<br />
que resolvia o seu problema. A partir<br />
daquele momento ele se converteu, e<br />
depois se tornou o grande Doutor da<br />
Igreja.<br />
Esse Doutor da Igreja, para castigar-se<br />
dos pecados que cometeu, escreveu<br />
essa biografia à qual deu o título<br />
de “Confissões”, para se confessar a<br />
si próprio diante do mundo inteiro pelos<br />
seus defeitos. E a morte dele foi a<br />
mais bela morte de penitente, que se<br />
possa imaginar. Elevado a Bispo da cidade<br />
de Hipona, ele foi um luminar na<br />
Igreja Católica.<br />
Hipona, situada no Norte da África,<br />
era uma cidade de cultura e língua<br />
romanas, que estava cercada pelos<br />
vândalos, os quais vieram da Germânia,<br />
atravessaram a França, a Espanha<br />
e desceram pela África, e sitiaram várias<br />
cidades que encontravam pelo caminho.<br />
Hipona ia ser tomada por eles,<br />
e Santo Agostinho, moribundo, provavelmente<br />
já com a vista enfraquecida,<br />
mandou que os Salmos Penitenciais fossem escritos numa<br />
parede diante do seu leito, em letras bem grandes,<br />
para ele poder ler. E ele, então, no fim de sua vida, lia os<br />
Salmos pedindo perdão, para ser recebido por Nossa Senhora.<br />
Foi uma alma que com muita retidão e lealdade se<br />
examinou a si mesma, e confiou na misericórdia de Maria<br />
Santíssima. A essa alma as portas do Céu se abriram<br />
e ele entrou pelo eixo reto que conduz a Deus. Por quê?<br />
Porque ele tinha sido reto durante a vida.<br />
A alma reta que comparece diante de Deus<br />
Linda frase a respeito da retidão é a de São Paulo:<br />
“Bonum certamen certavi cursum consummavi fidem servavi<br />
— Combati o bom combate, terminei a minha carreira,<br />
guardei a Fé” (2 Tm 4, 7). Não pode haver coisa<br />
mais bonita do que um homem olhar para o decorrer<br />
de sua vida e dizer isto. Em latim, ao pé da letra,<br />
“bonum certamen certavi” não quer dizer “eu travei um<br />
bom combate”, mas “combati todo o bom combate que<br />
eu tinha que combater”. “Cursum consummavi” significa<br />
“percorri todo caminho longo e difícil que eu tinha<br />
16
Nossa Senhora recebeu em<br />
suas mãos o cadáver d’Aquele<br />
que é a própria Retidão, o<br />
fruto do consentimento que<br />
Ela havia dado. Através da<br />
morte Ele nos deu a vida; era<br />
a vitória esplendorosa dentro<br />
do esmagamento completo.<br />
À direita, Santo Cristo da Misericórdia -<br />
Paróquia Santa Cruz, Sevilha (Espanha).<br />
que percorrer”; ou seja, “fui reto”. Combatendo, combateu<br />
tudo. Tendo que percorrer o caminho, percorreu-<br />
-o inteiro. E com a calma, a paz de espírito dos retos, o<br />
Apóstolo se voltava para Deus e dizia: “Resta-me agora<br />
receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz,<br />
me dará naquele dia” (2 Tm 4, 8). E o recebeu! Esse é o<br />
modo de expirar da alma reta. Ou é na penitência confiante<br />
de Santo Agostinho, ou nessa quase respeitosa<br />
cobrança de cheque de São Paulo: “Eu paguei,<br />
meu Deus! Chegou a hora dos vossos<br />
juros! Eu entro na eternidade.” É<br />
uma beleza!<br />
Não se sabe qual é a mais bonita das<br />
duas formas de morte reta.<br />
Nossa Senhora,<br />
exemplo de retidão<br />
São Paulo - Real Alcázar<br />
de Sevilha, Espanha.<br />
Consideremos também<br />
a retidão de Nossa Senhora,<br />
pura criatura concebida<br />
sem pecado original! Qual foi<br />
o primeiro momento em que Maria<br />
Santíssima soube que Jesus seria<br />
crucificado? Ela certamente o<br />
conheceu pelas Escrituras, porque<br />
possuía uma visão, um conhecimento<br />
lucidíssimo da Bíblia. E, como<br />
Esposa do Espírito Santo, Ela não se tornou Mestra<br />
infalível, mas era pessoalmente infalível, não caia<br />
mais em erro.<br />
Ela acompanhava cada passo da vida de Jesus, ciente<br />
de todos os horrores que iriam acontecer até o momento<br />
da morte d’Ele na Cruz, em que o Padre Eterno pediu-Lhe,<br />
como Mãe e Senhora do Filho, que Ela consentisse<br />
na morte d’Ele. E Ela, no meio das agonias de Jesus,<br />
disse mais uma vez: “Faça-se n’Ele segundo a vossa<br />
palavra!” Quer dizer, Ela levou retilineamente o sacrifício<br />
até o fim.<br />
Depois Nossa Senhora recebeu em suas mãos o cadáver<br />
d’Aquele que é a própria Retidão, o fruto do consentimento<br />
que Ela havia dado. Através da morte Ele nos<br />
deu a vida; era a vitória esplendorosa dentro do esmagamento<br />
completo.<br />
Podemos, então, perceber e amar o pulchrum da retidão;<br />
e compreender como se consegue obtê-la. Dirijamos<br />
nossas orações desta noite a Nossa Senhora, pedindo<br />
que Ela nos obtenha a virtude da retidão. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 18/11/1978)<br />
17
Metáforas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Retidão: limpa como<br />
uma paisagem alpina!<br />
J. Johnston<br />
18
H<br />
oje, indo para uma das sedes de nosso Movimento,<br />
vi ao longe uma pessoa sentada num<br />
caminhão, a qual estava com uma roupa de<br />
uma cor tão pouco cuidada que fiquei espantado.<br />
Na realidade, seu traje era um pano imundo. Não<br />
sei há quanto tempo a pessoa não o lavava; e ela parecia<br />
sentir-se, dentro daquela sujeira, perfeitamente bem.<br />
Veio-me então à cabeça o seguinte pensamento: “Se esse<br />
homem lavasse sua roupa, ela ainda seria aproveitável?”<br />
E imaginei o aguaceiro imundo que sairia dela. Depois<br />
pensei com os meus botões: “Se fosse lavada uma vez,<br />
ter-se-ia que passar para outra pia, porque a primeira deveria<br />
ser lavada só porque nela foi lavada aquela roupa.<br />
Mas, se, de tanto lavar, o traje acabasse ficando inteiramente<br />
limpo, eu me pergunto se aquela pessoa, vestindo-<br />
-o, não sentiria um bem-estar diferente desse bem-estar<br />
de deboche, de sujeira e de desordem que ela está sentindo<br />
agora.” E cheguei à conclusão: sentiria.<br />
Depois veio ao meu espírito esta ideia: “Assim é a alma<br />
que chegou a se lavar inteira, porque viu totalmente<br />
a sua sujeira e não se contentou enquanto não se lavou<br />
por completo.” A alma, quando se lava a si própria e tem<br />
a sua túnica limpa, sente um bem-estar que nenhuma outra<br />
forma de conforto dá. Por causa disso, se um homem<br />
nesta Terra quer a verdadeira felicidade, deve ir à busca<br />
da retidão. Porque não há nada comparável ao bem-estar<br />
interior que a retidão proporciona.<br />
Portanto, se alguém quer levar uma vida agradável e<br />
depois ir para Céu, seja reto! Vai ser duro, mas magnífico,<br />
porque ele se sentirá mais ou menos como quem escalou<br />
montanhas vertiginosas e vê depois panoramas extraordinários.<br />
Embaixo pode haver até poeira levantada<br />
pelo vento, mas na altura em que ele está o pó não chega;<br />
tudo ali está limpo.<br />
Ainda há pouco eu estava vendo uma paisagem alpina.<br />
Que limpeza! A alma de um santo seria dessa maneira.<br />
É esta felicidade que cada um deveria desejar para si.<br />
(Extraído de conferência de 18/11/1978)<br />
Alpes Berneses, Suiça.<br />
19
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Fotos: G. Kralj; S. Miyasaki; M. Shinoda; F. Boulay.<br />
A caminho do Calvário,<br />
Jesus cai com a Cruz às<br />
costas - Sevilha, Espanha.<br />
20
O caminho da dor - I<br />
A trajetória de um homem que ao longo de sua vida procura santificarse<br />
é repleta de sofrimentos. Quem, à semelhança de Nosso Senhor,<br />
abraça com amor e resignação as cruzes que lhe advêm adquire<br />
têmpera moral, corrige-se de seus defeitos e chega à glória eterna.<br />
Quais são as dores que uma pessoa precisa sofrer<br />
ao longo da vida?<br />
A Providência permite que alguém, em determinado<br />
momento, sofra dores extraordinárias. Por exemplo,<br />
ser caluniado injustamente e, por causa disso, passar<br />
anos mal visto por todos aqueles a quem mais se admira.<br />
Sacerdote caluniado por jansenistas<br />
São Luís Grignion de Montfort, em uma de suas<br />
obras, menciona um padre, grande devoto de Nossa Senhora<br />
— para mim isso tem um luzimento parecido com<br />
o de uma canonização; ser elogiado por São Luís Grignion,<br />
enquanto grande devoto de Maria, é o auge dos auges.<br />
Esse homem, que era muito bom padre, estava certo<br />
dia na sacristia para atender o público, quando lá entrou<br />
um dos meninos que serviam à igreja, o qual mexeu numa<br />
coisa qualquer, saiu correndo e dirigiu-se a uma rua<br />
ou praça, situada junto ao templo, gritando uma calúnia<br />
medonha, dizendo que o sacerdote tinha querido atentar<br />
contra a pureza dele.<br />
Bastou esse menino, sem outras testemunhas, gritar<br />
na via pública tal calúnia, que se produziu na cidade uma<br />
emoção extraordinária. Embora esse padre fosse de vida<br />
muito digna, todos acreditaram na calúnia. O Bispo<br />
o privou dos cargos eclesiásticos, e o sacerdote, que possuía<br />
alguma coisinha para subsistir, durante dez anos viveu<br />
no horror e na rejeição de todo mundo. Dez anos se<br />
passaram, mas podia-se temer que isso durasse uma vida<br />
inteira...<br />
Determinado dia, o Bispo se apresenta e lhe diz amavelmente:<br />
“Meu padre, faz favor, venha cá.” Ele se aproximou<br />
para beijar o anel do Bispo, o qual o abraçou. Vieram<br />
também outras pessoas as quais contaram que aque-<br />
le menino, que se tornara moço, havia morrido. E, antes<br />
de falecer, diante de testemunhas, declarou que ele tinha<br />
feito aquela calúnia, pago por uma corrente teológica, na<br />
aparência católica, chamada jansenista, existente naquele<br />
local e que, aliás, tinha se espalhado como uma lepra<br />
por toda a Europa. Para difamar esse padre, que criticava<br />
muito aquela corrente, um dos seus chefes deu dinheiro<br />
ao menino.<br />
Creio que a corrente interessada nisso — é opinião<br />
minha — mandou colocar gente próximo à igreja naquela<br />
hora, para acreditar imediatamente: “Oh! que horror!<br />
Mas imagine...”, e assim dar corpo à calúnia, a qual se difundiu<br />
como um mar sobre a cidade. E somente quando<br />
a Providência dispôs que esse menino, depois moço,<br />
mal à morte, dissesse a verdade — ele sabia que não podia<br />
ir para o Céu se não se retificasse, morreria em estado<br />
de pecado mortal e, com o inferno diante de si, acabou<br />
confessando —, o padre foi reabilitado. Mas foram<br />
dez anos terríveis.<br />
Então, sobre um homem que levava sua vida normal<br />
de padre, com os sacrifícios inerentes à vida de sacerdote,<br />
de repente caiu como que um raio e estraçalhou-o durante<br />
algum tempo.<br />
Madre Mariana de Jesus Torres<br />
padeceu tormentos do inferno<br />
Creio que já narrei aqui a história da Madre Mariana<br />
de Jesus Torres, religiosa diante da qual se deu o milagre<br />
primeiro de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em<br />
Quito, no Equador. Tendo sido eleita abadessa do seu<br />
convento, ela começou a governar com muita bondade<br />
— era uma pessoa de virtudes eminentes; espero que<br />
seja canonizada. Havia ali algumas freiras novas, que<br />
eram descendentes de índios. Como manda a Igreja,<br />
21
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
com toda a sabedoria e razão, não fazer segregação racial,<br />
essas filhas ou netas de índios foram recebidas no<br />
convento.<br />
Entretanto, uma delas, que tinha vontade de ser<br />
abadessa, tramou a destituição de Madre Mariana de<br />
Jesus Torres e a substituição por ela mesma, criando<br />
um choque entre as freiras índias e as freiras espanholas<br />
ou descendentes de espanhóis. Houve então uma<br />
divisão entre as religiosas, e afinal de contas tornou-<br />
-se abadessa essa revoltosa, ou uma freira dependente<br />
da revoltosa. E a primeira coisa que fez foi mandar<br />
prender Madre Mariana de Jesus Torres na prisão do<br />
convento, porque naquele tempo os conventos tinham<br />
cárceres. E Madre Mariana ficou muito tempo presa,<br />
injustamente.<br />
Durante esse período, vivendo a pão e água, com toda<br />
a serenidade, ela rezava pela alma de sua perseguidora.<br />
E a Providência deu-lhe a entender que essa freira<br />
era tão ruim, estava tão comprometida que só havia um<br />
jeito de salvá-la: Madre Mariana de Jesus Torres deveria<br />
oferecer-se para, em espírito, passar cinco anos sofrendo,<br />
inclusive fisicamente, as chamas infernais. Uma coisa<br />
horrorosa!<br />
Ela contou depois que, às vezes, durante esse tempo,<br />
pensava estar condenada de fato; mas ao mesmo tempo<br />
tinha a ideia um tanto contraditória de que ela sofria isto<br />
para salvar a alma da outra. Ela então dizia: “Se eu estou<br />
condenada, que minha condenação sirva pelo menos para<br />
salvar minha inimiga. Considero meu sofrimento por<br />
bem empregado.” É belíssimo!<br />
Durante esses cinco anos, Madre Mariana sofreu barbaramente.<br />
Terminado o prazo, foi libertada, saiu do inferno,<br />
voltou a paz para sua alma e ela foi reeleita abadessa.<br />
A freira revoltosa adoeceu, e Madre Mariana tratou-<br />
-a com a maior bondade possível, de maneira que aquela<br />
freira acabou reconhecendo que tinha andado mal, pediu<br />
perdão e faleceu. E Madre Mariana de Jesus Torres<br />
recebeu a revelação de que a alma dessa freira foi para o<br />
purgatório, onde deveria ficar por um prazo longuíssimo,<br />
se não me engano, até o fim do mundo. Uma coisa de assustar!<br />
Assim ela salvou essa alma.<br />
Foi um sofrimento que a Providência pediu a Madre<br />
Mariana e ela aguentou.<br />
Médico famoso que<br />
ficou cego repentinamente<br />
Lembro-me de um médico de São Paulo, que era famoso<br />
e rico. Ele estava assistindo a corridas de cavalos;<br />
pôs o binóculo e começou a acompanhar o percurso dos<br />
equinos na pista. Em certo momento, não viu mais nada.<br />
Achou esquisito, tirou o binóculo e nada enxergava. Ficou<br />
cego de repente, devido a um deslocamento de retina.<br />
Como era muito rico, ele contratou o melhor oculista<br />
de São Paulo para ir com ele à Europa — os grandes<br />
centros médicos, naquele tempo, eram exclusivamente<br />
os europeus; a América do Norte ainda tinha se destacado<br />
muito menos –, a fim de consultar os maiores oculistas.<br />
Para abreviar, não tinha mais solução; ele continuou<br />
cego e morreu vinte anos depois.<br />
A vida de um verdadeiro católico<br />
é repleta de sofrimentos<br />
Nossa Senhora do<br />
Bom Sucesso - São<br />
Paulo, Brasil.<br />
Mas não é propriamente desses sofrimentos que vou<br />
tratar. Isso é fácil compreender; são episódios que ocorrem<br />
na vida de uma pessoa.<br />
O problema é diferente: todo homem, mesmo que não<br />
lhe aconteçam coisas dessas, deve sofrer muito na vida.<br />
O curso comum da existência de um homem verdadeira-<br />
22
É através dos<br />
sofrimentos que um<br />
homem autenticamente<br />
católico conquistará<br />
verdadeira têmpera<br />
moral, corrigirá seus<br />
defeitos e atingirá<br />
a santidade.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma<br />
conferência, em julho de 1991.<br />
mente católico, apostólico, romano, praticante, é cheio<br />
de sofrimento, primeiro ponto.<br />
Segundo ponto: com esse sofrimento o homem atinge<br />
a têmpera moral que deve possuir. Terceiro: ele se corrige<br />
dos seus defeitos. Quarto: com isto pode chegar até a<br />
santidade.<br />
De maneira que essas grandes tragédias, esses grandes<br />
sofrimentos, com frequência acontecem na vida dos santos.<br />
Um teólogo do século XIX fazia uma afirmação interessante:<br />
“Dai-me um frade que cumpre simplesmente<br />
a regra de sua Ordem e eu vos darei um santo.” Como?<br />
Sofrendo coisas extraordinárias? Não. Aguentando o duro<br />
da vida, como Deus quer.<br />
Como é esse duro da vida? Como os presentes neste<br />
auditório estão mais próximos do começo da vida do<br />
que do fim, e as suas memórias só versam sobre esse início,<br />
falemos dele.<br />
Uma criança desobedece a seus pais...<br />
Desde pequena, a criança começa a ser partilhada entre<br />
dois impulsos contrários. Por um lado, ela quer muito<br />
bem a seus pais, gosta de ser acariciada por eles, etc.<br />
Mas, de outro lado, os progenitores lhe dão ordens: não<br />
faça tal coisa, faça tal outra.<br />
No momento em que os pais lhe dão uma ordem, põe-<br />
-se para ela um problema: “Se você quer realmente bem<br />
a seu pai e sua mãe, não fará o que eles estão proibindo;<br />
se fizer, vão ficar tristes. Mas ninguém proíbe uma pessoa<br />
de fazer algo que não seja gostoso. Porque, se não é<br />
gostoso, ela não faz, e se faz é porque acha gostoso. Você<br />
recebeu uma proibição... Como é isso?” É um não gostoso<br />
que se põe no caminho da criança. Então vem a questão<br />
da escolha.<br />
Imaginemos o seguinte:<br />
O pai ou a mãe diz à criança: “Somente suba na cadeira,<br />
para pegar o brinquedo que está em cima do armário,<br />
se houver uma pessoa mais velha para ajudá-la. Do<br />
contrário, não dou licença”. É-lhe explicada a razão evidente:<br />
se subir sozinha, terá que fazer certo esforço para<br />
alcançar o objeto, digamos um boneco, poderá cair e se<br />
machucar. A criança mais ou menos entende isso.<br />
Seus pais saem de casa, a criança fica só e sente o<br />
desejo de apanhar o boneco para brincar com ele. Surge,<br />
então, em sua cabeça uma porção de pensamentos:<br />
“Meus pais não estão aqui; quando voltarem vão me<br />
ver brincar com o boneco... Mas eles não mais se lembrarão<br />
se o boneco estava em cima ou embaixo. Subo<br />
na cadeira, pego o boneco e depois coloco a cadeira no<br />
lugar em que estava; posso passar um bom tempo brincando<br />
com o boneco, porque eles me disseram que eu<br />
ficaria trancado neste quarto umas duas horas, até que<br />
voltassem”.<br />
23
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Em certo momento, a vontade de brincar com o boneco<br />
é tão grande que a criança empurra a cadeira, sobe<br />
e pega o boneco; e na hora de descer da cadeira,<br />
com o boneco nas mãos, a cadeira cambaleia, a criança<br />
tem um susto enorme, quase cai, mas dá um jeito e<br />
se equilibra.<br />
...e vêm à sua mente algumas questões...<br />
Ela começa a brincar e, depois do primeiro momento,<br />
vem à sua mente uma questão: “Eu deveria ter feito<br />
o que fiz?”<br />
E uma reflexão desagradável: “Mamãe, chegando, ao ver<br />
que estou com o boneco aqui, é capaz de lembrar-se que<br />
ele estava em cima do armário, e notará minha desobediência.<br />
Quem sabe se seria melhor, para evitar o castigo, eu desobedecer<br />
uma segunda vez, subir na cadeira novamente e<br />
pôr o boneco lá em cima? Já andei mal uma vez... Quando<br />
faltar mais ou menos meia hora para meus pais voltarem,<br />
colocarei o boneco no lugar em que estava.”<br />
Mas o pensamento continua: “Agora que você andou<br />
mal, aguente. Brinque com o boneco e quando eles chegarem<br />
você dirá: ‘Olha, me perdoem, eu peguei o boneco.’<br />
Eles vão se zangar com você, será uma coisa desagradável.”<br />
A criança cessa de brincar e diz a si mesma: “Por que<br />
pensar nisso tudo? Falta uma hora e meia para eles voltarem.<br />
Quando faltar quinze minutos, vou resolver esse<br />
problema. Agora vou brincar.”<br />
Ficam, então, na cabeça da criança três convites. Primeiro:<br />
agir bem, quer dizer, contar para os pais o que ela<br />
fez; segundo: agir mal, desobedecer mais uma vez e colocar<br />
o boneco em cima do armário; terceiro: não pensar<br />
no problema, a não ser no último momento, e brincar, ou<br />
seja, gozar a vida.<br />
É possível que, conforme a psicologia da criança, esse<br />
problema do boneco estrague a tarde dela. Ela pode ainda<br />
pensar: “Seria melhor eu não ter desobedecido. Nunca<br />
mais vou desobedecer.” Mas depois lhe ocorre esta<br />
ideia: “Mas a vida fica tão cacete se eu nunca mais desobedecer<br />
que, de vez em quando, desobedecerei.”<br />
...cuja solução significa<br />
um programa para sua vida<br />
Conforme a decisão dessa criança, que pode ter quatro<br />
ou cinco anos de idade, ela traçou um programa para<br />
sua própria vida: Ela escolheu o prazer ou a dor.<br />
Digamos que a criança desobedeça e coloque o boneco<br />
novamente em cima do armário; os pais regressam, nada<br />
percebem e encontram a criança alegre, a mãe trouxe-lhe<br />
um docinho, e o pai, uma revista para ela ver. Agradam a<br />
criança e a vida continua.<br />
Mais tarde a criança pensa: “Valeu bem a pena enganá-los.<br />
Fiz o que eu não devia, ganhei presentes e passei<br />
uma tarde gostosa. Em alguns casos, talvez minha atitude<br />
dê errado, mas tantas vezes dará certo que vou fazer<br />
assim.”<br />
E pode começar a existir uma dobra no espírito da<br />
criança, devido à qual vai ficando cada vez mais difícil<br />
para ela andar direito, e mais fácil andar mal. Ela vai inventando<br />
jeitos, habilidades para desobedecer, ideias novas,<br />
outras travessuras para fazer coisas mais gostosas;<br />
quer dizer, desobediências ainda maiores, por onde, praticando<br />
uma falta venial, pecado de criança, ela compra<br />
um prazer. E essa dobra vai se marcando cada vez mais.<br />
A grande batalha pela castidade<br />
Imaginemos dois tipos de crianças. Uma, que sempre<br />
pratica o bem e nunca desobedece aos pais. Outra, fazendo<br />
sempre o mal e desobedecendo de duas maneiras:<br />
ou pensando: “Eu quero fazer o mal”, ou não pensando,<br />
mas no fundo praticando o mal.<br />
Elas chegam aos dez anos de idade, mais ou menos,<br />
quando começa a crise da puberdade e se apresenta a primeira<br />
tentação contra a pureza. Qual das duas crianças está<br />
preparada para travar a grande batalha pela castidade?<br />
A criança da travessura, que seguiu a escola do prazer?<br />
Ou a séria, que pensa nas coisas retamente, ama a verdade?<br />
Esta última, quando se lhe apresenta a tentação da<br />
impureza, diz: “Isso não pode ser!” Ela reage e não peca.<br />
Mas quanto à outra criança, há noventa e nove probabilidades<br />
sobre cem de que, se lhe apresentando o prazer<br />
da impureza, ela peque. Ela está habituada a não se recusar<br />
nenhum prazer. No momento em que aparece um<br />
prazer que seduz os homens muito mais do que brinquedos<br />
de criança, ela está muito menos preparada para resistir<br />
àquela pressão. Resultado: ela cai. E vai ser um homem<br />
impuro, porque foi uma criança que não quis a dor.<br />
Essa criança deveria ter sido séria e não ter levado<br />
as coisas na brincadeira; precisaria ter raciocinado: “Eu<br />
não quero o mal, mas o bem. Percebo que estou indo<br />
por uma via ruim que vai me conduzir para o inferno;<br />
não quero isso. Amo aos meus pais, mas sobretudo amo<br />
a Deus, a Nossa Senhora, não quero ofendê-los. E, por<br />
causa disso, não vou fazer uma ação má.” Então, ela começa<br />
uma luta.<br />
Lutando contra si, ela se torna forte. Se a criança vence<br />
a crise da pureza, ao cabo de ter feito a batalha da castidade,<br />
ela se torna um herói. O homem que nunca pecou<br />
contra a pureza pode dizer: “Graças a Nossa Senhora,<br />
pelo favor que Ela me obteve de Deus, sou um herói.”<br />
Se ela pecou contra a pureza, mas se arrepende, poderá<br />
dizer: “Sou um pecador regenerado e a graça de Deus<br />
24
Ao fim de uma longa<br />
existência, os braços de<br />
Deus estarão abertos para<br />
quem praticou a castidade.<br />
Sagrado Coração de Jesus -<br />
Montreal, Canadá.<br />
pousou sobre mim, arrancou-me do charco imundo onde<br />
eu estava, levantou-me; minha alma hoje é pura, graças a<br />
Deus. Nossa Senhora, Virgem Puríssima, rogai por mim!”<br />
Um osso partido, quando se consolida, fica mais forte<br />
no local da fratura do que nos outros pontos. Assim também,<br />
a pessoa que caiu em matéria de pureza, arrependeu-se<br />
e depois praticou a castidade, torna-se mais forte.<br />
Dizer não para si mesmo e sim<br />
à voz da graça<br />
Ao fim de uma longa existência, oitenta, noventa anos,<br />
se a pessoa viveu sempre assim, ao morrer, os braços de<br />
Deus estão abertos para ela. Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
lhe sorri, ela vê no peito do Redentor o Sagrado Coração<br />
que pulsa de amor por ela. Nossa Senhora a afaga<br />
e a conduz junto ao Divino Salvador. Seu Anjo da guarda<br />
canta, há uma alegria em toda a corte celeste por uma<br />
alma que entra para o Céu. O objeto dessa alegria é ela,<br />
porque no fundo compreendeu que toda a prática da virtude<br />
é um dizer não para si mesmo, e sim à voz da graça,<br />
a qual nos convida a cumprir o dever.<br />
A graça diz no interior da criança: “Obedeça a seu<br />
pai, a sua mãe; obedeça a Deus que ordenou honrar pai<br />
e mãe.” Sendo fiel à graça, ela vai se fortificando e resistindo<br />
a outras tentações. Por exemplo, uma criança que<br />
aprende a não brincar com os brinquedos não permitidos,<br />
aprende também a estudar nas horas em que deve.<br />
É claro, porque uma coisa é reversível na outra.<br />
Aprendendo a estudar nas horas em que precisa estudar,<br />
ela vence a preguiça de pensar, a preguiça do<br />
trabalho mental, e se torna uma pessoa que gosta de<br />
ler um livro, estudar uma doutrina, e pode ser um homem<br />
inteligente e até célebre. Pode tornar-se um defensor<br />
da Fé.<br />
Se a criança não estuda, fica com preguiça de estudar.<br />
No tempo de minha infância, conheci um menino que às<br />
vezes batia na testa e dizia: “Eu sou burro! Mas não tenho<br />
culpa de ser burro.” E pedia aos colegas para fazerem<br />
redação para ele, a fim de ele copiar com a letra dele<br />
e passar no exame. Os colegas o atendiam, mas eu, que<br />
o conhecia bem, sabia que ele era burro de preguiça, mas<br />
se fizesse esforço poderia tornar-se uma pessoa razoável.<br />
Entretanto, devido à preguiça, ficou fadado a ser burro a<br />
vida inteira.<br />
Continua no próximo número…<br />
(Extraído de conferência de 30/8/1986)<br />
25
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Transatlântico navegando<br />
diante de Veneza.<br />
Fotos: G. Kralj; F. Lecaros; S. Hollmann.<br />
O mais belo mar! - II<br />
Após descrever vários tipos de embarcação, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> prepara os<br />
ouvintes para o tema de sua conferência: a Metafísica.<br />
Transportando-nos da vida quotidiana para outros horizontes,<br />
ele nos faz velejar pelos mares da Filosofia.<br />
D<br />
uas ideias ficam em nosso espírito: a de nau e<br />
a de homem. Existe imensa variedade de naus<br />
e imensa variedade de homens.<br />
Diversidade de homens<br />
Só num gênero de atividades humanas, a navegação,<br />
quanta diversidade de homens! Desde o comandante<br />
preciso, seguro, técnico, habilitado e competente dos<br />
últimos transatlânticos, até o antepassado dele, o velho<br />
viking de bigode louro comprido, com trancinha, olhos<br />
azuis injetados, perscrutando os mares e adivinhando,<br />
em meio às penumbras, os caminhos, sem bússola nem<br />
nada.<br />
Que diferença entre esse bárbaro pagão, capaz de arrancar<br />
um carvalho com as mãos, e São Luís manejando<br />
sua espada de ouro, todo refulgente de luz, como se ele<br />
mesmo estivesse vestido de sol para combater entre os<br />
homens! São Luís católico, São Luís santo, São Luís da<br />
Sainte Chapelle, que ascensão! Dele para os navegantes<br />
descobridores, quanta diferença! Apenas quanto à psicologia,<br />
que diferença entre um tipo de homem e outro!<br />
Os espíritos se bifurcam<br />
E nosso espírito, então, fica maravilhado. Há duas espécies<br />
de espírito: os insaciáveis de admirar e os que se<br />
cansam de admirar.<br />
26
Se eu declarasse que está terminada a reunião, as<br />
pessoas que têm espírito insaciável de admirar diriam:<br />
“Não! Admiramos, todos juntos, tantas coisas! Não cortemos<br />
assim de repente esse tecido! Vamos continuar ao<br />
menos até que a peça tenha se desdobrado por inteiro e<br />
o seu esgarçado final nos indique que ela acabou.”<br />
Mas há espíritos preocupados apenas com coisas concretas.<br />
Tais indivíduos querem saber se está frio lá fora,<br />
se trouxeram lenço, pois são capazes de espirrar. E se espirrarem,<br />
o que pode acontecer... Enfim, preocupam-se<br />
com probleminhas sobre os quais nem vale a pena falar.<br />
Quando algum deles consente em achar graça naquilo<br />
que nós estamos meditando juntos, ele o faz por instantes<br />
porque logo tem saudades do terra a terra, daquilo<br />
que se pega com as mãos, que se cheira com o nariz,<br />
que se degusta com a boca; ou que dá dinheiro, conforto,<br />
segurança, saúde. Todos esses veleiros, para ele, ficaram<br />
para trás e nós fazemos papel de poetas. Para eles o<br />
ser é só o que se apalpa, traz vantagens materiais, nutre e<br />
agrada o corpo e prolonga a vida.<br />
Para as pessoas admirativas, pelo contrário, as coisas<br />
práticas existem para que o corpo não amole e o espírito<br />
possa livremente musicar, voar. Indivíduos assim não<br />
querem a cadeira para estar bem sentados, mas para esquecer<br />
que têm corpo e pensar, pensar, pensar. E, neste<br />
auditório, nós somos no momento como um grande transatlântico<br />
povoado de espíritos desses. Acabamos de navegar<br />
pelos mares da História e pela limitada história da<br />
navegação. Consideramos homens, embarcações e nem<br />
vos falei dos litorais e dos outros povoadores dos mares,<br />
os piratas e os aventureiros, os berberes, etc. Deixo tudo<br />
de lado para não tornar por demais extenso o quadro.<br />
O espírito admirativo, depois de pensar em todas essas<br />
coisas, diz: “Há mais algo... Todas essas embarcações<br />
são belas. Só poderia haver essas ou seriam possíveis outras?<br />
Não haverá uma arquiembarcação, que requinte<br />
essas embarcações em tudo?”<br />
Então, mais uma vez, os espíritos se bifurcam.<br />
O indivíduo que tem espírito admirativo começa a<br />
compor uma embarcação, não para que nela fosse gostoso<br />
viajar, mas que o enlevasse. Ele tem dotes artísticos<br />
e desenha uma embarcação de um gênero inteiramente<br />
novo. Fica contente e guarda o desenho numa<br />
gaveta.<br />
Para mostrar a alguém? Não, ainda que os outros admirem.<br />
Ele engendrou um tipo ideal de embarcação, que<br />
exprime a alma dele. É quase como ele feito embarcação!<br />
Ele se definiu para si mesmo, como um guerreiro viking<br />
se definia para si mesmo nas volutas e nas formas<br />
da proa de seu barquinho; aquilo era o gráfico de um<br />
temperamento. Ou como um descobridor espanhol ou<br />
português se definia no esplendor das velas enfunadas<br />
pelo vento, um grumete, em cima, naquele cestinho espiando<br />
os mares.<br />
Outros não têm talentos para isso e não compõem<br />
uma obra artística. Porque o talento artístico é um dom<br />
concedido por Deus, por onde o homem exprime de um<br />
modo simbólico e deleitável, admirável, aquilo que lhe<br />
vai dentro da alma. Mas há outros a quem Deus não deu<br />
esse talento; eles não exprimem o símbolo, mas ficam<br />
pensando. Eu me coloco entre esses.<br />
Definindo o que é embarcação<br />
Embarcação... Quantas embarcações! Depois de ter<br />
pensado em cada uma, elas se sobrepõem umas às outras<br />
e formam como que um caleidoscópio de embarcações.<br />
Eu mexo na minha fantasia e as embarcações vão passando.<br />
Depois as pedrazinhas do caleidoscópio vão como<br />
que se fundindo umas nas outras, e vai aparecendo<br />
uma ideia da arquiembarcação, ou seja, da embarcação<br />
enquanto embarcação; é uma embarcação que não sei<br />
compor, mas da qual faço uma ideia sem formas, sem cores<br />
e nem nada de sensível. A embarcação em tese, a abstração.<br />
É uma ideia de embarcação — e aqui está o engano de<br />
muita gente — que não corresponde meramente à defi-<br />
Francisco Pizarro,<br />
conquistador do<br />
Peru - Praça Maior<br />
de Trujillo, Espanha.<br />
27
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
nição. Nunca em minha vida pensei em fazer uma exposição<br />
sobre embarcações; estou tirando do meu caleidoscópio<br />
as figuras de embarcações e analisando pedrinha<br />
por pedrinha. Se eu fosse definir embarcação, eu diria —<br />
mais ou menos como deve estar no dicionário —: veículo<br />
aquático, destinado a transporte de passageiros ou de<br />
mercadorias.<br />
Alguém dirá: “Por que o senhor não diz marítimo?”<br />
— Porque tem os fluviais.<br />
— Então por que o senhor não diz marítimo e fluvial?<br />
— Porque há os lacustres, que navegam nos lagos.<br />
Para ser uma verdadeira embarcação tem que ser um<br />
veículo para água. Então, veículo aquático está correto.<br />
Conceituada a embarcação em si — porque ela não é outra<br />
coisa —, vejamos agora qual é o seu fim. Especificada<br />
o que é uma coisa, bem como seu fim, está dada a sua<br />
definição. Uma embarcação é destinada ao transporte de<br />
homens ou de mercadorias. Está subentendido que pode<br />
levar uma coisa e outra, pois as mercadorias não viajam<br />
sem homens e, por razões econômicas, os homens não<br />
viajam sem mercadorias.<br />
Então, está definida a embarcação. Mas, por um apanhado<br />
pouco feliz das coisas, tem-se a sensação semelhante<br />
à de uma pessoa que contempla uma bolha de sabão<br />
que pousa numa de suas mãos e, de repente, alguém<br />
fura essa bolha. E aquela armação lindíssima da bolha de<br />
Cristóvão Colombo,<br />
descobridor<br />
da América<br />
- Barcelona,<br />
Espanha.<br />
sabão, com as cores do arco-íris, escorre ao longo das suas<br />
paredes externas e, na mão, ficam apenas umas gotinhas<br />
de água com sabão. O ar que estava dentro dela e<br />
lhe dava aquela contextura, um alfinete implacável liberou,<br />
e a bolha se desestufou.<br />
Carruagens: bonbonnières para<br />
conduzir pessoas<br />
Essas foram, um tanto ornadas, reflexões minhas feitas<br />
no passado — não especificamente sobre embarcações,<br />
mas sobre outras coisas —, que estou reapresentando<br />
aqui para entretê-los um pouco neste fim de sábado.<br />
Não sei por que não exemplifiquei com carruagens, pois<br />
sobre elas eu fiz um raciocínio vagamente análogo a esse.<br />
Ontem à noite, eu estava vendo fotografias de carruagens<br />
feéricas, mais propriamente bonbonnières para<br />
conduzir pessoas; havia também carruagens pretas, mas<br />
não desprovidas de elegância. Numa majestosa carruagem<br />
estavam o Rei da Inglaterra, Eduardo VII, e o Kaiser,<br />
percorrendo as ruas de Berlim. Que imensa variedade<br />
de carruagens havia!<br />
O Museu dos Coches de Portugal é uma fábula. No<br />
palácio real de Madrid, que lindas carruagens! Nele há<br />
uma carruagem pequena, cor de gema de ovo, para carregar<br />
o Infante; que coisa maravilhosa!<br />
Observando-as, eu tinha no meu espírito dois movimentos.<br />
Um consistia em querer ver todas as formas possíveis<br />
de carruagens para ficar vagamente — como uma<br />
espécie de som dos sons ou de nota das notas — com<br />
uma ideia genérica, difusa, que eu não seria capaz de exprimir<br />
artisticamente, de carruagem in genere. Uma carruagem<br />
que contivesse, em síntese, as belezas possíveis<br />
de todas as carruagens. Eu não seria capaz de pintá-la<br />
nem de esculpi-la, mas sim de intuí-la. De tal maneira<br />
que quando a visse eu diria: “Eis a carruagem!”<br />
Talvez o carro, não a carruagem, em que Elias Profeta<br />
subiu ao Paraíso. Como deveria ser aquele carro? Pintam-no<br />
como uma biga romana comum, não sei por quê.<br />
Como poderia ter sido um carro adornado com asas de<br />
O espírito admirativo,<br />
depois de pensar na beleza<br />
que há nas embarcações,<br />
começa a compor uma que<br />
o enlevasse ainda mais.<br />
28
Quanta diversidade de<br />
homens há no gênero<br />
da navegação! Desde<br />
o velho viking até os<br />
navegantes descobridores,<br />
quanta diferença!<br />
À beira-mar, conquistadores<br />
observam a frota que se aproxima.<br />
anjo? Ninguém imagina, é uma coisa fabulosa; fica-se<br />
com uma ideia vaga: o carro dos carros.<br />
O ”gancho” da defininção<br />
Mas depois de tudo isso considerado, há na minha<br />
alma, graças a Deus, algo como um gancho; ao mesmo<br />
tempo em que com a sensibilidade analisou, degustou tudo<br />
e chegou como que a um ápice imponderável e transcendente,<br />
minha alma tem certa vontade de deitar o gancho<br />
e definir: “Agora eu pego isso e o reduzo, numa ou<br />
em algumas palavras, num conceito sólido!” E depois de<br />
definir, penso: “É isto mesmo!”<br />
E no meio de todas essas sensações, munido dessa definição,<br />
eu me sentiria como um guerreiro viking armado<br />
com sua lança.<br />
O barco e o mar são lindos, mas na minha mão a definição<br />
é uma lança! Tal coisa, analisada, penetrada no seu<br />
âmago, assim se define. Dessa forma, eu sinto o poder<br />
de, com minha inteligência, atacar novas ideias e abrir<br />
novos continentes. Peguei algo, piso firme, respiro fundo<br />
e, para dizer numa palavra só, sou mais eu mesmo. Minha<br />
elucubração chegou até o fim.<br />
O conceito de embarcação abrange<br />
também as suas variedades<br />
Então, numa mente bem ordenada, qual é o papel da<br />
definição? É o da bolha de sabão que alguém desestufou?<br />
É! Mas não é só!<br />
O conceito de embarcação, “veículo etc.”, abrange todas<br />
as variedades que as embarcações tomaram ao longo<br />
dos tempos. Essas variedades estão dentro do conceito,<br />
mais ou menos como as flores e os frutos estão dentro<br />
da árvore. É claro que se rasgarmos uma árvore não<br />
encontraremos o fruto dentro dela. Mas a árvore engen-<br />
dra a flor e o fruto; a capacidade de florescer e de frutificar<br />
jaz na árvore.<br />
Nesse conceito vago, “veículo aquático para transporte<br />
de homens ou de mercadorias”, eu poderia acrescentar<br />
“correspondências”.<br />
Veículo: quantas modalidades há!<br />
Aquático: quantas formas de veículo aquático se pode<br />
imaginar!<br />
Transporte: quantas espécies de transportes: de guerra,<br />
de comércio, de prazer, de gala, de ciência! Quantos<br />
objetivos a operação de transportar comporta!<br />
Mercadoria: Que riquezas! Que tesouros! Que maravilhas!<br />
Quantos significados o termo “mercadoria” pode<br />
conter!<br />
Homens: Que bandidos! Que missionários! Que heróis!<br />
Que santos! Que sábios! Que cientistas! Que nobres!<br />
Então, com esse conceito reduzido ao mínimo, voltamos<br />
a passar a fita e vemos embarcação por embarcação.<br />
Começamos com o transatlântico de Porto Rico: Ah! É<br />
um veículo aquático. Tendo sido projetados os diversos<br />
tipos de embarcação, verificamos como a definição se<br />
aplica a cada um. Temos, então, a ideia construída, é o<br />
abstrato. A pura abstração coincide na nossa mente com<br />
aquela espécie de navio dos navios, que contém em si todas<br />
as formas de perfeições possíveis de todos os navios.<br />
Continua no próximo número...<br />
(Extraído de conferência<br />
de 10/11/1979)<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
Fotos: F. Lecaros; J. Rodrigues; H. Grados.<br />
A civilização da<br />
admiração<br />
A tendência para a elevação e o sobrenatural dava ao homem medieval<br />
especial facilidade para admirar e venerar a Deus Nosso Senhor. Tal<br />
estado de alma não pode ter sido privilégio de outrora; ao contrário,<br />
Deus o quer e exige de todos os fiéis, ao longo de toda a História.<br />
30
Suponhamos um copista que possuísse uma sineta para<br />
chamar o empregado, e um canivete para cortar o pergaminho<br />
e outros materiais.<br />
Se o cabo da sineta fosse feio, ele, quando desse acordo<br />
de si, estaria com o canivete esculpindo-o de maneira<br />
a torná-lo belo.<br />
Quanto ao canivete, ele se comprazia em fazer com<br />
que a lâmina fosse afiada, de modo a aparecer inteiramente<br />
a beleza do metal, e o cabo não fosse apenas prá-<br />
Quando estudamos a História da Idade Média,<br />
analisamos sobretudo os personagens mais característicos<br />
daquela época: Carlos Magno, São<br />
Luís, São Fernando, São Tomás de Aquino e, de modo<br />
eminente, São Gregório VII. Entretanto, também no geral<br />
da população daquele período havia um espírito de fé<br />
eminente.<br />
No auge da era medieval, a Cristandade era compacta<br />
e homogênea e encontrava-se em sua época mais feliz.<br />
Havia, como em todos os tempos, pecadores esparsos,<br />
interessados em fruir o seu próprio pecado, porém<br />
não obstinados em derrubar o edifício espiritual da Civilização<br />
Cristã.<br />
Naquela era histórica, o espírito de Fé moldava a<br />
maneira de pensar e de viver do homem, tornando sua<br />
mentalidade fundamentalmente diversa do homem<br />
contemporâneo. Como se exprimia a mentalidade medieval?<br />
Dois movimentos ascensionais<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Detalhes do Mosteiro dos Jerônimos<br />
(Lisboa, Portugal); em destaque, São Fernando<br />
de Castela (Catedral de Sevilha, Espanha).<br />
32
tico, mas também bonito. Assim, no cabo do canivete ele<br />
esculpia um santo; e no alto da sineta uma cruz.<br />
Quando ia escrever algo, ele não se limitava a fazer letras<br />
legíveis, mas pensava em compor uma iluminura desenhando,<br />
dentro da primeira letra, um pássaro voando,<br />
ou um santo rezando com halo de santidade, ou um Rosário<br />
entrelaçado nas letras.<br />
Ou seja, os mais humildes homens do povo manifestavam,<br />
continuamente, uma tendência para o mais perfeito,<br />
mais santo e mais belo. Uma espécie de insaciabilidade<br />
temperante, uma pressão saudável e contínua da<br />
alma para o melhor, debaixo de todos os pontos de vista,<br />
nunca se contentando com aquilo que tem, mas procurando<br />
algo superior; era, portanto, uma tendência para<br />
a elevação.<br />
Devido a esta contínua procura do mais belo, existia a<br />
ideia de que, acima dos seres visíveis, havia seres invisíveis,<br />
mais nobres e mais belos do que os visíveis. E, no alto<br />
da pirâmide destes seres espirituais estava Deus, a suma<br />
Perfeição. Então, dois movimentos ascensionais: um<br />
para melhorar as coisas terrenas, na procura da perfeição<br />
delas, e outro para, através das coisas terrenas, caminhar<br />
até Deus.<br />
O maravilhamento é a postura de alma<br />
necessária a todo homem<br />
Isso significava, na alma do homem medieval, uma<br />
tendência fundamental para o elevado, e uma necessidade<br />
profunda de conhecer continuamente coisas que lhe<br />
provocassem admiração.<br />
Daí as canções de gesta, que eram a glorificação dos<br />
grandes heróis da Cristan-<br />
dade. E também as lendas a respeito da vida de santos,<br />
que constituíam a glorificação deles. A Légende Dorée,<br />
de Jacques de Voragine, por exemplo, tem magnificência<br />
nesse sentido.<br />
Essa tendência corresponde ao contínuo estímulo comunicado<br />
por Deus à Criação. Não julguemos ser esse<br />
estado de alma necessário apenas aos medievais. Esta é a<br />
orientação de alma que, em virtude do primeiro Mandamento,<br />
Deus quer e exige de todos os fiéis.<br />
Podemos ver isso em dois campos: a ordem natural e<br />
a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo.<br />
Por mais que o examinemos, não encontramos um<br />
ponto que não seja suscetível de aprofundamento. E no<br />
extremo desse aprofundamento, não achamos nada que<br />
não nos cause uma espécie de maravilhamento. O universo<br />
foi construído por Deus para que o conhecimento<br />
dele conduza a atos de admiração.<br />
Consideremos, por exemplo, a coisa mais terra a terra:<br />
a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata<br />
é feia. Mas se um cientista vai estudá-la, ele encontra ali<br />
dentro uma ordenação em razão da qual acaba concluindo<br />
o que o artista nunca concluiria: é admirável a pata de<br />
uma rã. O artista dirá que é hedionda a pata de uma rã,<br />
mas o cientista afirmará: “Neste hediondo há uma maravilha!”<br />
Na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura<br />
de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda<br />
parte encontramos algo admirável. Quer dizer, o universo<br />
incita o homem a prestar atenção em seu Criador<br />
fazendo atos de maravilhamento.<br />
O émerveillement, o maravilhar-se, o admirar é a postura<br />
de alma necessária a todo homem; é o ponto terminal<br />
da peregrinação em toda espécie de seus estudos ou<br />
elucubrações, seja no campo artístico, científico ou cultural.<br />
Maravilhas da Igreja Católica,<br />
Apostólica, Romana<br />
E, bem no centro desse universo, que é um convite<br />
contínuo à admiração, há a ordem sobrenatural, a Igreja<br />
Católica, Apostólica, Romana, na qual isso também se<br />
verifica. Nas menores coisas da Igreja Católica, se as analisarmos<br />
bem, encontraremos verdadeiras maravilhas.<br />
Tomo o mais corrente dos exemplos: o meio inventado<br />
pela Igreja para chamar os fiéis à oração, o sino colocado<br />
no alto de uma torre. Tão prático, mas quanta maravilha!<br />
A Ave-Maria que é tocada na aurora ou na hora<br />
do pôr do Sol, que maravilha! Os sinos que repicam alegremente<br />
para anunciar a Missa, que maravilha! Os sinos<br />
que dobram finados, quando o cadáver entra no templo<br />
para receber a bênção, que maravilha!<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Há certas coisas feitas<br />
pela Igreja com tanta naturalidade,<br />
que ninguém<br />
se lembra de as achar bonitas;<br />
é preciso prestar<br />
atenção. Por exemplo, o<br />
modo pelo qual a Igreja<br />
trata o pecado e o pecador.<br />
Entra numa igreja<br />
um caixão, com um cadáver,<br />
carregado pela família<br />
do morto. Todo mundo,<br />
com respeito, comenta:<br />
“Coitado, era tão bom,<br />
antes de morrer abençoou<br />
os filhos, recebeu os Sacramentos,<br />
despediu-se da esposa.”<br />
De repente o coro<br />
canta: Requiem aeternam<br />
dona ei, Domine, et lux perpetua<br />
luceat ei. É a dúvida<br />
Pintura medieval representando<br />
uma Missa de Requiem.<br />
da Igreja: ele deve ter, pelo<br />
menos, pecados veniais para pagar, e o normal é que<br />
passe por um Purgatório bem ardente. “Meu Deus, dai-<br />
-lhe o descanso eterno, e que a luz perpétua brilhe para<br />
ele.” E depois o coro entoa: Requiescat in pace, e embaixo<br />
todos respondem: Amen. É o modo pelo qual a Igreja<br />
convida à humildade e ao reconhecimento da realidade<br />
do pecado no homem, que ela está honrando dessa forma.<br />
Nota-se aí um equilíbrio fantástico.<br />
Na Idade Média, a moda consistia<br />
em imitar os mais perfeitos<br />
Dir-se-ia serem coisinhas dentro da vida da Igreja;<br />
mas essas “coisinhas” são sóis, e indicam que a Esposa de<br />
Cristo nos convida continuamente a uma impostação de<br />
alma ávida de admirar tudo, quer na ordem natural, quer<br />
na ordem sobrenatural.<br />
Qualquer indivíduo que passa pela rua e possui a glória<br />
de ser batizado deve ser ávido de admiração. O homem<br />
de espírito católico tem esta tendência a procurar<br />
em tudo coisas admiráveis e não é invejoso. Encontrando<br />
alguém admirável, ele se alegra e dá graças a Deus; elogia,<br />
aplaude aquele alguém e procura torná-lo conhecido.<br />
Ele não é igualitário, não procura colocar-se no nível<br />
dos outros, mas deseja que quem é superior a ele receba<br />
mais, e seja mais glorificado.<br />
Essa era a tendência de espírito existente durante a<br />
Idade Média.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 8/2/1977)<br />
34
Nas menores coisas da<br />
Igreja Católica encontramos<br />
verdadeiras maravilhas. Por<br />
exemplo, o meio inventado<br />
por Ela para chamar os fiéis<br />
à oração: o sino colocado no<br />
alto de uma torre. Tão prático,<br />
mas quanta maravilha!<br />
Torre da Catedral de Sevilha (Espanha);<br />
abaixo, campanário da Igreja de<br />
São Domingos (Arezzo, Itália).<br />
35
A Virgem e o Menino -<br />
Londres, Inglaterra.<br />
G. Kralj<br />
Oração da alma reta<br />
Minha Mãe, se é verdade que, infelizmente, permaneço com este defeito,<br />
consegui, pelo menos, vê-lo e detestá-lo por inteiro! Eu me inclino diante<br />
de Vós e Vos peço perdão porque pequei e andei mal. Dai-me vossa<br />
misericórdia e vossa ajuda!<br />
Estou certo de que virá o dia no qual Vós tereis pena de mim e me atendereis!<br />
Então, depois de tanto me humilhar, bater no peito e detestar minha maldade,<br />
acabará nascendo em mim uma luz, uma força, uma capacidade de me modificar,<br />
por onde me sentirei outro; e, de repente, estarei felizmente resgatado, livre do<br />
defeito que eu tinha.<br />
(Extraído de conferência de 18/11/1978)