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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>208</strong> Julho de 2015<br />
Amor à hierarquia
Brado de guerra<br />
Retábulo maior da Igreja<br />
de São Tiago Apóstolo<br />
Valladolid, Espanha<br />
Luis Fernández García (CC 3.0)<br />
S<br />
ão Tiago foi o Santo que exerceu grande atração na Idade Média, e o seu nome foi usado<br />
como brado de guerra pelos heróis da Reconquista espanhola.<br />
Para uma alma combativa, nada mais bonito do que imaginar que, quando ela já não fizer<br />
parte do número dos vivos, sua memória ficará, não como um sinal de conciliação, mas como<br />
um brado de guerra! E que os bravos, no momento de arriscarem tudo, até a própria vida, pela<br />
causa católica, terão nos lábios esse nome como um símbolo de luta e de vitória, a ponto de ser este<br />
o último nome que muitos deles pronunciarão, cheios de entusiasmo, antes de se apresentarem à<br />
glória de Deus e ao sorriso de Maria. Para muitos, este nome foi o de “Santiago!”<br />
2<br />
(Extraído de conferência de 25/7/1967)
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>208</strong> Julho de 2015<br />
Ano XVIII - Nº <strong>208</strong> Julho de 2015<br />
Amor à hierarquia<br />
Na capa, Basílica<br />
Notre-Dame de<br />
Montreal, Quebec,<br />
Canadá<br />
Foto: Gustavo Kralj<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Tel: (11) 4222-2680<br />
Editorial<br />
4 Harmonia na desigualdade<br />
Dona Lucilia<br />
6 Mentalidade anti-igualitária<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
10 Arquetipização,<br />
amor à cruz e seriedade<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
16 Coleção de sociedades<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
20 Grandeza, transcendência<br />
e sacralidade<br />
Calendário dos Santos<br />
26 Santos de Julho<br />
Hagiografia<br />
28 Contrassenso: uma prova de amor<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 130,00<br />
Colaborador .......... R$ 180,00<br />
Propulsor ............. R$ 415,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Roma sparita<br />
Última página<br />
36 O celeste rosto de Maria<br />
3
Editorial<br />
Harmonia na<br />
desigualdade<br />
Ogrande e talvez mais duradouro mito que atravessa os séculos e atinge todas as esferas da sociedade<br />
poderia ser resumido em uma palavra: igualitarismo. Não é difícil constatar isto, sobretudo<br />
se considerarmos que este foi o principal argumento usado pela serpente para tentar nossos<br />
primeiros pais no Paraíso. O convite “sereis como deuses” 1 parece ainda sussurrar no interior dos corações<br />
e, hélas! poucas são as almas vigilantes e prontas a rejeitá-lo.<br />
Não devemos nos esquecer de que, antes do pecado, Adão e Eva possuíam a graça santificante pela<br />
qual participavam da natureza divina. O demônio, invejando-lhes a santidade que, se bem correspondida,<br />
redundaria numa magnífica glória, os iludiu a respeito dos planos de Deus. Aquilo que Satanás prometeu<br />
foi precisamente o que lhes arrancou. E só com o sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Segunda<br />
Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, se reataram os laços de amizade entre os homens e Deus.<br />
Entretanto, mesmo após a Redenção, a humanidade continuou inclinada ao mal. E este muitas vezes<br />
se apresenta como na primitiva tentação: não só o homem quer ser igual a Deus, mas também nivelar toda<br />
a Criação num único patamar.<br />
Tal tendência, arraigada no orgulho, tem sido amplamente explorada e exacerbada ao longo do secular<br />
processo de decadência da Cristandade, isto é, a Revolução, cujo cunho igualitário <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> denunciou<br />
em seu ensaio Revolução e Contra-Revolução 2 no qual o Autor afirma que a igualdade absoluta<br />
e a liberdade completa, concebidas como valores metafísicos, exprimem bem o espírito revolucionário 3 .<br />
Mas por que a igualdade absoluta entre os seres é um mal?<br />
Durante uma série de conferências realizadas em 1957 — portanto, dois anos antes da publicação da<br />
obra acima citada — <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> explicava:<br />
O universo consegue exatamente suas melhores expressões de semelhança com Deus pela desigualdade.<br />
Assim, odiar a desigualdade é odiar aquilo que há de mais semelhante a Deus na Criação.<br />
Ora, odiar a semelhança com o Criador é odiar o próprio Criador. Portanto, almejar a igualdade como<br />
valor supremo é querer o contrário de Deus.<br />
As diversidades dos seres não existem em consequência do pecado original, como uma punição,<br />
nem como uma espécie de desfiguração introduzida no universo pelo mal e pelo pecado. Ao contrário,<br />
a desigualdade existe como uma qualidade excelente, precisamente como um requinte de perfeição<br />
deste universo.<br />
É pela desigualdade que Deus se manifesta melhor aos homens. Por isso a desigualdade representa<br />
um bem, em si mesma. Assim, chegamos à conclusão de que procurar suprimir a desigualdade no<br />
universo é querer destruir o que ele tem de mais alto, de mais excelente, de mais deiforme — eu me<br />
4
atrevo a dizer —, em que o aspecto de Deus melhor se<br />
reflete.<br />
Assim como uma única criatura não poderia<br />
representar e glorificar suficientemente<br />
a Deus, também uma imensa<br />
quantidade de seres iguais não poderia<br />
refletir adequadamente as<br />
infinitas perfeições d’Ele. Logo,<br />
sendo os seres numerosos e distintos,<br />
devem estar dispostos e se<br />
relacionar dentro de uma hierarquia.<br />
Daí decorre, como corolário,<br />
que a verdadeira e duradoura<br />
harmonia entre os homens só<br />
será alcançada quando houver<br />
admiração e alegria pelas desigualdades<br />
postas por Deus no<br />
universo.<br />
Aplicada esta doutrina ao<br />
campo social, vemos que um povo<br />
que engendrasse um grande número<br />
de classes sociais finamente matizadas<br />
na sua organização política e social, faria<br />
uma obra mais completa do que engendrando<br />
só uma classe social.<br />
Portanto, o conceito moderno pelo qual a desigualdade<br />
de fortuna só beneficia os ricos, a desigualdade social só beneficia os nobres, a desigualdade na<br />
Igreja entre clérigos e leigos só beneficia os clérigos, é mentiroso. É o todo da Igreja e da sociedade<br />
civil que se beneficia com isto. Também os inferiores se beneficiam com essa desigualdade.<br />
Em outras palavras, quando notamos a desigualdade num todo, não é ela em benefício dos superiores,<br />
mas de cada uma das partes desse todo. Numa organização política e social, essa desigualdade<br />
não é, portanto, um mero privilégio dos que estão acima, mas de todos aqueles que compõem a<br />
escala hierárquica.<br />
Neste número de nossa <strong>Revista</strong> 4 , <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos convida a compreender e amar, como ele, a harmonia<br />
reinante na ordem hierárquica estabelecida por Deus no universo e, a partir dela, galgando os patamares<br />
da sublimidade e da sacralidade, chegar ao Criador.<br />
1) Gn 3, 5.<br />
2) Parte I, c. VII, 3 - A.<br />
3) Cf. Op. cit., Parte I, c. VII, 3.<br />
4) Ver principalmente: “Coleção de sociedades”, p. 16-19 e<br />
“Grandeza, transcendência e sacralidade”, p. 20-25.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Mentalidade anti-igualitária<br />
Dona Lucilia tinha grande respeito pelas pessoas superiores a ela.<br />
E também muita consideração pelos inferiores, respeitando neles<br />
a sua própria natureza, e reverenciando, desta maneira, o Verbo de<br />
Deus que Se fez carne e habitou entre nós.<br />
Quando contemplamos o Quadrinho 1 , vemos que<br />
Dona Lucilia estava no fim de sua vida. Ela não<br />
sabia disso, mas alguns meses depois ela morreria,<br />
estando por completar 92 anos de idade. É uma belíssima<br />
idade!<br />
Alegria em ajudar um mendigo<br />
No Quadrinho a lucidez dela aparece inteiramente,<br />
e encontramos algo naquela atitude, naquele olhar, naquele<br />
modo de analisar as coisas, por onde se aparecesse<br />
diante dela um mendigo, o mais pobre, o mais carente<br />
de educação e de categoria, ela jamais faria a seguinte<br />
reflexão: “Como esse sujeito é nada, como eu sou mais<br />
do que ele! Não era próprio que ele estivesse na minha<br />
presença.”<br />
É evidente que a alma dela voava para esta outra posição:<br />
“Coitado, ele é uma criatura humana como eu, é batizado,<br />
foi resgatado pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, e Nossa Senhora o tem como filho. Olhe como<br />
ele está precisando de um auxílio! Tenho pena dele e<br />
vou ajudá-lo!”<br />
Não seria uma postura igualitária, como quem dissesse:<br />
“Esse mendigo é igual a mim, vem cá, dá-me um<br />
aperto de mão!” Não. Ele é um mendigo, mas uma criatura<br />
humana e um filho de Deus; e enquanto tal, por certo<br />
aspecto, é igual a mim. Então, embora ele permaneça<br />
na sua posição de mendigo, vou prestar-lhe todo o auxílio<br />
que eu puder. Se me for possível dar-lhe dinheiro,<br />
emprego, instalação para ele se lavar e se arranjar, roupa,<br />
de maneira que ele saia daqui outro, farei isso na hora,<br />
e com muita alegria. Embora essa roupa não fosse a<br />
de um ministro e sim de um homem do povo, mas digna<br />
e distinta, própria de uma pessoa de condição modesta;<br />
mas esta eu daria para ele.<br />
Isso seria para Dona Lucilia um regalo. Porém, prazer<br />
maior seria se ela pudesse dar o mesmo para toda a família<br />
do mendigo. E naquela noite o mendigo e sua família<br />
jantariam vestidos, cobertos, à vontade, com o dia seguinte<br />
garantido, com trabalho para todos. Seria uma satisfação,<br />
e mamãe contaria isso para todo mundo, não para<br />
mostrar que ela fez, mas para manifestar a alegria que ela<br />
e os beneficiados tiveram, o que eles disseram, etc.<br />
Dir-se-ia que na primeira atitude hipotética — que<br />
Dona Lucilia não tomaria — ela demonstraria muito respeito<br />
a si porque estaria olhando para o mendigo com superioridade.<br />
Mas este seria um respeito superficial porque,<br />
substancialmente, ela é uma criatura humana e todo<br />
o resto são acidentes. O mendigo é uma criatura humana<br />
também e, embora os acidentes sejam desiguais, a natureza<br />
é a mesma. Assim sendo, ela não se respeita desprezando<br />
sua própria natureza.<br />
A este propósito na Escritura há uma frase que, quando<br />
li, me agradou muito: “Não desprezes a tua própria<br />
carne…” 2<br />
”Aceite esta medalha de Nossa<br />
Senhora das Graças!”<br />
Na atitude de mamãe entrava fundamentalmente um<br />
respeito à dignidade humana e, eventualmente, à dignidade<br />
de católico do mendigo.<br />
Não há dúvida de que, se o indivíduo demonstrasse<br />
ser um ímpio, a atitude dela mudava. Se ela julgasse haver<br />
alguma perspectiva de converter o homem, ela faria<br />
de tudo para convertê-lo. Mas se visse que era um desses<br />
6
como que inconversíveis, ela o atenderia<br />
e trataria bem, na medida em que<br />
não lhe facilitasse fazer propaganda da<br />
impiedade dele. Ao se despedirem, diria<br />
a ele: “O senhor quer fazer-me um<br />
favor? Aceite também esta medalha de<br />
Nossa Senhora das Graças, e use em<br />
lembrança desta velha senhora que lhe<br />
quer bem!”<br />
Este é o modo cristão pelo qual ela,<br />
catolicamente, praticava o respeito ao<br />
inferior, respeitando nele a sua própria<br />
natureza, e reverenciando, desta<br />
maneira, o Verbo de Deus que Se fez<br />
carne e habitou entre nós.<br />
Essa forma de respeitar pode-se<br />
aplicar ainda mais facilmente à pessoa<br />
de uma mesma categoria.<br />
Mútuo respeito que deve<br />
haver entre professores<br />
Abro um parêntese para verem o<br />
mecanismo curioso, a fundamentação<br />
desse respeito.<br />
Tomem, por exemplo, professores<br />
universitários de um país onde haja<br />
universidades sérias, em que o título de<br />
professor universitário suponha necessariamente<br />
estudos profundos, difíceis,<br />
que representam — em certo sentido<br />
muito elástico da palavra — um “martírio”<br />
para a alma, embora sejam também<br />
um regalo para o espírito. Como<br />
fruto desses estudos, formam-se depois<br />
gerações inteiras de profissionais. Esses<br />
professores universitários devem,<br />
portanto, tratar-se com respeito.<br />
Professores primários devem se tratar<br />
com respeito também? Sim, mas<br />
com matizes diversos. Os professores<br />
universitários devem reverenciar-se<br />
um ao outro, mais do que os professores<br />
primários entre si.<br />
Qual é o fundamento desse respeito?<br />
É que o professor exerce certa jurisdição<br />
e certo poder sobre os alunos.<br />
Mais do que desempenhar um poder<br />
de mando, ele exerce a influência intelectual,<br />
cultural, que vale mais do que<br />
o poder de mandar, por exemplo, fechar<br />
uma janela da sala de aula.<br />
7
Dona Lucilia<br />
Contribuir para modelar a alma de alguém, dando um<br />
determinado traço à sua mentalidade, é muito alto e nobre.<br />
Principalmente quando se trata de modelar em esferas<br />
mais altas do conhecimento, do pensamento, da Ciência,<br />
das Letras, das Artes; e, sobretudo, quando orientado<br />
para Deus Nosso Senhor, porque sem Deus tudo isso<br />
é nocivo ou não vale nada.<br />
Então, porque os professores universitários modelam<br />
assim as almas, eles têm uma função intrinsecamente<br />
elevada. Nessa elevação entra também um ato de respeito<br />
para com o aluno, pois é tomando em muita consideração<br />
quanto vale um aluno que se dá valor à tarefa de<br />
modelar sua alma.<br />
Por sua vez, um aluno universitário vale intrinsecamente<br />
mais do que um aluno primário, porque aquele é<br />
como a planta em eclosão, enquanto este é ainda sementinha<br />
que se acaba de lançar ao solo. Ora, a planta desenvolvida<br />
vale mais do que a semente. Por este aspecto,<br />
vale mais ser professor universitário do que primário.<br />
Entretanto, debaixo de certo ponto de vista, o professor<br />
primário exerce mais influência sobre seus alunos do<br />
que o professor universitário.<br />
Portanto, eles devem se respeitar mais em função da<br />
elevada missão que exercem e do valor dos alunos que<br />
modelam.<br />
Por essa razão compreende-se o mútuo respeito. Se<br />
eles se tratarem com desrespeito, baixam o tom e rebaixam<br />
o aluno. Quando se apresentarem para lecionar na<br />
sala de aula, alguma coisa filtra dessa baixa consideração<br />
em que eles se têm.<br />
Relacionamento com<br />
a família imperial...<br />
Voltando ao modo de Dona<br />
Lucilia manifestar o respeito,<br />
menciono seu trato com<br />
aqueles que lhes eram superiores.<br />
Por exemplo, seu relacionamento<br />
com a família imperial do<br />
Brasil.<br />
Mamãe nos contava como<br />
a Princesa Isabel conhecera<br />
sua mãe e ela, em Paris, e como<br />
a nobre senhora convidou-<br />
-as para um lanche em sua residência,<br />
em Boulogne-sur-Seine.<br />
Narrava todos os pormenores<br />
da visita para se compreender a<br />
correspondência que a Princesa<br />
manteve com minha avó e com a<br />
família, até morrer.<br />
Vem-me à memória também este fato: Eu era menino,<br />
e Dom Pedro Henrique 3 — uns meses mais moço que eu<br />
— veio para o Brasil, pela primeira vez depois do exílio.<br />
Os costumes do tempo eram completamente diferentes<br />
dos de hoje. Dom Pedro Henrique ia embarcar de<br />
volta para a Europa com a mãe dele, uma irmã e um irmão<br />
que morreu, e nós precisávamos ir até a estação ferroviária<br />
para nos despedir, antes de partirem de trem para<br />
o porto de Santos.<br />
Como minha irmã e eu tínhamos tido muito mais contatos<br />
com eles do que as outras crianças da família, devíamos<br />
oferecer-lhes uma lembrança qualquer.<br />
Recordo-me da preocupação de mamãe em encontrar<br />
uma lembrança original, que não fosse, por exemplo, um<br />
objeto que se acha em Paris muito melhor. Então o que<br />
encontrar aqui para se oferecer como presente, e que<br />
não houvesse algo semelhante na França?<br />
Minha mãe excogitou, então, de dar para cada uma<br />
das três crianças caixas de madeira brasileira preciosa<br />
e perfumada, ornadas com certos tipos de cipós<br />
muito decorativos que, cortados, envernizados ou encerados,<br />
ficam muito bonitos. Ela indicou como deveriam<br />
ser as caixas e os ornatos, foi ao Liceu de Artes<br />
e Ofícios de São Paulo e encomendou os objetos,<br />
explicando que não podiam ser iguais: a caixa para a<br />
menina tinha de ser mais delicada; para os meninos,<br />
mais forte, etc. Com todo esmero, porque eles eram<br />
quem eram.<br />
Depois, mandou comprar numa bonbonnière francesa<br />
que havia em São Paulo o que havia de melhor<br />
Cartão postal retratando Boulogne-sur-Seine<br />
Reprodução<br />
8
Reprodução<br />
Reprodução<br />
Projeto da fachada do edifício do Liceu de Artes e Ofícios;<br />
Imperador Dom Pedro II, Imperatriz Teresa Cristina e suas filhas, Princesas Isabel e Leopoldina<br />
de bombons para colocar dentro das caixas, e ela mesma<br />
orientou a criada como embrulhar os presentes em<br />
papel de seda e amarrar com fio dourado. Em seguida,<br />
explicou à minha irmã e a mim como nos aproximar<br />
da janela do trem onde eles estavam, e com que<br />
palavras entregar-lhes os presentes. Era o respeito pelos<br />
superiores!<br />
Esse respeito ela manifestava com gosto, pois tinha<br />
alegria em respeitar. Essa cadeia de respeito ia desde um<br />
mendigo até uma princesa imperial.<br />
...e com a antiga cozinheira<br />
Dona Lucilia teve uma cozinheira negra chamada Belmira<br />
que, por razões não conhecidas por mim — eu era<br />
menino e acompanhava essas coisas sem prestar atenção<br />
—, saiu de nossa casa e tomou emprego em outra família.<br />
Certa ocasião mamãe vinha a pé da Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus e, na esquina de casa, encontrou-se<br />
com a Belmira que ia para outro lugar.<br />
Por interesse pela sua antiga cozinheira, minha mãe<br />
parou e conversou um instantinho com a Belmira. Lembro-me<br />
de uma pessoa da família fazer esta censura:<br />
— Mas como?! Parar na rua para falar com uma empregada,<br />
não tem propósito!<br />
Mamãe respondeu:<br />
— Não vejo problema algum. Eu faço mesmo, e é assim<br />
que deve ser.<br />
Era a mesma pessoa altamente respeitadora da família<br />
imperial!<br />
Senso de justiça e amor ao próximo<br />
Esse respeito supõe, antes de tudo, uma atenção séria<br />
posta nas pessoas para ver o que é cada uma, qual sua<br />
posição, o que vale e por que vale, dando-lhe o mérito<br />
adequado e aquilo que lhe é próprio. Por caridade, por<br />
bondade, conceder às vezes um pouquinho mais do que<br />
pareceria estritamente justo, mas sem perturbar a boa<br />
disposição hierárquica.<br />
De outro lado, supõe também muita objetividade para<br />
não querer colocar-se numa posição que não tem, nem<br />
imaginar ser o que não é. Isso requer um senso de justiça e<br />
um amor ao próximo, tão característicos da Religião Católica.<br />
Nela, esse amor ao próximo se exprimia pelo gosto, pelo<br />
prazer com que ela tributava esse respeito, vendo o que<br />
Deus concedeu a cada um e alegre de que tenha sido dado.<br />
Eu definiria isso como uma mentalidade anti-igualitária<br />
de ponta a ponta. Uma civilização onde todos tivessem essa<br />
mentalidade seria uma civilização de muita harmonia, de<br />
muito acordo, de muito respeito e de muito afeto. v<br />
(Extraído de conferência de 12/4/1988)<br />
1) Quadro a óleo, que muito agradou a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por<br />
um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de<br />
Dona Lucilia. Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />
2) Is 58, 7.<br />
3) Pedro Henrique de Orléans e Bragança (* 1909 - † 1981),<br />
neto da Princesa Isabel.<br />
9
Sagrado Coração de Jesus<br />
Arquetipização,<br />
amor à cruz e seriedade<br />
Desde a primeira infância,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> possuía uma tendência<br />
à arquetipização, que era<br />
alimentada pela frequência à<br />
Igreja do Sagrado Coração de<br />
Jesus. O ambiente, as imagens,<br />
o órgão lhe causavam encanto,<br />
mas ele sentia a necessidade de<br />
que ali também houvesse uma<br />
fortificação; e percebia que dentro<br />
daquela harmonia e beleza estava<br />
encravada a cruz.<br />
N<br />
a Igreja do Coração de Jesus, em São Paulo,<br />
eu sentia como um estado de espírito que ficasse<br />
pairando pelo ar, uma mentalidade difusa<br />
que parecia dizer algo através de cada um dos elementos<br />
da decoração. O que havia de mais alto, mais eminente,<br />
mais preciso, se exprimia através da imagem do Sagrado<br />
Coração de Jesus, sugerindo o modo de Ele ser.<br />
Uma bonbonnière de Sèvres<br />
Timothy Ring<br />
Tudo quanto via em mamãe era, para mim, um elemento<br />
integrante d’Ele. Primeiramente, percebi a Ele na<br />
Igreja do Coração de Jesus, da qual — por pasmoso que<br />
seja — o próprio Sagrado Coração de Jesus também é<br />
um elemento integrante.<br />
Toda a vida, desde bem pequeno, houve no meu espírito<br />
uma tendência para a arquetipização. Não no sentido<br />
de me iludir, achando algo arquetípico quando na realidade<br />
não é, mas pensando mais ou menos o seguinte:<br />
“Se isso fosse perfeito, como seria?” E julgando mais pelo<br />
que aquilo deveria ser, do que pelo que era. Eu não ti-<br />
10
nha maturidade para exprimir isto assim, mas é o que estava<br />
no meu espírito. Suponho que fosse uma graça.<br />
Dou um exemplo fora do ambiente da Igreja do Coração<br />
de Jesus.<br />
Se eu visse uma bonbonnière, o mais importante para<br />
mim não era fazer a crítica dela, mas saber como ela<br />
seria se o plano do indivíduo que a fez tivesse chegado<br />
ao auge. Em seguida “decretava” — por pobreza<br />
de expressão, por falta de clareza de espírito,<br />
por uma porção de coisas — ser aquele objeto<br />
“mais bonito”, porque morava ali um plano<br />
mais bonito do que em outro objeto.<br />
Lembro-me de que vovó tinha uma<br />
bonbonnière de Sèvres, daquele tempo<br />
em que se importavam as coisas da<br />
Europa às torrentes, a baixo preço.<br />
Não era um objeto pomposo, mas<br />
eu o achava lindo!<br />
Com a partilha dos bens, isto<br />
ficou para uma tia minha, e lamentei<br />
que a bonbonnière não tivesse<br />
ficado com mamãe. Uns<br />
30, 40 anos depois, numa das<br />
idas à casa dessa minha tia, vi a<br />
bonbonnière ao alcance de minha<br />
mão; e, não sem susto da dona da<br />
casa, peguei-a e comecei manuseá-<br />
-la. Fingi não perceber o susto de<br />
minha tia, que temia que o objeto caísse<br />
no chão. Eu tinha fama na família<br />
de ser “quebrador”. Não era uma fama injusta...<br />
Tive uma decepção ao analisá-la, e percebi que achava<br />
linda a bonbonnière que o artesão quisera fazer, não<br />
a que estava ali. Quando menino, não separava suficientemente<br />
a arquetipia da realidade, e julgava que a<br />
bonbonnière linda estava de algum modo também presente<br />
ali.<br />
O que acabo de descrever é muito menos raro do que<br />
parece. O espírito humano é correntemente propenso a<br />
isto.<br />
As mitras ”preciosas” dos bispos<br />
Historisches Museum Kanton Thurgau (CC 3.0)<br />
Conto algo característico desse processo de arquetipização,<br />
por onde mostro como ele é legítimo.<br />
O velho carnaval paulista possuía aspectos dados ao<br />
suntuoso. Aquelas moças e mocinhas tinham fantasias<br />
de princesas do Oriente e roupas de Ancien Régime. Para<br />
imitar joias, compravam pedras falsas, as quais punham<br />
nos ornatos. E todo o mundo achava bonito, interessante,<br />
sabendo ser pedra falsa. Arquetipizavam aquilo que<br />
estavam vendo.<br />
Mitra de Frauenfelder - Museu<br />
histórico de Turgóvia, Suíça<br />
O que faziam as moças e mocinhas, ninguém achava<br />
ridículo.<br />
Faziam-no também os bispos. Mitras que deveriam ser<br />
de tecidos riquíssimos — porque eram chamadas “mitra<br />
preciosa”, “mitra áurea”, como reminiscência dos tempos<br />
em que eram preciosas mesmo —, no meu tempo<br />
de jovem eram feitas com tecidos comprados na Rua<br />
Santa Ifigênia 1 , nesses especialistas de objetos de alfaiataria<br />
religiosa.<br />
Mais de uma vez, terminada a cerimônia da<br />
Páscoa, vi um bispo chegar à porta da catedral,<br />
os sinos todos tocando, o portal fazendo<br />
moldura para ele; e reluzindo na mitra<br />
todas aquelas pedras falsas que poderiam<br />
ornar as fantasias de carnaval.<br />
Ninguém achava ridículo.<br />
Era uma legítima arquetipização.<br />
Quer dizer, é um processo<br />
legítimo, sem o qual a boa ordem<br />
do pensamento humano é<br />
quase incompreensível.<br />
Comigo, esse processo se dava<br />
desde que me lembro de mim, já<br />
na pré-idade de formação da razão,<br />
dos primeiros princípios.<br />
Bons arquétipos e realidade<br />
Também com relação ao mal. Alguém<br />
diria que nasci com uma vocação maniquéia furibunda,<br />
mas não é verdade. Era o inimicitias ponam 2 , e<br />
outras categorias de espírito que ainda não conhecia, as<br />
quais estavam dentro disso. Reputo que eram graças.<br />
Por exemplo, já tive ocasião de falar do Herr Kinker,<br />
o dono de pensão medonho, que me pôs uma vez na<br />
chuva 3 . Ele se me apresentava como uma personificação<br />
do mal alemão. Mas eu o via como ele não era, porém<br />
certamente de acordo com modelos alemães que o<br />
Herr Kinker procurou imitar. E vinha logo a ideia: “Está<br />
vendo?! Há uma porção de pessoas como o Herr Kinker.<br />
Existe no fundo, algo semelhante a ele, e isto eu detesto!”<br />
Isto se dava arquicarregadamente na Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus, onde tudo era arquétipo e arquetipizado.<br />
Concebo que um artista faça uma crítica daquilo e encontre<br />
defeitos. Mas esta graça de arquetipização não<br />
gosta da análise científica e artística, porque nega a arquetipização<br />
e desvia a atenção dela.<br />
Devemos tomar cuidado com os bons arquétipos que<br />
formamos na alma, pois mesmo quando não correspon-<br />
11
Sagrado Coração de Jesus<br />
Timothy Ring<br />
dem à realidade, são mais profundos que a realidade<br />
vista.<br />
O timbre de voz de Nosso Senhor<br />
É importante notar ser esta atitude de alma uma explicação<br />
de minha pessoa aos olhos dos outros. Se quiserem<br />
entender muitas de minhas atitudes, vejam que estou<br />
agindo em função de um arquétipo.<br />
Mas este arquétipo não é como o do indivíduo que estudou<br />
na escola de Belas Artes e se põe a desenhar uma<br />
fachada excelente, porque conhece os princípios. Ou este<br />
arquétipo sai à maneira de um jorro, do fundo da alma,<br />
do senso do ser em contato com a realidade, ou não<br />
adianta nada. Essas regras são como as regras da lógica:<br />
não servem para pensar, mas para formular com clareza<br />
o pensamento. Pois, se não se descobriu a verdade antes<br />
de usar a regra da lógica, só com a regra não se vai descobrir.<br />
Na Igreja do Coração de Jesus havia algo arquetípico<br />
mais ou menos esparso pelo ar, do qual estou<br />
certo de que era uma graça. Quer dizer,<br />
admito que, a rogos de Nossa Senhora,<br />
Deus desejasse que eu fosse<br />
propenso a essa operação psicológica,<br />
mental, natural, e assim me concedesse<br />
graças nesse sentido, para eu<br />
conseguir realizar minha vocação.<br />
Por que tenho certeza de que<br />
havia na Igreja do Sagrado Coração<br />
de Jesus uma graça? Porque,<br />
sem saber que era uma graça, pensava<br />
mais ou menos o seguinte: “É<br />
curioso, mas parece que tudo nesta<br />
igreja fala à minha alma! E fala com<br />
o timbre de voz que teria Jesus se estivesse<br />
na Terra! Esse é o próprio<br />
timbre de voz d’Ele!”<br />
Não pensem que eu tinha uma<br />
visão, não se trata disso.<br />
Uma igreja bela,<br />
mas faltava-lhe algo<br />
de fortificação<br />
Graças a Nossa Senhora, também<br />
arquetipizava muito os Santos<br />
em função das imagens. De maneira<br />
que aquela coleção de imagens, ao<br />
longo das naves da Igreja do Coração<br />
de Jesus, era para mim imponentíssima,<br />
de Santos arquetipizados!<br />
Ouvindo o órgão de lá, parecia-me<br />
a voz de Deus. Sabia que não era, mas<br />
achava ser algo como a voz de Deus.<br />
No fundo da minha alma, isso me<br />
sensibilizava até onde era possível sensibilizar<br />
alguém. Depois de sentir profundamente<br />
aquilo, ficava querendo<br />
12
em, e agradecendo. Porque percebia algo de muito bom<br />
que havia em mim potencialmente, que se movia agradecido<br />
e dizia: “Eu vos esperava, aqui estou!” Acho que era<br />
a graça do Batismo, a presença de Deus.<br />
Tenho a impressão de que com todas as crianças acontece<br />
o mesmo.<br />
Notava, entretanto, uma característica do Coração de<br />
Jesus não presente naquela igreja, mas que deveria estar.<br />
Sentia-me ali como se estivesse dentro de uma linda<br />
capela medieval posta no meio do campo. Ora, na Idade<br />
Média não existiam capelas colocadas no meio do campo;<br />
precisavam ter em volta muralhas, caso contrário o<br />
inimigo as destruiria.<br />
Eu julgava, então, que a Igreja do Coração de Jesus deveria<br />
ser naturalmente fortificada. E aquela ausência de<br />
força, de bellum, da guerra, fazia-se sentir. Com isso, algo<br />
de minha alma não estava expresso, deixando-me a ideia de<br />
um complemento que faltava.<br />
Contudo, consolava-me a grade da Igreja do Coração<br />
de Jesus e aqueles dois corpos de edifício, que davam<br />
ideia de um mal a combater e uma estabilidade a afirmar<br />
contra a intempérie. Alguma coisinha falava vagamente<br />
de uma circunstância adversa a ser tomada em<br />
consideração.<br />
Gostava muito da figura do Padre<br />
Eterno, um belo mosaico existente<br />
em cima do tabernáculo, porque<br />
Ele era representado como um<br />
ancião batalhador e dominando.<br />
Dona Lucilia<br />
entendia essa<br />
atmosfera, mas<br />
não explicitava<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Isso que eu sentia,<br />
algumas pessoas difusas<br />
pela igreja também<br />
sentiam mais ou menos.<br />
Não todas, mas uns dez<br />
por cento.<br />
Dentre os outros, muitos<br />
tinham restos de religiosidade<br />
conspurcados:<br />
utilitários, consuetudinários,<br />
feitos um pouco de moda e de<br />
outros elementos meramente<br />
terrenos. No meu tempo de menino,<br />
aquela era a igreja da moda de um<br />
bairro bom de São Paulo.<br />
Porém, se deixassem de haver ali dentro as almas<br />
que sentiam aquilo que eu estava notando — das quais<br />
o exemplo mais próximo, mais querido, mais eloquente<br />
era mamãe — os outros não voltariam mais. Era uma espécie<br />
de rede, por uma ação de proche en proche 4 e de<br />
presença, mais ou menos invisível.<br />
Parecia-me também que as pessoas que frequentavam<br />
a igreja, e sentiam o que eu discernia, gostavam dessa<br />
graça, mas nunca teriam coragem de comentar, pois todo<br />
mundo cairia na gargalhada e diria ser uma demência!<br />
Portanto, não se devia falar sobre isso. E quem sentia<br />
não comentava, mesmo entre os que igualmente percebiam<br />
os imponderáveis da Igreja do Coração de Jesus.<br />
Mentalmente, formulavam algo do que sentiam, mas<br />
não iam além disso.<br />
Acho que mamãe tinha ideia de que era uma graça, o<br />
que a levava a rezar muito lá. Todos esses matizes creio<br />
que ela os tinha, até riquíssimos, mas não sabia dizer. E<br />
nunca disse.<br />
As pessoas tocadas por essa graça, em<br />
certo momento, achavam-na monótona<br />
Eu percebia também essa própria graça<br />
atrair uma boa porcentagem desses<br />
que a sentiam. Contudo, se a graça<br />
se mantivesse e eles tivessem que<br />
ficar muito tempo em contato<br />
com ela, a maior parte achava<br />
monótono. Chegavam lá,<br />
deliciavam-se, se encantavam,<br />
mas depois sentiam<br />
tédio. E com um pouco<br />
mais, um pouco menos<br />
de tempo, sumiam.<br />
Eu ficava perplexo:<br />
“Como é esse negócio?<br />
Não posso compreender:<br />
gostam tanto e fogem?<br />
Não aguentam o<br />
que admiram?” E pensava:<br />
“Dá-se o mesmo<br />
com relação a mamãe.<br />
Fazem com ela a mesmíssima<br />
coisa!”<br />
Cheguei, então, à conclusão:<br />
“Algo disso há de transparecer<br />
em mim algum dia. Terei<br />
a vida que possuem essas coisas.<br />
Vou ser muito atraente para<br />
uma minoria, mas esta vai se cansar rapidamente<br />
de mim…”<br />
13
Sagrado Coração de Jesus<br />
Tenho certeza de que, no fundo, o que aparece em<br />
mim é isso que hauri no Coração de Jesus, com esse<br />
complemento de fortificação muito acentuado. Eu não<br />
seria eu mesmo e não me definiria como devo, se não<br />
fosse isso. Qualquer reunião feita por mim tem, no fundo,<br />
isso. Naturalmente em grau muito menor do que na<br />
Igreja do Coração de Jesus.<br />
De um jeito ou de outro, todo o atrativo que eu possa<br />
apresentar para a companhia de outras pessoas, está<br />
marcado por isso. Portanto, sei que o itinerário forçoso é<br />
este: em certo momento cansa.<br />
Tenho certeza de que isso acontece com todas as pessoas<br />
que são conformes à graça, sobretudo no<br />
nosso século. Porque isso é a proa de navio<br />
contra todo o espírito moderno, é a própria<br />
definição do espírito antimoderno.<br />
Os admiradores de Jesus<br />
se cansaram d’Ele...<br />
Há uma nota em tudo quanto eu<br />
disse, sem a qual isso seria enormemente<br />
incompleto.<br />
Na Igreja do Coração de Jesus,<br />
e em todas as imagens do<br />
Sagrado Coração de Jesus da<br />
boa escola, havia uma nota de<br />
tristeza. Porque dentro de toda<br />
essa harmonia, toda essa beleza,<br />
estava encravada a cruz.<br />
Nosso Senhor Se apresentava<br />
para nosso olhar como sendo o próprio<br />
Homem-Deus, com todos os títulos<br />
para ser amado. A isto Ele acrescentou<br />
milagres e doutrinas. Quando<br />
se lê uma frase do Evangelho, às vezes<br />
se pergunta por que o mundo inteiro<br />
não para, e fica comentando aquele<br />
pensamento por toda a eternidade!<br />
Quer dizer, Ele fez o inimaginável! E<br />
vê-se ter despertado admiração. Entretanto,<br />
seus admiradores se cansaram<br />
d’Ele…<br />
Essa rejeição certamente causava<br />
uma dor profunda na humanidade<br />
santíssima d’Ele, precisamente por ser<br />
imerecida.<br />
Um espírito superficial diria a Nosso<br />
Senhor: “Não Vos importeis. Vós nadais<br />
dentro de vossa própria perfeição.<br />
Por que precisais desses ‘pés-rapados’<br />
que procurais?”<br />
pdpics (CC 3.0)<br />
Seria um cálculo mal feito, evidentemente.<br />
Portanto, a vida de Nosso Senhor era tristíssima. E há<br />
no fundo do olhar e do Coração d’Ele uma tristeza habitualmente<br />
morando. É o por onde aparece o melhor d’Ele.<br />
Aceitar uma vida assim é aceitar de morar dentro de uma<br />
tristeza. Ao mesmo tempo nós sermos a casa da tristeza e a<br />
tristeza ser a casa de nossa alma; morarmos nós nela e ela<br />
em nós. E aceitar isso como “normal”, quer dizer, corriqueiro,<br />
inevitável, constante, até o fim.<br />
Devemos procurar eliminar a<br />
alegria diante da simples ideia de<br />
que depois tem o Céu. Porque isto<br />
é um modo happy-end 5 de<br />
tomar as coisas, que não<br />
está na via de Nosso Senhor.<br />
Realmente, depois há o<br />
Céu, mas existe a cruz que<br />
desfecha na morte, intermediária<br />
entre o homem nesta Terra e<br />
o Céu.<br />
Este amplexo com a tristeza confere<br />
renúncia, abnegação, bondade,<br />
perseverança, constância a todas as<br />
nossas disposições de alma.<br />
Não sei se torno claro quanto<br />
isso é essencial e como não seria<br />
cristão se não fosse assim.<br />
Disso, sobretudo, muitas pessoas<br />
têm horror. Percebem e fogem!<br />
Ficam horrorizados.<br />
A recusa da cruz<br />
traz o apagamento da luz<br />
A cruz é como a sabedoria: a<br />
sabedoria da cruz vai desde a manhã<br />
sentar-se à porta da casa de<br />
cada um, esperando como uma<br />
mendiga que lhe queira abrir.<br />
Ela faz isto com todas as pessoas,<br />
de todos os jeitos, de todos os<br />
modos, conservando a dignidade<br />
como — guardadas as proporções<br />
— em grau divino a conservou Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo.<br />
Portanto, não é uma baixeza indigna,<br />
mas uma atitude em outra clave.<br />
E isto não é aceito.<br />
O flash 6 faz uma operação curiosa:<br />
cobre isso de alegria, de maneira<br />
que inicialmente a pessoa não percebe<br />
14
a cruz. Em certo momento,<br />
suspeita estar ela aparecendo.<br />
E um dos pontos do entibiamento<br />
e do tédio sucede<br />
quando o indivíduo, confusamente,<br />
no meio do perfume<br />
das flores, começa a sentir o<br />
cheiro da cruz e a rejeita.<br />
Se fosse pelo menos a cruz<br />
dramática: a pessoa se deita e<br />
faz-se crucificar! Mas não. É<br />
a cruz de todos os dias, com<br />
sua banalidade, sua monotonia,<br />
sua luta contra tal tentação<br />
concreta, que a pessoa<br />
não quer aceitar, mas<br />
não quer vencer; tal xodó, tal<br />
birra, tal coisa que não quer<br />
perdoar, sobretudo.<br />
O indivíduo quer colocar<br />
no centro de sua vida uma<br />
fonte de alegria. Quando quer<br />
isso desista, porque fracassou!<br />
Quando a pessoa recusa a<br />
cruz, apaga-se a luz. Ela pode achar a Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus a mais bonita possível, mas fica átona.<br />
A alegria desaparece, começa a julgar tudo tedioso. Continua<br />
a achar bonita a igreja, mas de um bonito tão apagado<br />
que as coisas mais admiráveis que lá existem não<br />
despertam comentário.<br />
A biografia de Huysmans 7 que li foi para mim uma revelação<br />
e uma delícia para a alma, porque, quando ele se<br />
converteu, passou a ver muitíssimas dessas coisas de novo.<br />
Quando vem a conversão, a pessoa começa a perceber<br />
que a Liturgia é linda e a reperceber as belezas da Igreja.<br />
Enquanto mero artista, o Huysmans percebia, não tem<br />
dúvida; mas isto não tem vida.<br />
Os convites da graça, as recusas<br />
e a seriedade diante da vida<br />
Suponho que a graça produza esse processo no espírito<br />
de todos, mas a maioria vai, desde logo “apostatando”<br />
e tendo, já no começo, um tal desamor, que não conservaram<br />
nem remorsos, nem recordação. De onde uma<br />
obliteração profunda, dentro da qual algo ficou. A cathédrale<br />
engloutie 8 é isto. Algo ainda fala à alma, mas as pessoas<br />
vivem de soterrar essa graça.<br />
Ao longo da vida, todos os dias, as pessoas recebem<br />
vários convites nesse sentido, mas já vão correndo ao primeiro<br />
bueiro, para ver onde podem jogar fora o convite.<br />
Esta é a realidade.<br />
Reprodução<br />
Joris-Karl Huysmans<br />
Mas Nossa Senhora é tão<br />
boa que um pavio sempre fica,<br />
e essa luz pode reacender.<br />
Isto é propriamente o Reino<br />
de Deus e sua justiça que<br />
devemos procurar. Os Apóstolos<br />
o que quiseram foi isto.<br />
Isto borbulha no Tratado<br />
da Verdadeira Devoção à Santíssima<br />
Virgem, sobretudo na<br />
“Oração Abrasada”, que é<br />
um geyser disto! Quando se<br />
ouve falar de Carlos Magno,<br />
das Cruzadas, isto borbulha!<br />
Ficaram, assim, umas fontes<br />
no deserto lançando água<br />
para uns homens que, de longe,<br />
ainda olham para elas e<br />
dizem: “Como são bonitas…<br />
Agora me deixe comer tâmaras…”<br />
Voltam as costas para<br />
a fontes e começam a comer<br />
tâmaras.<br />
Ou, o que é pior: “Deixe-<br />
-me afundar no pecado!” Porque quem recusa esta graça<br />
perde as condições para conservar uma castidade perfeita.<br />
Estas considerações produzem certa melancolia, mas<br />
que não vão sem alguma alegria.<br />
Tudo isso junto, como se chama? Seriedade.<br />
Encerramos uma conversa séria. Como é melhor ser<br />
sério do que torcer!<br />
Meus caros, que Nossa Senhora os ajude!<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 5/10/1985)<br />
1) Localizada na região central da cidade de São Paulo.<br />
2) Do latim: porei inimizades (Gn 3, 15).<br />
3) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 9, p. 4-5.<br />
4) Do francês: de próximo em próximo, gradativamente.<br />
5) Do inglês: final feliz. Alusão à mentalidade difundida pelos<br />
filmes de Hollywood.<br />
6) Graça atual de caráter místico que confere um particular<br />
discernimento do sobrenatural. Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 55,<br />
p. 16-20.<br />
7) Joris-Karl Huysmans, escritor e crítico de arte francês<br />
(* 1848 - † 1907).<br />
8) Do francês: catedral submersa. Referência a uma lenda bretã<br />
segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar<br />
faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à<br />
tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade<br />
onde ele fora erigido.<br />
15
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Coleção de sociedades<br />
Fazendo novas explicitações a respeito dos<br />
aspectos naturais e sobrenaturais dos grupos<br />
humanos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> levanta importantes questões<br />
que orientam o estudo da sociedade orgânica.<br />
Se numa sociedade humana as almas corresponderem<br />
realmente à graça e a forte maioria viver<br />
em estado de graça, no terreno espiritual elas serão<br />
levadas pelo impulso rumo ao sublime; em cada sociedade<br />
orgânica a virtude, que é instilada nas almas<br />
pela graça, cria uma movimentação peculiar que é o<br />
desígnio da graça.<br />
Intervenção da graça sobre<br />
circunstâncias naturais<br />
Entretanto, esse desígnio toma em consideração os fatores<br />
naturais. Assim, a sociedade orgânica resulta da intervenção<br />
da graça sobre circunstâncias naturais, como<br />
uma música executada em um piano é consequência do<br />
Benh (CC 3.0)<br />
Les Baux-de-Provence,<br />
França
Manoillon (CC 3.0)<br />
Aldeia de Lindenhüegel,<br />
Alemanha<br />
toque dos dedos sobre o teclado. O dedo é a psicologia<br />
do espírito da região, da raça ali existente; o teclado é o<br />
quadro geográfico com as circunstâncias a ele inerentes.<br />
Com esses elementos a graça executa a sua “partitura”,<br />
que sempre varia. Não há um ponto predeterminado como<br />
sendo o principal para todas as sociedades, mas é um<br />
ponto que a graça, vista em função de determinada circunstância,<br />
toca.<br />
Fico na dúvida — e de momento não tenho elementos<br />
para responder — se para fazer um tratado sobre a sociedade<br />
orgânica seria preciso que tivéssemos<br />
o elenco de todas essas circunstâncias. Isso<br />
parece quase impossível. Haveria algum<br />
tratado de Psicologia ou de vida<br />
espiritual que apresentasse todos os<br />
movimentos possíveis da natureza<br />
humana, considerados em abstrato,<br />
para que, a partir disso, se pudesse<br />
fazer um elenco?<br />
Talvez uma pesquisa pudesse<br />
fornecer isso, mas não disponho de<br />
tempo para fazê-la. Fica, contudo, levantado<br />
o problema, e podemos nos<br />
perguntar se haveria um princípio, um ponto<br />
monárquico em função do qual se organiza<br />
uma sociedade.<br />
A ideia de coleção e a capacidade<br />
de refletir as perfeições divinas<br />
É certo que cada sociedade, como cada pessoa, é feita<br />
para ser um reflexo do Criador e que, portanto, consti-<br />
tuindo as várias sociedades que existem, existiram e existirão,<br />
Deus faz uma coleção de sociedades, as quais, vistas<br />
no dia do Juízo Final, enquanto sociedades, refletirão<br />
um aspecto global d’Ele. Parece-me uma coisa certa.<br />
Isso que se dá com grupos humanos — povos, tribos,<br />
famílias — acontece também com outras criaturas. Por<br />
exemplo, tenho a impressão de que nos reinos animal,<br />
vegetal e mineral Deus fez coleções assim. E que depois<br />
do dia do Juízo, quando nos for dado conhecer bem toda<br />
a natureza, teremos um conhecimento, por exemplo,<br />
de todos os colibris que houve, há e haverá, em seu conjunto,<br />
de maneira que compreendamos como a coleção<br />
de colibris criados deu glória a Ele.<br />
C T Johansson (CC 3.0) / Joseph C. Boon (CC 3.0)<br />
17
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Essa ideia, eu não garanto que seja certa, mas pelo<br />
menos me agrada muito. Então, também apraz muito a<br />
ideia de uma coleção de homens feita desde Adão até os<br />
que viverão no fim do mundo, e que forma uma coleção<br />
como seria uma de pérolas ou de brilhantes. Então, chegamos<br />
mais uma vez ao infinito, porque há tantas coleções<br />
que, por sua vez, nos conduzem à noção de uma coleção<br />
de coleções, que nos perdemos diante da infinitude<br />
de Deus.<br />
Essa ideia de coleção é um dado que devemos introduzir<br />
nessa temática da sociedade orgânica.<br />
Hegemonia de espírito<br />
Reprodução<br />
Colonização espanhola no México<br />
Biblioteca do Congresso, Washington, EUA<br />
Reprodução<br />
Fórum romano após uma audiência<br />
(Coleção particular)<br />
Agora, voltando ao tema do regionalismo 1 , notamos<br />
que ele se diferencia das sociedades amorfas. A massa,<br />
por exemplo, em contraposição ao povo, é uma sociedade<br />
amorfa.<br />
A região constitui-se de partes com seu morfismo próprio,<br />
dentro de um todo que, com isso, adquire ele mesmo<br />
um morfismo peculiar.<br />
Ora, este morfismo tende a se irradiar. Essa irradiação<br />
universal é ou não legítima?<br />
Por exemplo, a irradiação que a Espanha teve no século<br />
XVI não é o oposto do regionalismo? Uma irradiação<br />
não é um fenômeno de colonialismo cultural? Até<br />
que ponto é legítimo uma região, um país ou uma cultura<br />
procurar extravasar além de seus limites?<br />
Em outros termos: pode-se conceber uma região que<br />
tenha o desejo de que a sua língua e os seus costumes<br />
regionais conquistem, pelo próprio esplendor, o restante<br />
do país? Será que, por seu prestígio cultural e sua irradiação,<br />
um país tem o direito de exercer uma hegemonia<br />
de espírito sobre todo o mundo, como a França, por<br />
exemplo?<br />
Por vezes, o imperialismo cultural pode ser muito<br />
mais inebriante do que o imperialismo militar, econômico<br />
ou outro qualquer.<br />
Um exemplo: a língua grega e a latina<br />
Tomemos como exemplo a Grécia e Roma.<br />
Atenas, Esparta, cujos nomes assumem uma sonoridade<br />
fabulosa para certos espíritos, eram cidades<br />
secundárias do Império Romano, ao mesmo tempo<br />
em que a Grécia era colônia de Roma. Ora, foi-<br />
-se tornando hábito de toda pessoa fina falar grego.<br />
Pela exalação, à maneira da que poderia ter<br />
uma flor esmagada por uma pata de elefante e<br />
que, colada no chão, deitasse seus melhores perfumes,<br />
a Grécia moribunda encheu com seus aromas<br />
o Império Romano.<br />
A meu ver, essa irradiação é legítima sempre<br />
que não viesse matar a outra cultura.<br />
Se os gregos quisessem a morte da língua latina<br />
para que o grego prevalecesse, seria uma coisa<br />
18
errada. Mas que eles gostassem que o grego prevalecesse<br />
sobre o latim era algo acertado. Porque o grego<br />
tem uma superioridade sobre o latim, reconhecida<br />
hoje pelos linguistas.<br />
Para utilizar-me de uma metáfora que me ajude<br />
a dizer, de um modo rápido e simples, o que levaria<br />
muito tempo para explicar: toda ave superior tem o<br />
direito de abrir suas asas por cima dos pássaros que<br />
voam num nível abaixo.<br />
Portanto, essa espécie de preeminência alada que<br />
faz com que, por exemplo, algumas folhas da palmeira<br />
estejam acima das outras porque nasceram mais<br />
altas no tronco, isto é o natural.<br />
Existe um direito da cultura superior à expansão<br />
alada, e uma obrigação para a cultura que se deixou<br />
pôr à sombra da outra, de aceitar e de se colocar em<br />
todas as posições necessárias. O que é explicável pelo<br />
desejo de que tudo quanto é mais belo sobressaia<br />
para a maior glória de Deus. Contudo, sem querer liquidar<br />
ou eliminar uma coisa que é menos bela, mas<br />
tem sua razão de ser à luz do dia.<br />
Certas realidades de ordem natural não<br />
se realizam sem o concurso da graça<br />
Isso supõe uma forma de humildade, que é a humildade<br />
dos intermediários. Não é a humildade do<br />
pequeno que diz: “Eu sou o último dos homens...”<br />
Nem é a do grande que afirma: “Bem, eu diante de<br />
Deus não sou nada.” Mas a humildade intermediária,<br />
que, com tranquilidade — não com resignação,<br />
mas sim com bem-estar sadio —, diz o seguinte: “Eu<br />
toco com a ponta dos dedos em tal outra parte do firmamento,<br />
de maneira que sou o elo de uma corrente.<br />
Por mim passa a ordem do universo.”<br />
Isso só se alcança com o auxílio da graça, porque do<br />
contrário entram os patriotismos mal concebidos, misérias<br />
de todo tamanho! Há certas coisas que são verdades<br />
de ordem natural, até científica, mas que não se realizam<br />
sem o concurso da graça. Mais ainda, pesa tanto a natureza<br />
sem a graça, que o homem não guarda essa verdade<br />
durante muito tempo e acaba negando-a.<br />
Uma verdade que eu quis realçar no livro “A chave de<br />
prata” 2 é exatamente esta: a ordem temporal, embora seja<br />
intrinsecamente natural, não se realiza sem o auxílio<br />
da graça.<br />
Relacionada com esta, encontra-se outra verdade: as<br />
nações e, portanto, as sociedades cometem pecados distintos<br />
dos pecados individuais, e têm que pagar nesta<br />
Terra os pecados que praticaram, porque as nações não<br />
vão para o Céu nem para o Inferno. Os homens, como<br />
receberão um prêmio ou um castigo eterno, podem não<br />
O Juízo Final<br />
Igreja de São Luís, Munique, Alemanha<br />
auferir a justiça de Deus nesta vida, mas as nações recebem<br />
a justiça divina nesta Terra.<br />
A partir disso, poder-se-ia fazer aprofundamentos e<br />
aplicações à sociedade temporal da doutrina sobre a Comunhão<br />
dos Santos, porque esta comunhão é, ela mesma,<br />
uma sociedade.<br />
Se houvesse numa faculdade contemporânea professores<br />
capazes de desenvolver esse tema em matérias diversas,<br />
para um público de alunos entre os quais houvesse<br />
desde católicos praticantes até ateus, creio que haveria<br />
uma enorme possibilidade de atrair e até de converter,<br />
contanto que se apresentasse a questão como ela é. v<br />
(Extraído de conferência de 13/11/1991)<br />
1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 200, p. 22-27; n. 201, p. 22-25.<br />
2) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 18, p. 18-21.<br />
Reprodução<br />
19
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Grandeza, transcendência<br />
e sacralidade<br />
Baseando-se na desigualdade e hierarquia dos seres,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discorre sobre as relações existentes entre<br />
os diversos graus desta escala hierárquica.<br />
Apalavra “transcendental” é um termo técnico<br />
utilizado na Escolástica, muito bom e já conhecido<br />
do vocabulário corrente. Mas para mim o<br />
som da palavra diz algo do sentido dela. É um dos tais<br />
vocábulos que contêm a música do conceito que encerram,<br />
de maneira tal que dizer, por exemplo: “Essa é uma<br />
razão transcendental” ou “um assunto transcendental”,<br />
são coisas muito bonitas e um pouco musicais que não se<br />
pode afirmar de qualquer coisa sem cair no ridículo.<br />
Transcendental na linguagem comum...<br />
Qual é a relação que há entre a musicalidade da palavra<br />
e o sentido filosófico?<br />
Tanto quanto eu tenho entendido do sentido filosófico,<br />
o transcendental possui, à primeira vista, um sentido<br />
diferente do que o termo indica na linguagem comum.<br />
Nesta, o transcendental é algo de uma superioridade fora<br />
de uso, de uma natureza, uma clave, um grau que não<br />
tem relação com as superioridades comuns.<br />
Por exemplo, eu não poderia dizer que determinado<br />
jogador tinha um talento transcendental para o futebol.<br />
Por mais que ele se tenha coberto das glórias futebolísticas,<br />
a palavra transcendental não se aplica a elas.<br />
Mas eu poderia dizer de um pintor que ele tem um talento<br />
transcendental, ou de uma pintura que é, ela mesma,<br />
de um valor transcendental, caso o artista pintasse<br />
um quadro do qual eu quisesse afirmar: “Não é uma obra<br />
comum dos pintores muito bons, mas eleva-se a uma categoria<br />
que os pintores comuns muito bons não atingem.<br />
É um quadro de museu, e de grande museu.”<br />
...e no sentido filosófico<br />
Reprodução<br />
Um porto ao pôr-do-sol (por Claude Lorrain)<br />
Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia<br />
No sentido filosófico da palavra, “transcendental”<br />
é uma afirmação de alteridade. No sentido corrente,<br />
entretanto, é uma afirmação de um tipo de superioridade,<br />
sem querer dizer propriamente sacral. O gênero<br />
é a transcendentalidade; a sacralidade é uma espécie<br />
tão requintada, que transcende a própria transcendentalidade.<br />
No conceito tomista de alteridade está envolvido o seguinte:<br />
Não é possível existir alteridade entre duas coisas<br />
a não ser havendo uma desigualdade. A alteridade<br />
se marca por uma diferença que, necessariamente, gera<br />
uma hierarquia.<br />
Portanto, é por meio da transcendentalidade que uma<br />
coisa, ao mesmo tempo, se liga e se diferencia de outra.<br />
Liga-se porque, se tal coisa transcende outra, elas são<br />
susceptíveis de uma comparação. E se são susceptíveis<br />
20
de uma comparação, fazem parte de um todo. “Tal coisa<br />
transcende à outra”, quer dizer, também, que ela se distingue<br />
da outra por uma desigualdade. Porque do contrário<br />
não transcenderia.<br />
Sempre que há alteridade existe uma desigualdade.<br />
Entretanto, esta é necessariamente hierárquica?<br />
São Tomás deixa claro que sempre que uma coisa é diferente<br />
da outra, em algo ora uma é mais, ora menos que<br />
a outra. É um jogo muito bonito de superioridades e de<br />
inferioridades cruzadas. Nisso São Tomás é muito positivo<br />
e, examinando bem, é claro: desigualdade corresponde<br />
necessariamente a hierarquia.<br />
Transcendentalidade<br />
Como o transcendental é uma desigualdade de uma<br />
espécie muito mais marcada do que o comum das desigualdades,<br />
na linguagem corrente talvez se pudesse definir<br />
assim: É uma desigualdade pela qual um ser da mesma<br />
espécie que outro se afirma tão superior, que chega a<br />
participar do gênero que está acima.<br />
Então, a transcendentalidade afirmaria a alteridade<br />
na sua forma mais enérgica, na sua forma por excelência.<br />
É uma coisa muito característica da linguagem comum<br />
tomar algo que é “por excelência”, e aplicar a ele<br />
a palavra que convém ao todo. Por exemplo, eu compreenderia<br />
— não tenho nenhuma prova de que isso tenha<br />
sido assim — que na Alemanha de durante e depois<br />
da Primeira Guerra Mundial, quando se falasse<br />
de Hindenburg, se dissesse: “o Marechal”, porque era<br />
o marechal por excelência; o Ludendorff era marechal<br />
e provavelmente existiam outros. Havia também outros<br />
marechais: Foch, Joffre, na França; Haig, na Inglaterra.<br />
Mas o marechal por excelência se chamava simplesmente<br />
“o Marechal”.<br />
São Tomás quando fala de um ou outro grande pensador,<br />
diz: “disse o sábio”. A Aristóteles, ele sempre chamava<br />
“o Filósofo”. Goteja da afirmação de que houve<br />
muitos outros filósofos, mas “o Filósofo” era um.<br />
Então, certa forma de alteridade constitui o que nós chamamos<br />
na linguagem comum transcendentalidade, que é o<br />
tipo mais marcado da transcendentalidade por excelência.<br />
É muito bonito e, ao menos na minha mente, desemaranhar<br />
este assunto esclarece muito as ideias.<br />
Eu passei talvez uns 40 anos comendo, bebendo e dormindo<br />
ao lado dessa charada. Mas quando consegui, com<br />
o favor de Nossa Senhora, dar o último polimento e pus<br />
tudo em ordem, fiquei alegre.<br />
Vamos agora instalar nesse conjunto, com cuidado, o<br />
conceito de sacralidade.<br />
Troar os canhões e repicar os sinos<br />
Sacralidade é uma transcendentalidade que indica uma<br />
superioridade tal, que não é a superioridade entre criatura<br />
e criatura, por maior que seja, mas é a superioridade entre<br />
Criador e criatura. E, de algum modo, por uma espécie de<br />
extensão, que não é uma mera analogia, também daquilo<br />
que é muito penetrado pelo Criador e, enquanto tal, participa<br />
em algo da superioridade do próprio Criador.<br />
Por exemplo, se em todas as comemorações oficiais<br />
que coubesse — não apenas as religiosas, mas mesmo as<br />
de ordem civil — houvesse uma Missa; e que o auge da<br />
comemoração fosse o momento da Consagração. Mas,<br />
pouco antes da fórmula da Consagração ser pronunciada,<br />
começassem a troar os canhões e repicar os sinos de<br />
uma região inteira. E no momento em que a Consagração<br />
se operasse, houvesse um silêncio o mais completo<br />
e brusco, em que até os besouros tivessem medo de voar<br />
e fazer barulho com seu zumbido, porque existem cer-<br />
Bain News Service (CC 3.0)<br />
Reprodução<br />
Reprodução<br />
Makthorpe (CC 3.0)<br />
François Ansart (CC 3.0)<br />
Da esquerda para a direita: Hindenburg, Ludendorff, Foch, Joffre e Haig<br />
21
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
tas coisas que transcendem ao som; há certos momentos<br />
em que o silêncio fala mais do que tudo quanto o<br />
homem possa dizer. Isto indicaria a hora da sacralidade<br />
na sua mais alta expressão. Depois, só se ouvisse,<br />
na hora da elevação, o tilintar daquela sineta e o repicar<br />
de alguns sinos transcendentais que estivessem no<br />
campo auditivo. Terminada a elevação, o troar dos canhões,<br />
os grandes bimbalhares de sinos, etc., ainda soassem<br />
juntos durante algum tempo.<br />
Alguém poderia objetar:<br />
— Aqui vejo bem quem é o senhor! Falta-lhe o sentido<br />
do sublime na sua mais alta expressão. O senhor deveria<br />
imaginar que, antes de começar a Missa, se fizesse<br />
um silêncio completo e que durante a mesma reinasse<br />
um silêncio recolhido, numa dramaticidade admirável e<br />
silenciosa; e até a Missa acabar não se ouvissem os sinos<br />
nem nada disso, para que esse culto pelo silêncio fosse a<br />
sacralidade na sua mais alta expressão...<br />
Deus respeita a fragilidade da criatura<br />
Eu responderia a este meu objetante:<br />
— Nisso eu reconheço você! Porque o que você não<br />
quer é uma coisa adequada à natureza humana como<br />
Deus a criou. Você deseja imaginar criaturas como elas<br />
não são e, para elas, uma possibilidade de transparência<br />
do transcendente que não existe hoje. A natureza<br />
humana não é capaz — salvo uma graça muito especial,<br />
mas que é muito excepcional, raríssima — de manter,<br />
no silêncio, toda a sacralidade necessária por muito<br />
tempo. É preciso, para mantê-la nessa sacralidade, o<br />
concurso dos sons.<br />
Então, a natureza humana voa, levada pelos sons até certo<br />
ponto. Ali ela se fixa no silêncio. Depois os sons a colhem<br />
e a fazem ainda voar pelo éter de uma alta transcendência, e<br />
a deixam amorosamente no chão do cotidiano.<br />
Isso é o modo católico de fazer as coisas, sumamente<br />
respeitoso da natureza humana como ela é, inclusive<br />
das suas debilidades. E o respeito à debilidade é um dos<br />
sinais mais evidentes da superioridade do que é conforme<br />
a Igreja.<br />
Por exemplo, numa atmosfera católica, o Sansão<br />
não seria apenas uma espécie de Tarzan, mas sim um<br />
homem que em certas ocasiões praticasse atos requintados<br />
de ternura e de brandura para com as criaturas<br />
mais insignificantes; e, nisto, fechando um ciclo de<br />
harmonia.<br />
Então, devemos ver esse respeito de Deus pela fragilidade<br />
da criatura, por onde as coisas se ordenam de maneira<br />
que a criatura fica bem tratada, contente, agradecida;<br />
e quando afinal ela sai, por assim dizer, dos braços de<br />
Deus, vai penetrada do amor de seu Benfeitor.<br />
Sergio Hollmann<br />
Aparição de Nossa Senhora em Lourdes<br />
Igreja Saint-Sulpice, Fougères, França<br />
A água de Lourdes e a água benta<br />
A sacralidade é, pois, toda forma de transcendência a<br />
qual sobe tão alto, que se conhece de algum modo que<br />
ali há uma participação com o sobrenatural e, no sobrenatural,<br />
com algo de divino.<br />
Por exemplo, se Santa Bernadette Soubirous tivesse<br />
na cabeceira dela, para se benzer toda manhã, um pouquinho<br />
de água de Lourdes, poderíamos imaginar vários<br />
aspectos.<br />
A água de Lourdes não é uma água benta. Nasceu de<br />
uma fonte subterrânea, cuja existência Nossa Senhora<br />
indicou à Santa Bernadette, e mandou-lhe abrir com os<br />
dedos; ela perfurou o solo e jorrou aquela água.<br />
Mas o fato de ser uma água que jorra do chão depois<br />
de Maria Santíssima ter revelado, indica uma fonte que<br />
Ela ou obteve que Deus naquele momento fizesse jorrar,<br />
sem causa natural geológica nenhuma, ou havia uma<br />
22
causa geológica, mas Nossa Senhora revelou essa causa,<br />
e nisto houve algo de sobrenatural.<br />
Então há, na mera água de Lourdes, uma participação<br />
no sobrenatural.<br />
Além disso, nós poderíamos imaginar que Santa Bernadette<br />
desse essa água sempre para um padre benzer,<br />
e se tornasse água benta. Então a água de Lourdes teria<br />
um predicado a mais, que é de ficar benta e, por este título,<br />
mais do que a água de Lourdes simples. Embora a<br />
água de Lourdes fosse mais, por algum título — é o tal<br />
cruzamento —, do que a água benta simples.<br />
Depois havia uma terceira coisa. É que aquela água<br />
servia a Santa Bernadette Soubirous. Digamos que ela,<br />
várias vezes, de manhã virasse o gargalo da garrafa para<br />
molhar a ponta do dedo, se persignasse e levantasse. Então,<br />
a água tocou numa pessoa santa.<br />
A sacralidade suprema<br />
Há títulos de sacralidade diversos ali, que até podem<br />
coincidir na mesma água. Esses títulos nos fazem ver formas<br />
e graus de sacralidade — portanto de transcendentalidade<br />
—, enquanto participantes com Deus a esse ou<br />
aquele título, desse ou daquele modo, e que dão um valor<br />
especial, transcendente, porque transcende completamente<br />
a ordem do natural, a tal ponto que qualquer<br />
natural comparado com aquilo fica vil.<br />
Um banqueiro talvez não compreendesse, mas essa água<br />
valeria muito mais do que um punhado de ouro. Sendo que<br />
o ouro é uma matéria boa, criada por Deus, dotada de excelências<br />
muito próprias na ordem do natural, que enquanto<br />
metal nobre, precioso, transcende os outros metais, mas em<br />
outra escala, de outro modo. Não tem sacralidade.<br />
Entretanto, a Igreja exige que o lado interior dos cálices<br />
destinados à Consagração na Missa<br />
seja revestido de ouro. Assim, para tocar<br />
no que é transcendental e sobrenatural,<br />
a Igreja quer que se empregue o que<br />
há de melhor na ordem da matéria. Isto<br />
é muito bonito, muito bem arranjado.<br />
Por que razão tudo isso se aplica à<br />
transubstanciação de um modo mais excelente?<br />
Porque não há nada que seja<br />
mais alto do que o fato de, nas espécies<br />
de alguma coisa material, Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo se tornar presente por esta<br />
forma, renovando de modo incruento<br />
seu sacrifício, o qual, por sua vez, é<br />
o fato da História que tem a sacralidade<br />
suprema, perto do qual os acontecimentos<br />
históricos mais extraordinários<br />
não são nada.<br />
Lachmann, Hans / CC-BY-SA (CC 3.0)<br />
A coroação de Carlos Magno na Basílica de Latrão como<br />
Imperador, pelo Papa São Leão III, é uma cena muito bonita.<br />
Quando estive nessa Basílica, osculei a pedra — que atualmente<br />
se encontra na Basílica de São Pedro — sobre a qual<br />
Carlos Magno estava ajoelhado. Mas comparem isso com a<br />
renovação incruenta do Sacrifício do Calvário... Não é nada!<br />
Retirar o chapéu ao entrar numa<br />
igreja, atitude que preparava a alma<br />
para um respeito todo especial!<br />
Entrei inúmeras vezes em igrejas onde havia o povinho<br />
comum rezando, mas com uma forma de respeito<br />
diante da sacralidade de Deus ou de Nossa Senhora, que<br />
envolvia todo o edifício material da igreja.<br />
Nas paróquias, constituíam-se grandes grupos de<br />
crianças para fazer a Primeira Comunhão. E antigamente<br />
todos os meninos usavam alguma forma de quepe<br />
ou de chapéu. Reuniam-se muitas vezes na praça<br />
em frente da igreja, ou então na sacristia, e saíam pela<br />
calçada, cantando, para fazer uma entrada solene pela<br />
porta principal do templo. Primeiro entravam as meninas<br />
e depois os meninos. Na porta, ficava parada uma<br />
das senhoras responsáveis pela cerimônia, dizendo de<br />
modo ameno, mas autoritário, para os meninos que<br />
passavam: “Tirem os chapéus!”<br />
No modo pelo qual ela dizia “tirem os chapéus” entrava<br />
um tom como quem acrescentasse: “…porque aqui é<br />
solo sagrado!”, o que fazia do mero tirar o chapéu uma<br />
atitude que preparava a alma para um respeito todo especial,<br />
presente às vezes no timbre de voz da mulher.<br />
Nós teríamos, então, uma conceituação geral a respeito<br />
do sacral, do hierárquico, do desigual e do modo pelo<br />
qual se deve desenvolver a sacralidade.<br />
Procissão de crianças para a Primeira Comunhão<br />
23
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A Cristandade tinha algo de sacral<br />
Uma coisa muito bonita é a seguinte. O poder temporal<br />
soberano tem alguma forma de sacralidade? No quê?<br />
A sociedade temporal não é suprema. A Igreja tem<br />
uma sacralidade que o Estado não possui. Mas enquanto<br />
considerado Estado de cristãos, em que os seus membros<br />
são todos católicos, portanto membros do Corpo Místico<br />
de Cristo, aquele Estado é constituído por pessoas que<br />
vivem, normalmente, da vida da graça. E todo o mecanismo<br />
da sociedade humana e do Estado vive, portanto, da<br />
vida da graça. Esse Estado, comparado com o Estado pagão,<br />
está numa relação que se poderia comparar com a<br />
da água benta com a água não benta.<br />
E como tal paira uma espécie de bênção na Cristandade,<br />
ou seja, na ordem temporal concebida enquanto<br />
constituída de católicos e vivendo catolicamente. Toca no<br />
Corpo Místico de Cristo em algo, mas não de fora para<br />
dentro — como posso tocar no couro desta poltrona<br />
em que estou sentado —; é um penetrar do Corpo Místico<br />
de Cristo naquela sociedade, naquele Estado, que faz<br />
com que o conjunto das nações chamado Cristandade tenha,<br />
de si, qualquer coisa de sacral.<br />
Donde o fato de haver uma bênção para o monarca<br />
na Cristandade. Mais para o Imperador do Sacro Império<br />
do que qualquer outro, porque ele é a cabeça daquele<br />
conjunto, e o unum vale mais do que as partes. Mas também<br />
para os reis e demais titulares de autoridade, entre<br />
os quais eu não hesitaria em colocar o Doge de Veneza,<br />
ou os chefes das repúblicas burguesas, como as “Cidades<br />
Livres”, desde que tivessem um poder verdadeiramente<br />
supremo e não vivessem sob uma espécie de suserania de<br />
outros poderes.<br />
O Rei de França era realmente objeto de uma sagração<br />
que vinha dar plenitude de sacralidade a alguma coisa<br />
que, a outros títulos, já possuía essa sacralidade, que é<br />
o “Rei do Reino Cristianíssimo dos Francos”.<br />
O senhor feudal de um castelo, ainda que fosse um<br />
simples conde, teria qualquer coisa de sacral em relação<br />
aos camponeses que habitassem em suas terras. Daí para<br />
a frente, inclusive o patrão em relação ao empregado.<br />
Alguns argentinos contaram-me que antigamente, talvez<br />
no tempo colonial, quando o empregado encontrava<br />
o patrão dizia uma frase mais ou menos assim: “Pido su<br />
bendición, padrecito.” Ao que o patrão respondia: “Que<br />
Dios te bendiga, mi hijito.”<br />
Acho isso profundamente encantador, perfumado,<br />
bonito, ordenado, porque coloca em realce o conteúdo<br />
religioso que essa relação patrão-empregado toma, pelo<br />
fato de ambos serem católicos.<br />
Jdsteakley (CC 3.0)<br />
O Imperador Carlos Magno - Museu Nacional<br />
Germânico, Nuremberg, Alemanha<br />
O núcleo da Contra-Revolução<br />
Deduzimos daqui uma série de diferenças entre sacralidade<br />
e transcendência, ainda que seja uma transcendência<br />
sublime. Se estivéssemos aparelhados a fazer habitualmente<br />
essa discriminação no contato com as coisas,<br />
creio que teríamos lucrado enormemente no espírito<br />
contrarrevolucionário, pois entraríamos pelo píncaro de<br />
tudo a partir da noção da sacralidade.<br />
Esse é o núcleo da Contra-Revolução, e dá a essência<br />
do espírito hierárquico e, portanto, o oposto do igualitarismo.<br />
24
Quem tem o espírito formado assim, ama todas as hierarquias,<br />
independentemente do problema de saber onde<br />
é que o “euzinho” fica colocado nessa escala hierárquica.<br />
Em toda essa multivariedade de sacralidades, e depois<br />
nas simples transcendências, vejo melhor a Deus. É<br />
um conjunto onde o Criador se faz ver melhor do que no<br />
próprio firmamento, estrelas, etc., que apenas repetem<br />
isso a seu modo. Exclui, portanto, uma porção de formas<br />
pagãs de superioridade, que não são transcendentais.<br />
Poderíamos, ainda, relacionar a grandeza com a transcendência<br />
e a sacralidade.<br />
Toda transcendência é uma grandeza que se afirma diante<br />
de outra grandeza menor, e uma grandeza menor que reverencia<br />
uma grandeza maior. Mas não cabe nada que não seja<br />
grandeza dentro disso. Porque, nessa perspectiva, o indivíduo<br />
mais insignificante é grande; e a sociedade católica é uma sociedade<br />
de grandes. É uma coisa lindíssima, de uma elevação<br />
extraordinária, diferente do conceito pagão de plebe.<br />
A grandeza não é senão um dos aspectos da sacralidade,<br />
vista enquanto dotada do esplendor e do poder próprio a<br />
produzir enlevo e fazer-se respeitar pelo temor. Assim como<br />
em Deus há aquilo que impõe temor reverencial, é admirável<br />
ver a majestade ou a grandeza capaz de impor medo.<br />
Preparando o Grand Retour<br />
Cabe aqui uma consideração sobre o papel dos protótipos<br />
e arquétipos nesta temática.<br />
“Proto” é primeiro; protótipo é o “tipo primeiro”,<br />
portanto, o tipo mais alto. Mas é o tipo mais alto de algo<br />
que não toca no gênero superior e não está iluminado<br />
por ele. O protótipo não transcendeu, enquanto que o<br />
arquétipo transcende.<br />
Vejam o efeito curioso do fato de estarmos num mundo<br />
feito para ser uma terra de exílio, em comparação<br />
com o Paraíso Terrestre.<br />
Segundo essa teoria, deveria haver também entre os<br />
animais aqueles que constituíssem arquétipos do próprio<br />
gênero, tendo algo pelo qual fossem superiores. Nesse<br />
ponto, o imitar a voz humana e falar, ainda que sem entender,<br />
seria uma das características mais “arquetipizantes”<br />
do gênero animal.<br />
O leão rugindo não emprega nenhuma palavra humana,<br />
mas tem algo parecido com a cólera do homem. De<br />
maneira que quando se quer dizer que um homem teve<br />
uma manifestação de cólera magnífica, poder-se-ia afirmar:<br />
“Rugiu como um leão!”<br />
Então, o leão é mais bonito na sua cólera do que o homem,<br />
a ponto de se poder dizer que o homem rugiu como<br />
leão. Mas, na realidade e absolutamente falando, a cólera do<br />
homem é mais bela do que a do leão, porque é uma cólera intelectiva,<br />
racional, volitiva; a do leão é apenas instintiva.<br />
Como as cóleras de Nosso Senhor teriam sido incomparavelmente<br />
mais bonitas do que o rugido de um leão!<br />
Ou então a indignação dos profetas. Elias, eu acho que<br />
era um leão!<br />
O Criador deu ao canário a possibilidade de cantar,<br />
mas a de falar concedeu ao papagaio. Porém o papagaio<br />
é caricato. Suponho que isso seja assim para o homem<br />
cair em certas realidades neste vale de lágrimas. Por<br />
exemplo, quando se quer dizer que uma pessoa falou de<br />
modo ininteligível ou quando alguém repete o que outro<br />
disse, sem entender, diz-se que “papagaiou”.<br />
Cada arara é um escrínio de pedras preciosas! Fala<br />
também, mas só para dizer idiotices… O rosto da arara<br />
é feio: uma carnatura com aquela espécie de círculo<br />
preto, uma coisa medonha! Mas o resto é de uma beleza<br />
da qual não se sabe o que dizer. A considerar apenas<br />
a penugem, hesito um pouco entre o pavão e a arara, por<br />
causa do esplendor das cores da arara.<br />
Enfim, vai alta a Lua no solar da sacralidade… Creio<br />
que se pudéssemos dar passos significativos no estudo desses<br />
assuntos, estaríamos preparando o Grand Retour 1 . v<br />
(Extraído de conferência de 26/4/1989)<br />
1) Do francês: Grande retorno. No início da década de 1940,<br />
houve na França extraordinário incremento do espírito religioso,<br />
quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa<br />
Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado<br />
de “grand retour” para indicar o imenso retorno daquele<br />
país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido.<br />
Ao tomar conhecimento desses fatos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> começou a<br />
empregar a expressão no sentido não só de “grande retorno”,<br />
mas de uma torrente avassaladora de graças que, através<br />
da Virgem Santíssima, Deus concederá ao mundo para a<br />
implantação do Reino de Maria.<br />
Leoboudv (CC 3.0)<br />
25
C<br />
alendário<br />
1. São Domiciano,abade (†séc. V).<br />
Primeiro eremita de Arles, França. Fundou<br />
em Lyon, junto com Santo Euquério,<br />
o mosteiro de Brevon, de vida contemplativa.<br />
2. São Bernardino Realino,presbítero<br />
(†1616). Sacerdote jesuíta italiano, diretor<br />
espiritual de presos e enfermos, confessor<br />
e exímio pregador.<br />
3. São Tomé, Apóstolo.<br />
Beata Maria Ana Mogas Fontcuberta,<br />
virgem (†1886). Fundadora da Congregação<br />
das Irmãs Franciscanas Missionárias<br />
da Mãe do Divino Pastor, em Fuencarral,<br />
Espanha.<br />
4. Santa Isabel de Portugal,rainha<br />
(†1336).<br />
Beata Maria Crucificada Curcio, virgem<br />
(†1957). Desejosa de unir à espiritualidade<br />
carmelitana um aspecto missionário,<br />
fundou em Santa Marinella, Itália,<br />
a Congregação das Carmelitas Missionárias<br />
de Santa Teresa do Menino Jesus.<br />
5. XIV Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Antônio Maria Zaccaria, presbítero<br />
(†1539).<br />
dos Santos – ––––––<br />
6. Santa Maria Goretti, virgem e mártir<br />
(†1902).<br />
São Paládio, bispo (†432). Enviado à Irlanda pelo Papa<br />
Celestino I para pregar aos gentios e combater a heresia<br />
de Pelágio.<br />
7. Beata Maria Romero Meneses, virgem (†1977). Religiosa<br />
salesiana nicaraguense enviada à Costa Rica onde,<br />
durante quarenta e seis anos, dedicou-se à formação das<br />
jovens.<br />
8. Beato Eugênio III, Papa (†1153). Monge cisterciense<br />
e discípulo de São Bernardo, após ter governado o Mosteiro<br />
dos Santos Vicente e Anastásio, foi eleito Papa.<br />
9. Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus, virgem<br />
(†1942).<br />
Pére Igor (CC 3.0)<br />
Santa Marta<br />
Santa Verônica Giuliani, abadessa<br />
(†1727). Aos 17 anos, ingressou como religiosa<br />
capuchinha no mosteiro de Città<br />
di Castello, Itália. Recebeu os estigmas<br />
da Paixão do Senhor.<br />
10. Santo Agostinho Zhao Rong, presbítero,<br />
e companheiros, mártires (†1648-<br />
1930).<br />
São Canuto IV, mártir (†1086). Rei<br />
da Dinamarca, que difundiu o culto divino,<br />
promoveu o estado clerical e favoreceu<br />
a construção de numerosos mosteiros<br />
e igrejas. Morreu assassinado por<br />
súditos revoltosos.<br />
11. São Bento, abade (†547).<br />
São Quetilo, presbítero (†c. 1150).<br />
Religioso agostiniano, promoveu a<br />
evangelização e empenhou-se em pacificar<br />
os ânimos, nas disputas dinásticas<br />
em Viborg, Dinamarca.<br />
12. XV Domingo do Tempo Comum.<br />
São João Gualberto, abade (†1073).<br />
Por amor a Cristo, perdoou o assassino<br />
de seu irmão. Fundou a Ordem de<br />
Vallombrosa, nas cercanias de Fiesole,<br />
Itália.<br />
13. Santo Henrique, Imperador (†1024).<br />
Beato Mariano de Jesús Euse Hoyos,<br />
presbítero (†1926). Sacerdote diocesano falecido em Angostura,<br />
Colômbia, dedicou-se totalmente à oração, ao estudo<br />
e à educação cristã das crianças.<br />
14. São Camilo de Lélis, presbítero (†1614).<br />
Beato Ghebre Miguel, presbítero e mártir (†1855).<br />
Monge monofisista da Etiópia, converteu-se e ingressou<br />
na Congregação da Missão. Foi por isso submetido a suplícios<br />
durante treze meses, ao fim dos quais morreu de fome<br />
e sede.<br />
15. São Boaventura, bispo e Doutor da Igreja (†1274).<br />
São Pedro Nguyen Ba Tuan, presbítero e mártir<br />
(†1838). Preso por sua fidelidade a Cristo no tempo do<br />
imperador Minh Mang, morreu de fome no cárcere de<br />
Nam Dinh, Vietnã.<br />
26
–––––––––––––––––– * Julho * ––––<br />
16. Nossa Senhora do Carmo.<br />
Beata Amada de Jesus de Gordon,<br />
virgem, e companheiras,<br />
mártires (†1794). Tendo-se recusado<br />
a abandonar a vida religiosa,<br />
foram condenadas e guilhotinadas<br />
em Orange durante a Revolução<br />
Francesa.<br />
17. Bem-aventurado Inácio de<br />
Azevedo, presbítero, e companheiros,<br />
mártires (†1570).<br />
São Leão IV, Papa (†855). Para<br />
proteger o Vaticano contra os ataques<br />
dos sarracenos, mandou construir<br />
muralhas. Defensor da justiça<br />
e apologista do primado de Pedro.<br />
18. São Bruno, bispo (†1123).<br />
Trabalhou e sofreu muito pela renovação<br />
da Igreja, sendo por isso<br />
perseguido e obrigado a abandonar<br />
a Diocese de Segni, refugiando-se<br />
em Monte Cassino.<br />
19. XVI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Bernoldo, bispo (†1054).<br />
Construiu muitas igrejas em Utrecht,<br />
Holanda, e introduziu nos<br />
mosteiros a disciplina cluniacense.<br />
Sergio Hollmann<br />
Santa Maria Madalena<br />
23. Santa Brígida, religiosa<br />
(†1373 Roma). Ver página 28.<br />
24. São Charbel Makhluf, presbítero<br />
(†1898).<br />
São Balduíno, abade (†1140).<br />
Discípulo de São Bernardo no mosteiro<br />
de Claraval, fundou em Rieti,<br />
Itália, o convento de São Mateus.<br />
25. São Tiago Maior, Apóstolo.<br />
Ver página 2.<br />
26. XVII Domingo do Tempo Comum.<br />
São Joaquim e Sant’Ana, pais de<br />
Maria Santíssima.<br />
27. São Pantaleão da Bitínia,<br />
mártir (†c. 305). Exerceu a medicina<br />
em Nicomédia, atual Turquia,<br />
sem receber recompensa alguma<br />
por seu trabalho. No Real Mosteiro<br />
da Encarnação, Madri, conserva-<br />
-se uma relíquia de seu sangue, que<br />
se liquefaz na véspera de sua festa.<br />
28. São Sansão, abade e bispo<br />
(†c. 565). Difundiu o Evangelho e a<br />
disciplina monástica na Bretanha,<br />
França. Fundou a abadia de Dol.<br />
20. Santo Apolinário, bispo e mártir (†c. séc. II).<br />
São Vulmaro, presbítero (†c. 700). Após viver como<br />
eremita, fundou perto de Boulogne-sur-Mer, França, dois<br />
mosteiros: um masculino e outro feminino.<br />
21. São Lourenço de Bríndisi, presbítero e Doutor da<br />
Igreja (†1619).<br />
Beato Gabriel Pergaud, presbítero e mártir (†1794).<br />
Cônego regular da Abadia de Beaulieu, em Saint-Brieuc,<br />
ficou preso durante a Revolução Francesa numa galera em<br />
Rochefort e ali morreu.<br />
22. Santa Maria Madalena.<br />
Santo Anastásio, monge (†662). Discípulo de São Máximo,<br />
Confessor, com o qual suportou o cárcere e as torturas.<br />
Morreu nos montes do Cáucaso, atual Geórgia.<br />
29. Santa Marta, irmã de Lázaro e Maria.<br />
Beato Luis Martin, pai de família (†1894). Pai de Santa<br />
Teresinha do Menino Jesus. Levou uma vida matrimonial<br />
exemplar com sua esposa Zélia Martin.<br />
30. São Pedro Crisólogo, bispo e Doutor da Igreja (†c. 450).<br />
São Leopoldo Mandic, presbítero (†1942). Religioso capuchinho<br />
que dedicou a maior parte de sua vida a ministrar<br />
o Sacramento da Confissão, em Pádua, Itália.<br />
31. Santo Inácio de Loyola, presbítero (†1556).<br />
Beata Sidônia Schelingová, virgem e mártir (†1955).<br />
Religiosa da Congregação das Irmãs da Caridade de Santa<br />
Cruz. Propiciou a fuga de um sacerdote, em Trnava, Eslováquia,<br />
pelo que foi presa e morreu em consequência de<br />
sofrimentos na prisão.<br />
27
Hagiografia<br />
Contrassenso:<br />
uma prova<br />
de amor<br />
Uma das piores provações pelas<br />
quais podemos passar é nos<br />
encontramos diante de um<br />
contrassenso inexplicável. Mas,<br />
confiando em Nossa Senhora,<br />
veremos que tudo tem solução.<br />
Santa Brígida foi casada com um homem de um gênio<br />
muito difícil e que provou muito o temperamento<br />
dela. Ela era uma pessoa muito irritadiça<br />
e, naquele contato com o marido, teve que se dominar e<br />
acabou, afinal de contas, vencendo o gênio muito desagradável,<br />
muito duro que ela também tinha.<br />
Ao final da vida, teve que retomar a batalha<br />
Depois disso, ela fez uma peregrinação para o Oriente,<br />
santificou-se e voltou para Roma, tendo renunciado<br />
à condição régia que possuía e vivendo como uma espécie<br />
de freira.<br />
Quando a Santa chegou ao fim da vida, em que a grande<br />
luta tinha sido contra o seu temperamento impulsivo,<br />
o mau gênio, aparece uma coisa que para ela foi uma catástrofe:<br />
todo aquele mau gênio renasceu, e aquela luta<br />
parecia perdida. Ela tinha conseguido dominar seu<br />
temperamento, reduzir aqueles ímpetos, e via aquilo tudo<br />
ressurgir desabotoadamente; teve que retomar a luta,<br />
venceu e então morreu em paz.<br />
Gustavo Kralj<br />
Santa Brígida - Igreja de Santa<br />
Maria, Massachussets, EUA<br />
28
Nota biográfica<br />
S<br />
anta Brígida nasceu na Suécia por volta de 1303,<br />
em Finsta, região pertencente à província de<br />
Uppland. De nobre família, casou-se ainda muito<br />
jovem com o governador de Ostugtland, Ulf Gudmarson,<br />
com quem teve oito filhos.<br />
Extremamente piedosa, Brígida nunca negligenciou<br />
a educação cristã de seus filhos, instruindo-os<br />
na Fé, na devoção a Jesus Crucificado e à Virgem<br />
Maria. Bons frutos renderam-lhe seu zelo materno,<br />
especialmente em sua segunda filha, Catarina, que<br />
conquistou, como a mãe, a honra dos altares.<br />
A reputação e piedade de Santa Brígida levaram o<br />
rei a solicitá-la como dama da corte de sua esposa, a<br />
Rainha Branca de Namur, a fim de que a instruísse no<br />
bom caminho. Porém, a vida de corte não era o que Brígida<br />
almejava, e retirou-se dali pouco tempo depois.<br />
Junto com o esposo, Brígida ingressou na Ordem<br />
Terceira de São Francisco e empreendeu muitas<br />
obras de caridade, bem como peregrinações a diversos<br />
santuários da Europa, entre os quais, Santiago<br />
de Compostela.<br />
Numa dessas viagens, Ulf caiu gravemente enfermo,<br />
mas pelas preces da esposa pôde se recuperar.<br />
Algum tempo depois, Ulf resolveu ingressar no<br />
mosteiro cisterciense de Alvastre, onde morreu em<br />
1344. Após a morte do marido, Santa Brígida dividiu<br />
os bens entre os filhos e os pobres da região, e<br />
consagrou-se inteiramente à penitência e à contemplação<br />
da Paixão de Jesus.<br />
Em 1349, desejando participar das festividades<br />
do jubileu de 1350, deslocou-se até Roma onde permaneceu<br />
a fim de conseguir do Papa a aprovação<br />
das regras da Ordem Religiosa do Santíssimo Salvador,<br />
a qual desejava fundar.<br />
Em toda a sua vida, principalmente nesse período,<br />
foi agraciada com diversas revelações místicas,<br />
sobretudo referentes à Paixão de Jesus e à vida da<br />
Santíssima Virgem, além do dom de profecia. Muito<br />
sofreu da parte dos que não compreendiam sua<br />
vida mística.<br />
Em 1371 empreendeu uma peregrinação a Jerusalém.<br />
Voltando a Roma, já bastante debilitada, entregou<br />
sua alma a Deus no dia 23 de julho de 1373.<br />
Duas décadas mais tarde, em 1391, foi canonizada<br />
pelo Papa Bonifácio IX e, em 1999, proclamada Copatrona<br />
da Europa, por João Paulo II.<br />
MPorcius Cato (CC 3.0)<br />
Reprodução<br />
Livro das visões de Santa Brígida - Museu Nacional, Helsinki, Finlândia<br />
29
Hagiografia<br />
Comentam os hagiógrafos que isso não significava<br />
que Santa Brígida tivesse dado algum consentimento ao<br />
mau gênio, nem era um fenômeno de decadência espiritual<br />
dela. Mas Nossa Senhora, que tinha sopitado esse<br />
mau gênio por uma graça especial, permitiu-lhe uma última<br />
prova, fazendo-a passar por uma situação com características<br />
de coisa absurda, sem sentido.<br />
Porque é mais ou menos sem sentido uma<br />
vida durante a qual a pessoa constrói<br />
uma obra espiritual e, de repente, esta<br />
parece desabar. Deve-se ter confiança<br />
na Providência e, mesmo<br />
na velhice, retomar aquele trabalho<br />
espiritual.<br />
Situações que parecem<br />
sem sentido<br />
Beao (CC 3.0)<br />
Ela não tinha nenhuma culpa<br />
pelo que estava sucedendo<br />
e, com uma grande sujeição e<br />
confiança na Santíssima Virgem,<br />
refez todo o trabalho para<br />
apresentar a sua alma ao Criador.<br />
Parecia, portanto, uma espécie<br />
de cúmulo o vencer o mau gênio.<br />
Mas a última coisa, depois do mau gênio completamente<br />
vencido, era aceitar a provação enviada por Deus.<br />
Exatamente aqui está um requinte da vida espiritual,<br />
a respeito do qual nunca será suficiente insistir. A Providência<br />
Divina nos pede, em muitas ocasiões da vida, que<br />
enfrentemos situações que parecem sem sentido, que caminhemos<br />
de encontro a muralhas que não têm<br />
portas, a mares que não têm fundo, a obstáculos<br />
que não têm solução, e depois,<br />
quando nos aprofundamos, aquilo<br />
se abre, se move, e continuamos a<br />
avançar.<br />
Isso é frequentíssimo na vida<br />
espiritual, bem como na vida<br />
de apostolado e na vida<br />
privada. Nossa Senhora faz<br />
essas coisas para as almas a<br />
quem Ela chama às mais altas<br />
finalidades e ama mais<br />
especialmente. Essa espécie<br />
de contrassenso é exatamente<br />
uma prova de amor.<br />
Preparar o espírito<br />
para a provação<br />
O que pede uma prova de<br />
amor? Uma fé cega, depois da qual<br />
vem sempre uma grande graça.<br />
É uma forma de ato de humildade<br />
compreender que devemos nos colocar<br />
diante de Maria Santíssima como<br />
escravos, feitos para obedecer sem<br />
discutir. Ela é quem manda, quem dispõe<br />
e, portanto, tem o direito de nos fazer<br />
passar pelas evoluções que entender<br />
para, afinal de contas, chegarmos aos<br />
resultados que Ela quiser. Porque isto<br />
é obediência, confiança e amor.<br />
Reprodução<br />
Santa Brígida recebe o hábito religioso - Oratório de<br />
Vila Suardi, Itália. Acima, Santa Brígida - retábulo<br />
da Igreja de Salem, Södermanland, Suécia<br />
30
Digo isto para alguém que esteja nessas condições,<br />
mas também para os que não estão, porque<br />
é preciso preparar o espírito para provas dessas.<br />
A pessoa não compreende por que a prova<br />
vem, e passa a provação toda protestando. Entretanto,<br />
se não protestasse, tornaria a prova mais<br />
breve e, no fim, compreenderia o sentido que<br />
aquilo tem.<br />
É mesmo uma constante de muitas vocações<br />
excelentes. De maneira que é necessário preparar<br />
o espírito para essa ideia e enfrentar a prova, porque<br />
Nossa Senhora é assim bem servida. Tanto no<br />
Antigo como no Novo Testamento, encontramos<br />
homens de Deus, especialissimamente amados<br />
por Ele, que são provados por essa forma. Devemos<br />
ir preparando reservas de energia de alma,<br />
de disposição, para quando isso acontecer.<br />
Uma das piores provas que podemos atravessar<br />
durante a vida é a impressão de que estamos<br />
diante de coisas sem sentido, e não há mais solução<br />
nem caminho para nada; e, depois, vemos que<br />
há solução e caminho, e tudo no final se esclarece.<br />
Relicário de Santa Brígida<br />
Convento de Vadstena, Suécia<br />
MikaelLindmark (CC 3.0)<br />
Uma tentação que se apresentou<br />
ao jovem <strong>Plinio</strong><br />
Desculpem-me exemplificar com uma reminiscência<br />
particular, mas a vida inteira me causou verdadeiro horror<br />
a ideia de briga entre católicos. A única tentação que<br />
tive em minha vida de deixar o movimento católico foi<br />
logo no comecinho das minhas atividades, quando um<br />
senhor tentou provocar uma cisãozinha contra mim, na<br />
minúscula Ação Universitária Católica 1 daquele tempo.<br />
Fiquei fortemente tentado de desânimo. Lembro-me<br />
ainda de mim, andando de bonde pelo Viaduto do Chá<br />
para ir a uma reunião deles, numa noite chuvosa e ruim,<br />
e eu tomando todos os ventos no bonde aberto, de pernas<br />
trançadas e lutando contra aquela tentação de deixar<br />
tudo. A minha ideia era esta: “Sou feito para lutar contra<br />
os inimigos da Igreja, e não para lutar contra os filhos<br />
dela.”<br />
Tempos depois, eu li uma biografia de Santa Teresa de<br />
Jesus, que me agradou muito. Quando terminei a leitura,<br />
fechei o livro e pensei: “Está bem, graças a Deus isso<br />
é para ela, mas eu fui suscitado para lutar contra a Revolução;<br />
não para combater dentro da Igreja.”<br />
Se eu tivesse podido prever tudo o que veio depois,<br />
talvez desmaiasse. Ora, tive que aceitar uma realidade<br />
que durante muito tempo me pareceu um completo contrassenso.<br />
Quantos outros absurdos dentro de minha vida eu poderia<br />
apontar. Pilhas de disparates, de situações que não<br />
têm sentido, simplesmente, mas que se vai enfrentando,<br />
se adaptando, fazendo-se pequeno, obedecendo à vontade<br />
de Nossa Senhora que fala pela voz dos acontecimentos<br />
e, depois, vai-se compreendendo que devia ser, e que<br />
foi bom que tivesse sido assim.<br />
Calma, segurança e certeza<br />
Eu recomendaria muito àqueles que tenham de trilhar<br />
veredas semelhantes àquelas trilhadas por mim que, meditando<br />
a respeito disto, se preparassem para enfrentar<br />
esses contrassensos. É uma forma de ato de humildade<br />
compreender que devemos nos colocar diante de Maria<br />
Santíssima como escravos, feitos para obedecer sem discutir.<br />
Ela é quem manda, quem dispõe e, portanto, tem o<br />
direito de nos fazer passar pelas evoluções que entender<br />
para, afinal de contas, chegarmos aos resultados que Ela<br />
quiser. Porque isto é obediência, confiança e amor.<br />
Peçamos a Santa Brígida para vincar bem esta ideia<br />
em nosso espírito: calma, segurança e certeza de que tudo<br />
se resolve e tudo se explica, mesmo nos momentos em<br />
que tudo parece insolúvel e inexplicável. v<br />
(Extraído de conferência de 8/10/1964)<br />
1) Grupo fundado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 12 de setembro de 1929,<br />
constituído de congregados marianos universitários. Ver <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 18, p. 4; n. 59, p. 28-30; n. 152, p. 29; n. 175, p. 5.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Fotos: Reprodução<br />
Roma sparita<br />
Ambientes que favorecem o desenvolvimento das características<br />
individuais radicadas na índole de cada povo, onde as pessoas<br />
não constituem multidões de anônimos, mas aprimoram sua<br />
personalidade vivendo tranquilas nos braços da Fé que triunfou<br />
sobre o paganismo: eis a Europa feérica amada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
N<br />
os templos romanos e, aliás, nos gregos também,<br />
distinguimos duas<br />
partes: uma espécie de<br />
cilindro, às vezes um quadrilátero,<br />
sem janelas, com as portas constantemente<br />
abertas — em cima havia<br />
janelinhas muitas vezes — de maneira<br />
que a ventilação se fazia continuamente;<br />
e em torno, talvez para<br />
abrigar as pessoas que iam oferecer<br />
seus sacrifícios idolátricos, um telhado<br />
que ia além do templo e que<br />
era sustentado por colunas em forma<br />
de círculo, formando, portanto,<br />
dois corpos de edifício, um interno<br />
e outro externo.<br />
Na Roma pagã havia um<br />
templo em louvor da pureza<br />
Há qualquer coisa de imponderável<br />
no edifício, que dá a ideia de que<br />
os telhados, que provavelmente não datam do tempo dos<br />
romanos, já estão tão velhos que as<br />
telhas quase se encolheram e estão<br />
trêmulas de velhice, se bem que as<br />
pedras não enruguem nem sequem.<br />
Pode-se dizer que as pedras dessa<br />
coluna estariam para o que eram<br />
quando foram construídas, como<br />
uma uva-passa está para uma uva<br />
fresca. Elas estão todas ressequidas<br />
de tanto tempo que passou em cima<br />
delas, vento que bateu, chuvas, toda<br />
espécie de coisas, e elas ficaram<br />
ressequidas. Nem se nota muito o<br />
retilíneo delas, porque o eixo é reto,<br />
mas a circunferência está tão trabalhada<br />
que nem se tem a ideia dos<br />
como que cilindros majestosos que<br />
houve aqui antigamente. Tudo isso<br />
dá ideia de um povoado que não é<br />
só velho, mas mumificado, que não<br />
dá mais nada, um passado reduzido<br />
32
a esqueleto; isso é muito mais o esqueleto de um<br />
prédio do que um prédio propriamente dito.<br />
Ora, é bonito notar que essa foto mostra o único<br />
templo erguido na antiga Roma em louvor da<br />
pureza. Segundo a mitologia, Vesta era uma deusa<br />
virgem, que só poderia ser cultuada por virgens<br />
as quais deveriam manter o tempo inteiro um fogo<br />
aceso diante dela, como homenagem. As vestais<br />
— era o nome delas — eram mulheres que deveriam<br />
ser elas mesmas virgens. Se alguma delas fosse<br />
apanhada em pecado contra a castidade, era enterrada<br />
viva. E também era enterrada viva a vestal<br />
que, designada para guardar o fogo durante a noite,<br />
deixasse que este se apagasse. Era uma responsabilidade<br />
grande ficar a noite toda, no silêncio de<br />
Roma daquele tempo, vigiando para que o<br />
fogo não se extinguisse. Eram estas as únicas<br />
obrigações exigidas delas: serem virgens<br />
e não permitir que a chama se apagasse.<br />
Ali se instalou depois uma igreja católica,<br />
e é uma paróquia na qual as beatas vão<br />
rezar o terço, fazer Via Sacra, onde havia,<br />
até há pouco, bênção do Santíssimo Sacramento,<br />
muito tempo depois do culto a essa<br />
deusa ter ali cessado. Então, no local de<br />
culto usado por seus perseguidores, a Igreja<br />
Católica harmoniosamente instalou um<br />
templo da Religião verdadeira, em nome da<br />
qual o sangue dos mártires foi derramado.<br />
Altaneira, sempre com vitalidade, a torre<br />
medieval que se eleva aqui mostra a vitória,<br />
na Idade Média, sobre o mundo pagão<br />
romano: a vitória da Igreja sobre a gentilidade<br />
e todos os seus adversários.<br />
Ninguém é inteiramente<br />
anônimo para o outro<br />
Ao lado desses dois monumentos tão expressivos<br />
e tão notáveis pelo seu contraste, está o povinho<br />
tranquilo que vive nos braços da História<br />
e nos braços da Fé, com a naturalidade de quem<br />
vive a existência de todos os dias. Perto disso, o<br />
magnífico Rio Tibre, o qual nesse contexto parece<br />
representar o curso da História que vai passando,<br />
lembra ao povinho como as coisas mudam ao<br />
longo do tempo. Mas “stat Crux dum volvitur orbis<br />
— a Cruz está de pé, enquanto o mundo inteiro<br />
se vira e revira”; onde a Igreja deitou a sua mão<br />
sagrada, ali ela continua.<br />
A senhora dessa outra pintura é uma espécie<br />
de governanta, e não a dona da casa. As do-<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
para ninguém ver. Ela coloca à vista de todo mundo. De<br />
outro lado, ela está aqui, eu quase diria como um professor<br />
numa cátedra, um juiz num tribunal ou, amesquinhando<br />
muito, uma rainha num trono. Há qualquer coisa<br />
de pitoresco teatral italiano dentro disso. Está presente<br />
aí um verniz italiano. Nota-se alma dentro disso a mais<br />
não poder; vivacidade!<br />
O latino e o germânico<br />
nas de casa não usavam esse avental. É<br />
uma criada muito graduada que foi fazer<br />
compras com o menino da casa. O<br />
menino, vestido à século XIX: chapéu<br />
de marinheiro, com uma borlazinha, um<br />
pompom em cima, e uma golazinha.<br />
Nota-se nessa cena que algumas das<br />
pessoas se conhecem, outras até estão<br />
conversando. Mas não há nenhum indício<br />
de que todas se conheçam. Então, em que<br />
sentido se pode dizer que não são desconhecidas,<br />
como por exemplo, a multidão<br />
que passa pelo Viaduto do Chá 1 , onde as<br />
pessoas ignoram umas as outras?<br />
Embora os personagens estampados<br />
nessas figuras sejam desconhecidos, a<br />
cidade é tal que cada pessoa que passa<br />
sabe mais ou menos que categoria tem a<br />
outra, qual sua profissão, quais seus hábitos,<br />
qual seu estilo de vida. Por exemplo,<br />
essa mulher, por sua atitude, dá a entender que se<br />
considera muito superior àqueles outros e leva uma vida<br />
mais ordenada e mais limpa do que eles. E estes, indiretamente,<br />
respondem para ela que, sem negar que ela<br />
seja mais, eles têm um vidão livre, solto e à vontade que<br />
acham bem gostoso. Porque estão todos bem satisfeitos.<br />
Esses homens podem não saber o nome da senhora,<br />
mas sabem como ela é, como ela vive. É uma cidade pequena,<br />
com categorias e estilos de vida definidos, onde<br />
ninguém é inteiramente anônimo para outro. É diferente<br />
da avalanche de anônimos do Viaduto do Chá.<br />
Nessa cena do gueto, há algo de italiano na desordem<br />
com uma forma de pitoresco que o italiano sabe pôr e<br />
que outros não sabem. É um predicado italiano. Essa<br />
mulher cozinhando tem um pitoresco italiano no espalhafato.<br />
Normalmente, uma pessoa que faz isso, esconde<br />
Sem dúvida, há uma grande diferença entre esta desordem<br />
e a ordem do povo alemão, por uma razão muito<br />
simples: isso toca na índole do povo.<br />
O italiano é exuberante, sente, pensa e tem vontade<br />
de dizer tanta coisa, que não<br />
encontra tempo para arrumar<br />
muito as coisas.<br />
Mais ainda, isso tem muita<br />
relação com o modo de ser do<br />
brasileiro, não pela grande imigração<br />
italiana em São Paulo,<br />
porque o Brasil todo é assim,<br />
até no Nordeste, zona muito<br />
pouco italianizada; e o nordestino<br />
é mais ainda do que o brasileiro<br />
do Sul, nesse sentido.<br />
Nós, latinos, pensamos muitas<br />
vezes falando, e, se não temos<br />
ocasião de falar, não chegamos<br />
a completar o nosso pensamento.<br />
A extroversão é um<br />
modo de ser nosso para concluir<br />
o nosso pensamento. Nossos<br />
caros espanhóis falam muito<br />
e também completam muito<br />
o pensamento quando falam.<br />
O alemão é o contrário: para completar o pensamento,<br />
ele precisa recolher-se. E daí resulta que o latino tanto fala<br />
que não tem muito tempo para se arranjar. E o alemão<br />
tanto se recolhe que pensa enquanto arranja as coisas.<br />
Então, ele está pondo em ordem um papel, arranjando<br />
uma cortina, regando o gerânio, etc., e enquanto faz<br />
isso está filosofando, em todos os graus possíveis da Filosofia:<br />
desde a mais alta até a mais popular.<br />
O latino está sempre elucubrando uma coisa para o<br />
conhecimento do mundo. O alemão está elucubrando<br />
para si, depois para seus próximos, posteriormente para<br />
um clã que ele forma e com o qual ele vai pressionar<br />
outros, e depois com a nação com a qual ele pressiona o<br />
mundo. Mas a propagação da influência, para os latinos,<br />
se faz à maneira do azeite; e para os alemães, à maneira<br />
do gládio. São formas diferentes.<br />
34
Eu sou um grande admirador da Alemanha. Sou um<br />
grande admirador da Europa, mais do que de cada país<br />
europeu, mesmo da França. A Europa vale muito mais<br />
do que a França, porque o bonito da Europa é o conglomerado<br />
desses povos esplêndidos e diferentes que formam<br />
um todo mais bonito do que cada elemento.<br />
É bonito, na Europa, ver o alemão levando aquela vida<br />
nas aldeiazinhas de marzipã, esplendidamente arranjadas,<br />
e o italiano cantando a plenos pulmões na baía de<br />
Nápoles, ou à beira do Arno, ou guiando uma gôndola<br />
em Veneza. A Espanha com suas castanholas e suas touradas,<br />
e daí para fora… O fado português, a Torre de Belém,<br />
a Abadia de Westminster… É a Europa feérica. É<br />
dela que nós gostamos.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 29/1/1977)<br />
1) Situado na região central da cidade de São Paulo.<br />
35
O celeste rosto de Maria<br />
Francisco Lecaros<br />
Mãe da Divina<br />
Providência - Igreja<br />
de Santa Maria<br />
de Caravaggio,<br />
Nápoles, Itália<br />
Q<br />
uantas vezes o reflexo de um castelo nas<br />
águas de um lago é mais belo que o próprio<br />
edifício!<br />
Ao caminhar sobre o Mar de Tiberíades,<br />
Jesus refletiu-Se nas águas. Entretanto, Ele<br />
era mais belo do que o reflexo.<br />
Sem dúvida, isto seria verdade em quaisquer<br />
águas do mundo: do Danúbio, do Sena, do Tejo,<br />
do Guadalquivir, do Reno, da Baía da Guanabara,<br />
e de tantos lugares magníficos da Terra.<br />
Mas o que seria verdade em todos os mares<br />
da Terra, não o era apenas num “mar”,<br />
maior do que todos eles, entretanto, tão menos<br />
extenso: Maria. Porque quando Nosso Senhor<br />
olhava para sua Mãe Santíssima, coisas<br />
que só Ela compreendia n’Ele se refletiam no<br />
semblante d’Ela. E quem olhasse para o celeste<br />
rosto de Maria teria como que uma porta<br />
de acesso de ouro, para compreender os mistérios<br />
da Sagrada Face de Jesus!<br />
Em Maria, só em Maria, mas plenamente<br />
em Maria, alguém olhando veria algo que<br />
Jesus só manifestava a Ela e àqueles que sabem<br />
procurá-Lo n’Ela.<br />
(Extraído de conferência de 27/9/1980)