Observatório do Analista em Revista - 6 Edição
Revista do colaborativa dos Analistas-Tributários da Receita Federal do Brasil
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Artigo<br />
O xadrez <strong>do</strong>s concurseiros,<br />
<strong>do</strong> servi<strong>do</strong>r público<br />
à autoridade<br />
Texto: Luís Nassif<br />
Nos últimos anos, tomou corpo um<br />
novo fenômeno no serviço público:<br />
os concurseiros, pessoas<br />
que, <strong>em</strong> algumas áreas selecionadas,<br />
entraram através de concursos<br />
disputadíssimos.<br />
Os concurseiros mudaram a cara <strong>do</strong> serviço<br />
público. Vêm com preparo maior que os funcionários<br />
de carreiras tradicionais. Depois, o<br />
Esta<strong>do</strong> banca cursos de mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong><br />
<strong>em</strong> universidades estrangeiras. Fog<strong>em</strong><br />
<strong>do</strong> perfil tradicional de funcionário público.<br />
Historicamente o serviço público oferece<br />
previsibilidade, uma aposenta<strong>do</strong>ria que<br />
preserva ganhos e salários abaixo <strong>do</strong>s de<br />
merca<strong>do</strong>. Com as mudanças na última década,<br />
continuou oferecen<strong>do</strong> previsibilidade e<br />
aposenta<strong>do</strong>ria, e salários iniciais muito acima<br />
<strong>do</strong>s salários de merca<strong>do</strong>.<br />
Esse fenômeno gerou uma espécie nova de<br />
funcionário público s<strong>em</strong> vocação <strong>do</strong> pública<br />
e com ampla vocação de “autoridade”.<br />
Esse perfil de funcionário foi central na impl<strong>em</strong>entação<br />
<strong>do</strong> golpe, receben<strong>do</strong> o respal<strong>do</strong><br />
da mídia para julgamentos de mérito de<br />
operações orçamentárias, como se tivess<strong>em</strong><br />
si<strong>do</strong> ungi<strong>do</strong>s pelo voto.<br />
Tornaram-se verdadeiros militantes políticos –<br />
como foi o caso <strong>do</strong> procura<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Ministério<br />
Público das Contas.<br />
Característica 1 - O retorno financeiro<br />
<strong>do</strong> valor investi<strong>do</strong> na preparação <strong>do</strong><br />
concurso |<br />
Passar <strong>em</strong> concurso exige três anos de estu<strong>do</strong>s<br />
ininterruptos e matrículas <strong>em</strong> cursos caros.<br />
Ou seja, investimento pesa<strong>do</strong> <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po e dinheiro<br />
e seletividade de classe socioeconômica.<br />
E as provas exig<strong>em</strong> m<strong>em</strong>orização, não<br />
necessariamente vocação para a profissão<br />
pretendida. Entran<strong>do</strong>, o concurseiro irá casar<br />
essas vantagens com a <strong>do</strong>s ganhos, passan<strong>do</strong><br />
a pressionar o Esta<strong>do</strong> para melhorias<br />
constantes nos rendimentos.<br />
A expansão descontrolada <strong>do</strong> serviço público<br />
deve-se às pressões dessa nova classe.<br />
Característica 2 - O servi<strong>do</strong>r público<br />
e a síndrome da “autoridade”<br />
Pega-se um jov<strong>em</strong> de pouco mais de 20<br />
anos, confere-se um cargo regiamente r<strong>em</strong>unera<strong>do</strong>,<br />
com salário inicial imbatível e, <strong>em</strong><br />
cima disso, as prerrogativas de um poder de<br />
Esta<strong>do</strong>.<br />
30<br />
Grande parte <strong>do</strong>s concurseiros não se considera<br />
servi<strong>do</strong>r público. Considera-se “autoridade”,<br />
segun<strong>do</strong> me relatam analistas tributários<br />
críticos <strong>do</strong> modelo atual de concurso.<br />
Essa característica se deve ao fato <strong>do</strong><br />
concurseiro dever seu status não à carreira<br />
impl<strong>em</strong>entada no serviço público, mas ao<br />
concurso que o transformou imediatamente<br />
<strong>em</strong> “autoridade” altamente r<strong>em</strong>unerada.<br />
Uma análise de caso pedagógica consiste<br />
<strong>em</strong> comparar o típico servi<strong>do</strong>r público e um<br />
típico concurseiro: o primeiro, o procura<strong>do</strong>r<br />
da República Celso Três, <strong>do</strong> Paraná; o segun<strong>do</strong>,<br />
o procura<strong>do</strong>r Ailton Benedito, de<br />
Goiás.<br />
O primeiro fez carreira no próprio Ministério<br />
Público, consagran<strong>do</strong>-se nas investigações<br />
<strong>do</strong> Banesta<strong>do</strong>, um trabalho m<strong>em</strong>orável que<br />
terminou abafa<strong>do</strong> pelas autoridades superiores.<br />
Ignorou-se sua experiência no campo<br />
de batalha e foi isola<strong>do</strong> no interior <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.<br />
O segun<strong>do</strong> é um concurseiro que busca<br />
reconhecimento <strong>em</strong> bobagens inomináveis,<br />
como intimar o Itamarati a tomar providências<br />
contra a Venezuela por convocar jovens<br />
<strong>do</strong> Brasil para suas milícias digitais – a<br />
convocação era na Vila Brasil, subúrbio de<br />
Caracas.<br />
Três jamais exporia o MPF a vexames, por ter<br />
feito a carreira no trabalho. Ou seja, criou<br />
uma lealdade e assimilou uma cultura <strong>do</strong> MPF.<br />
E deve sua reputação ao trabalho de campo,<br />
não a cursos de mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>.<br />
Benedito – e outros colegas concurseiros de<br />
Goiás – não teve o menor pu<strong>do</strong>r <strong>em</strong> expor o<br />
MPF a vexames ou às jogadas políticas <strong>do</strong><br />
Instituto Millenium, por não ser servi<strong>do</strong>r público,<br />
mas “autoridade”. Intimar o Itamarati, a<br />
Secom, a presidência da República torna-se<br />
um exercício banal de poder e amplamente<br />
desrespeitoso <strong>em</strong> relação à sua corporação.<br />
Característica 3 - No concurso, o início<br />
da aposenta<strong>do</strong>ria<br />
Outra característica <strong>do</strong>s “concurseiros” é o<br />
fato de o primeiro salário ser muito eleva<strong>do</strong>.<br />
Não há estímulo a se destacar nos serviços<br />
visan<strong>do</strong> promoções. Muitos deles faz<strong>em</strong> <strong>do</strong><br />
primeiro dia no serviço público o primeiro dia<br />
da contag<strong>em</strong> regressiva para a aposenta<strong>do</strong>ria.<br />
Compare-se o padrão Benedito de Procura<strong>do</strong>r<br />
com, por ex<strong>em</strong>plo, o funcionário <strong>do</strong> Banco<br />
<strong>do</strong> Brasil. Nos anos 90, o BB deu início<br />
a um profun<strong>do</strong> processo de transformações,<br />
visan<strong>do</strong> tornar-se um banco de merca<strong>do</strong>.<br />
No final da década houve ajustes porque<br />
deixou-se de la<strong>do</strong> o fator serviço público.<br />
E constatou-se que os funcionários reagiam<br />
muito melhor quan<strong>do</strong> confronta<strong>do</strong>s com desafios<br />
de setor público. Ou seja, tinham que<br />
casar a disputa de merca<strong>do</strong> com a vocação<br />
pública. Nunca deixaram de se considerar<br />
servi<strong>do</strong>res públicos. A carreira interna<br />
permitia que os funcionários gradativamente<br />
foss<strong>em</strong> assimilan<strong>do</strong> os valores da corporação.<br />
Fala-se muito <strong>em</strong> d<strong>em</strong>ocratização trazida<br />
pelos concursos. D<strong>em</strong>ocratização foi o que<br />
o BB historicamente fez, permitin<strong>do</strong> que funcionários<br />
entrass<strong>em</strong> como contínuos e saíss<strong>em</strong><br />
como diretores.<br />
No caso <strong>do</strong>s “concurseiros”, isso não ocorre.<br />
O jov<strong>em</strong> inexperiente é joga<strong>do</strong> de chofre <strong>em</strong><br />
uma função que lhe confere salário alto e<br />
poderes de Esta<strong>do</strong>. A partir dali, t<strong>em</strong>-se uma<br />
carreira previsível e s<strong>em</strong> desafios.<br />
Motivo 1 - A perda de valores <strong>do</strong><br />
serviço público<br />
O desenvolvimento brasileiro no século 20<br />
foi fundamentalmente uma obra <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res<br />
públicos. Mesmos os cérebros que vinham<br />
de fora <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, tinham <strong>em</strong> elites da burocracia<br />
a matéria prima para <strong>em</strong>preender os<br />
grandes avanços necessários ao desenvolvimento.<br />
Banco <strong>do</strong> Brasil e Itamarati, posteriormente<br />
o Banco Central, o Planejamento,<br />
as estatais, s<strong>em</strong>pre foram fornece<strong>do</strong>ras de<br />
quadros técnicos de alta qualidade. E esses<br />
servi<strong>do</strong>res públicos tinham como missão<br />
transformar o país.<br />
Para manter acesa a chama, foram criadas<br />
instituições públicas de formação, desde a<br />
Fundação Getúlio Vargas às Escolas públicas,<br />
a ENAP (Escola Nacional de Administração<br />
Pública), a Escola de Administração<br />
Fazendária.<br />
No perío<strong>do</strong> Bresser-Pereira no Planejamento,<br />
e <strong>em</strong> bom perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo Lula e início<br />
<strong>do</strong> governo Dilma, sentia-se uma sede de<br />
modernização no serviço público, de participar,<br />
de trazer novas ferramentas de gestão<br />
e planejamento.<br />
Hoje <strong>em</strong> dia, perderam-se os liames que<br />
uniam as gerações anteriores às novas gerações<br />
de concurseiros.<br />
Motivo 2 - O concurso <strong>em</strong> detrimento<br />
da carreira<br />
Os concursos foram essenciais para impedir<br />
o aparelhamento da administração pública.<br />
Mas aboliu-se a carreira, ao jogar os concursa<strong>do</strong>s<br />
<strong>em</strong> cargos de relevo s<strong>em</strong> o devi<strong>do</strong><br />
preparativo.<br />
Deveria haver um início mais modesto, e um<br />
plano de cargos e salários que fizess<strong>em</strong> o<br />
concurseiro crescer dentro <strong>do</strong> serviço público,<br />
entender as diversas etapas <strong>do</strong> seu trabalho,<br />
assimilar os valores e vestir a camisa<br />
de servi<strong>do</strong>r público. Com muito orgulho.<br />
Empenha<strong>do</strong>s na luta comum<br />
para um serviço público <strong>do</strong><br />
tamanho <strong>do</strong> Brasil!