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Jornal O Claustro - 4ª ed - 2016

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SPOT DE CULTURA<br />

As Chaves do Castelo de Nietzsche<br />

‘’Os homens póstumos – eu, por exemplo – são mais mal compreendidos do que os homens atuais, mas<br />

melhor ouvidos. Com mais rigor: nunca somos compreendidos – e daí a nossa autoridade”<br />

Nietzsche, 1888<br />

O texto que escrevo tem como fim entregar<br />

as chaves para as portas do castelo de Fri<strong>ed</strong>rich<br />

Nietzsche, aos interessados em penetrar as muralhas<br />

do pensamento do que foi um dos mais importantes<br />

filósofos da modernidade, influência de obras<br />

como as de Fernando Pessoa e Sigmund Freud.<br />

A primeira chave: Niilismo. Normalmente, o<br />

niilista é visto como aquele que nega a existência de<br />

valores e de um sentido para a vida. Todavia, essa<br />

conceção é contrária àquela que Nietzsche utiliza,<br />

quando emprega a palavra (e o pior é que não avisa<br />

o leitor de que o faz). Segundo ele, o verdadeiro<br />

niilista é aquele que nega a vida, em prole de pretensos<br />

valores superiores, sejam eles a honestidade, o<br />

altruísmo, o não-matar. A argumentação desta tese<br />

é simples: se a vida muda; se nós não somos aqueles<br />

que éramos no instante que acabou de passar;<br />

então, cunhar valores que transcendem o tempo e o<br />

espaço (o contexto), só poderá ser erróneo, negando<br />

assim o óbvio devir (movimento permanente de mudança<br />

no estado das coisas) que se manifesta aos<br />

nossos olhos.<br />

A segunda chave: Os Ideais. O ideal representa<br />

na obra nietzschiana uma contaminação da<br />

realidade. Ao possuirmos ideias formadas acerca<br />

de como deve ser a vida, tendemos a desprezar o<br />

que temos. Suponhamos que alguém tem como<br />

objetivo estudar em Harvard, porque acha que para<br />

ser fantástico precisa de se formar por essa instituição,<br />

mas tudo o que consegue é estudar em<br />

Trás-os-Montes, daqui resultará uma depreciação<br />

daquilo que tem acompanhada de uma frustração.<br />

No livro ‘’O Crepúsculo dos Ídolos’’, o filósofo defende:<br />

a destruição dos ideais; o deixar de almejar<br />

o que não se tem (porque está fora da realidade); a<br />

aceitação da realidade tal qual ela é. O amor fatido<br />

qual Nietzsche nos fala é isto mesmo, o amor pelas<br />

coisas tal qual elas são, pelo que temos e somos,<br />

com todas as suas rugas, sardas e sinais.<br />

A terceira chave: Deus Está Morto. Em<br />

’Gaia Ciência’’, o filósofo surpreende o leitor com<br />

‘a afirmação, ‘’Deus está morto’’, uma frase suficientemente<br />

forte para fazer cair da cadeira os<br />

leitores desprevenidos. Ao proferir estas palavras,<br />

Nietzsche denuncia o fim de uma forma de pensar<br />

que aterrorizou a humanidade durante séculos<br />

– o término da estrutura de pensamento religioso.<br />

Com a morte de Deus, conceitos como o Bem e o<br />

Mal, o Céu e o Inferno, desaparecem. Desaparece<br />

também a perceção de que fora da Terra a vida<br />

é melhor do que na Terra, fulminam-se todas as<br />

formas de pensamento que opõe o real ao ideal.<br />

Chave última: O Eterno Retorno. A filosofia<br />

de Fri<strong>ed</strong>rich Nietzsche é gentil para quem não a<br />

segue, não há inferno, não há punição, não procura<br />

seguidores. É baseada no ‘’querer’’ pessoal.<br />

Somos por ela brindados com um mecanismo de<br />

uma genialidade incrível: O Eterno Retorno, que se<br />

baseia na sublime conceção da felicidade apresentada<br />

em ‘’Assim Falava Zaratustra’’, este livro<br />

diz-nos que a felicidade é aquele instante que<br />

queremos que dure para sempre. Viver de acordo<br />

com o Eterno Retorno significa passear pela vida<br />

fazendo somente aquilo que faríamos um número<br />

infinito de vezes, sem fórmulas, sem passado ou<br />

futuro.<br />

As obras de Nietzsche foram escritas<br />

consoante as coisas lhe vinham à<br />

cabeça, por isso não existem secções propriamente<br />

ditas em que possamos separar<br />

a moral, da beleza, de tudo o resto. Estamos<br />

em contacto com todo o pensamento<br />

nietzschiano em cada frase que lemos.<br />

Isto faz dos livros um desafio, como tal, a<br />

minha recomendação é que os potenciais<br />

leitores comecem por ler ‘’O Crepúsculo<br />

dos Ídolos’’, que poderá ser encomendado<br />

na Alm<strong>ed</strong>ina Arco (ou requisitado na<br />

biblioteca geral). A tentação de adquirir<br />

‘’Assim Falava Zaratustra’’, livro da moda, o<br />

apogeu da obra de Nietzsche, poderá ser<br />

grande, contudo, de que vale ler um livro<br />

que não entendemos?<br />

Rui Carreira<br />

O <strong>Claustro</strong> Página 4

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